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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.20 no.1 Goiânia jun. 2014

 

ARTIGOS - ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

 

Dependência química e abordagem centrada na pessoa: contribuições e desafios em uma comunidade terapêutica

 

Drug addiction and person centered approach: contributions and challenges in a therapeutic community

 

Adicción y ECP: los aportes y desafíos del enfoque en una comunidad terapéutica

 

 

Rafaella Medeiros de Mattos BritoI; Tiago Monteiro SousaII

IMestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará. Endereço institucional: Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Departamento de Psicologia. Av. da Universidade, 2853 - Benfica, Fortaleza - CE, CEP 60020-181. E-mail: rafaellammb@gmail.com
IIGraduado em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará, atuando como Psicólogo Clínico em Fortaleza - CE. E-mail: tiago.ms@outlook.com

 

 


RESUMO

Diante dos debates sobre as possibilidades de tratamento para a dependência química no Brasil, expomos neste artigo um pouco da nossa experiência no setor de psicologia de uma Comunidade Terapêutica. Tendo como referencial teórico a Abordagem Centrada na Pessoa, de Carl Rogers, deparamo-nos com questionamentos que se apresentaram a partir da prática e da reflexão sobre nossa atuação: a novidade que é a psicoterapia para os participantes; os desafios de estarmos em um setting terapêutico diferente daquele no qual fomos formados para atuar; o trabalho multidisciplinar; e o carácter focal dos nossos serviços. Propomos, então, alguns caminhos possíveis que nos ajudaram a alcançar resultados positivos no desenvolvimento pessoal daqueles que estavam em tratamento para dependência química.

Palavras-chave: Abordagem centrada na pessoa; Dependência química; Comunidade Terapêutica.


ABSTRACT

Given the debates about the possibilities of treatment for chemical dependency in Brazil, we expose in this article some of our experience in the psychology department of a Therapeutic Community. With the Person-Centered Approach, of Carl Rogers, as our theoretical reference, we faced questions that appeared from our practice and reflection on our professional proceeding: the novelty of psychotherapy for the participants; the challenges of being in a therapeutic setting other than the one in which we were trained for; the multidisciplinary work; and the focal characteristic of our services. Therefore, we propose some possible paths that helped us achieving positive results regarding personal development of those who were in treatment for chemical dependency.

Keywords: Person centered approach; Drug addiction; Therapeutic community.


RESUMEN

Considerando los debates sobre las posibilidades de tratamiento para la adicción en Brasil, exponemos en este artículo un poco de nuestra experiencia en el departamento de psicología de una Comunidad Terapéutica. Con el Enfoque Centrado en la Persona, de Carl Rogers, como nuestra referencia teórica, cuestiones se suscitaron acerca de nuestra práctica y reflexión sobre nuestro procedimiento profesional: la novedad de la psicoterapia para los participantes; los desafíos de estar en un entorno terapéutico distinto de aquel en que fuimos entrenados para actuar; el trabajo multidisciplinario; y la característica focal de nuestros servicios. Por lo tanto, proponemos algunas rutas posibles que nos ayudaron a lograr resultados positivos para el desarrollo personal de los que estaban en tratamiento para la dependencia química.

Palabras-clave: Enfoque centrado en la persona; Adicción; Comunidad terapéutica.


 

 

Introdução

O debate sobre as possibilidades e as formas de tratamento da dependência química, assim como a troca de experiências que têm gerado resultados positivos, é um tema atual. Isso se dá pelo esforço que a sociedade brasileira vem fazendo para oferecer formas de ajuda para milhares de homens, mulheres e crianças que se veem dependentes de substâncias psicoativas. Sendo a maioria dependentes do crack e do álcool. Quanto às possibilidades de tratamento, de acordo o mapeamento feito pela Secretaria Nacional Antidrogas - SENAD (2007), a maioria das instituições governamentais e não-governamentais, definem-se como comunidades terapêuticas. "Das 1.256 instituições de tratamento, 483, ou 38,5% da amostra, classificam-se nessa categoria. Em seguida, aparecem os Centros de Atenção Psicossocial de Álcool e Drogas (CAPSad), com 153 (12,2%); e os grupos de auto-ajuda, com 124 (9,9%)" (SENAD, 2007, p. 86).

Este trabalho tem como objetivo apresentar a atuação do Setor de Psicologia em sua prática clínica dentro de uma Comunidade Terapêutica para dependentes químicos, localizada na cidade de Fortaleza, CE. Com base nos conhecimentos adquiridos durante nosso percurso na Universidade e diante do desafio de tratar dependentes químicos em regime de internamento, questionamo-nos acerca de nossa atuação e dos limites da nossa prática.

Os autores trabalharam durante um ano na mesma Comunidade Terapêutica, realizando atendimentos psicoterápicos com os internos. Embasados pela Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), deparamo-nos com uma realidade diferente daquela para a qual fomos formados. O enquadramento, o contexto e o público eram diferentes. Nossa atuação passa do conhecido setting terapêutico da clínica para uma instituição que conta com outros serviços além da Psicologia, e em que a psicoterapia se insere e deve ser adaptada à dinâmica peculiar da instituição, com suas características e objetivos próprios. Podemos, então, caracterizar esse trabalho como interdisciplinar e focal.

Nesse contexto, ao refletirmos sobre nossa prática, elencamos alguns questionamentos que serão nosso ponto de partida: Como oferecer um serviço de psicoterapia "obrigatório" que não parte da demanda espontânea do cliente que nos procura? Existem diferenças nas intervenções do psicoterapeuta, considerando as peculiaridades do público-alvo? Quais os limites que a dinâmica da instituição impõe a nossa prática? Quais as diferenças entre a atuação de um psicólogo na clínica particular e em uma instituição com regras próprias? Como ser, ao mesmo tempo, o lugar de confiança e acolhimento do cliente e ter uma atitude educativa que impõe limites ao interno? A partir das necessidades de ajustes da teoria da ACP, ainda estaria se trabalhando com a teoria de Rogers? E, por fim, de que maneira a psicoterapia pode ser útil no enfrentamento da dependência química? Este trabalho é uma tentativa de sugerir caminhos possíveis.

 

1. Nosso olhar perante o sujeito: a abordagem centrada na pessoa

A Abordagem Centrada na Pessoa foi criada pelo norte-americano Carl Rogers, que desenvolveu sua teoria de 1940 a 1987. Durante mais de 40 anos, Rogers presenciou e escreveu sobre o crescimento humano. Sua teoria teve como ponto de partida a não-diretividade, quando Carl Rogers propõe que o terapeuta saia da posição de especialista e deixe o cliente guiar o próprio processo. A partir dos anos 50, Carl Rogers passa a privilegiar uma atitude mais ativa do psicólogo, que deveria ter o cliente, e não o problema, como foco. Já em sua última fase, ligada à psicoterapia, antes de voltar-se para atividades de grandes grupos, o autor propõe que o foco seja dado à relação terapêutica, dando ênfase à experiência vivida pelo cliente na relação com o terapeuta (Moreira, 2010).

A Abordagem Centrada na Pessoa se fundamenta na valorização do indivíduo que busca ajuda. A ideia central da abordagem se apoia no conceito de Tendência Atualizante (Rogers & Kinget, 1965/1977), que é uma tendência inata de todo organismo ao crescimento, maturidade e atualização de suas potencialidades. Rogers tinha, então, uma visão positiva do homem. Seu foco eram as potencialidades, e não a doença de seus pacientes. Ele acreditava que, se fossem dadas as condições necessárias para o indivíduo se desenvolver, este caminharia no sentido da maturidade e da socialização.

A outra base de crescimento do indivíduo seria sua Noção do Eu (Rogers & Kinget, 1965/1977): a experiência que todo indivíduo possui de si mesmo, como se vê, quais potencialidades e defeitos julga possuir. Segundo a teoria rogeriana, a tendência atualizante é a energia, e a Noção do Eu é a direção que determina o comportamento do indivíduo. A Tendência Atualizante busca a conservação, a adaptação e o enriquecimento do eu, mas isso dependerá de como o indivíduo vivencia determinada situação. Podemos concluir que a tendência à atualização terá maior eficácia quanto mais realista for a Noção do Eu, ou seja, quanto mais próxima esta for da experiência do indivíduo. O processo psicoterapêutico deve fornecer os meios necessários para que o indivíduo realize seu crescimento pessoal da forma mais autêntica possível.

Segundo Rogers (1961/2009), o papel do psicólogo, dentro desta abordagem, seria o de fornecer estas condições para o crescimento humano e, confiando na capacidade de todo ser humano para descobrir os melhores caminhos para si, colocar-se na posição de um companheiro nesta busca, e não de um guia que direciona o cliente. Este pensamento foi bastante inovador em uma época em que os médicos e psicólogos eram detentores do saber e julgavam conhecer o que era melhor para seus clientes. Rogers, ao contrário, acreditava que o cliente é a maior autoridade sobre si mesmo e este poderia desenvolver suas potencialidades se lhe fossem dadas as condições facilitadoras do crescimento.

As condições necessárias e suficientes que Rogers (1961/2009) propõe para um bom processo terapêutico, que promova a mudança de personalidade, são: a) Empatia: significa penetrar no campo vivencial do outro e perceber sua realidade como ele a percebe, sendo capaz de compreender seus sentimentos, diferenciando a experiência do terapeuta da do cliente. O terapeuta deve suspender os próprios pontos de vista e valores, para entrar no mundo do outro sem preconceitos. Ser empático é mergulhar no mundo interno do outro, percebendo os significados que ele percebe e os que ele quase não percebe, ao mesmo tempo em que se comunica essa compreensão ao cliente; b) Congruência: ser congruente significa ser autêntico na relação, ser capaz de experienciar e tomar consciência dos sentimentos que o cliente e aquela relação provocam no terapeuta, podendo expressá-los se achar construtivo para o processo. A congruência se dá quando o terapeuta, como pessoa, consegue encontrar-se efetivamente com o cliente, sem resistências ou temores; e c) Aceitação Positiva Incondicional: é uma consideração integral por tudo o que o cliente é e traz para a terapia, sem qualquer tipo de julgamento. É uma abertura à diferença do outro. Sentindo-se aceito, o cliente é capaz de expressar livremente todos seus sentimentos, apropriando-se melhor deles.

Rogers (1961/2009) acredita que agindo segundo estas três condições, o psicoterapeuta oferece uma atmosfera de calor e segurança que favorece a exploração do cliente e de seus questionamentos. O terapeuta deve acompanhar o fluxo da experiência do cliente e devolver o sentimento implícito no conteúdo que ele expressa, para que

o cliente se aproxime cada vez mais de sua experiência. Deve, portanto, refletir sobre os sentimentos que empaticamente percebeu que o cliente exprime, fazendo ressoar sua experiência, sem cair em uma atitude interpretativa. Esta resposta reflexiva, além de fazer com que o cliente se aproxime de sua experiência, faz com que este se sinta compreendido ou, às vezes pela primeira vez, que sinta que é digno de importância, apreço e interesse. O cliente sente-se, então, livre para mergulhar em sua experiência. E é, assim, que descobrirá seu poder pessoal e as respostas que, inicialmente, esperava do terapeuta. Destarte, segundo Rogers (1961/2009):

Quanto mais o cliente percebe o terapeuta como uma pessoa verdadeira ou autêntica, capaz de empatia, tendo para com ele uma consideração incondicional, mais ele se afastará de um modo de funcionamento estático, fixo, insensível e impessoal, e se encaminhará no sentido de um funcionamento marcado por uma experiência fluida, em mudança e plenamente receptiva dos sentimentos pessoais diferenciados. A conseqüência desse movimento é uma alteração na personalidade e no comportamento no sentido da saúde e da maturidade psíquicas e de relações mais realistas para com o eu, os outros e o mundo circundante (p.77).

 

2. Conhecendo a instituição e o público atendido

Antes de iniciarmos a caracterização dos nossos clientes, faz-se necessária uma apresentação da instituição da qual fizemos parte, para termos uma maior compreensão do público assistido. Nossa atuação ocorreu no Setor de Psicologia de uma Comunidade Terapêutica, uma instituição filantrópica de orientação cristã-evangélica, que funciona há mais de trinta anos em Fortaleza, CE. Graças à visão ampla do fundador sobre a dependência química, a instituição busca orientar o tratamento em cinco áreas: biológica, cognitiva, psicológica, social e espiritual. Dentro das áreas citadas e das possibilidades de tratamento oferecidas, o Setor de Psicologia oferece acompanhamento psicoterapêutico àqueles que se tratam na unidade de internamento.

O internamento é oferecido para homens a partir de dezesseis anos, que são avaliados como dependentes químicos de acordo com as orientações do CID-10 (OMS, 1993) e do DSM-IV (APA, 2002), e baseados na Resolução da ANVISA para Comunidades Terapêuticas, a RDC Nº101, de 30 de maio de 2001 (ANVISA, 2001). O período de internação tem duração de três a sete meses. Durante este tempo, os recuperandos têm atividades que buscam auxiliá-los na manutenção da abstinência, tendo como base as cinco áreas acima mencionadas: sessões psicoterapêuticas semanais, educação física, laborterapia, grupos terapêuticos com o setor de psicologia, grupos temáticos com a assistente social, aulas de supletivo e orientação cristã. A Comunidade Terapêutica é:

(...) um tratamento altamente estruturado que emprega sanções e penalidades, privilégios e prestígios determinados pela comunidade como parte de um processo de recuperação. As comunidades terapêuticas fomentam o crescimento pessoal por meio da mudança de comportamentos e atitudes individuais. Essa mudança está ambientada em uma comunidade de residentes e profissionais que trabalham juntos para ajudar a si mesmos e aos outros, tendo como foco a integração individual dentro da comunidade (Ribeiro, Figlie & Laranjeira, 2004, p.475).

Caracterizar os clientes é uma tarefa complexa, haja vista a multiplicidade de histórias de vida, de formas de envolvimento com substâncias psicoativas e de personalidades. Entretanto, podemos apresentar alguns pontos que se aplicam à maioria deles. Antes de iniciar a internação, cada indivíduo passa por uma criteriosa entrevista de anamnese e testes psicológicos aplicados pelo setor de psicologia, com o objetivo de avaliar seu grau de comprometimento psicológico, seguindo as orientações da RDC/ANVISA Nº101 de 2001, bem como por uma entrevista realizada pelas assistentes sociais, para traçar o perfil socioeconômico e a situação familiar do indivíduo que procura ajuda. É a partir desse material, de nossa experiência na instituição e das trocas com os outros profissionais que descreveremos as características predominantes do público-alvo de uma Comunidade Terapêutica.

A característica mais presente vem da própria doença. São dependentes químicos, ou seja, são dependentes de uma droga de abuso com "consumo sem controle, geralmente associado a problemas sérios para o usuário" (Bourdin, Figlie & Laranjeira, 2004, p.05). A dependência química é caracterizada pelo estreitamento do repertório comportamental, orientando as atividades diárias do usuário para o uso da droga. Percebem-se, também, sintomas de abstinência e uma busca por aliviar esses sintomas; consciência da falta de controle em relação ao uso e ampliação da tolerância, que acarreta um aumento da quantidade da substância psicoativa usada para se obter a mesma sensação, pois há uma diminuição da sensibilidade do indivíduo aos seus efeitos (Bourdin, Figlie & Laranjeira, 2004).

Com relação à realidade social, eles são oriundos, em sua maioria, de bairros que não possuem aparelhos sociais do governo suficientes para a população, contribuindo, assim, para altos índices de violência e fácil acesso às substâncias psicoativas em geral. São ex-alunos de escolas públicas que, em sua maioria, não terminaram o ensino fundamental. Bourdin, Figlie & Laranjeira (2004) apontam, também, que grande parte dos dependentes químicos foram formados em famílias desestruturadas, geralmente marcadas pela violência, pelo divórcio, pelo uso abusivo de substância psicoativa e por uma conduta permissiva por parte dos pais durante a adolescência. Apesar da desestrutura familiar, é necessário que possuam vínculos familiares para que sejam internados, segundo a RDC/ANVISA Nº101, pois o acompanhamento da família é essencial para se alcançar sucesso no tratamento. Entretanto, incluir a família do dependente químico em seu tratamento é um dos grandes desafios da equipe por, muitas vezes, já se encontrarem desacreditados e cansados. O dependente químico, frequentemente, está desempregado e não ajuda a família, além de cometer atos delituosos até mesmo com seus pares, dentro de sua própria casa, para financiar o uso das drogas.

Estes indivíduos iniciaram o uso de substâncias psicoativas na adolescência, na companhia de amigos. Têm como substância psicoativa de preferência o crack e o mesclado (cigarro de maconha misturado com crack), mas, geralmente, iniciaram com a maconha, com o álcool e com o tabaco. A ingestão de álcool está intimamente ligada ao uso da droga de preferência. E, comumente, já experimentaram comprimidos psicotrópicos e cocaína. São caracterizados, de acordo com os Narcóticos Anônimos (1993), como pessoas egocêntricas, manipuladoras, intolerantes à frustração, ressentidas e mentirosas. São dependentes de uma figura de apoio, geralmente a mãe ou a companheira, e têm dificuldade em seguir regras e rotina.

Normalmente, utilizam um serviço de psicologia e participam de um acompanhamento psicoterápico pela primeira vez em suas vidas. Não possuem uma representação conceitual do que seja psicoterapia ou a possuem de forma distante da realidade. Buscam tratamento porque, em geral, tomaram consciência de que perderam algo muito significativo ou estão prestes a perder. São movidos por uma necessidade de ajuda enorme; devido a isso, acreditam que o internamento é sua única forma de se tratar. Essa atitude de busca por ajuda se dá, na maioria das vezes, de forma impulsiva, ocorrendo de forma irrefletida, permeada por uma dificuldade de voltar-se para sua condição de forma mais subjetiva, o que ocasiona uma dificuldade de adesão à psicoterapia. A dificuldade de refletir sobre sua condição e sobre sua necessidade de ajuda, em geral, produz discursos artificiais: falam o que acreditam que gostaríamos de ouvir ou o que acreditam que irá nos mobilizar para ajudá-los. Somente após algum tempo de terapia, surge uma fala mais autêntica.

É evidente que nosso foco era a pessoa do recuperando, com sua história de vida, suas vivências e seus conceitos, bem como, a forma como ele vivenciava a dependência química. Entretanto, salientamos que esse olhar genérico, que acabamos de apresentar, auxiliará nas reflexões deste artigo.

 

3. Reflexões sobre a prática da ACP dentro de uma Comunidade Terapêutica

Tendo como referencial a Abordagem Centrada na Pessoa, orientamos nosso trabalho com dependentes químicos pautados no respeito pelo usuário enquanto pessoa e na confiança em sua recuperação. Estes são indivíduos que perderam, há algum tempo, o respeito e o apreço das pessoas a sua volta, que já foram julgados e desacreditados, inclusive, por seus familiares, que já passaram por condições subumanas por conta do uso da droga e, muitas vezes, questionaram-se se ainda havia possibilidade de mudança, se poderiam voltar a ter uma vida digna.

A postura do profissional de uma Comunidade Terapêutica deve, então, ser de acolhimento e respeito por aquele indivíduo que procura ajuda. É a partir do olhar do outro, que o valoriza como ser humano e acredita em seu potencial para a mudança de vida, que o usuário pode se perceber de forma diferente e iniciar seu processo de crescimento, acreditando que não será mais julgado, mas aceito em sua individualidade e condição de dependente.

A aceitação e a valorização do indivíduo é um grande desafio, pois os dependentes químicos ainda são taxados por estereótipos, sintomas e classificações, produzindo condutas de tratamento artificiais, generalizantes e, às vezes, preconceituosas. É nesse sentido que a postura de aceitação positiva incondicional e a crença na tendência atualizante do usuário são essenciais desde o início do tratamento, pois proporcionará uma conduta terapêutica voltada para as potencialidades e para as necessidades daquele indivíduo. Assim, a partir de sua primeira semana na instituição, o interno começa a ter sessões psicoterapêuticas semanais com o setor de psicologia.

Ao se sentir aceito desde suas primeiras falas, enquanto ainda está se adaptando à terapia, o interno passa a confiar no psicoterapeuta e a dividir com ele suas experiências. Ao longo do processo, o interno vai percebendo a autenticidade do terapeuta, sua real presença e sua disponibilidade para estar com ele, característica de uma relação que é rara para o dependente químico, que teve suas últimas relações baseadas no temor e na desconfiança, por parte dos familiares, e em ameaça e em troca de favores por parte dos vendedores das substâncias psicoativas. Portanto, a postura de congruência e a relação terapêutica apresentam-se como uma grande novidade para o interno, que passa a explorar novas faces de si através dessa relação de confiança. O interno aprende, através desta relação, que se o terapeuta está ali de forma autêntica, ele pode também estar. Não precisa mais fingir ser o que não é. Por fim, ao responder empaticamente, o psicoterapeuta contribui para que o dependente químico, que se sentia sozinho e incompreendido, sinta-se compreendido em sua experiência, passando a valorizá-la. A dependência química é tida na sociedade, constantemente, como falta de persistência e de autocontrole. Os familiares não têm a percepção da dependência química como uma doença e acreditam que o indivíduo está naquela situação porque ele quer e que poderia sair dela por sua própria força de vontade. Portanto, julgam e recriminam o dependente químico, contribuindo para a construção de uma "noção de Eu" em que ele se vê como pessoa menos capacitada, fraca e má. Esta "noção de Eu" é contraditória com a experiência do sujeito de querer parar de usar a substância, mas não conseguir. É nesse estado de incongruência que o indivíduo chega até a Comunidade Terapêutica.

A incongruência é definida como um estado (geralmente desassossegado) em que existe uma discrepância entre o eu, tal como é percebido, e a experiência presente no organismo total - tudo que é potencialmente disponível à consciência, que está ocorrendo no organismo em um dado momento (Wood, 1983, p. 48).

Esse estado de incongruência gera sofrimento. O papel do terapeuta, portanto, é contribuir para que a "noção de Eu" do interno se aproxime da sua experiência vivida. O terapeuta deve proporcionar uma atmosfera que possibilite a mudança do indivíduo. Segundo Rogers (1957/2008), as condições para que ocorra uma mudança construtiva de personalidade são:

1) Que duas pessoas estejam em contato psicológico; 2) Que a primeira, a quem chamaremos cliente, esteja num estado de incongruência, estando vulnerável ou ansiosa; 3) Que a segunda pessoa, a quem chamaremos de terapeuta, esteja congruente ou integrada na relação; 4) Que o terapeuta experiencie consideração positiva incondicional pelo cliente; 5) Que o terapeuta experiencie uma compreensão empática do esquema de referência interno do cliente e se esforce por comunicar esta experiência ao cliente; 6) Que a comunicação ao cliente da compreensão empática do terapeuta e da consideração positiva incondicional seja efetivada, pelo menos num grau mínimo (p. 157-158).

Todas essas condições se faziam presentes em nossa prática na Comunidade Terapêutica, que se pautava no exercício das condições facilitadoras propostas por Carl Rogers. Acreditamos, assim, que o exercício de nossa prática clínica contribuía para a mudança da personalidade, da mesma forma que proposto por Rogers (1957/2008), bem como para o sucesso no tratamento para a dependência química. Quais as diferenças, no entanto, da psicoterapia realizada em uma clínica particular para a realizada nas condições de uma Comunidade Terapêutica?

Primeiramente, o enquadramento e o setting terapêutico são bastante diferenciados. A dinâmica da instituição não permitia que cada interno tivesse dia e hora fixos para o atendimento. Isso fazia com que o interno não soubesse quando seria atendido, sabia apenas que semanalmente teria sua sessão. Não sabemos em que medida esta característica influenciou no processo, mas vale ser ressaltada esta diferença da clínica particular, em que, após o contrato entre terapeuta e cliente, é combinado dia, hora e honorários. Existe, assim, uma atitude ativa do cliente e um compromisso deste com seu processo psicoterapêutico. Um processo que ele mesmo buscou, através da procura voluntária pela psicoterapia.

Ao fazer parte do quadro obrigatório de atividades do interno, a psicoterapia perdia um pouco de seu caráter de compromisso com o psicoterapeuta e ganhava uma conotação de responsabilidade e de dever do interno com seu tratamento e com a instituição. O não comparecimento, quando o interno era chamado pelo psicólogo, seria considerado motivo de advertência e de punição, semelhante ao descumprimento de qualquer outra regra da instituição. Chegava aos psicólogos, então, um paciente sem demanda, que nas primeiras sessões falava pouco ou que solicitava ao profissional que o fizesse perguntas, pois ele mesmo não tinha nada para falar, mas estava aberto a responder qualquer indagação que o psicólogo viesse a fazer.

A sessão inicial, geralmente, era de apresentação da psicoterapia. Muitos deles nunca tiveram acesso a tal serviço, e, por isso, não sabiam como usá-lo. Chegavam, então, com a ideia de que seriam questionados, assim como fazem os médicos em entrevistas de anamnese ou os policiais em interrogatórios. Agiam como se estivessem, mais uma vez, em frente a uma figura de poder, tendo que testemunhar a seu favor. Desse cenário, surgem os discursos institucionalizados. Muitos falam o que julgam ser aquilo que o profissional deseja ouvir, como, por exemplo, que estão bem, que querem mudar de vida, trabalhar e constituir uma família. São discursos estereotipados para ganhar a confiança do profissional, que é visto como a figura que decidirá por ele. Deliberará, por exemplo, se ele pode evoluir no processo, se merece e está preparado para sair e visitar sua família. O discurso institucionalizado afasta o recuperando de sua experiência e isso o impede de construir um caminho de crescimento mais autêntico, mais congruente.

Ao longo do processo terapêutico, o interno vai saindo dos discursos rígidos e estereotipados para a vivência de forma fluida, com novos sentimentos. Isso nos remete aos sete estágios do processo terapêutico que Rogers (1961/2009) explicita. No primeiro estágio, o indivíduo se encontra distante de sua experiência e, dificilmente, irá de boa vontade à terapia, falando apenas sobre assuntos exteriores. Ainda não existe desejo de mudança e os problemas pessoais não são reconhecidos (Rogers, 1961/2009). Esta é, possivelmente, a forma como o indivíduo chega até a Comunidade Terapêutica. Ao longo do processo psicoterápico, os estágios seguintes evoluem em um continuum de maior aproximação da experiência, até que no último estágio:

São experimentados novos sentimentos de modo imediato e com uma riqueza de detalhes, tanto na relação terapêutica como fora a ela. A experiência de tais sentimentos é utilizada como um claro ponto de referência. O cliente procura com absoluta consciência utilizar esses pontos de referência para saber de uma forma mais clara e mais diferenciada quem é, o que deseja e quais são as suas atitudes. Isto é verdade mesmo que os seus sentimentos sejam desagradáveis ou provoquem temor (Rogers, 1961/2009, p. 172-173).

Mesmo cientes de que o curto período de internamento não é suficiente para que o indivíduo chegue ao sétimo estágio, foi baseado nele que atuamos, por entender que ao adquirir uma maior intimidade consigo, tornando-se mais congruente e capaz de reconhecer suas experiências, o recuperando estaria se fortalecendo para enfrentar a dependência química, tornando-se apto a reconhecer as motivações que o levam a usar drogas, a reconhecer uma crise de abstinência e os momentos em que se sente impelido a usar a droga novamente, podendo, assim, evitar a recaída. O alcance de uma maior congruência possibilita ao interno perceber o significado da substância psicoativa em sua vida e a função que ela ocupava. E, acima de tudo, a psicoterapia permite que o indivíduo torne-se livre e capaz de tomar suas próprias decisões, ciente de todas suas consequências.

Para que isso aconteça, o trabalho inicial do psicólogo é colocar-se à disposição enquanto parceiro que quer caminhar junto com o interno e desconstruir a visão de que está lá para vigiá-lo, para descobrir suas falhas e para medir seu sucesso. Entretanto, devido a um trabalho interdisciplinar era necessário que seu desenvolvimento fosse avaliado em reuniões de estudo de caso, pois nosso parecer influenciava nos encaminhamentos, mudanças de tratamento e transferência do internamento para outra modalidade de tratamento. Sendo nosso compromisso com o tratamento do cliente, a psicoterapia teria, dessa forma, um objetivo diferente do objetivo tradicional da clínica particular. A psicoterapia proposta por Carl Rogers não estabelece metas definidas que devem ser alcançadas, mas facilita o crescimento pessoal do indivíduo, que ao tomar posse de seu poder pessoal (Rogers, 1977/2001), torna-se capaz de resolver seus próprios problemas. A psicoterapia realizada na referida comunidade tinha um objetivo bem definido: ajudar o interno em seu processo de recuperação.

A psicoterapia é apresentada como um espaço onde o recuperando tem a oportunidade de falar de si e de seu momento, não se restringindo apenas ao tratamento, podendo falar dele como um todo, incluindo suas relações pessoais, sua história de vida e seus projetos futuros. Dávamos aos internos a liberdade de usar aquele momento como quisessem, podendo, inclusive, ficar calados. Contudo, em alguns momentos, tínhamos que direcionar a temática devido ao tempo de internamento, que é pequeno, em relação ao tempo médio de uma psicoterapia. Devido ao pouco tempo de atendimento, no máximo sete meses, fazia-se necessário que assumíssemos, em alguns momentos, uma atitude de focalização de um tema específico. Ao longo da fala do interno, ressaltávamos determinados conteúdos que julgávamos serem pertinentes ao seu tratamento. Porém, o recuperando tinha total liberdade de recusar nosso convite para a reflexão do tema.

É preciso diferenciar uma atitude diretiva, que é uma postura de detenção do saber por parte do psicoterapeuta, em que a solução das questões do cliente está com o psicoterapeuta, e não com o cliente, de uma metodologia de focalização que apresenta temáticas trazidas por este último, das quais ele pode não ter consciência de sua importância para o tratamento. De acordo com Rogers (1942/1997), no método diretivo, o psicólogo faz um diagnóstico e considera-se superior ao cliente, sendo, por isso, capaz de descobrir as causas de seu problema e de delinear uma solução a ser seguida. O foco do processo é o problema e seus sintomas, sendo responsabilidade do psicólogo a direção do tratamento. Por este motivo, o psicólogo, frequentemente, fala mais que o cliente durante a sessão. Segundo Rogers (1942/1997), há um:

(...) contraste fundamental entre o grupo diretivo que acentua as técnicas que controlam a entrevista e orientam o cliente para um objetivo marcado pelo psicólogo e o grupo não diretivo que acentua os meios que levam o cliente a ser mais consciente das suas próprias atitudes e sentimentos, com a subsequente ampliação da autocompreensão (p. 122-123).

Nossa postura enquanto psicoterapeutas não era, portanto, diretiva, pois respeitava a liberdade do discurso do cliente, não trazia questionamentos anteriores ao seu discurso e não o "obrigava" a falar de determinada temática. Porém, a partir do que o recuperando ressaltava, focávamos os conteúdos que tinham maior relação com o tratamento. Apesar de não ser diretivo, o psicólogo, inevitavelmente, direciona, pois não há imparcialidade em nenhum discurso. Qualquer apontamento e intervenção que o psicólogo faça, direciona de alguma forma o discurso do cliente. Porém, privilegiamos uma metodologia marcada pelo "predomínio da atividade do cliente, que assume a maior parte da conversação sobre os seus problemas. As técnicas fundamentais do psicólogo são as que ajudam o cliente a reconhecer com maior clareza e a compreender os seus sentimentos" (Rogers, 1942/1997, p. 123). Além disso, o estilo de nossos atendimentos possuía duas características exemplificadas por Rogers (1942/1997) como apropriadas ao método não-diretivo, por se distanciarem dos conselhos e persuasões próprios ao método diretivo. São elas: "Conduzir a discussão para um ponto que tivesse sido omitido ou desprezado. (...) Analisar afirmações implícitas, se for aconselhável" (p. 124). Nossa postura, portanto, era a de conduzir o interno a pensar sobre seu tratamento, destacando pontos em que o recuperando não se aprofundava, mas sem julgar saber quais soluções seriam melhores para ele.

Os temas focados eram relacionados com a realidade da dependência química, que era nossa tese inicial para a reflexão. Era preciso compreender a função que a droga assumia na vida do recuperando, como ele vivenciava a abstinência, quais as situações que estavam relacionadas ao uso, quais mecanismos de proteção ele possuía e reconhecia como tais. Outros temas que se faziam necessários observar eram: a convivência com os outros internos, como estava a vivência da rotina, dos horários, das regras; e, uma das mais importantes perguntas: como o internamento estava se inserindo dentro da dinâmica maior do tratamento em dependência química.

Há uma facilidade, no senso comum, de olhar para o internamento como uma fuga, por isso, era imperativo trabalhar o sentido do internamento para o tratamento daquele sujeito. O internamento é somente uma etapa e uma das formas de tratamento existentes para a dependência química. O que ele absorveu desse processo? O interno teve novas aprendizagens e mudanças? Estar internado não é apenas uma questão de passar um tempo longe das drogas. Se fosse somente isso, não haveria tantas atividades que promovessem uma verdadeira mudança no interno. O tempo, em si, nada faz. O sucesso do internamento vai depender do que o interno absorver desta experiência.

Por outro lado, estar bem não é apenas estar bem no internamento, pois seu grande objetivo é preparar o sujeito para atuar na sociedade. Por isso, eram trabalhadas, também, questões como: construção de projetos de vida, relações pessoais e abstinência no cotidiano. Pois, é para o mundo de onde veio que o interno vai voltar. A Comunidade Terapêutica não pode ser uma proteção deste mundo, mas uma preparação e um fortalecimento para enfrentá-lo.

Outra questão que surgia durante o processo psicoterapêutico era a nossa conduta com relação ao sigilo ético, com o que era dito e com as informações que repassávamos à equipe, em estudo de caso. Os assuntos tratados em atendimento deveriam ficar restritos à relação psicoterapeuta e cliente. Entretanto, constantemente, éramos convocados a dar um parecer técnico sobre a evolução do cliente. Era preciso ter em mente o referencial de comportamentos esperados, para que pudéssemos comparar como o recuperando estava em relação a este padrão. Esse referencial era elaborado pela equipe técnica a partir da experiência e do estudo. Assim, evitávamos expor, durante estudo de caso, a fala do cliente e aquilo que foi tratado em atendimento para o estudo de caso. Procurávamos traduzir sua fala em termos de indicativos, e não de conteúdos. Destarte, respeitávamos o sigilo que devemos ao nosso cliente e cumpríamos nossa função para com a equipe.

Outro grande desafio que enfrentávamos, enquanto psicólogos, era a conciliação de dois papéis: além da postura terapêutica não diretiva, uma conduta educativa para com o interno. Há, assim, um conflito latente entre a autoridade e a permissividade, pois, como parte da equipe, o psicólogo também deveria atuar em alguns momentos fora do setting terapêutico, buscando defender a visão de tratamento da instituição, bem como mantendo a ordem de acordo com as regras desta.

Oferecer psicoterapia para um público que tem dificuldade de enfrentar seus problemas e, talvez por isso, procurou refúgio na substância química é um grande desafio. O convite para a exploração de suas experiências é audacioso, mas tivemos resultados bastante encorajadores, tendo os próprios internos relatado a importância da psicoterapia em seu processo.

 

Algumas conclusões

A relevância deste trabalho diz respeito ao grave contexto da dependência química que o Brasil vem enfrentando durante os últimos anos. Esta é uma realidade para a qual a Universidade pouco nos prepara para atuar. Percebemos, assim, a importância de se compartilhar metodologias e experiências entre profissionais interessados ou que atuam na área, para que possamos, cada vez mais, expandir nossa atuação para além dos consultórios particulares e levar nosso saber para outros espaços de cuidado em saúde mental.

Nossos questionamentos iniciais deviam-se a pouca literatura disponível acerca do diálogo entre a ACP e tratamento da dependência química. Os limites e imposições estruturais e institucionais nos fizeram perceber, desde cedo, que os atendimentos seriam diferentes de uma psicoterapia tradicional. Rogers, porém, não propôs a ACP para ser usada com um público específico, ou em um setting específico, acreditando que esta se tratava muito mais de uma atitude do que de uma metodologia. Rogers utilizou-se da ACP para trabalhar não só na psicoterapia, mas na educação, em grandes e pequenos grupos, e, inclusive, em conflitos globais.

Diante dos ajustes necessários à prática psicoterápica proposta por Carl Rogers, para que fosse possível realizar os atendimentos nos limites institucionais de uma Comunidade Terapêutica, podemos nos questionar: Estaríamos, ainda, trabalhando com a ACP? De fato, reconhecemos que o atendimento clínico do qual tratamos possui fortes divergências com o que Carl Rogers propôs, visto que não é possível exercer a completa não diretividade e não obrigatoriedade dos atendimentos. Além disso, as sessões já servem a um fim esperado e pré-determinado: a abstinência da substância e a conclusão do tratamento. Os atendimentos estão inseridos dentro de uma dinâmica maior, um trabalho interdisciplinar, em que o psicólogo trabalha em parceria com outros profissionais, visando à melhora do interno.

Portanto, parte das sessões é partilhada com a equipe, quebrando o total sigilo terapêutico. Essa característica, porém, não faz com que o serviço de psicologia prestado para o interno se diferencie da clínica tradicional, onde o terapeuta trabalha, na maioria das vezes, sozinho. É importante lembrar que, mesmo na clínica tradicional, o psicoterapeuta é, em alguns casos, convidado a dialogar com o psiquiatra que também atende seu cliente que faz uso de medicamentos, com a escola onde estuda a criança ou com a família de um cliente com ideação suicida, por exemplo. Nesses casos, o psicólogo se vê frente ao desafio de conversar sobre o seu cliente com pessoas de outras áreas da vida deste, sem desrespeitar a ética e a confiança, próprias da relação terapêutica.

A respeito do objetivo preexistente que a psicoterapia em uma Comunidade Terapêutica carrega e a subsequente necessidade de convidar o indivíduo a explorar os temas relacionados a esse fim, é importante notar que a fase "não-diretiva" foi a primeira fase da teorização de Carl Rogers (Moreira, 2010), tornando-se o psicólogo, ao longo das fases seguintes, cada vez menos passivo e mais participativo no processo, o que nunca justificou uma postura desrespeitosa para com a liberdade e os limites do cliente. O fato de a psicoterapia servir ao tratamento da dependência química não exclui que o cliente explore outros campos de sua vida, como suas relações familiares ou como outras experiências significativas que não tenham relação com a substância química. O psicólogo não deve estar fechado a nada que o indivíduo traga.

Porém, se perdermos de vista os objetivos da instituição em que trabalhamos, nosso trabalho perde também o sentido. Por outro lado, o indivíduo que está em tratamento pode chegar a conclusões diferentes das que os profissionais esperavam. Podem decidir interromper o tratamento antes do tempo indicado (ou por não suportarem mais, ou por já se julgarem recuperados), podem optar pela redução de danos e não pela abstinência completa da substância, podem, até mesmo, decidir sair da instituição e voltar a usar substâncias psicoativas. Tomados os cuidados para que essas decisões não sejam precipitadas, oferecendo o suporte para aqueles que tentam desistir em um momento de raiva e desespero, é respeitada a decisão de cada um, mesmo que esta vá de encontro ao objetivo da instituição. Afinal, a maior contribuição de Carl Rogers para nosso trabalho é a crença de que cada indivíduo é capaz de escolher seus próprios caminhos.

Tensões entre a teoria e a prática existirão sempre que uma teoria for desafiada a estar em um novo contexto. Apesar de algumas diferenças, o cerne da ACP foi mantido em nosso trabalho clínico: uma prática baseada na crença na tendência atualizante do sujeito e em sua capacidade de desenvolver suas potencialidades e de desvendar seus próprios caminhos, se lhe for dada a atmosfera necessária, formada pelas condições facilitadoras (empatia, consideração positiva incondicional e congruência).

Inspirados pela abertura do próprio autor e embasados por seus ensinamentos básicos, passamos a construir nosso próprio modo de atuar, segundo a ACP, em uma Comunidade Terapêutica. Esperamos que este artigo sirva de interlocução para outros profissionais que, assim como nós, também se perguntam sobre como levar os pressupostos rogerianos para fora da clínica particular.

Para além do diálogo acerca da dependência psicológica, do lugar que a droga ocupa na vida do usuário e de outras questões diretamente relacionadas à droga, a psicoterapia é um ambiente seguro de escuta, que oferece ao recuperando a oportunidade de se revisar e reinventar. Parar de usar drogas envolve muito mais que o ato de não usar a substância. É uma mudança de vida como um todo, que envolve uma mudança de concepções, percepção da realidade, formas de se relacionar e prioridades de vida. É um momento de descobertas de novas possibilidades e desconstruções de antigos padrões de vida e existência.

Dessa forma, a psicoterapia se faz importante como um espaço de recriação e fortalecimento do sujeito. Vemos a Abordagem Centrada na Pessoa como potente postura terapêutica, que nos possibilita estar plenamente com o outro e lhe ajudar em sua batalha contra a dependência química, por se tratar de um enfoque que permite o contrário do que a substância psicoativa vinha fazendo na vida da pessoa: aproximá-lo de si e dos outros.

 

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Recebido em 26.04.13
Primeira Decisão Editorial em 05.07.13
Segunda Decisão Editorial em 30.11.13
Aceito em 01.12.13