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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.20 no.2 Goiânia dez. 2014

 

ARTIGOS - ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

 

Confissão e cura pela revelação da verdade escondida: é o objetivo da clínica psicológica?

 

Confession, healing and the revelation of the hidden truth: purpose of the clinical psychology?

 

¿Confesión, curación y revelación de la verdad oculta: propósito de la clínica psicológica?

 

 

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

Doutora em Psicoterapias Atuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora adjunta do Instituto de Psicologia na graduação em Psicologia e na pós-graduação em Psicologia Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: ana.maria.feijoo@gmail.com

 

 


RESUMO

A prática da clínica psicológica ou da psicoterapia tem se sustentado em pressupostos de verdade, interioridade, intervenção e cura. Assim, a verdade é aquilo que precisa ser conquistado, uma vez que quando está escondida é a grande gestora de conflitos, tensões e, até mesmo, de patologias psíquicas. Logo é tarefa do psicólogo clínico, utilizando-se de seus instrumentos e capacidade de manejo clínico, desvendar os segredos, que uma vez revelados, leva aquele que se encontra enfermo psiquicamente a encontrar o caminho da cura. A questão que se impõe é: seria essa prática um legado deixado pelo ato de confissão do cristianismo? O que aí está em jogo é o controle das verdades que se encontram no âmbito do privado? Após responder a essas questões, pretendemos apresentar uma proposta clínica que, se desembaraçando dos pressupostos de verdade como revelação de uma interioridade, possa então oportunizar modos de libertação das determinações de um tempo em que o homem se movimenta não mais com autonomia, mas como um autômato, que apenas diz amém às determinações de seu tempo.

Palavras-chave: Confissão; Verdade; Interioridade; Clínica psicológica; Cuidado.


ABSTRACT

The clinical psychology practice or psychotherapy has been sustained by presumptions of true, interiority, intervention and healing. So, the truth needs to be achieved, since when is hidden is the great conflict manager, tensions and even psychological disorders. So task of the clinical psychologist, using their instruments and clinical management, unlock the secrets, that revealed, takes one who is psychically ill find the path of healing. The question is: would this practice a legacy left by the act of confession of Christianity? What is at stake is the control of the truths that lie within the private? After answering these questions, we want to present a proposal that if untangle clinic of assumptions of truth as disclosure of an interiority, can then enhance release modes of the determinations of a time that the man moves not no longer with autonomy, but as an automaton, that says yes to determinations of his time.

Keywords: Confession; True; Inwardness; Clinical psychology; Care.


RESUMEN

La clínica psicológica o la práctica de la psicoterapia se ha mantenido en supuestos de la verdad, la interioridad, la intervención y la curación. Por lo tanto, la verdad es lo que debe conseguirse pues cuando se oculta es el generador de conflictos, tensiones y trastornos incluso psicológicos. Es tarea del psicólogo clínico, utilizando sus instrumentos y manejo clínico, encontrar los secretos, que una vez revelados, aquel que esta psíquicamente enfermo toma el camino de la curación. ¿La pregunta es: será el acto de confesión el legado dejado por el cristianismo a la psicología? ¿Lo que está en juego es el control de las verdades que se encuentran en el privado? Después de responder a estas preguntas, queremos presentar una propuesta que pretende desenredar la clínica de supuestos de la verdad como una interioridad para entonces poder libertarnos de los modos de lanzamiento de las determinaciones de un tiempo cuando el hombre se mueve ya no con autonomía, sino como un autómata, que dice amén a las determinaciones de su tiempo.

Palabras clave: Confesión; Verdad; Interioridad; Clínica psicológica; Cuidado.


 

 

Introdução

Neste trabalho pretendemos problematizar aquilo que a clínica psicológica, de modo geral, tem estabelecido como sua tarefa fundamental: a mobilização para a confissão daquele que se encontra em conflito. A revelação pela confissão passa a ser o dispositivo de cura na medida em que atua como escavadora das verdades escondidas em uma interioridade. A resolução das tensões e conflitos, oriundos da intercepção da verdade interiorizada, torna-se possível por meio do saber do clínico e de seus dispositivos de confissão na medida em que possibilitam o desvelar dos segredos daquele que se encontra enfermo psiquicamente.

Para que os psicólogos clínicos e os psicanalistas possam desvendar a verdade do indivíduo, que se encontra escondida na interioridade de sua subjetividade, faz-se necessário que os detentores do saber acerca do psiquismo tenham de antemão uma teoria acerca da verdade dessa interioridade, ou seja, uma teoria que mapeia a subjetividade. E é este saber do clínico, juntamente, com o seu manejo que permitirão, por meio ao dispositivo da confissão do adoecido, que este se dê a conhecer. E é este saber de si mesmo que conduz o individuo a sua cura, a sua libertação.

É importante ressaltar que a confissão, a partir da idade média - que tanto Kierkegaard (1844/1968) quanto Foucault (1981/2006) vão caracterizar como mundo cristão - ganha uma dimensão que era impensável no mundo grego. No mundo grego, não encontramos o dispositivo da confissão, cada qual se conduzia de acordo com a sua disposição afetiva mesmo que em diálogo com outro. Podemos constatar no diálogo de Sócrates com Laques (Mattar, 2011) que não há nenhuma pretensão de confissão da intimidade de Laques e, sim uma conversão do olhar para a existência na forma de bios. O grego antigo conhecia os limites de sua ação, na medida em que eram dados pela própria existência, daí ele se movimentava com o princípio da liberação. O cristianismo, por outro lado, cria o dispositivo da confissão como uma técnica de poder - poder pastoral - que faz com que o outro fale o que pensa, o que sente e o que faz ou ainda o que não pensa, o que não sente e o que não faz. O sacerdote, então, vai ter acesso a todos os recantos privativos do existente de modo a conduzir o que confessa à necessidade da retificação e, consequentemente, a assumir uma postura de submissão, regida pelo princípio da opressão.

E é nessa liberação do desejo humano, que no cristianismo se constitui como pecado, que encontramos o pressuposto da cura pela confissão do pecado. Cura que no cristianismo se efetiva pela redenção e, na modernidade, passa a ser tomada como correção e na psicologia recebeu a alcunha de conquista da autenticidade. Assim, o homem moderno passa a precisar falar incessantemente dele mesmo para poder encontrar a verdade de si mesmo. Dessa forma, esse homem cuida de si por meio ao conhecimento de si que é conquistado pela norma corretiva, que na atualidade já se encontra totalmente incorporada nas diferentes ordens disciplinares, dentre elas a psicologia. Já os gregos antigos cuidavam de si mesmo no caráter estético do existir, na relação singular, no silêncio. O cuidado de si como tarefa da existência nos gregos foi substituído, nos modernos, pelo saber de si, como dever que exige uma postura moralizante, corretiva sempre com o objetivo de cura.

O homem moderno herda do cristianismo a necessidade da confissão. O homem cristão se confessa para conquistar uma vida sem pecados. O homem moderno pela confissão conquista a si mesmo, desfazendo-se de suas confusões por não saber quem ele mesmo é. E, este homem ao saber de si conquista uma vida sem tensões. No cristianismo, a confissão oferecia ao homem a revelação da verdade divina, em comunhão com Deus. Na era moderna, a confissão conduz o homem à verdade que se encontra em sua interioridade, mas que foi reprimida e por isso suas perturbações, oriundas dessa repressão, devem ser descobertas em sua origem, para que o homem conquiste a sua liberação. Assim, nos gregos encontramos a liberação; no cristianismo, a opressão e na modernidade encontramos dispositivos de saber que tem o poder de devolver a liberação das repressões que reprimem o homem.

Como vimos, seria quase impossível, senão impossível mesmo, empreender uma discussão acerca da confissão, cura e verdade nas clínicas psicológicas sem estabelecer um diálogo afinado com a filosofia. Embora, sejamos nós, psicólogos, que teremos de encaminhar respostas à provocação presente no título deste trabalho, a filosofia pode nos fornecer elementos esclarecedores, permitindo-nos caminhar no sentido de encontrar caminhos possíveis. Assim, em Foucault (1976/1988) buscaremos a discussão sobre a confissão no ocidente. Sobre a cura, traremos à discussão as considerações sobre Sorge, muito detalhadamente, tratadas por Heidegger em Ser e tempo (1927/1988) e terminaremos esclarecendo as diferenças apontadas por Foucault (1981/2006) sobre o cuidar de si e o saber de si, na Hermenêutica do sujeito. E, por fim, para falarmos sobre a verdade, remetendo-nos ao modo como esta é tomada nos diferentes horizontes históricos tal como apresentada por Heidegger em Ser e tempo (1988). Em conclusão, traremos a discussão o modo como os românticos (Guinsburg, 2008) pensavam na recuperação da verdade do indivíduo pelo acesso a emoção mais original, que uma vez conquistada promovia a liberdade particular, elemento inspirador das psicoterapias (Figueiredo, 1996; Feijoo, 2011).

Após esses esclarecimentos advindos da filosofia, pensaremos a clinica em uma concepção moderna em que seu objetivo consiste em conquistar a liberdade e a resolução das tensões e dos conflitos - cura - pela revelação da verdade escondida. E, em continuação, pensaremos na possibilidade de uma clínica psicológica que prescinda de teorias sobre a subjetividade humana, da descoberta das verdades, enfim do caráter confessional, logo em uma retomada do cuidado de si, modo pelo qual o grego antigo incorporava as suas verdades.

 

1. Considerações sobre a confissão em Michael Foucault

Acompanhando as discussões de Foucault (1981/2006) sobre a confissão, vemos como o saber de si conquistado pelo ato de confessar-se a aquele que conhece a verdade seja pela luz divina, no caso o sacerdote; seja pelas verdades de uma teoria, que é uma representação do que se passa no interior da vida psíquica. Esse modo de conquistar a medida de si por meio a confissão estará no âmbito do debate de Foucault (1981/2006) sobre o modelo disciplinar que se apresenta de diferentes formas, quais sejam: médicas, jurídicas e psicológicas (Foucault, 1973/1999). Esse filósofo lançará mão, com muita frequência, em seus estudos, a título de ilustração de seus posicionamentos, a figura da psicanálise. Nós, aqui, incluiremos, nesse rol, as clínicas psicológicas. Acreditamos que, ambas, com seu dispositivo confessional na conquista do saber se si, tornam imprescindível a revelação da verdade pelo relato dos segredos mais íntimos de cada um para que, assim, ele possa conquistar o conhecimento de si. E, ainda, ambas mantêm a promessa de que com essa revelação o indivíduo pode alcançar a cura de seus males, conflitos e tensões. Quais são, então, as premissas que permitem desenvolver o tema da confissão?

Segundo Chevalier (2012) a discussão sobre o cristianismo aparece em Foucault em 1977, totalmente, vinculada a temática da confissão no ocidente. Na aula de 30 de janeiro de 1980, curso Du governament des vivant, Foucault define o cristianismo como "a religião da confissão acoplando a fé e a confissão" (Chevalier, 2012, p. 47).

Para Foucault (citado por Chevalier, 2012) a confissão como procedimento de dizer a verdade aparece em torno do século XIII e XIV, uma vez que não é encontrada como procedimento religioso dos primeiros cristãos. Nestes, diante daquilo que era elemento do estoicismo e do neoplatonismo, a confissão se dava pelo reconhecimento da fragilidade da vida humana. No entanto, para tanto não era necessária à figura de um terceiro, o sacerdote. Essa relação era direta com Deus para que o homem pudesse se encontrar consigo mesmo. Esse sentido inicial sofreu uma modificação, surgindo a figura do sacerdote como intermediário para o qual era preciso dizer a verdade de modo que ele, em uma relação direta com o Divino, pudesse prescrever a medida corretiva para aquele que pelo pecado, falhou com a verdade. A confissão surge então como dispositivo de investigação da verdade, em uma tentativa de "controlar as camadas populares e detectar as heresias" (Chevalier, 2012, p. 46). Em 1215, pelo Concílio de Latrão, a confissão passa ser uma imposição. Assim, o cristianismo funda a confissão como redenção, que frente à verdade de si manifesta-se a verdade divina, tornando-se um legado perpetuado no mundo moderno. E, a revelação da verdade mediante o saber de si, alcançado pela confissão, acaba por obscurecer totalmente o modo pelo qual os gregos antigos pensavam e resolviam a sua existência - cuidado de si - prevalecendo nos gregos a medida da existência, no próprio fluxo existencial.

A perda de medida existencial atinge seu ápice com o advento do cristianismo e o surgimento de uma moral binária com base no maniqueísmo, em que um dos lados tem supremacia sobre o outro. Com isso, surgem as práticas de correção que só tem espaço frente à revelação dos atos, pensamento e sentimentos pecaminosos, errados, proibidos em que a medida dada pelo sacerdote passa a ser o critério de verdade.

O sacerdote conhece a verdade que é revelada pela ordem do divino, por isso tem o poder de colocar seu rebanho no caminho da bem aventurança. O psicanalista e os psicólogos clínicos têm o saber de suas teorias por isso têm o poder de prescrever modos de ser, visando à correção. A psicologia com a sua prática psicoterápica e a psicanálise incorporam em suas bases a dinâmica da medida corretiva em seu aspecto especular da verdade, tendo no psicoterapeuta e no psicanalista a figura do confessor, substituindo o sacerdote do cristianismo.

 

2. heidegger e Foucault: do cuidado de si para o saber de si

Sorge, palavra alemã tomada por Heidegger (1927/1998) para tratar do tema do cuidado de si ou cura, fala do sentido da relação que o homem estabelece seja com ele mesmo, seja com os outros homens, seja com aquilo que se encontra ao seu redor - mundo circundante. O caráter de cuidado diz respeito ao ter de existir, tarefa a qual não é permitido ao homem decidir, esse uma vez sendo tem de se relacionar com o seu ser (Heidegger, 1927/1998). Ele até pode estar-no-mundo de um modo ou de outro, mas obrigatoriamente tem de ser em e com um mundo. Heidegger vai referir-se aos diferentes modos do cuidado. Um deles, o filósofo denomina de ocupação, que se refere ao modo como o homem se movimenta na relação com os objetos que se encontram ao seu redor. O outro modo de preocupação diz respeito à relação que o homem estabelece consigo mesmo e com outrem, que ele vai denominar, sucessivamente, de preocupação por anteposição e de preocupação substitutiva. A primeira parece ter uma ligação direta com aquilo que Foucault (1981/2006) denomina do cuidado de si, pois nesta, o homem assume a sua liberdade na relação consigo mesmo e a tutela de sua vida. E a segunda parece se aproximar daquilo que o filósofo francês denomina de saber de si, já que nesta o homem tende a colocar-se de modo dependente e subjugado as decisões do outro, que o tutela.

O homem, por não possuir uma natureza previamente dada, logo se constituindo pela sua indeterminação, tende a se movimentar, no seu mundo, pelos sentidos e determinações dadas pelo horizonte histórico em que ele se encontra. Por isso que, quando nas determinações do mundo grego prevalecia o cuidado de si, o homem cuidava de sua existência com a sua própria tutela, medida, referências, sem perder a medida da alteridade. Na medida em que, pelo advento da obrigatoriedade de dizer a verdade, à figura daquele que detém o saber - determinação do mundo cristão, acirrando-se no mundo moderno - o homem acaba movimentando-se sob a cadência do ter de saber de si.

Na antiguidade grega, a ética estava fundada no cuidado de si e na estética da existência. No mundo cristão a ética funda-se no saber de si e na norma corretiva do comportamento, sentimento e pensamento. Gros (citado por Mattar, 2011) refere-se ao "eu ético", nos gregos, como aquele suposto pelas técnicas de si e pela estética da existência. Mattar (2011) refere-se à vida ética dos gregos como uma prática refletida, cuidada da liberdade que foi, paulatinamente, substituída, desde o cristianismo até o mundo moderno, pela categoria da culpa. Esta que só poderia ser apaziguada pela renúncia promovida "por determinações morais impostas, que passaram a exigir o autoexame, a confissão e a desconfiança em relação a si mesmo; em suma a hermenêutica de si" (Mattar, 2011, p 173). Assim, a ética que se funda no cuidado de si, nos gregos, passa nos modernos a se fundar no saber de si. Candiotto (2012, p. 18) reafirma esta posição ao referir-se à psicanalise da seguinte forma "A hermenêutica do sujeito, enfocada no discurso sobre si mesmo (pensamentos, desejos, atos e omissões) tornou-se a técnica privilegiada para saber quem se é". Mas como e quando esse saber de si ganha relevância?

A experiência ética do saber de si ganha relevo com o aparecimento das filosofias centradas na categoria do sujeito. As filosofias da subjetividade com a máxima cartesiana do penso logo existo marcam a soberania do pensamento sobre a existência, dando ênfase assim a supremacia da razão. Com isso, a conquista do elemento racional em combate a qualquer irracionalidade passa a ser o grande objetivo das medidas educativas, sob a forma de disciplinas. Foucault (citado por Candiotto, 2012) coloca no rol das versões disciplinares tanto a psicanálise quanto a psicologia. A ação disciplinar dessas duas áreas do saber consistia na ênfase dada as formas de subjetivação e em colocar em prática a ética do saber de si por meio às tecnologias de si. As relações entre saber e poder passam a ser estabelecidas por meio aos jogos da verdade.

 

3. A verdade: da Aletheia ao jogo de relações entre saber e poder

A verdade tal como posta pela filosofia da subjetividade diz respeito à verdade como correção de um enunciado. Heidegger (1927/1998) tece uma ligação entre a gênese da subjetividade moderna e o surgimento de uma nova determinação da essência da verdade, na qual verdade passa a ser certeza de si, do sujeito da representação. Heidegger então nos mostra como houve uma modificação com a perspectiva de verdade na Grécia antiga, na qual Parmênides identifica o ser com a compreensão apreensora da verdade. A verdade em Aristóteles, pai da lógica, refere-se à essência da verdade assim como a concordância do juízo com o objeto para o qual ele se dirige. Logo o espaço originário no qual a verdade se encontra é o juízo, daí que a verdade assim compreendida é concordância entre o juízo e o objeto. Kant em Introdução a dialética transcendental (citado por Heidegger, 1927/1998, p. 236) diz "a verdade ou a aparência não estão no objeto intuído, mas no juízo que recai no objeto enquanto pensado". Husserl (citado por Heidegger, 1927/1998), na sexta investigação lógica - evidência e verdade - chama a atenção para o caráter descobridor que o enunciado abriga: "Enunciar é um voltar-se para a coisa mesma, para o ente tal como se mostra na realidade, em sua objetivação" (Heidegger, 1927/1998, p 235).

A tese heideggeriana consiste em que a subjetividade moderna nasce de uma redução da categoria tradicional de sujeito (hypokeimenon) a partir da instauração do eu posicionador das proposições verdadeiras, em geral, como sujeito insigne. A verdade então recebe uma modulação como presença constante. Os entes em sua presença constante reduzem-se a presença, também, constante do sujeito. Este passa a ser o posicionador das proposições verdadeiras, enraizadas na autossuficiência do sujeito cognoscente. Logo, a noção de verdade passa da correção do enunciado para a certeza de si do sujeito da representação. Essa mudança envolve um novo projeto de mundo em que à subjetividade humana cabe a estruturação, organização e controle da totalidade do ente. E, assim, o conceito de vontade ganha um papel decisivo.

A verdade tal como posta pela filosofia da subjetividade, mais comumente conhecida, diz respeito à verdade como correção de um enunciado. O conhece-te a si mesmo é a expressão que funda a verdade em estrito vínculo com o sujeito. A verdade na tradição da filosofia moderna foi tomada como algo da ordem do absoluto, inquestionável e de certa forma inatingível e que se encontrava na interioridade, que precisava ser conquistada. Na gênese da subjetividade moderna surge uma nova determinação da essência da verdade, que passa a ser certeza de si, do sujeito da representação. A verdade assim tomada obscurece o sentido com que os gregos entendiam essa experiência, aletheia, como aquilo que se dá a conhecer na própria experiência.

Para Foucault (1973/1999), verdade é o jogo das relações entre saber e poder que nasce da própria experiência estética. No cristianismo a verdade é identificada com Deus, na modernidade e transformada pelos modelos explicativos do funcionamento da vida e pelo dispositivo de saber-poder. A verdade das teorias passa a dar voz ao empreendimento de práticas corretivas. Assim, concluímos junto às considerações de Foucault, que na figura do psicanalista e do psicólogo temos a tecnologia do saber acerca daquilo que o psiquismo é e como funciona, ou seja, a verdade do psiquismo. E, ao tomar posse da verdade desse psiquismo, o psicanalista e o psicólogo, por meio da verdade de suas teorias, sabem do que o outro necessita para colocar em prática aquilo que é correto, no sentido de uma ética do saber de si, de modo a reintegrar o outro na ordem da qual fugiu (Foucault, 1975/1987).

 

4. As clínicas psicológicas: confissão e cura pela revelação da verdade

Para discussão do tema deste subtítulo precisamos inverter a ordem da nossa exposição anterior. Começaremos com a discussão sobre a verdade como algo que precisa ser revelado. Figueiredo (1996) nos chama a atenção para a inspiração romântica presente na constituição das psicologias. Mas o que o movimento do romantismo, que surge na Europa em meados do século XVIII, tem a ver com a constituição das psicologias? O movimento romântico caracteriza-se por apresentar uma visão negativa da influência do social sobre o homem. Para o romantismo (Guinsburg, 2008), o homem possui uma natureza que é boa, no entanto, acaba por se perder pela afetação do mundo, que quando se organiza em instituições sociais torna-se mal. Com isso, o homem só se apresenta em seu estado de pureza na infância e nos aborígenes. Encontramos no romantismo uma valorização da subjetividade humana no que diz respeito às expressões sinceras e intensas da emoção e um deslocamento da verdade de uma exterioridade para a interioridade. Essa verdade de si, que se encontra escondida e obscurecida em uma interioridade, dá voz ao surgimento da ideia do inconsciente como espaço onde encontramos as pulsões mais originais e verdadeiras do homem ou ainda o seu estado mais autêntico. Tanto o inconsciente quanto a vida autêntica são preceitos, respectivamente, da psicanálise e do humanismo, que vão permitir a essas modalidades do saber sobre o homem instituir uma técnica de acesso a essa verdade. Essa verdade uma vez acessada passa a ser o caminho da libertação.

Em uma perspectiva humanista em psicoterapia, a crença de que é a cultura que corrompe o homem, faz com que a prática clínica aconteça no sentido de recuperar o estado infantil e integro mais original, ou seja, de quando o homem, ainda, não se corrompeu. E seguindo as diretrizes de Rousseau, a perspectiva humanista em psicologia propõe que: "O capricho do momento é que me ensina o que devo fazer". (Rousseau, citado por Guinsburg, 2008, 267). Logo é por meio da criatividade e da sensibilidade que o homem se realiza e se liberta.

A psicanálise em Freud tinha como objetivo a desconstrução dos postulados da modernidade, principalmente ao que se refere à soberania da consciência. De acordo com Birman (2000), foi esse teórico da psicanálise quem promoveu um descentramento da consciência pelo imperativo do inconsciente. Como dito por Boss, no prefácio à primeira edição dos Seminários de Zollikon (Heidegger, 2001), Freud produziu com essa discussão a primeira ferida narcísica no âmbito do projeto moderno ao destituir a consciência do lugar central, que ocupava na modernidade.

Birman (2000) argumenta que a psicanálise dirigida pelo objetivo de destronar a consciência, destituindo-a do lugar privilegiado, que havia conquistado com as filosofias que a colocaram no centro de suas investigações, rediscute, por exemplo, a concepção de loucura como desrazão. Esta concepção ganha voz no âmbito do pensamento moderno, definindo a loucura como desalienação. No entanto, o próprio Birman (2000) reconhece que o projeto psicanalítico mantém em sua essência a ideia de uma verdade a ser conquistada, sob a designação prescritiva de sua teoria. Logo, mantém o poder do manejo clínico, principalmente, no dispositivo da transferência, dado a saber em sua teoria com base na dinâmica e estrutura do psiquismo. Birman (2000), com base nas as considerações de Foucault, conclui que com relação à temática da verdade tomada como saber de si, a psicanálise precisaria poder recuperar em meio ao saber de si, o cuidado de si.

A clínica psicológica, em qualquer de suas perspectivas, e não só a psicanálise, parece estar comprometida com a confissão com fins disciplinares. Conclui Foucault (1981/2006) que as modalidades modernas de enunciação do eu das ciências do homem estão genealogicamente referidas às antigas práticas cristãs da exougeresis, com a obrigatoriedade da confissão auricular. Mas outra questão se impõe: como podemos pensar a viabilidade de uma clínica psicológica na qual a confissão e a cura pela revelação da verdade escondida possam ser extirpadas? A nossa resposta consiste em mostrar de que modo à clínica psicológica existencial corresponde às questões colocadas para a psicologia de modo a abrir a possibilidade de uma clínica que se estabeleça na ênfase ao cuidado de si.

 

5. A clínica psicológica existencial

A clínica psicológica existencial toma como base a fenomenologia, inaugurada por Husserl, a filosofia da existência, proposta inicialmente por Kierkegaard (Feijoo, Feijoo, Mattar, Lessa & Protásio, 2013), a Daseinsanálise (Feijoo, 2011) e os desdobramentos que advém de uma ou de ambas destas perspectivas filosóficas. Neste percurso, tomaremos como referência a noção heideggeriana de existência subsidiada pelo conceito husserliano de intencionalidade, a noção de verdade como aletheia e as suas reflexões sobre o cuidado, trazendo a título de ilustração algumas considerações kierkegaardianas.

Assim, iniciamos por desconstruir o conceito tradicional de verdade, pressuposto de toda prática confessional da clínica tradicional, prática esta que sempre imprimiu na psicologia as marcas da moralidade. E, assim, vislumbrar uma clínica psicológica existencial onde a verdade seja sempre tomada na sua dinâmica existencial e que a clínica assuma, por fim, um caráter de cuidado de si, prescindindo assim do dispositivo da confissão auricular.

Foucault (1981/2006) alerta para o fato de que só retomando o cuidado se si é que poderemos desconstruir as concepções de sujeito, de saber e de poder que dominaram as teorias e práticas das clínicas psicológicas e psicanalíticas. Para tanto, nos adverte Foucault (1981/2006) é preciso acercar-se da vida e afastar-se do logos, porém sem tomarmos a ideia de que a saída estaria em recuperar o modelo dos gregos, isso seria impossível já que as determinações do mundo são outras. Mas repensar os gregos nos permitiria ver que as verdades acerca da necessidade de confissão e retificação dos comportamentos não são as únicas, nem são absolutas.

E é essa reaproximação com a existência que tem sido a grande luta das perspectivas existenciais, tanto no que diz respeito à filosofia, quanto à psicologia. Assim, foi grande o esforço de Kierkegaard (2006) em retomar o caráter estético da existência que havia sido total e radicalmente abandonado pelas filosofias da subjetividade, sob a acusação de que o sensível era enganador, inatingível e desnecessário. Para Kierkegaard (1843/2006) era imprescindível que a filosofia se voltasse para a concretude da existência, só assim poderia promover transformações.

Heidegger (1927/1998), também, com o intuito de retomar a existência, em Ser e tempo, já se ocupa em descontruir a noção de sujeito tal como fora concebido pelas filosofias da subjetividade. Para tanto, retoma os gregos, que não pensavam em termos de um sujeito que posicionava mundo. E em considerações tardias, este filósofo passa a pensar a existência como acontecimento - apropriativo, ou seja, considera o horizonte histórico como o espaço no qual os sentidos se constituem, deslocando-se da ideia de que a verdade do ser se encontra em uma subjetividade ensimesmada (Heidegger, 1938/2013). Tanto Kierkegaard quanto Heidegger irão travar diálogos com os gregos antigos de modo a poder esclarecer as questões que haviam sido obscurecidas, no mundo moderno. E é nessas bases que se edificará uma psicologia clínica existencial, na qual temas como subjetividade, verdade, caráter ético e estético da existência foram retomadas da filosofia pela psicologia.

A clínica psicológica com base nas filosofias que tentaram se opor às filosofias da subjetividade, retornando ao caráter estético da existência, de certo modo, tentaram tomar em suas bases o cuidado de si presente na relação que os gregos antigos mantinham consigo mesmo. A conquista da singularidade perdida na modernidade foi um tema constante em Kierkegaard, do mesmo modo que o próprio tema do cuidado foi incessantemente discutido por Heidegger. Ao tomar como referência da atuação clínica o cuidado de si, o psicólogo clínico rende-se ao fato de que desconhece a verdade, como diz Kierkegaard (1859/1988), assume uma posição de humildade. Platão (citado por Leão, 2013), ainda imbuído do espírito grego, diz que em termos da estética da existência, em seu dinamismo, só podemos dar o que não temos. Portanto, uma clínica psicológica que tem como princípio o cuidado de si, nada sabe sobre o dinamismo existencial singular, por isso pode dar algo, já que não o tem. Vamos prosseguir, tentando esclarecer o que está em questão nessa passagem de Platão.

Platão (citado por Leão, 2013) afirma que quando tratamos de coisas prontas e acabadas, objetos materiais, podemos dizer que só podemos dar o que temos. No entanto, quando nos referimos à realização dinâmica da vida, por desconhecer a sua realização na existência, não a temos e por isso podemos dá-la. Dar, então, significa abrir um campo de possibilidades para que cada um possa conquistar a existência que é a sua. Assim, de modo análogo, também não podemos aqui dizer, definir, restringir o quê e o como das psicoterapias existenciais, mas podemos considerar a dimensão do papel e função da ideia na vida do homem, em toda a realização do real. Ideia, aqui, não é apenas representação e conceito, mas, também, é nas palavras de Carneiro Leão "doação de sentido da maneira de consignar e entregar o ser de tudo que é e está sendo" (Leão, 2013, p. 58). Logo as clínicas psicológicas existenciais como ideia, no sentido platônico, é a oportunidade de abertura de espaço para todas as possibilidades de realização dos seres. Trata-se da experiência grega de aletheia. Logo, ideia abre espaço para a verdade que traz consigo o poder de libertação para um nada criativo. Um nada que ao desconstruir tudo, abre um espaço para que algo de novo apareça. Esse novo, que na clínica existencial são as novas dimensões de relacionamento que permitem que, nessa modalidade clínica, se dê a conquista de si e a conquista do outro.

Em Kierkegaard (1843/1976) também podemos ver o alerta aos riscos que estão em jogo na figura do confessor quando ele prescreve, por meio ao seu saber, como o outro deve se comportar. Aquele, por acreditar que sabe, diz ao que não sabe de si, afetado pelo horizonte histórico onde se criou a necessidade da confissão para poder se conhecer, como ele deve se conduzir.

Com essas considerações críticas sobre o caráter confessional, podemos concluir que a clínica psicológica existencial não compartilha com a inserção do dispositivo confessional na relação psicoterapêutica, configurando uma ética disciplinar. Muito pelo contrário, a clínica existencial assume uma posição crítica a tal posicionamento e se redireciona para um espaço (éthos) em que o 'confessor' não é protagonista, apenas é um dos personagens. Nas palavras de Cabral (2012, p. 988):

Isto significa dizer que o terapeuta e a terapia são elementos de um jogo que abre as portas para a simples possibilidade do acontecimento da reinvenção de si. Enquanto salvaguardador desta simples possibilidade, o terapeuta atinge sua riqueza, mesmo que se mova na precariedade assinalada pela falta de modelos teóricos que expliquem o ser humano. Tarefa que exige um novo aprendizado: esquecer o lugar e função do sacerdote/terapeuta, para conquistar a sabedoria da docta ignorantia daqueles que, ao lado do outro, participam favoravelmente de sua travessia existencial, sem lançar mão de ideias universais de homem e de suas aplicações corretivo-morais na existência alheia.

 

Referências

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Recebido em 24.07.2013
Aceito em 02.03.2014