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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.21 no.2 Goiânia dez. 2015

 

ARTIGOS - SEÇÃO ESPECIAL - ARTIGOS (CONFERÊNCIAS DO I CONGRESSO BRASILEIRO DE FENOMENOLOGIA)

 

Implicações psicológicas da filosofia da ação de Paul Ricoeur1

 

Psychological implications of Paul Ricouer's philosophy of action

 

 

Annie Barthélémy

Agrégée en Philosophie à l'Université de Lille III, avec DEA de Sciences de l'Education à l'Université de Paris V et Doctorat de troisième cycle de Sciences de l'Education à l'Université de Paris V. Maître de conférences honoraire de l'Université de Savoie-France. E-mail: anniebarthelemy73@orange.fr

 

 


RESUMO

Da filosofa da vontade cujo primeiro tomo é publicado em 1950, da soma antropológica que constitui Si mesmo como um outro publicado em 1990, até a obra Percurso do reconhecimento publicado em 2004, um ano antes de morrer, Paul Ricoeur não cessou de meditar sobre a relação entre os atos e seus autores. Cruzando a aproximação fenomenológica e a atitude hermenêutica, ele observa as relações entre as perguntas que? Por que? Quem? Nos atos postos, ele confronta a reivindicação pelo autor do seu ato ao reconhecimento do ato pelo outro. Assim, Paul Ricoeur coloca a questão da identidade pessoal e do reconhecimento no coração da sua filosofia da ação. Nossa comunicação propõe mostrar a fecundidade dessa reflexão filosófica para desmistificar os supostos conselhos terapêuticos que, convidando o paciente a ser ele mesmo ou lhe sugerindo de se esforçar para sair das suas dificuldades pessoais, só aumentam sua perplexidade. Nós veremos também o quanto a reflexão de Ricoeur se encontra em fase com uma autêntica relação terapêutica, na medida em que sua filosofia da ação nos faz mergulhar no coração do involuntário e do voluntário, mantendo a tensão entre iniciativa e sofrimento e enfim propondo uma concepção aberta da identidade pessoal.

Palavras-chave: Ação; Voluntário; Involuntário; Iniciativa; Identidade pessoal


ABSTRACT

Starting with the Philosophie de la volonté, from the first volume published in 1950, to the anthropological amount represented by Soi-même comme un autre in 1990, until the book Parcours de la Reconnaissance printed in 2004, one year before his death, Paul Ricœur never stopped reflecting on the relationship between one's acts and their author. Crossing the phenomenological and hermeneuticapproaches, he investigates the connections between the questions "What? Why? Who?" in one's action. He confronts the claim of an action by its author to the recognition of this act by others. Thus, Paul Ricoeur raises the question of personal identity and recognition at the core of his philosophy of action. Our communication proposes to show the fruitfulness of this philosophical reflection to demystify the supposed therapeutic advices which, by inviting the patient to " e himself" or suggesting him to "make efforts" to overcome his personal distress, only manage to increase his perplexity. We will also see how Ricoeur's thinking is attuned to an authentic therapeutic relationship, insofar as his philosophy of action makes us enter into the heart of theinvoluntary and voluntary action. It maintains the tension between initiative and suffering, and finally proposes a wider representation of one's personal identity.

Keywords: Action; Voluntary; Involuntary; Initiative; Personal identity


 

 

'Tento alcançar "o homem capaz", atrás o "homem ineficaz", atrás o "homem impotente"'. É com essa frase de Ricoeur que nós escolhemos começar nossa comunicação. Ela é extraída de uma conversa entre Ricoeur e um psiquiatra, o professor Yves Pélicier1,2 e trata do sofrimento e das relações que se formam entre quem sofre e quem cuida. Era para o filósofo uma maneira de indicar a orientação de sua antropologia que recusa fechar o homem em seus fracassos visíveis ou em sua paralisia atual, qualquer que seja o poder do sofrimento corporal ou mental sobre o poder de agir. Mas o filósofo não banaliza o sofrimento; em janeiro de 1992, Ricoeur terminou, na verdade, uma conferência sobre o tema Dor e Sofrimento diante de uma assembleia de psiquiatras com esse aviso: "(...) uma atitude proibida aos fenomenólogos e aos psiquiatras é o otimismo que alguém definiu um dia como a caricatura de uma esperança que não teria conhecido as lágrimas" (Ricoeur, citado por Marin & Zaccai-Reyners, 2013, p. 33). Ricoeur não arrisca dar diretivas para a prática clínica, ele lhe traz uma visão antropológica onde os homens são entendidos como seres vivos que, ao mesmo tempo agem e sofrem e onde as capacidades humanas requerem a ajuda do outro para se manifestarem concretamente, onde "a confissão de uma fragilidade compartilhada" (Ricoeur, 1990, p. 225) corrige a assimetria da relação de ajuda. Nessa concepção do homem, a autonomia do si e a ajuda do outro se cruzam, a iniciativa da vontade e o consentimento à complexidade da vida se equilibram.

Em nossa comunicação, nós mostraremos em que a antropologia de Ricoeur é solidária de uma filosofia da ação que traz uma compreensão do humano útil para a prática clínica do psicólogo ou do médico. O ponto sobre o qual nós gostaríamos de insistir concerne às implicações psicológicas da fórmula "eu posso", na qual Ricoeur dá a prioridade ao verbo, isto é ao poder fazer, como o precisa esse comentário do sétimo estudo de Si mesmo como um outro: «o discurso do "eu posso" é, claro, um discurso do eu. Mas o acento principal deve ser colocado sobre o verbo, sobre o poder fazer» (Ricoeur, 1990, p. 212). Essa prioridade dada ao verbo, ao ato, sobre o sujeito, o autor do ato, reenvia a concepções sobre o curso da vida e da identidade pessoal. Ela tem implicações sobre a maneira de considerar o sofrimento humano e as reações que ela provoca nos pacientes e nos cuidadores, no sentido largo. Ela convida a aprofundar três perguntas em particular que são subjacentes à citação introdutiva. Em que medida o sofrimento afeta o homem capaz? E para enfrenta-lo, como ultrapassar a alternativa entre a passividade do suportar e o poder da vontade? Nessa experiência do sofrimento, que papel tem as relações intersubjetivas, no centro das quais se inscreve a relação terapêutica? Nós falaremos dessas questões pelo meio do primeiro tomo da Filosofia da vontade. O Voluntário e o Involuntário, publicado em 1950, que apresenta, segundo uma atitude fenomenológica, o que Jean Grondin (2013) chama de «»uma filosofia das potências e impotências da vontade» (p. 27); em seguida, nós desenvolveremos para complementar algumas temáticas de Si mesmo como um outro, obra publicada em 1990, que resuma a antropologia ricoeuriana até seu final.

A obra O Voluntário e o Involuntário tem como objetivo entender a essência do querer dentro da decisão que coloca um fim à hesitação, como na execução de uma ação que coloca o corpo em movimento, ou ainda no consentimento, essa forma singular do querer frente ao inevitável no qual se choca o poder da vontade. Com esse objetivo, Ricoeur mobiliza a atitude fenomenológica de Husserl, ele descreve a maneira com a qual se dá à intuição intelectual essa função prática de um Cogito, pego não na afirmação "eu penso", mas sim no imperativo do "eu posso"; essa descrição não é um estudo empírico que usa a observação e a explicação, mas sim uma descrição fina da maneira como a junção entre o voluntário e o involuntário aparece à consciência. Assim, Ricoeur se distancia das concepções naturalistas e idealistas onde falta esse nó singular que me faz habitar meu corpo, sentir meu caráter, em uma palavra me sentir vivo. Como explicação, Ricoeur cita a imagem do acordo frágil entre o cavaleiro e o seu cavalo, extraída de uma poesia de Rainer Maria Rilke: instante onde o cavaleiro cessa de empurrar ou reter seu cavalo, instante raro onde "uma pressão cria o acordo... E os dois são um só. Mas eles realmente são um só?". A reflexão de Ricoeur procura entender o mistério dessa união frágil, difícil de entender para o pensamento porque ela se experimenta na espontaneidade afetiva da vida. Frente a essa união misteriosa, a concepção naturalista objetiva a conduta humana para explicá-la cientificamente por determinismos psico-fisiológicos; ela considera ilusório o sentimento de liberdade enquanto a aproximação idealista reivindica a iniciativa soberana do sujeito, afirmando o poder de sua vontade, abstração feita de seus laços corporais e de sua inserção em um meio natural e social.

Em que essa análise racional abstrata das estruturas da vontade que Ricoeur dirige alcance a preocupação do clínico para entender o vivido subjetivo da pessoa engajada na espessura de uma vida atormentada e para escutar a expressão do sofrimento que escapa da objetivação de um diagnóstico medical centrado sobre os sintomas da doença? A antropologia de Ricoeur, na versão do primeiro tomo da Filosofia da vontade, se revela de fato muito útil para dar todo seu relevo à palavra sofredora. Se considerarmos o titulo, O Voluntário e o Involuntário convém dar um sentido forte à conjunção que liga os dois termos. A obra toda sublinha a unidade da experiência íntima da consciência que, no mesmo movimento da vida, se compromete ativamente para realizar seus projetos e sente passivamente a influência do corpo e do mundo. Para qualificar essa relação entre um polo ativo e um polo passivo da subjetividade, Ricoeur fala da reciprocidade do voluntário e do involuntário, o que o leva a criticar o voluntarismo triunfante e o deixar-fazer resignado. O filósofo chama também esse sentimento íntimo de "pacto misterioso", não desprovido de tensão, por que meu corpo, meu carácter, com seus limites expressam também meu ritmo e meu estilo pessoal. Entender as modalidades dessa presença concreta ao mundo releva de uma aproximação fenomenológica que quer descrever a perspectiva da consciência subjetiva, diferente de uma observação exterior do comportamento ou de uma explicação pelos determinismos externos. Porque, para a pessoa engajada corpo e alma na existência, a vida então não é espetáculo, mas sim problemas e tarefas" como o sublinha muito bem Ricoeur. As finíssimas descrições da hesitação na hora da escolha ou do poder do corpo mais ou menos dócil na ação colocam o acento sobre essa solidariedade do voluntário e do involuntário. Os impulsos afetivos tão diversos, como as necessidades e os desejos, preexistem ao exercício da vontade. Então, escolher é decidir e cortar dando a prioridade a uma motivação no meio daquelas que solicitam o querer. Da mesma maneira, agir é mover um corpo, que às vezes se torna obstáculo, por exemplo, no esforço de atenção exigindo canalizar a agitação motriz ou às vezes se torna recurso, quando por exemplo a agilidade adquirida graças ao exercício per-mite ao bailarino se expressar espontaneamente na coreografia. A aproximação fenomenológica recusa a ideia de um combate em forma de duelo entre o voluntário e o involuntário por que ela esclarece a complexidade feliz ou dramática do involuntário ao voluntário, a vontade caminhando nos motivos afetivos e fazendo do corpo o órgão da ação. Essa aproximação mostra a confusão do voluntário e do involuntário que nunca são considerados como dois territórios em competição, mas sim inclusos no centro de uma presença vital que une duas faces indissociáveis da subjetividade. Ricoeur cita várias vezes essa frase de Maine de Biran: "Homo simplex in vitalitate, duplex in humanitate"3.

Esclarecendo esse pacto misterioso que a vida humana une entre o voluntário e o involuntário, Ricoeur aumenta de maneira considerável a "outra cena" a qual reenvia à entrevista clínica. O paciente fala em um espaço-tempo que suspende o ritmo da vida cotidiana na qual ele se bate entre repetições, urgência, iniciativa.

Dentro desse espaço-tempo, quando evocamos, em referência à psicanálise, "a outra cena", pensamos no domínio do inconsciente, apercebido nos sonhos, nos sintomas ou nos atos falhos; a antropologia de Ricoeur reenvia a um segundo plano mais amplo que inclui esse campo inconsciente, mas também a base biológica das necessidades e dos poderes corporais. A escuta da palavra durante a entrevista clinica é beneficiada por essa ampliação e se abre frente à palavra dos pacientes que é o eco de um corpo vivido não redutível ao funcionamento biológico e que expressa o sentimento de capacidades vitais amenizadas, mas não desaparecidas, mesmo se às vezes essas experiências subjetivas demoram para se formular e se desligar de um comentário sobre a vida e a doença em geral. O clínico, durante uma consulta longe do fervo da vida, mas em conexão com ele, acessa a essa outra cena, que é para o paciente o lugar do seu sofrimento e também da sua vida. A antropologia de Ricoeur mostra, no coração da experiência íntima, a confusão dos poderes e das incapacidades da pessoa, se revela então muito útil para devolver todo seu relevo a essas palavras sofredoras e vivas. O papel do clínico é compreender a maneira com a qual a pessoa entende afetivamente o que ela pode fazer e o que ela esta impedida de fazer; convém, por isso, suspender toda pretensão explicativa e acolher a narração na qual a pessoa une o que ela ousa fazer com o que ela aguenta. Tal escuta pode restaurar o poder da pessoa sobre sua vida cotidiana, para que a vontade "traga-a em direção ao real em vez de levá-la ao imaginário" (Ricoeur, 1950, p. 256).

O último capítulo da obra O Voluntário e o Involuntário, lindamente intitulado "o caminho do consentimento" abre também uma perspectiva para a relação terapêutica, que parece visar menos uma cura que uma reconciliação com a vida onde o destino de cada um se desenrola. Esse capítulo termina a terceira e última parte operando uma mudança em relação às duas anteriores. Antes, de fato, Ricoeur tinha mostrado como a vontade, na hora da escolha, se afirma apoiando-se sobre motivos que solicitam sua afetividade e como, na ação, ela mobiliza os poderes do corpo como órgãos do seu querer; o projeto desejado como a realização em ato esclareça a maneira como a vontade domina o involuntário. Na terceira parte, a análise fenomenológica encontra, ao contrário, o domínio do involuntário sobre a vontade, essa última se encontrando então confrontada ao que Ricoeur nomeia "o involuntário absoluto", isto é, o que a existência nos impõe sem que nós possamos esperar mudar. Porém, para Ricoeur, essa necessidade incontornável solicita ainda o poder da vontade. Não é surpreendente que as alusões à doença sejam mais presentes nessa última parte. Nós terminaremos sobre O Voluntário e o Involuntário precisando o que envolve o involuntário absoluto e o que caracteriza o consentimento ao qual a vontade é convidada.

Sob o apelido de involuntário absoluto, Ricoeur designa o caráter, o inconsciente e a vida que, os três, colocam em xeque as pretensões de domínio da vontade: ela, incarnada em um corpo, sente o "incoercível, o inevitável, o irremediável" (Ricoeur, 1950, p. 439). A linguagem comum faz eco a essas formas de necessidade vivida: "é mais forte do que eu", "isso me escapou", "com o que aconteceu, nada mais será como antes". Nessas circunstancias, a vontade suporta a limitação do seu caráter, as forças obscuras do inconsciente e também a vida que lhe é dada com seus problemas. Mas não por isso a vontade é aniquilada porque ela pode reverter essa passividade com um ato que Ricoeur chama de consentimento. Consentir à vida, a seus limites, a seus dramas não é nem desistir, nem se resignar, é o ato de uma vontade que não se revolta diante da vida, que ultrapasse a tensão dramática entre o voluntário e o involuntário. "Para mim", explica Ricoeur, "assumir meu caráter, meu inconsciente, minha vida, com seu ser e seu não-ser, é transformá-los em eu mesmo" (Ricoeur, 1950, p. 597). Essa apropriação, essa interiorização para retomar o termo de Ricoeur, releva de uma decisão da vontade: "Dizer sim permanece meu ato" (Ricoeur, 1950, p. 598), o ato de uma vontade que não rejeita sua condição para fora dela mesma. Em um lindo parágrafo, Ricoeur enumera os efeitos desse sim:

"Sim ao meu caráter, do qual posso mudar a estreiteza em profundidade, aceitando compensar sua invencível parcialidade pela amizade. Sim ao inconsciente que permanece a possibilidade indefinita de motivar minha liberdade. Sim à minha vida que não escolhi, mas que é a condição de toda escolha possível" (Ricoeur, 1950, p. 598).

Porém, convém não edulcorar esse ato de consentimento, não se trata de se conformar, mas sim de aceitar o inevitável para permanecer pacientemente no jogo da vida, e segundo as palavras de Ricoeur "abraçar o real para procurar nele sua expressão e sua realização" (Ricoeur, 1950, p. 432). A vida e o mundo se impõem à vontade, mas eles são o único lugar onde ela pode incarnar seus projetos e seus atos. Eu posso resmungar contra meu caráter, isso não ira mudá-lo. Eu posso também acusar meu caráter para me desengajar da minha responsabilidade em construir minha vida. Contra a tentação titânica de dominar sua vida, pegar o caminho do consentimento é encontrar uma via entre o não da negação e um sim de submissão, que são duas formas de contraturas da vontade. Considero então que meu caráter é o sinal de minha individualidade, meu estilo pessoal, "minha maneira de escolher e de me escolher que eu não escolho" (Ricoeur, 1950, p. 461). Pegar o caminho do consentimento, é tentar unir no cotidiano a iniciativa de agir com a passividade do suportar em um exercício humano de liberdade; é poder dizer de uma mesma voz "estou viva, sou minha vida" (Ricoeur, 1950, p. 442), dupla afirmação que, segundo Ricoeur, dá acesso a uma reconciliação superiora ao sentimento de harmonia vivido nos momentos aonde espontaneamente, a vida vem ao seu encontro. Porém, esse caminho do consentimento é sempre inacabado e semeado de emboscadas. O sim se conquista dificilmente sobre o não da revolta e da negação: "o sim do consentimento não pode ser pronunciado até as extremidades da infelicidade... Primeiramente, a liberdade diz não se arrancando à infelicidade e à absurdidade" (Ricoeur, 1950, p. 443). Esse sim se revela provisoriamente inacessível quando a patologia, que Ricoeur qualifica de "terrível psicológico", torna toda vontade dramaticamente imponente. Resta então a esperança de uma reconciliação consigo, que pode ser sustentado por uma relação terapêutica, para ajudar a desembaraçar os temas mórbidos e reabrir um espaço de liberdade.

Para continuar essas reflexões sobre o caminho da reconciliação de uma subjetividade atordoada entre um polo ativo e passivo, nós analisaremos alguns trechos de Si mesmo como um outro, a obra magistral na qual Ricoeur oferece, quarenta anos após a publicação do primeiro tomo da Filosofia da vontade, uma síntese de sua antropologia filosófica. Ele revê de maneira sistemática os poderes que caracterizam, dentro de uma fragilidade existencial, o que ele chama "o homem capaz", a saber: capaz de falar, agir, contar, se manter responsável por seus atos. Precisamos que, apesar das diferenças de método e de representação do sujeito, as duas obras, a de 1950 e a de 1990 se reencontram em certos temas, em particular o do agir humano4. Si mesmo como um outro apresenta uma hermenêutica do si. Ela se construiu a partir dos trabalhos do filósofo sobre a interpretação dos símbolos e depois sobre a interpretação dos textos, em particular das narrações. O sujeito que, no Voluntário e o Involuntário, era concebido segundo uma atitude fenomenológica ligada a descrever o vivido da consciência, se encontra descentrado; Ricoeur renuncia em 1990 a essa via direta de compreensão de si mesmo. De fato, desde o segundo tomo da Filosofia da vontade, onde no que concerne a vontade ruim - e após ter feito abstração da culpa no primeiro tomo-, ele descobre que

"para acessar ao concreto da vontade ruim, era preciso introduzir o longo desvio pelos símbolos e pelos mitos.... O sujeito não se conhece ele mesmo diretamente, mas somente através dos sinais depositados em memória e seu imaginário pelas grandes culturas" (Ricoeur, 1995, p. 30).

Para um clínico, essa exigência do desvio é capital, não somente na medida em que ela lembra o papel formador da literatura para a compreensão do humano, mas também no sentido em que ela convida para o lento trabalho conjunto de decifração de si durante a relação terapêutica. Essa emergência progressiva do si está anos luz dos supostos bons conselhos que, para ajudar uma pessoa presa em dificuldades psicológicas, a obrigam a "ser ela mesma" ou a "cuidar dela mesma", o que resulta em deixa-la em um estado de sideração por que precisamente ela ignore esse si ao qual ela deve aderir.

Ricoeur, em Si mesmo como um outro, abre um caminho mais seguro que leva à interioridade a partir dos rastros exteriores da ação. Dizer "eu" obriga a refletir nos seus atos, reaver seus atos para se reconhecer si mesmo como sujeito. É por isso que Ricoeur substitui o "si", reflexivo dos verbos pronominais dos reflexivos, pelo "eu", criticando vivamente uma subjetividade soberana que queria ser transparente a si e criticando também uma subjetividade desconfiada que, exibindo as causas inconscientes de seu comportamento, renunciaria a se recuperar. Esse comportamento hermenêutico de interpretação de si a partir dos atos postos, quer sejam ações no sentido próprio ou atos de linguagem, é associado a duas outras perspectivas: uma definição aberta da identidade pessoal e do reconhecimento do papel mediador do outro na realização de si mesmo.

Examinemos as implicações para o trabalho terapêutico desses três temas: a necessidade do desvio reflexivo, a identidade aberta e o papel mediador do outro. Em primeiro lugar, Ricoeur reencontra a subjetividade no centro da ação, nos gestos mais simples como nas práticas mais elaboradas. Convocando a gramática, ele prioriza o verbo frente o sujeito do verbo, o que o leva a refletir sobre o laço que se estabelece entre o ato posto e o autor do ato. Uma ação humana introduz uma mudança no mundo, mas esse acontecimento difere dos que se produzem segundo uma causalidade física, psíquica ou social. Agir é querer fazer acontecer algo que tenha um sentido: se eu tropeço, minha queda é um fato; se eu me levanto quando chega alguém, minha atitude tem um sentido. Por isso vem esse tema repetitivo do filósofo sobre a diferença entre explicar, o que significa reenviar a umas causas e compreender, isto é captar um sentido. Essa diferença exige, em psicologia, ligar os comportamentos um ao outro sem reduzir um ao outro, como o sugere seu famoso conselho: "explicar mais para entender melhor", o que poderia se traduzir no campo do trabalho clínico pela articulação da análise da patologia com o objetivo de entender o vivido singular do paciente. No que concerne à compreensão da pessoa, Ricoeur, depois de Aristóteles, coloca em evidência o papel da narração. Contar é ligar acontecimentos espalhados em uma intriga. Assim, a composição de uma intriga se nutre da ação, ela a mímica, para retomar o termo aristotélico de mimesis, inscrevendo-a em uma história. Na narração de ficção, essa função unificadora da intriga se repercute sobre a personagem:

"É de fato", explica Ricoeur, "na história contada, com suas características de unidade, de articulação interna e de completude, dados pela operação de colocação em intriga, que a personagem conserva ao longo da história uma identidade correlativa à da história ela mesma" (Ricoeur, 1990, p. 170).

Esse comentário pode esclarecer o que acontece durante a entrevista clínica nos fragmentos de narrativa onde o paciente tenta atar e desatar o fio de sua própria história, propondo versões sucessivas do que lhe aconteceu e do que ele fez.

Além desse acento colocado sobre o papel da identidade narrativa na construção da identidade pessoal, Ricoeur, em Si mesmo como um outro traz dois conceitos que esclarecem duas maneiras de abordar a identidade: mesmice e ipseidade. Essa terminologia é emprestada às palavras latinas idem e ipse, que reenviam a uma distinção que a língua francesa não faz. O critério da "mesmice" é a similitude, a identidade concebida segundo esse critério, é a identidade à qual se refere o comentário que podemos também dizer para um amigo reencontrado após alguns anos: "você não mudou nada!". Mas, e ainda bem, nós podemos ter mudado e permanecer nós mesmos, por que a identidade de uma pessoa não se reduz, como para uma coisa, ao critério da similitude, mas sim inclui também a postura de si através do tempo - o que designa o termo de ipseidade. Assim, quando uma pessoa oferece um presente dizendo orgulhosamente: "Sou eu quem fez", essa pessoa se designa ela mesma no ato de fabricação e no ato de dar, significando seu desejo de ser reconhecida no movimento que a levou a fazer algo para o outro. Percebemos como esse reconhecimento ultrapassa o simples reconhecimento de uma pessoa na rua. Esse exemplo pode ilustrar a significação do termo ipseidade. A distinção feita entre identidade e ipseidade renova a análise do poder do caráter sobre a pessoa (Ricoeur, 1990), que Ricoeur tinha começado em O Voluntário e o Involuntário. Assim, ele é levado a relativizar a imobilidade do caráter que ele apresentava então como um polo constante, invariável e involuntário da personalidade. Em Si mesmo como um outro, após ter precisado que o caráter não é dado do jeito como ele é quando nascemos, mas que ele tem uma historia que pode amaciar ou enrijecer os traços, ele sublinha que a identidade da pessoa não é fechada na permanência do caráter e que ela releva também de uma "postura de si". Ricoeur argumenta opondo a estabilidade do caráter à fidelidade na amizade: "uma coisa é a continuação do caráter; uma outra, é a constância na amizade" (Ricoeur, 1990, p. 148). Assim, a distinção entre mesmice e ipseidade convida não a ser si mesmo, mas sim a permanecer fiel apesar das peripécias de nossa história. Em uma nota, Ricoeur traz uma nuança definindo o caráter como "a mesmice na minhadade"5, podendo então ser vivido como o estilo que marca minhas iniciativas, mas essa forma de fidelidade à nosso caráter, próximo ao consentimento descrito em O Voluntário e o Involutário, supõe o engajamento na ação com sua parte de aceitação das condições na qual essa ação se exerce.

Quando Ricoeur quer ilustrar a dimensão do polo ipseidade da identidade pessoal, ele dá o exemplo da constância na amizade, introduzindo a intersubjetividade no coração da identidade pessoal. O exemplo da amizade não foi escolhido por acaso, a obra Si mesmo como um outro contém páginas lindas sobre a amizade, tema que ele aborda na companhia de Aristóteles (Ricoeur, 1990).

Comentando a frase do filósofo grego que diz: "o homem feliz precisa de amigos", Ricoeur coloca em evidencia a articulação entre a aspiração à felicidade e o desejo de ter amigos. O desejo de ter uma bela e boa vida não pode ser realizado em solitário; para se realizar é preciso compartilhar com um amigo essa aspiração à felicidade. A amizade revela assim o apoio indispensável do outro para passar do poder fazer ao fazer. Nós terminaremos sobre esse tema central da antropologia ricoeuriana: "o papel mediador do outro entre capacidade e efetuação" (Ricoeur, 1990, p. 213). O filósofo faz desse tema a segunda parte da sua ética que ele resume em uma fórmula em tríptico: "Chamemos "alvo ético" o alvo da "vida boa" / com e para o outro / em instituições justas" (Ricoeur, 1990, p. 202). Pretender a uma vida bem cumprida com e para o outro, isso concerne, é claro, o projeto terapêutico; certamente, o psicólogo não é o amigo do paciente porque a relação com o paciente não tem a mesma reciprocidade que uma relação entre amigos. Porém, ela não é tão longe de ser isso, se nós seguimos a análise que faz Ricoeur da solicitude na continuidade do desenvolvimento sobre amizade; porque, apesar da desigualdade das posições, a solicitude instaura "uma autêntica reciprocidade durante a troca". De fato, se a pessoa sofrendo desperta no outro "uma gentil espontaneidade", ela não é condenada ao pa-pel passivo da pessoa que recebe ajuda, porque "vem do outro sofrendo um dar que não é precisamente mais emprestado de sua potência de agir, mas sim de sua fraqueza mesmo" (Ricoeur, 1990, p. 222-223): um convide para o terapeuta acolher essa doação do paciente.

 

Referências

Marin C. & Zaccaï-Reyners N. (2013). Souffrance et douleur. Autour de Paul Ricœur. Paris: PUF.

Ricouer, P. (1950). Philosophie de la volonté t. 1 Le Volontaire et l'Involontaire. Paris: Aubier.         [ Links ]

Ricouer, P. (1990). Soi-même comme un autre (Collection Points). Paris: Seuil.         [ Links ]

Ricoeur P. (1995), Réflexion faite. Autobiographie intellectuelle. Paris: Esprit.

 

 

Recebido em 16.07.2013
Aceito em 28.10.2013

 

 

1 Conferência apresentada no I Congresso Brasileiro de Psicologia & Fenomenologia / III Congresso Sul Brasileiro de Fenomenologia. Curitiba (Paraná) 12 a 14 de agosto de 2013. Tradução de Isabelle Gayon (isagayon@hotmail.com) e revisão técnica de Andrés Eduardo Aguirre Antúnez (USP/ GT Psicologia e Fenomenologia - ANPEPP).
2 Transcrição disponível no site www.fondsricoeur.fr
3 Essa frase: "o homem é simples na sua vitalidade, duplo na sua humanidade" que Maine de Biran empresta ao humanista holandês Herman Boerhaave, coloca o acento sobre a fissura que introduz, na espontaneidade vital, a apercepção de si.
4 Nós deixaremos de lado a questão de saber se podemos legitimamente falar de uma antropologia filosófica na obra de Paul Ricoeur, apesar das diferenças metodológicas e conceituais entre a versão de juventude e a versão da maturidade.
5 Ricoeur, 1990, nota da página 145.

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