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Revista da Abordagem Gestáltica

Print version ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.21 no.2 Goiânia Dec. 2015

 

ARTIGOS - SEÇÃO ESPECIAL - (CONFERÊNCIAS DO I CONGRESSO BRASILEIRO DE FENOMENOLOGIA)

 

Princípios fundadores e atualidade de uma prática psicoterapêutica de orientação fenômeno-estrutural1

 

Founding principles and actuality of a psychotherapeutic practice phenomenon-structural guided

 

 

Jean-Marie Barthélémy

Professor Emérito de Psicopatologia e Psicologia Clínica da Universidade de Savoie, Chambéry (França) et Presidente da Société Internationale de Psychopathologie Phénoméno-structurale. Adresse Institutionelle: 237, Chemin des Bollons. Les Hauts du Lac. 73370, Le Bourget du Lac. E-mail: jean-marie.barthelemy@univ-savoie.fr

 

 


RESUMO

A preocupação curativa não se situa no centro nem da reflexão nem do comportamento fenômeno-estrutural. Seria dizer que essa prática permaneceria indiferente, totalmente insensível e hermética à angústia do outro até ficar surda a seu sofrimento, expresso ou não, e à sua aspiração legítima, explícita ou implícita, de melhoria de sua condição? Quem poderia querer tal desdém, ainda mais emanante de uma corrente de pensamento e de ação que valoriza por outro lado uma solidariedade inter-humana e reivindica à vontade laços com raízes e intenções humanistas? É por que sua função é mais larga, mais ambiciosa por certos lados, mas também mais humilde e mais realista, visto sob outro ângulo, que essa aproximação pode permitir-se o que poderia parecer a um olhar desprevenido, seja como uma pretensão extensiva seja como uma surpreendente falta de ambição. As páginas abertamente dedicadas no início dos anos 1950 à questão psicoterapêutica pelo promotor desse método, Eugène Minkowski, apesar de raras e limitadas na sua obra, comportam eixos de orientação de um rigoroso e surpreendente frescor visionário, mesmo transpostos à nossa situação contemporânea onde sua pertinência se faz ainda mais sentir. Na sequência, colocando não o cuidado, mas sim, o encontro como princípio de base do estabelecimento do contato com o paciente, em plena consciência da atitude inicial que ele supõe e requer na duração assim como na natureza do recolhimento dos dados clínicos que provirá, mostraremos como fontes de análise podem emergir para desembocar, a cada polo da relação, sobre perspectivas de evolução da pessoa para contribuir a um encaminhamento significante do olhar sobre o outro e sobre si mesmo particularmente propício à uma evolução sentida e compartilhada em conjunto.

Palavras-chave: Método fenômeno-estrutural; Psicoterapia; Encontro


ABSTRACT

Neither does the curative concern stand at the core of reflection nor in the method of the phenomeno-structural approach. Should it mean that this practice could remain indifferent, insensitive and totally hermetic to one's distress to the point of staying deaf to its suffering, expressed or not, and its legitimate aspiration, formulated or implied, to improve one's condition? Who could pretend to such a disdain, especially originating from a school of thought and action empowering inter-human solidarity and furthermore claiming roots and attachments to humanistic intentions? It is specifically because of its broader project, more ambitious in many ways but also on the other hand more humble and realistic, that this approach can afford what would appear to an outsider as excessive arrogance or on the contrary, as a stunning lack of ambition. At the beginning of the 1950's, pages explicitly devoted to the psychotherapeutic question by the proponent of this method, Eugène Minkowski, although rare and limited in his work, contain nevertheless guidelines of a rigorous and surprising visionary freshness, even transposed today in a contemporary world, where their relevance are especially required. In his wake, by putting the encounter as the basic principle to establish the contact with a patient instead of his cure, in full awareness of the initial attitude supposed and required over time, as well as the nature of the collection of its clinical data, we will demonstrate how sources of analysis can emerge, leading at each point of the relationship, to perspectives of an individual transformation, contributing to a significant progress in regarding others and oneself as particularly suitable when this experience and evolution is shared.

Keywords: Method-structural phenomenon; Psychotherapy; Encounter


 

 

"Há exigências aqui!" É com essa exclamação, ainda mais inesperada que ela parecia afastada do tema ou da entonação pontual de nosso diálogo, que expressou recentemente uma de nossas pacientes após um acompanhamento de mais de dez anos. Uma constatação que tinha um tom avaliativo inédito sob essa forma ou mesmo sob a forma de algum comentário parecido que poderia ter precedido, vindo dela ou de outros habituados de nossa consulta. Uma observação lacônica, incisiva e penetrante, da qual ainda não me recuperei totalmente por causa dos efeitos desestabilizadores que ela provocou em mim e que são como ressonâncias que ela continua suscitando sobre as bases discretas de uma prática, de seus pressupostos ou das repercussões teóricas não ditas, reveladas de repente com uma surpreendente sagacidade a partir de uma alteridade que não teria muito que se preocupar.

Como essa paciente pudera chegar a tal conclusão, pois nosso percurso comum nunca foi inaugurado por uma estipulação prévia, nem, aliás, pontuado ulteriormente pela menção de um quadro, de diretivas, de pressupostos, de dispositivos, de contrato, como virou moda hoje no mundo de uma psicologia infelizmente muitas vezes obrigada a copiar as piores tendências do mundo em geral. E nenhuma obrigação de reajustar ou lembrar um suposto regulamento tinha sido necessária durante toda a duração de nossa longa história de trocas. A única proposta inicial da qual podemos lembrar era o convite regular, pelo menos uma vez por semana, às nossas entrevistas, sem mesmo qualquer contrapartida financeira, comum em nosso meio: eu tive de fato o privilégio de não cobrar durante toda minha carreira de clínico retribuído por instâncias coletivas e não por uma clientela, o que sempre me pareceu oferecer a ambas as partes uma generosa liberdade suplementar. De onde podia vir então esse sentimento, tão abrupto e peremptório na sua formulação, se ele não tivesse nenhuma ligação com as condições formuladas ou reafirmadas de qualquer ordem ou regulamentação, a não ser de uma atitude ao mesmo tempo subjacente e provavelmente invisível a mim e dos princípios mesmos que determinam sua orientação essencial? Para dizer a verdade e compreender bem, não eram nossas próprias exigências que se achavam assim relevadas, desaprovadas ou opostas como se fossem inacessíveis; e se fosse o caso, elas só transpareceriam então através de um elo de indeterminação flutuante: "há exigências", e não "você tem exigências", para se manter no que se expõe realmente. Inútil então querer atribuir a origem dessa impressão, tão difusa na sua recepção quanto segura na sua formulação, a uma séria de injunções vindas somente do clínico ou a uma submissão técnica impossível a satisfazer; seu fundamento reside em outra parte, nos determinantes que ultrapassam os dois protagonistas dessa aventura da qual eles são porém solidariamente dependentes porque saídos de uma comum adesão existencial. "Aqui", como o precisa tão bem nossa interlocutora, através, mais ampla que uma simples localização, a sugestão de uma superfície dividida e não de uma atribuição de território que me seria exclusiva; nulamente limitada ao consultório onde nós estamos, ela corresponde ao "na nossa casa" de um Mitsein , muito longe de toda reinvindicação de propriedade, e não a um "na minha casa", que seja sua (a dela) ou minha. "Aqui, juntos!", poderíamos insistir sobre o fundo, sem que isso seja realmente indispensável a uma situação onde a alusão se mostra bem mais promissora que uma acentuação que arriscaria ser estéril e talvez mesmo nociva, sobrecarregando-a.

É partindo dessa circunstância e apoiando-me nela que eu gostaria de lembrar os fundamentos e os fundamentais de uma aproximação fenômeno-estrutural na sua audácia, excepcional na opção científica, onde confluem metodologia rigorosa e ética exigente da reaproximação com o outro. Escolher deliberadamente esses termos gerais sem mencionar ambição psicoterapêutica, é em primeiro lugar lembrar que a preocupação curativa não se situa no coração nem da sua reflexão nem da sua abordagem. Aliás, a fórmula de nossa paciente se exclui totalmente dela ou pelo menos não parece permanecer nela; isso quer dizer que essa prática ficaria indiferente, totalmente insensível e hermética ao desespero do outro até ficar surdo ao seu sofrimento, expresso ou não, e à sua aspiração legítima, explícita ou implícita, de melhoria da sua condição? Quem poderia pretender a tal desdém, sobretudo imanente de uma corrente de pensamento e de ação que valoriza também uma solidariedade inter-humana e que se reivindica a vontade de ligações com raízes e intenções humanistas?

É porque sua função é mais larga, mais ambiciosa por certos lados, mas também mais humilde e mais realista, visto sob outro ângulo, que essa aproximação pode se permitir o que poderia aparecer, a um olhar exterior desprevenido, seja como uma pretensão extensiva seja como uma estonteante falta de ambição.

As páginas dedicadas abertamente no início dos anos 50 à questão psicoterapêutica pelo promotor desse método, Eugène Minkowski, por raras e limitadas que elas sejam na sua obra, compartam também eixos de orientação de um rigoroso e surpreendente frescor visionário, mesmo transpostos a nossa situação contemporânea onde sua pertinência se faz ainda mais sentir. Em um de seus raros artigos cujo título menciona explicitamente o termo psicoterapia2, "Psiquiatria, psicoterapia, relações com o doente e o grande público", publicado em 1953, procuramos em vão alguma receita nesse domínio. Após um conjunto de considerações sobre os perigos de uma difusão em direção ao grande público de uma forma de "conhecimento" no campo dos transtornos psiquiátricos, Minkowski chega a uma dispersão e à frenesia de aceleração que ele observa, já na sua época, aplicada às práticas psicoterapêuticas, com a ideia dominante que a des-multiplicação das diferentes técnicas impede de refletir sobre seu fundo e sobre seu valor de conjunto. A difusão intempestiva de um jargão restituído sem controle pelos pacientes eles mesmos não lhe parece um bom presságio. "E também, escreve ele, distanciar-se do casal médico-doente, da interação que vem atuar nesse plano, do contato, qualquer que seja sua forma, que vai sempre de pessoa em pessoa, determina também certa resistência. É provavelmente por isso também que nós não procuramos nos engajar nessa via"3. Por cima da resistência confessada de desperdiço de uma prática se esboça uma crítica mais radical frente a uma desnaturação de fundo que coincide com uma atestação de preceitos de ação bem mais importantes a reter. Por que a qualidade do contato com o paciente não constitui somente um tipo de preâmbulo à intervenção do clínico, como nós dizemos ligeiramente demais hoje em dia; muitos acabam encalhando, ao querer a todo custo estabelecê-lo pelo meio de uma adesão transferencial falsificada, até abortada desde o início. Ao se mostrar receptivo ao leque de todas suas modulações atuais e sucessivas, ela representa , na aceitação mais literal do termo, o núcleo de uma forma de conhecimento que sua aproximação autoriza, a dinâmica de compreensão ao mesmo tempo estrutural e evolutiva de uma personalidade singular, a corda sensível das modulações de seu acompanhamento e uma via de acesso para um conjunto de melhorias às quais, de ambas as partes, é legítimo pretender. Para esse fundador do método fenômeno-estrutural, é impossível delegar a um especialista, qualquer que seja a qualidade de sua competência reconhecida, a incumbência exclusiva de questões ou de resoluções que relevam dos fenômenos fundamentais da existência. "De uma maneira um pouco paradoxal, nos aconteceu dizer que existem pessoas que se tornam 'doentes' a partir do momento que elas entram no consultório do médico ou do psicoterapeuta. Certamente, não no sentido que eles os tornam doentes, mas porque a partir desse momento elas se dão um 'estado civil' e deixam assim aos outros a tarefa de esclarecer a situação no lugar dela ou pelo menos de orienta-las utilmente nessa direção. De fato, pertencerá ao médico levar em conta esse fato e orientar sua atividade em consequência" (Minkowski, 1966, p. 166-167). Uma parte determinante do exercício de nossas responsabilidades e de nossa ética conduz a levar em consideração esse tipo de delegação do transtorno que nos é confiado, de reajustar permanentemente, como a correção constante de uma trajetória no manejo de um veículo, as esperas de nossos pacientes e a justeza de nossas intervenções que não poderíamos colocar sob o selo exclusivo ou mesmo preponderante da interpretação. Muitas vezes, de fato, durante consultas pontuais ou duradoras, acontece de nos encontrarmos diante de pacientes fortemente desamparados: recentemente ou desde muito tempo estigmatizados por diagnósticos, às vezes tão heterogêneos quanto fantasiosos, ou em busca dramática seja de um primeiro diagnóstico onde eles reivindicam com contrassenso de legitimidade, um direito de conhecer, seja da determinação definitivamente estigmatizadora do clínico em relação a eles, nós reafirmamos constantemente, em nossas intenções e sobretudo em nossas posições, que não será jamais em direção a essa orientação prioritária nem mesmo a essa perspectiva que nós iremos, mas sim em direção à compreensão de uma pessoa com suas condições específicas de relações e com toda a complexidade do seu contexto relacional de pertencimento à realidade. Quando nossos pacientes, sofrendo, em um momento de diminuição de vitalidade, passam à atribui-la unicamente ao curso da doença e assim ao destino ao qual ela os condena irrecorrivelmente, sem negligenciar ou subestimar os limites ou influências que ela impõe à existência, nós não reduzimos jamais por isso, nem para nós mesmos nem para eles, o destino de uma pessoa ao destino de um transtorno do qual ela é portadora a ponto de assimilar um ao outro. Sobre o fundo, e para retomar a idéia diretriz de Minkowski, permanece indispensável sempre pensar a vida, sobre a qual ele vem eclodir, mais vasto que o transtorno, transbordando-o de toda parte, e então não criar, pelo meio diagnóstico ou psicoterápico, isto é por sintoma, denominação, "especialista" ou instância interposta, uma identidade de substituição ou de retraimento na qual o paciente e o clinico correm o risco de se afundar juntos, reduzidos então a suas funções porque se tornaram demissionários deles mesmos.

Eu me lembro desse ginecologista, sempre bem vestido e sempre com uma gravata borboleta, detentor de alguns honorários alimentares em um Centro Hospitalar Psiquiátrico onde se encontravam pessoas na maioria vindas de meios populares senão desfavoráveis, e explicando que ele se encontrava impossibilitado de fazer bem o seu trabalho. Para justificar esse fato, apalpando a barriga de uma de suas pacientes com fraco nível mental ele lhe perguntava uma primeira vez de um modo interrogativo: "Você sente dor quando eu aperto aqui?" Ao que a jovem mulher respondia: "Sim!". E em seguida, voltando ao mesmo lugar, ele lhe dizia novamente de modo um pouco mais afirmativo: "Você não sente dor quando eu aperto aqui?", ao que sua interlocutora lhe respondia: "Não!". Ele se virava então em direção ao seu interlocutor e com desprezo exclamava-se: "Você está vendo? É impossível!" Essa cena demonstra pelo menos uma coisa: que o quociente intelectual de uma pessoa não está em relação constante com suas capacidades nesse domínio, ou mais exatamente, guardemos uma parte de indulgência, com suas potencialidades a exercê-las. Porque quando esse médico confessa, nesse tipo de circunstância, se sentir fora do jogo de uma prática profissional e colocado diante de uma suposta impotência a desenvolver seu talento e seus conhecimentos, nós consideramos não somente que nós poderíamos começar a fazer valer os nossos, o que, além de uma simples repartição dos papéis e das especialidades poderia parecer pretensioso, mas que esse "especialista" deveria integrar essas particularidades ao exercício de uma profissão da qual eles nos parecem fazer parte integrante. Porque atrás dessa pressuposta conformidade aos postulados de base de sua atividade, se esconde, como cada um pode ter adivinhado, um profundo desprezo em relação à fraqueza do outro e de suas particularidades, sobre compensado por um odioso orgulho. Liberados de uma primeira fase de indignação da qual nós não podemos nos envergonhar, em uma análise fenomenológica e uma aproximação mais apaziguada, notemos aqui o vazio absoluto do espaço do "próximo" - isto é, fora do contexto religioso, todas as formas de humanidades virtuais e então a vir pelas quais eu estou sendo solicitado - durante um momento relacional onde só poderemos nos perder nós mesmos querendo evacuá-las. "Mais de uma vez insistimos sobre o fato que podemos pecar por excesso de adaptação, de equilíbrio, de pragmatismo, de racionalismo, de prosaísmo", escreve Minkowski em forma de conselho ou de lição de experiência virtual para nosso infeliz ginecologista. (Minkowski, 1966, p. 168)

Mas às vezes nós nos vangloriamos com ainda mais audácia ou pretensão: em vez de querer simplesmente fazer "bem", nós queríamos fazer "melhor". Quem não se lembra dessa anotação frequente em antigos boletins escolares e do abismo de perplexidade que o acompanhava: "Pode fazer melhor!". Como um professor pode pensar ser útil a um jovem aluno lhe mandando esse tipo de mensagem? E por que seria diferente na perspectiva psicoterapêutica, por definição estrangeira a toda vocação pedagógica? Minkowski convida a refletir nisso nesses termos: "Existem domínios onde o fator do 'melhor' não tem muita importância. E está bem assim. A quantidade e a moderação também não estão muito no lugar delas aqui. Ao lado de nossas atividades, limitadas por essência, há a vida que se afirma e que, pelo intermediário de algumas mentes, produz; e também, do outro lado ela procura com suas próprias forças combater o mal. Não se pode querer a todo custo fazer melhor que ela faz. Onde está o fracasso e onde está o sucesso? Em nossas operações psicoterapêuticas, é sábio não querer ir longe demais: nós estamos no caminho errado se nós não levarmos em conta o que a vida, na sua complexidade, mas também na sua riqueza e nos seus recursos, com seus altos e baixos, com seus obstáculos, sabe oferecer". (Minkowski, 1966, 165-66). Aqui como em outros lugares, a sabedoria de alguns provérbios pode se aplicar: "O melhor é inimigo do bem", dizia-se por aqui.

"Você poderia ter ido mais longe", repetia sem cessar um de meus colegas de maneira crítica e repetitiva a uma estudante que tentava com um pouco de dificuldades sustentar diante dele uma nota de pesquisa onde ela tinha tentado dar o melhor dela mesmo. Eu respondi a esse colega, talvez para tirar essa pobre moça dessa situação que a deixava muda, mas não somente por isso: "Por que você quer sempre ir mais longe já que nunca fomos tão perto!". A fórmula, certamente um pouco excessiva, não queria ser arrogante frente à estudante da qual tinha dirigido a pesquisa; ela visava somente lembrar que, impondo um distanciamento do real querendo assim melhor dar conta, acabamos perdendo toda capacidade de nos ligar a ele de maneira concreta e também de dizer efetivamente o que ele é, na indigência onde estamos de não poder captá-lo.

Como bom defensor do "mundo das metáforas ", segundo ele bem mais propício, adaptado e transportável no registro psicossomático - sem por isso esgotá-lo - que o recurso a uma explicação simbólica aplicada do exterior, Minkowski promove um comportamento ao mesmo tempo mais simples e mais concreto, o que não o desvaloriza nem um pouco. "O que queremos mostrar antes de tudo, é que relações desse tipo existem e que elas podem entrar em linha de conta sem necessariamente recorrer ao inconsciente e aos restos de traumatismos infantis de natureza conflita e libidinal. Elas são mais "simples" e mais diretas. E querendo ou não, a necessidade de simplicidade e de natural conduz sempre nosso pensamento e nosso esforço. E "simples" não é evidentemente sinônimo de simplista; é muitas vezes o que há de mais difícil achar" (p. 173). Quantas vezes eu já vi estagiários psicólogos inaugurarem suas participações à minha consulta adotando uma postura ultrajada, falsamente reflexiva e teatralizada até o grotesco, o que deixava os pacientes estupefatos, fazendo- os fugir ou adotar uma posição de rejeição definitiva com eles, enquanto ao contrário nossos jovens aprendizes permaneciam de boca aberta por achar somente, nesse meio relacional de escuta autêntica, trechinhos de existência prosaica e uma atitude tão banal em aparência para acolhê-los.

Entendamos bem que a relação qualificada de "autêntica" não pode ser entendida como um ideal, revestindo um componente excepcional, com tudo o que isso poderia subentender de inacessível. Certamente refrataria a uma aplicação técnica combinada ou convencional, ela se opõe à facticidade, à falsidade, à artificialidade, a um simples ajustamento mecânico ao transtorno ou à dificuldade encontrada, mas ela se mostra também rebelde a toda forma de intervenção puramente ritual ou funcional, até mesmo à ativação ou à única conservação de um papel em relação caricatural com o exercício de uma profissão. Longe de exercer qualquer transcendência frente a uma relação usual, ela se apresenta ao contrário como a manifestação de seu "ordinário", com a aparente banalidade que pode ressair dela. É notável verificar em Minkowski o quanto a análise das respostas a perguntas parecendo anódinas ou realistas permite acessar uma compreensão profunda, sem igual até então, dos fenômenos psíquicos e psicopatológicos em jogo.

Confrontado a essas "forças normalmente desequilibrantes e desadaptadas", a essas "naturais fraquezas humanas", assim como ele as chama em termos voluntariamente não patonômicos, Minkowski se aplica em encontrar respostas que incluem as caraterísticas dessa natureza, dessa vida da qual elas procedem "naturalmente". E a atitude que ele recomenda é provedora também desse mesmo "natural" que convém cultivar na base do encontro em vez de técnicas, de práticas ou de procedimentos pensados, racionalizados, linearmente e friamente desenrolados. Somente então, a reflexão pode se alargar e encontrar sua verdadeira amplidão onde teoria e prática se unem enraizadas em seu único lodo de existência: "o cuidado de deixar ao paciente a possibilidade de progredir sozinho fora do tratamento é longe, a nossos olhos, de constituir uma desvantagem. Por que seria diferente? A técnica perdera talvez um pouco de precisão; mas é de uma "tecnicidade" excessiva que devemos desconfiar; muitas vezes, a imprecisão nesse domínio é somente a expressão da irracional compreensão humana. Mais uma vez, devem-se formar psiquiatras e não técnicos". (Minkowski, 1966, p. 171) A fórmula aplicara-se evidentemente tão bem a essa profissão que a de psicólogo assim como a muitas outras onde a parte relacional se desenvolve no centro da atividade não somente terapêutica, mas também compreensiva de uma situação humana.

Pode parecer estranho reivindicar a imprecisão como principio metodológico em um século onde precisão e rigor são mostrados como virtudes totalizantes até totalitárias, ainda mais hoje que na época aonde esse autêntico psiquiatra conduzia sua ideia. Porém, nos parece indispensável entender e conceber essa flutuação como uma "aproximação", isto é uma forma de aproximação, de reaproximação com o outro, não de um modo direito e rigoroso, mas sim por pequenos toques adaptativos e sucessivos. Isso nunca formara clínicos adeptos do vago, da inconstância, da inconsequência, da indeterminação, da irresolução, sem nenhum ponto comum com esse objetivo; muitas vezes, eles se distanciam mesmo por causa de uma tenacidade, constância e coerência de intenção subjacente a sua menor intenção de intervenção. Recentemente, passei por essa experiência que me servira de curto exemplo, durante um banal telefonema com uma das minhas pacientes: "Bom dia, senhora Martin, como vai você?"; assim começou nossa conversa que todos concordaram em reconhecer como não muito inventiva. "Vou bem; estou tomando sol na minha cadeira de praia no meu terraço..." diz ela alegremente. A partir daí, seria muito presuntuoso pretender antecipar a continuação de nosso diálogo imediato que restituo in extenso : "e você tem certeza de merecer isso?" assim é minha interpelação seguinte, muito mais surpreendente e brutal que a primeira, a qual a paciente responde imediatamente "Ah! Reconheço você!!!". Fora de seu contexto, essa troca permanece incompreensível. É preciso começar pela tom de enunciação dessas duas curtas frases, divertido e facecioso a cada extremidade do contato a distancia que nos liga. Acrescento ainda que, há três anos que nós nos encontramos com um sentimento de culpa vindo de longe, e então frequentemente demais extensível a situações onde não teria nenhuma razão legitima de se aplicar, foi objeto de múltiplas conversas até se tornar entre nós um sujeito de brincadeira ou ironia que eu nunca deixo de reativar, só para nos assegurar, um e outro de sua evolução. É evidentemente a razão pela qual, por causa dessa divertida insistência, ela "me reconhece". Ela me "reconhece" claro através dessa maneira de voltar ao essencial sob o pretexto da mais comum das situações, através desse jeito de sublinhá-lo em um momento onde ela menos espera, através do estilo deslocado, alegre e brincalhão da minha intervenção. Mas não sou só eu que ela "reconhece", mas sim ela mesma em uma convergência subterrânea não somente entre nossas duas pessoas, mas, sobretudo entre nossas duas personalidades em busca de junção uma com outra que colorem essa breve troca. É alias a razão pela qual, quando ela chega em seguida ao objeto da sua ligação - a confirmação de nosso próximo encontro - eu a persegui sob a forma de uma identificação revertida um pouco ridícula mas engraçada pois ela continua brincando dela mesma com suas dúvidas: "Você tem certeza que mereço encontrar você?" Essa curta cena seria beneficiada por uma análise um pouco mais longa, levando em conta a história dessa paciente e de seus transtornos; guardemos a substancia, a saber, a procura comum de uma posição sustentável e porque não agradável em relação a si mesmo e ao outro, brincando de cada lado sobre o calibre do ajustamento identificador. A defesa de Minkowski para uma forma de "imprecisão" nos parece seguir essa intenção, a intenção de uma "apropriação sadia", isto é não possessiva, não dominadora do outro e sim justamente desligada de toda veleidade de influência sobre ele em uma familiarização com seu mundo, sua "adaptação", uma maneira de articulá-lo a uma parte de si mesmo. O modo alusivo, carregado pela ambiguidade, a sugestão, no sentido atenuado e não dogmático do termo, isto é pela metáfora , como o indica Minkowski, parece corresponder perfeitamente com uma mobilidade vital da qual ele releva e que ele respeita. Essa figura de enunciação combina, aliás, e se apoia, ao seu ritmo dessa vez, nota ainda esse grande psico-patólogo, com o passeio que não tem muito a ver com a pressa ou a precipitação, mas rica e em harmonia com o flanar, sem rumo e sem pressa, com a descoberta: "" caminhar" nos dá o ritmo próprio a nossa própria vida humana. E a doença também tem seu próprio ritmo. Ela se alinha sobre o pedestre" porque "a doença é um todo vivo assim como o organismo que ela afeta" (Minkowski, 1966, p. 161).

Outro exemplo, quando a natureza pede seus direitos e nossos deveres frente a ela, acabara de nos convencer de maneira humorística. Alguns anos atrás, eu estava procurando um presente simbólico para uma paciente chegando com um pouco de apreensão no seu trigésimo aniversário que temia passar sozinha; eu escolhi, para tranquilizá-la, um vaso de junquilhos bem determinados a encerrar o nosso inverno, no qual uma única flor estava florida enquanto as outras estavam em botão. Ingenuamente contente com esse símbolo de aparecimento um pouco dirigido a ela, ia para a consulta onde encontro alguns dos seus colegas de terapia. Logo vem o momento do encontro com ela, a entrega do presente saindo do seu embrulho e, mais linda ainda a divina surpresa da descoberta, assimétrica para ela e para mim: encorajado pelo calor do confinamento hospitalar, o buquê agora tem duas florezinhas. "Eu entendo", me diz ela, ultrapassando minha iniciativa simbólica, demais preparada e restritiva e me dando imediatamente outra, "a maior flor é você, a menor sou eu". Eu não estou em medida de esgotar os ensinos de uma historinha tão comovente e rica de harmonias, mas, como estamos com um pouco de pressa, eu só lembrarei uma breve e provisória "moral": da vida mesmo nascera a criação se nós lhe preservássemos a oportunidade de nos surpreender.

A orientação terapêutica representa então somente um prolongamento de um comportamento fenômeno-estrutural com ambição prioritariamente e mais largamente compreensiva. Sem ser um de seus objetivos, ela se integra espontaneamente ao processo de aproximação centrado sobre a especificidade da pessoa. Assim, colocando não o cuidado, mas sim o encontro como princípio de base do estabelecimento do contato com o paciente, em plena consciência da atitude inicial que ela supõe e requer na duração e na natureza do recolhimento dos dados clínicos que resultará, nós enxergamos como fontes de análise podem emergir para desembocar, a cada polo da relação, sobre perspectivas de evolução da pessoa para contribuir a um encaminhamento significante do olhar sobre o outro e si mesmo particularmente propício a uma evolução sentida e compartilhada juntos. Assim, o clínico é somente um intermediário, um mediador dessa incitação frente ao paciente que o leva em direção a uma vontade de conquista do mundo. Sua ação visa restituir à pessoa não somente seu "poder ser" segundo a fórmula de Binswanger, mas, sobretudo, teríamos vontade de dizer, seu "poder fazer" e, se não for pleonasmo, seu "poder fazer livremente". Isso não se reduziria a uma impressão ou a um sentimento, mas a uma capacidade e, sobretudo a uma vontade de realização, isto é, de se apropriar um real não somente de receptividade ou de interiorização, mas também de empreendimento, de criação, de cumprimento de si em ato, então em sentido e em historicidade singulares sempre comunitários. Nesse sentido, a psicoterapia aparece com um comportamento exigente tendo como objetivo procurar com o apoio do outro as vias de sua realização pessoal.

Entrar em relação com o outro, estabelecer um contato com ele, não é em primeiro lugar entrar em um mundo que nos seria estrangeiro na medida em que ele permaneceria "seu" mundo; melhor aceitar coabitar e, sobretudo querê-lo para se abrir a uma compreensão mútua do que nos determina e que nós contribuamos suscitar e modificar apoiando-nos em nossos familiares. O esforço compreensivo promove ao mesmo tempo uma atitude e um comportamento que permitem ao paciente se perceber ele mesmo pelo meio de uma imagem refletida no seu semelhante. Uma solicitação perseverante o conduz abordar sua existência como historicizada, vectorizada pelo meio do clínico que parece dar mais valor que outros -inclusive ele mesmo - o faziam antes. Ele se inscreve assim, progressivamente, em um sentido e uma apropriação sensível do seu destino único, unitário e singular, em um laço de interdependência, de reciprocidade e de solidariedade com uma consciência homóloga embutida a dela.

Pela mesma via com dupla entrada, o clínico oferece-se aos meios de acessar a organização estrutural de uma pessoa às vezes tornada difícil pelos mecanismos psicopatológicos de um transtorno. Ele enriquece sua pessoa e suas próprias capacidades evolutivas das mil facetas refratadas da relação com "seu" paciente em um pertencimento que não tem nada de uma possessividade, mas que restitui uma afinidade, uma simpatia que coloca à prova suas capacidades de integração e de transformação para um enriquecimento de suas singularidades. As múltiplas irisações do outro em si ultrapassam cada um dos parceiros desse entendimento, desmultiplicam sua própria imagem, consolidam sua unidade e sua permanente extensão graças à difração concentrada de todas do outro. Mais em profundidade, elas sensibilizam os princípios fundamentais de uma condição humana habitualmente compartilhada na diversidade das suas infinitas declinações e combinações.

Recentemente, no final de um encontro com uma paciente que não tinha vindo aos dois últimos por motivos fúteis e sobre os quais tínhamos descoberto junto que eles resultavam, sobretudo, de um intenso sentimento de vergonha, eu demostrava meu prazer em encontrá-la novamente cumprimentando sua coragem por se apresentar novamente na minha frente, ou melhor, na nossa frente, pois um estagiário presenciava o encontro. Ela me respondeu imediatamente, associando-nos, cada um a sua vez, em um olhar de gratidão, falando da sua potencial ausência do dia que ela tinha conseguido ultrapassar: "pensei que não podia fazer isso com você!". Fazendo-lhe entender que eu não estava insensível à evocação de um reconhecimento que ela tinha a fraqueza de nos conceder, eu lhe respondi para encerrar com reciprocidade o encontro do dia e facilitar talvez os seguintes, em torno dos meandros complexos dessa maravilhosa transferência provedora às vezes de alguns pequenos milagres, pela simples inversão do "você" sobre o qual insisti: "Você não podia fazer isso com VOCÊ!". A semana seguinte, ela chegou toda arrumadinha e maquiada - enquanto normalmente ela vinha vestida de maneira negligente - com a vontade evidente de se mostrar elegante explicando que ela tinha semeado sementes de basilicão no seu terraço. Porque, em nossa desesperança e em nossas alegrias, só podemos contar com o outro, fraco sem dúvida, mas portador desse mínimo de ternura e de apoio para encorajar arriscando uma sequência a viver.

 

REFERÊNCIAS

Minkowski, E. (1953). Psychiatrie, psychothérapie, relations avec le malade et le grand public, Annales médico-psychologiques, 2, p. 309-328.         [ Links ]

Minkowski, E. (2002). Écrits cliniques, Toulouse: Érès.         [ Links ]

 

 

Recebido em 25.06.2013
Aceito em 22.09.2013

 

 

1 Conferência no I Congresso Brasileiro de Psicologia & Fenomenologia / III Congresso Sul Brasileiro de Fenomenologia, sobre o tema "Corpo, Existência e Cognição", Universidade Federal do Paraná, 12 até 14 de agosto de 2013. Tradução: Isabelle Gayon (isagayon@hotmail.com). Revisão Técnica: Andrés Eduardo Aguirre Antúnez (USP / GT Psicologia e Fenomenologia - ANPEPP).
2 Un autre article très antérieur "La psychothérapie au dispensaire", paru en 1924 en collaboration avec Maurice Mignard, dans Paris Médical 53, 33, p. 137-141, outre le fait qu'il ne permet pas d'attribuer à l'un ou l'autre des deux auteurs chaque contribution, se centre plus sur des données épidémiologiques ou fonctionnelles que méthodologiques à proprement parler. Sans être, à certains moments, avare d'options ou de points de vue, il ne reflète d'après leurs auteurs qu'une "impression d'ensemble" sur la consultation d'hygiène mentale. Nous avons aussi trouvé mention d'un autre article daté de 1951 intitulé "Diagnostic psychiatrique et psychothérapie", publié dans les Annales médico-psychologiques, 109, I, p. 336-342. Le lecteur trouvera enfin quelques pages consacrées à ces questions dans un chapitre sur "la notion de contact en pratique" du Traité de psychopathologie, P.U.F. 1966, p. 560-571, où il est écrit cette pertinente remarque: "Nous n'essaierons pas de donner une définition de la psychothérapie. Elle suit pas à pas notre activité, de sorte qu'il n'est guère possible de dire où elle commence et où elle prend fin" (p. 561).
3 E. Minkowski: "Psychiatrie, psychothérapie, relations avec le ma-lade et le grand public", Annales médico-psychologiques , 1953, 2, p. 309-328, republié dans Eugène Minkowski, Écrits cliniques , textes rassemblés par Bernard Granger, Toulouse, Érès, 2002, p. 162-163.

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