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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.22 no.1 Goiânia jun. 2016

 

TEXTOS CLÁSSICOS

 

O Transcendente como metaproblemático1

 

 

Tradução: José André de AzevedoI; Gabriel Marcel (1937)

IPontifícia Universidade Católica do Paraná

 

 

É possível, em cada momento, separar-me o suficiente de minha vida para observá-la como uma sucessão de sorteios. Alguns deles já se realizaram. Constato que vários números já foram sorteados, o que me permite dizer que tenho boa ou má sorte. Devem sair, ainda, outros números; porém ignoro absolutamente por quanto tempo se prolongará essa loteria. Poderei concluir a obra na qual agora trabalho? Viajar à Grécia no próximo ano? Assistir as bodas de meu filho? Tudo isso é problemático: desde o instante em que admiti participar desta loteria - e esta participação começou no dia de minha concepção -, foi-me entregue um bilhete, no qual figura uma sentença de morte; o lugar, a data e a forma de execução permanecem em branco.

Rompendo um pouco com minha atitude inicial de distanciamento e considerando mais de perto os destinos que sucessivamente me tocam, está claro que não posso tratá-los como simples elementos que se podem justapor, formando uma coleção. Estes êxitos ou fracassos atuam uns sobre os outros, se matizam, se penetram entre si. Não posso atribuir valores fixos aos sorteios já realizados; esses valores variam em função dos sorteios que me restam receber. Observo, entretanto, que a forma em que me foi dado acolher estas impressões pode tomar-se, também, como outro sorteio: uma propensão à revolta ou uma atitude de resignação. Porém, ao mesmo tempo noto que, se isso que sou forma parte já do despojado, do recebido, a representação que fazia de minha vida como uma loteria carece de todo sentido. Sem dúvida, talvez seja legítimo afirmar que somente recebo a condição de enunciar o que sou antes de receber; porém, posso ser sem ser algo ou alguém? Resulta evidente que me é impossível tentar traçar uma linha divisória objetivamente precisa entre minha natureza e os dons ou privações que me foram dados sem saber por quê ou por quem.

Em meio a todas estas nuvens que se acumulam e, de certa forma, descendem de um desconhecido futuro até as profundezas de um passado que cada vez se deixa reconhecer menos como dado, uma segurança permanece invariável: eu morrerei. Minha morte, a qual me aguarda, é não-problemática. É suficiente que se imponha a mim como um astro fixo no universal cintilar dos possíveis. Minha morte: ela ainda não é um fato; seria uma ideia? Se fosse uma ideia, poderia delimitá-la, tomá-la como objeto; ora, isso me resulta impossível. Somente posso imaginá-la e ultrapassá-la no pensamento como resultado da condição de situar-me no lugar deum outro que sobrevive e o que eu chamo, então, minha morte será sua morte. Se eu assumo como um fato qualquer que eu me represente, é a favor desta coincidência realizada no pensamento; mas imediatamente quando tomo consciência desta substituição ideal, ela cessa; e, como consequência, minha morte, essa morte à qual não posso dar uma forma, me domina, me esmaga. Pelo simples fato de que é certa, ela está sobre mim; minha situação não difere em nada da de um condenado, encerrado em um espaço cujas paredes, minuto a minuto, se aproximam. Não há nada em minha existência atual e mesmo passada que não possa ser dissecado, pulverizado pela presença de minha morte em mim mesmo, ou melhor, sobre mim mesmo. E mais: como não ceder, atordoado, à tentação de pôr um fim a esta espera, a esta pausa miserável e indeterminada, livrando-me assim do suplício de sua iminência?

Aqui se constitui, para mim, uma metaproblemática do não ser mais, que é, ao mesmo tempo, uma sistemática do desespero, que somente se suprime através do suicídio. Esta metaproblemática pode perfeitamente mostrar-se como a suprema sabedoria, como a expressão menos pensada do que vivida de uma verdade últimada qual o homem ordinário desvia covardemente seu olhar. Abraçar esta verdade pode ser, ao mesmo tempo, denunciar todos os compromissos que me vinculam aos meus companheiros de cativeiro, talvez me subtrair de certa comunidade espiritual ou, inclusive, em última instância, de toda comunidade, qualquer que seja. Meu suicídio, que eu posso prefigurar por minha forma de viver, é essa ruptura, essa denúncia. Na verdade, pode ser que, hipnotizado pela morte iminente, me conforme a certas obrigações contraídas antes desse sombrio despertar; porém, não se trata de um simples fruto do costume, de um comportamento mecanicamente prolongado e, talvez, neste caso, se afirme em mim a resistência, mais ou menos reconhecida por minha consciência, de certa positividade na investidura pelo desespero. Essa positividade, todavia, quase informulável, é a afirmação de que resta qualquer coisa que não terá em conta minha morte iminente; inclusive que não lhe concerne. Afirmação, se se pode dizer, nuclear, à qual posso atar-me ou elevar-me para considerar minha morte, que, a partir de então, deixa de absorver-me; e tudo se passa como se eu tivesse conseguido me proteger.

Com efeito, não se trata de pensar que posso desprender-me da situação que a metaproblemática traduzia como o "não ser mais", utilizando para isso um procedimento dialético invariavelmente eficaz que operaria como se fosse um mecanismo. Aqui não é possível nada parecido. O desespero absoluto, ao qual, de certa forma, me convida minha condição mortal continuará sendo para mim uma permanente tentação, na qual somente se concede à liberdade triunfar - a uma liberdade que se manifestaria, na verdade, até no suicídio, até na absoluta negação de si. Não serão nossas possibilidades radicais de autodestruição como o lado inverso de uma potência positiva que deixa de reconhecer-se como tal a partir do momento em que rompe seus vínculos com o ser e lhe contradiz ou lhe problematiza?

Portanto, reconheço, enquanto ser pensante, que esse abismo que me atrai foi minha liberdade quem o criou. Entre a consciência - ou a afirmação dessa liberdade - e a obsessão de minha morte cria-se uma singular polaridade. No entanto, não posso manter-me nela; porque a reflexão me demonstra que, na realidade, não são dois termos que se opõe. Minha morte somente pode atuar contra mim mediante a conivência de uma liberdade que se trai para conferir-lhe essa realidade ou aparência de realidade da qual constatei em princípio seu petrificante poder de fascinação. Corresponde a esta liberdade, e unicamente a ela, atuar como potência obturadora suscetível de ocultar à minha vista a inconcebível riqueza do universo. Porém, como posso elevar-me até este pensamento sem que, por sua vez, se constitua para mim uma metaproblemática positiva, da qual a metaproblemática do não ser mais, do não ser, não seja, em última análise, senão a prefiguração refletida?

Se minha liberdade, desse modo, se liberta por si mesma, é na condição de distinguir entre seus possíveis usos sem que trate de estabelecer entre eles uma diferença de objetividade ou de validade. Não existe, nem pode existir, ciência em cujo nome a refutação do ser possa ser absolvida ou condenada, e a questão mesma, ao carecer de sentido, se destrói enquanto questão. Se se pode falar de um contrapeso ontológico da morte - e veremos que isso é muito pouco a dizer -, esse contra-peso não pode ser nem a vida em si mesma, por muito propensa que seja a concordar com quem a destrói, nem uma verdade objetiva que, com relação ao essencial, permaneça mais aquém de um αδιαφορητον2. Esse contrapeso ontológico somente pode residir no uso positivo de uma liberdade que se volta como adesão, quer dizer, como amor. Como resultado disso, a morte não somente é contraposta, senão transcendida. O metaproblemático é o transcendente.

Aqui, contudo, existe o risco de que se acumulem as dificuldades. Esse "transcendente" não será, no fim das contas, a objetivação - injustificável - do ato de transcendência, do sursum, mediante o qual me tomo como liberdade além da zona do fortuito ou do atribuído? Essa objeção não se fundamenta em uma confusão? O sursum, do qual aqui se trata, não pode ser a rigidez pura de um querer centrado em si mesmo ou ainda uma exaltação que se nega como tal na medida exata em que ela desfrutaria de si. Com efeito, pertence à essência da liberdade poder satisfazer-se a si mesma; porém, como não ver que esta espécie de narcisismo ascético não é senão desespero na medida em que é interrupção, crispação, na medida em que implica a depreciação prévia de uma realidade que é tratada como se somente merecesse ser esquecida e superada?

O próprio do ato da transcendência, assumido em sua amplitude, é o de estar orientado; em linguagem fenomenológica, diríamos que comporta uma intencionalidade. Porém, se é uma exigência, um chamado, não é uma pretensão; porque toda pretensão é autocêntrica; e, sem dúvida, é pela negação de todo autocentrismo que a transcendência precisamente se define. Determinação totalmente negativa, admito, mas dentro desta negatividade mesma somente é pensável sobre a base de uma participação em uma realidade que transborde e me envolva, mas que não posso, de nenhuma maneira, tratá-la como exterior a isso que sou.

Mas de fato: o que sou eu? Mais ainda: esta pergunta, se sou eu quem a realiza, que competências tenho para respondê-la? Supondo - e isso não é mais do que uma combinação de palavras - que realmente possua semelhante qualificação, como seria possível de fato reconhecê-la se a experiência fielmente interrogada me demonstra que ultrapasso a mim mesmo em todos os sentidos e que somente creio compreender-me na condição de ignorar-me? Não me resta aqui senão o recurso absolutamente social, não metafísico, de recorrer aos outros: como poderia atribuir a um outro o privilégio que eu mesmo me nego? Posso converter-me em um outro para mim, o mais lúcido, o mais penetrante, o mais implacável dos testemunhos e dos juízes. Além disso, a qualidade que teria o outro para revelar-me quem eu sou seria justamente eu quem deveria outorgá-la, é de mim que obteria o privilégio de julgar-me.

Por conseguinte, devo reconhecer que a pergunta "quem sou eu?", não pode ser simplesmente colocada ante mim como se fosse um problema; ela supera as condições mesmas que permitem apresentá-la: quem sou eu para perguntar-me quem sou? E aqui percebo que insensivelmente isso se transforma em um apelo.

Apelo a quê? Posso estar seguro, tenho alguma razão válida para pensar que este apelo é ouvido e que existe um ser - alguém - que me conhece e me avalia? De início deve-se refutar o postulado que implica semelhante pergunta - e é aqui precisamente onde se afirma a identidade do transcendente e o metaproblemático. Perguntar-me se existe um ser que perceba meu apelo e é capaz de responder-me, é colocar-me no plano da hipótese, é referir-me a uma constatação, a uma verificação idealmente possível. Porém, está claro que se "por milagre" estou em situação de realizar esta verificação - como quando se tenta saber se um SOS emitido por um navio perdido foi captado por alguma estação localizável no espaço -, é obvio, afirmo, que esse Outro, esse Receptor, empiricamente identificado, se demonstraria de imediato como não sendo e não podendo ser o Recurso absoluto até o qual elevo minha invocação. A transcendência Daquele que invoco se afirma com relação a toda experiência possível, inclusive a todo suposto racional que não seja mais do que a experiência antecipada e esquematizada.

"Quem sou eu? Tu na verdade me conheces e me julgas; duvidar de Ti não é libertar-me, é anular-me. Mas seria duvidar de Ti mais ainda o negar-Te sem olhar Tua realidade como algo sujeito ao problema; porque esses problemas não são senão por mim e para mim que os apresento e aqui sou eu mesmo questionado de imediato sem um retorno mediante o qual me desvaneço e me submeto".

Não desconheço o caráter insólito que apresenta semelhante linguagem quando de imediato é utilizada no registro filosófico; não está mais para um prelúdio à oração, um exórdio da mística? Precisamente se trata, no final das contas, de saber se entre a metafísica e a mística existe uma fronteira definível. As frases às quais recorri de nenhum modo descrevem uma experiência; somente traduzem uma situação fundamental que o filósofo deve reconhecer, qualquer que seja a confissão à qual, de fa-to, pertença e qualquer que seja sua inclinação pessoal ou, pelo contrário, sua inaptidão para a efusão interior. Não são mais que dados contingentes aos quais lhe está proibido atar-se. Já é hora que o metafísico compreenda, se definitivamente quer sair do atoleiro epistemológico, que a adoração pode e deve ser para a reflexão uma terra firme sobre a qual deve sustentar-se, inclusive se, como individualidade empírica, somente lhe é dado participar nela na escassa medida que preenche sua indigência natural.

Se assim suceder, uma filosofia da transcendência nunca se deixará separar, mesmo em direito, de uma reflexão que se realize sobre as modalidades hierarquizadas de adoração e que culmine não em uma teoria, mas em um reconhecimento da santidade, apreendida não como maneira de ser, mas como dado significante no mais puro de sua intenção. É ali, com efeito, e somente ali, que o problemático é ultrapassado e, ao mesmo tempo, onde a iminência da morte se anula desde esta vida em uma plenitude que é o ser mesmo. Que a santidade realizada em alguns seres, em alguns testemunhos ao longo dos séculos não constitua para os débeis humanos uma anomalia revoltante e monstruosa, que repercuta nos corações tais ecos, que seja para as consciências vacilantes um convite permanente a julgar-se e a esperar - aqui, sem dúvida, está a noção segunda que nos permite reconhecer o santo e, em um plano diferente, claro, ao criador genial - o intercessor próximo Daquele que nenhum progresso da técnica ou do conhecimento e disso que se chama moralidade reconciliará jamais com quem lhe implora desde o fundo de sua câmara de tortura.

 

Nota Biográfica

Gabriel Marcel (1889, Paris 1973, Paris), Filósofo, Dramaturgo, Crítico Literário e Músico francês, é muitas vezes associado ao Existencialismo Cristão, em oposição ao existencialismo ateu de Sartre. No Collége de France, foi aluno de Henri Bergson. Sua filosofia representa o elemento dramático da existência humana, definindo o ser humano como um ser itinerante. Obras Principais: Existence et Objectivité (1914); Journal Méthaphysique (1914-1923); Être et Avoir (1935); Homo Viator (1945); Le Mystère de L'Être (1951); Présence et Immortalité (1959),         [ Links ] dentre outras.
Revisão Técnica: Dr. Márcio Luiz Fernandes (Pontifícia Universidade Católica do Paraná)
1 Comunicação realizada no Congresso Internacional de Filosofia em agosto de 1937.         [ Links ] Artigo presente na obra Du Refus à l'Invocation (Paris: Gallimard, 1940, p. 183-191).         [ Links ]
2 Sinal.

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