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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.22 no.2 Goiânia dez. 2016

 

TEXTOS CLÁSSICOS

 

Prefácio ao "Essais hérétiques: sur la philosofie de l'histoire", de Jan Patočka1

 

 

Paul Ricouer (1981)

 

 

O público de língua francesa só conhece Jan Patočka de nome: A fama o designa como aquele filósofo checo, discípulo de Husserl e de Heidegger, por muito tempo proibido de ensinar e de publicar, que se projetou na cena pública quando os signatários da carta 77 o designaram como seu porta-voz, e que morreu sob as mãos da polícia ao fim de uma série de interrogatórios violentos. Mas quem conhece o filósofo? Alguns leitores talvez saibam que ele é um dos maiores conhecedores de Comenius, um dos fundadores da filosofia da educação na época do Renascimento. Outros, sem dúvida, leram a sua obra "O mundo natural" da coleção Phaenomenologica publicada por Nijhoff e serão capazes de ler os presentes Ensaios como uma continuação inesperada dessa obra acadêmica. Mas quem sabe, com a exceção de seus numerosos e fervorosos discípulos de Praga, não importando de qual disciplina ou horizonte intelectual não universitário provenha, que Jan Patočka foi um acadêmico da estatura de Merleau-Ponty? A leitura dos Ensaios Heréticos o persuadirá sem nenhuma dúvida. Se aqui evoco a memória de Merleau-Ponty é porque estes Ensaios parecem ocupar, a partir da linhagem de Husserl e de Heidegger, o mesmo lugar que O visível e o invisível, a saber o prenúncio de uma continuidade ao mesmo tempo fiel e divergente atribuída à duas versões conhecidas da fenomenologia. Ou seja, esses Ensaios têm, como a obra póstuma de Merleau-Ponty, a beleza densa de certas figuras de Rembrandt, emergindo das trevas vibrantes do fundo do quadro. O leitor não pode se furtar à evidência da grandeza, mesmo que tenha sua leitura retardada pelo aspecto impenetrável e pela característica não linear da exposição.

O acesso não é difícil às páginas, muito originais para não dizer intrigantes, que retraçam o nascimento quase simultâneo na Europa Ocidental da política, da filosofia e da história. O destino solidário dessas três dimensões da humanidade europeia se constitui no fio condutor mais aparente desse texto denso. Nesse nível, ele nos remete ao tom de Hannah Arendt em "A condição humana" ou em "As origens do totalitarismo". E, mais do que o tom, a uma temática comum: de que a política é sempre de ordem diversa que a da gestão econômica e que a da projeção do homem no trabalho; que a política não tem outra finalidade que a vida para a liberdade, e não a vida para a sobrevivência ou mesmo para o bem estar; que o homem político está na origem do homem histórico, na medida em que, em última análise, a história testemunha a realização da liberdade no espaço público aberto à liberdade e para a liberdade; enfim que a filosofia é o pensamento livre aplicado às condições possibilitadas pela política e pela história, como sabemos da "República" de Platão e da "Ética" e da "Política" de Aristóteles.

Igualmente, se durante muito tempo procurou encontrar esse fio condutor da unidade subterrânea que une a política, a história e a filosofia, o leitor não se sentirá per-dido. Ficará até mesmo contente ao descobrir os desdobramentos bastante originais em relação à obra de Hannah Arendt no que se refere ao destino da Europa após à polis grega e ao imperium romano, sobretudo no que concerne ao suicídio da Europa na época das duas grandes guerras mundiais. Mas quando abordar os textos estranhos, os olhares assustadores, relativos ao reino da guerra, das trevas e do demoníaco, bem no coração das empreitadas mais razoáveis a favor da paz, identificada nessa ocasião com a potência do dia, esse leitor se sentirá transportado para uma esfera estranha ao discurso muito mais aristotélico de Hannah Arendt a favor da livre democracia; ele se descobrirá repentinamente situado em outro horizonte do pensamento, no curto circuito operado por Jan Patočka entre sua leitura da atualidade política em termos da Noite e a atualização do dictum de Heráclito de Éfeso: "Polemos é o pai de todas as coisas...". O leitor abordará agora uma segunda leitura mais radical do que aquela que se limita a circular tranquilamente entre a política, a história e a filosofia para comprovar sua correlação. Essa segunda leitura o colocará no nível do tema fundador do precedente: a saber, a emergência da história a partir da pré-história. Trata-se ainda do destino da trilogia política, história, filosofia; mas esse nascimento é agora visto pela perspectiva de um tema unificador singularmente de aces-so muito mais difícil, o da problematicidade do homem histórico, oposta à certeza ingênua e absoluta do homem pré-histórico. Remontando assim do tema da tridimensionalidade do homem europeu ao tema, muito mais difícil de tratar, o da problematicidade constitutiva do homem histórico, se remontará, ao mesmo tempo, à origem husserliana e heideggeriana de seus escritos e atentará para o lugar da heresia, que é o ponto de ruptura não somente com a vulgata marxista - o que é muito evidente - mas de modo muito mais decisivo e muito mais dramático com as visões de Husserl e de Heidegger sobre a historicidade.

Com efeito, a questão da condição pré-histórica do homem está estreitamente ligada à tentativa de recuperação do mundo natural pela fenomenologia nas suas duas versões clássicas. A heresia consiste precisamente na nova definição do mundo natural como o mundo pré-histórico, em virtude da caracterização da historicidade pela problematicidade.

Retornemos à questão pela sua outra extremidade: a questão do mundo natural. É por ela precisamente que os Ensaios Heréticos começam, sem que o leitor possa facilmente compreender as razões que o constrangem a seguir o autor nessa discussão pouco conhecida nos círculos fenomenológicos.

O mundo natural - que é lembrado desde a primeira página - não é o que a ciência positiva denomina de natureza, ou seja, o conjunto dos objetos acessíveis às ciências empíricas, nem o que o materialismo positivista remete para uma exterioridade absoluta que, de uma maneira ou outra, se refletirá sobre a interioridade do pensamento. Nessa primeira rápida e vibrante discussão, Jan Patočka segue seu mestre Husserl, mas por pouco tempo. O mundo natural, para Husserl, é o mundo pré-científico e não o mundo pré-histórico. É o mundo da vida, que foi perdido pela objetivação e que necessita ser recuperado ou, ao menos, para o qual deveríamos poder nos dirigir a partir de um método alternativo de questionamento, tal qual foi praticado pelo fundador da fenomenologia em sua última obra, "A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental". O mundo natural permanece assim uma questão da razão teórica. Isso porque Husserl não pode "compreender o homem a partir dos fenômenos concretos do trabalho, da produção, da ação e da criação". Mais gravemente ainda, Husserl, mesmo na "Crise", foi incapaz de superar o idealismo das "Meditações Cartesianas" e a partir dai fazer da consciência, mesmo multiplicada indefinidamente pelo jogo da intersubjetividade, o lar da vida pré-científica. Consequentemente, a filosofia que opera o retorno aos fenômenos constitutivos do mundo da vida, reduz a si mesma a um olhar, de um sujeito desinteressado.

Essa crítica ao idealismo husserliano, Jan Patočka compartilha muito evidentemente com Heidegger. A esse último ele atribui a convicção de que este homem em sua totalidade, com sua capacidade de conhecimento, de ação e de sentimentos está aberto para o mundo. Fundamentalmente, esta abertura do ser para o mundo não é um fenômeno de ordem psicológica ou mental, mas uma constituição ontológica que precede a nossa tomada de consciência. O próprio sentido da fenomenologia é assim inteiramente modificado: o fenômeno ao qual nos abre o ser-no-mundo não pode ser despojado de seu caráter misterioso: se mostra apenas o que se manifesta no ocultamento em que permanece o ser. Do mesmo modo se perfila uma historicidade que deve ser concebida como um modo do ser histórico anterior a toda consciência histórica e também ao conhecimento histórico, a historiografia. Com efeito, a abertura para o mundo depende das atividades humanas que as compilam, as examinam e as transmitem ao arbítrio das tradições. Assim se desvanece a esperança de encontrar, sob as estratificações do conhecimento objetivo e das visões de mundo, uma invariante qualquer: é preciso reconhecer, sobretudo, que todos os mundos históricos onde se recolhem as eclosões e os eclipses do ser dos seres são "naturais".

É nesse ponto que o pensamento de Jan Patočka ganha sua autonomia em relação ao próprio Heidegger. O ocultamento do ser, no último Heidegger, designa as alternâncias de ocultação e de desvelamento que fazem que o mundo dos seres seja percebido tanto como Sujeito quanto como Espírito. Para Jan Patočka ele designa a perda de toda a segurança colocando o homem e sua liberdade inteiramente a descoberto. É o que ele denomina da condição problemática característica da idade histórica. Essa nova interpretação de Heidegger entra em choque com aquela de Husserl: o mundo natural, não é o mundo pré-científico, é o mundo pré-histórico, ou seja, não-problemático.

Não que o mundo pré-histórico ignore toda a atividade narrativa. O mundo não-problemático não é desprovido de relatos, anais ou crônicas; mas a sua função é precisamente a de manter o estilo de vida do homem pré-histórico: "os anais são uma interpretação do passado que têm importância para o êxito do comportamento futuro do clã, cuidando da sensação de bem estar". O ciclo vital de recepção e de transmissão não é rompido, e a historiografia pode se mover indefinidamente no interior tranquilo do círculo do eterno retorno. O nascimento da história não é o da historiografia. O mundo pré-histórico não é desprovido da historiografia.

O mundo pré-histórico também não é desprovido da transcendência, sem deuses, sem sagrado, sem cultos e sem ritos. Muito ao contrário, sua visão de base está na separação de uma região onde os deuses reservaram para si a imortalidade e deixaram para o homem a morte. A sabedoria, segundo essa visão de mundo, consiste na modéstia dos desejos, a aceitação da condição de mortal e a amizade com os deuses que tornam suportável a ruptura entre sua imortalidade e nossa condição de mortais. É nesse sentido que o homem pré-histórico se abriga. O conhecimento da imortalidade o protege do desespero em que sua condição de mortal deveria lançá-lo.

Essa interpretação do mundo pré-histórico como sujeição regida pela amizade com os deuses enfatiza, ao preço de uma completa reorientação, a análise de Hannah Arendt sobre a ausência de horizonte histórico do trabalhador. Esse horizonte é limitado pela reprodução da vida e a consumpção-consumação dos produtos do trabalho. Compreendemos agora que não somente a sujeição de uma vida não-problemática não é rompida pelo trabalho enquanto tal, mas que o ciclo do trabalho e o dos mitos estão profundamente interligados. O abrigo do trabalho é o mesmo que das aparições furtivas do divino. Não se lê isso em Hannah Arendt. Isso porque após servir-se da trilogia - labor, work e action -, Jan Patočka a substitui por sua própria concepção dos três movimentos da vida, dotados cada um de uma temporalidade própria: o primeiro é a aceitação, onde todo o excesso é compensado por uma reparação, como no famoso dictum de Anaximandro, o pensador pré-socrático de Mileto; o segundo é o da defesa, que pertence à economia do trabalho, na medida em que o trabalho é, ao mesmo tempo, uma carga que o homem toma para si por toda a vida e um alívio desse fardo; Este desafogo pode se limitar ao rapto de Eros, não chega a romper os limites da existência pré-histórica onde a imortalidade dos deuses consola a condição de mortal dos homens. O terceiro movimento fundamental da vida é o da verdade, que, também no interior do mundo pré-histórico, atesta a diferença do sobrenatural e do natural, e assim distingue no divino o poder da abertura. Mas é somente sob o regime da problematicidade que esse poder de abertura, já em curso no mundo pré-histórico, é reconhecido como tal. Ele perde agora sua função tutelar e deixa o homem desprotegido. A vida política, sob o regime da problematicidade, torna-se o que Hannah Arendt havia enunciado: uma vida voltada para o futuro, um impulso para. Mas Jan Patočka acrescenta, com um acento trágico: essa "vida se apoia daqui em diante sobre a base sólida da continuidade generativa, ela não se volta mais para a terra obscura. A obscuridade, ou seja, a finitude, o perigo a que ela está constantemente exposta, está sempre à sua frente, afrontando-a. É unicamente nesse "se explicar" com o perigo afrontado sem medo, que a vida livre pode se desenvolver como tal; sua liberdade está fundamentalmente na própria liberdade dos audaciosos". Diversamente do guerreiro que está protegido do perigo que afronta pelas grandiosidades estáveis às quais dedica seu risco, para o homem problemático "o propósito reside na vida livre como tal, se nele próprio ou em outra pessoa, está lá uma vida que ninguém coloca em abrigo". O perigo, nesse ponto, é que, após recusar-se a idealizar a consciência, o filósofo idealiza a cidade grega. É aqui que Jan Patočka se afasta de todos os seus mentores e penetra na dimensão propriamente trágica de sua meditação sobre a problematicidade com acentos quase nietzschianos. É, com efeito, sob a égide de Heráclito de Éfeso, já evocado de passagem, que o autor discerne, na raiz desta "dotação de sentido" que é o próprio espírito ocidental, o papel da discórdia e da luta. Sim, verdadeiramente, Polemos é o pai de todas as coisas, inclusive e sobretudo daquilo que é "comum". "Polemos é, ao mesmo tempo, o que engendra a cidade e o vislumbre originário que torna possível a filosofia". Podemos ver Heráclito, tal como o concebe Jan Patočka, não como o pensador da existência selvagem ou da ação terrorista, mas aquele que pensa o nascimento de todo vínculo a partir do abalo mais extremo. Este é o pensamento que marca a cesura entre a vida pré-histórica e a história. Além desse ponto crítico, é preciso compreender a vida, não do ponto de vista do dia, ou seja, da vida aceita, mas da noite, ou seja, de Polemos.

O perigo não é de cair no idealismo, mas de ceder ao niilismo. Jan Patočka sabe bem disso. Em suas páginas consagradas à noção do sentido da história, ele admite, como Heidegger, que a questão do "sentido" não é a do "significado", no sentido lógico e linguístico da palavra, mas uma questão colocada somente pelos seres e aos seres capazes de colocar em questão - em jogo - seu ser. Depois ele avança até dizer que o que é abalado, para o homem problemático, é a totalidade do sentido acumulado pelo homem pré-histórico, incluindo a era do cristianismo: "a procura expressamente questionadora, que é a filosofia, é mais arriscada do que o mergulho divinatório do mito". A perda das certezas do estado pré-histórico chega hoje ao abalo de todo o sentido aceito.

Assombrado pelo niilismo, Jan Patočka entrevê uma saída na própria noção de problematicidade, que lhe parece descartar mais o "nenhum sentido" dogmático dos discípulos cínicos de Nietzsche do que o "sentido" dogmático dos apologetas de todas as denominações. A perda do "sentido" não é a queda no "nenhum sentido", mas o acesso à qualidade do sentido implicada na própria procura. Jan Patočka retorna assim ao tema pré-socrático do "cuidado da alma" e da "vida examinada". O sentido incluso no estado da problematicidade é, diz ele, um "sentido justo", nem muito modesto nem dogmático, que dará a coragem de viver na atmosfera da problematicidade. O acesso a esse sentido requer menos uma metanoia, uma conversão em um sentido mais filosófico que religioso. Chegando aqui poderemos nos perguntar como é possível retornar, da contemplação de tais abismos de um sábio solitário, à responsabilidade histórica e política, no sentido mais comum e mais corriqueiro do termo: O vínculo que Jan Patočka estabelece, na segunda metade do seu ensaio, entre a filosofia da problematicidade e seus julgamentos propriamente políticos relativos ao destino da Europa, se detém inteiramente sobre a capacidade de transferir do indivíduo à comunidade europeia a meditação sobre sentido, "nenhum sentido" e procura. A citação seguinte merece ser destacada apesar de ser longa: "A possibilidade da metanoese nas dimensões históricas depende fundamentalmente da resposta que receberá da questão seguinte: a parcela da humanidade que é capaz de compreender como caminha e o que está acontecendo na história e que se vê, ao mesmo tempo, oprimida, devido à posição atual da humanidade na vanguarda técnico científica, é capaz de assumir, de vez em quando, a responsabilidade do "não sentido", é capaz igualmente, da disciplina e da renúncia de si mesma que requer a atitude de não-enraizamento, no interior da qual só pode se realizar um sentido absoluto e, contudo, acessível a humanidade como problemática?".

Toda a continuação dos Ensaios Heréticos, consagrada à Europa e à herança européia, não passa de um longo exercício aplicado ao "desenvolvimento das possibilidades embrionariamente fundadas sobre esse abalo". É isso que atormenta Jan Patočka, o destino da Europa ocidental para além do niilismo. É bom advertir que as perspectivas não são promissoras. O diagnóstico é mais limitado que a terapeutica. Essas são, como foi dito acima, as páginas consagradas às duas guerras mundiais e à Guerra erigida como potência da Noite, que são as mais fascinantes: "no século vinte, a guerra, essa revolução da cotidianeidade contemporânea já concluída... a guerra, como 'tudo é permitido' universal, como a liberdade selvagem, invadindo os Estados, tornando-se 'total'. A cotidianeidade e a orgia são organizadas pela mesma mão. O autor dos planos quinquenais é o diretor do processo do grande espetáculo que faz parte da nova caça aos feiticeiros. A guerra representa, ao mesmo tempo, a quande empreitada da civilização industrial, o produto e o instrumento da mobilização total (como Ernst Jünger já havia muito bem notado), e a liberação de potencialidades orgiásticas que nenhuma outra parte pode se permitir de trazer a destruição até o limite extremo da embriaguez".

Jan Patočka quer eliminar qualquer ilusão sobre a própria paz: na ótica do dia, ela é uma transição, um hiato agradável; mas o século vinte foi um episódio disfarçado da própria guerra: "a guerra é a prova ad oculos de que o mundo está maduro agora para o seu fim".

O que é isso, nesse avanço da Noite, que corresponderá no plano coletivo à lucidez do filósofo solitário? Jan Patočka tem apenas uma formula que merece resposta: "a solidariedade dos 'abalados', daqueles que estão em choque, apesar de seus antagonismos e da diferença que os separam". A experiência privilegiada, sob esse olhar, é a do front, tal qual Ernst Jünger e Teilhard de Chardin experimentaram e comentaram: "O homem está sujeito à vida pela morte e pelo medo; ele é manobrável ao extremo. Ora, justamente por essa razão parece haver outra perspectiva, uma possibilidade de mudança, partindo da guerra engendrada para a paz, o terreno de uma paz real. Ela pressupõe, em primeiro lugar, a experiência do front descrita por Teilhard, experiência para a qual Jünger, por seu lado, cunhou uma expressão menos mística e muito mais categórica: a positividade do front, do front não como servidão da vida, mas como libertação infinita e alforria dessa servidão".

Mas agora uma questão angustiante se coloca: "porque essa grande experiência, a única capaz de tirar a humanidade do estado de guerra e de inaugurar uma paz real, não influiu de modo decisivo sobre a história do século vinte, apesar dos homens terem sido expostos a duas reprises com duração de quatro anos, apesar de terem sido efetivamente afetados e transformados? Porque não desenvolveram seu potencial de salvação?".

Para essa questão não há resposta senão a reiteração do ato de fé. Nada posso além de reproduzir, com temor e trémulo, a fórmula desse credo pronunciada além do dogmatismo do "sentido" e do dogmatismo do "nenhum sentido": "A solidariedade dos abalados se edifica com a perseguição e a incerteza: lá está seu front silencioso, sem protesto e sem estrépito, mesmo lá onde a Força reinante procura tornar-se dominante por todos os meios". Esse pensamento prolonga, para além da esfera individual, o tema socrático do "cuidado da alma" e da "vida examinada". Mas esse socratismo político terá a sua chance? Essa é a questão mais radical que a Europa ocidental pode receber hoje do coração do que foi uma vez a Europa central.

 

NOTA BIOGRÁFICA

Jan Patocka (1907, Turnov- 1977, Praga), um dos principais nomes da filosofia checa do século XX. Influenciado pelo pensamento de Edmund Husserl, desenvolve uma fenomenologia asubjetiva e uma fenomenologia do Lebenswelt. Trabalha ainda com a filosofia platônica e aristotélica. Tendo estudado em Paris, Berlim e Freiburg, travou conhecimento direto com os pensamentos de Husserl, Heidegger e Fink. Foi um dos fundadores do Círculo de Praga. Obras principais (em francês): Essais hérétiques sur la philosophie de l'histoire (Lagrasse, Verdier, 1981); Platon et l'Europe (Lagrasse, Verdier, 1983); La Crise du sens, tome 1, Comte, Masaryk, Husserl (Bruxelles, Ousia, 1985); La Crise du sens, tome 2, Comte, Masaryk et l'action (Bruxelles, Ousia, 1986); Le Monde naturel et le mouvement de l'existence humaine (Dordrecht, Kluwer Academic Publishers, 1988); Qu'est-ce que la phénoménologie? (Grenoble, J. Millon, 1988); Papiers phénoménologiques (Grenoble, J. Millon, 1995); Éternité et historicité (Lagrasse, Verdier, 2011).
Tradução: Dr. Werther Holzer (Escola de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal Fluminense). E-mail: werther.holzer@uol.com.br
1 Publicado originalmente em 1975 (Editions Petlice, Praga), tradução francesa de 1981 (Éditions Verdier).

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