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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.22 no.2 Goiânia dez. 2016

 

TEXTOS CLÁSSICOS

 

Curriculum vitae de um filósofo checo (posfácio ao "Essais hérétiques: sur la philosofie de l'histoire", de Jan Patočka)1

 

 

Roman Jakobson (1981)

 

 

A vida espiritual de toda nação é de fato uma luta contra o debacle moral, declarou com coragem Jan Patocka em mensagem publicada no ano de trevas de 1939, e "as fontes insubstituíveis da riqueza espiritual são as grandes personalidades. Mas elas não se fabricam por encomenda: elas são um dom da graça. Os recursos que temos a nossa disposição para o combate espiritual são intelectuais e morais. Devemos nos esforçar para alcançar um grande rigor e uma flexibilidade ainda maior no pensamento e adquirir uma enorme disciplina interior".

Três filósofos checos alcançaram renome mundial, uma autoridade moral e uma vida justa excepcional: Jan Amos Komensky (1592-1670), Tomas Guarrige Masaryk (1850-1937), Jan Patocka (1907-1977).

Patocka foi um dos últimos estudantes de Edmund Husserl, que considerava o jovem checo como um de seus discípulos mais penetrantes. Ele se sentiu pessoalmente atingido quando os nazistas, que estavam no poder na Alemanha, proibiram seu mestre de exercer qualquer atividade pública, e teve um papel ativo na organização das conferências de Husserl em Praga, mas não teve êxito para que seu professor se fixasse na Checoslováquia e, por conseguinte, sua obra.

Em seu discurso de 1938 em memória de Husserl, Patocka elogiou o devotamento dedicado pelo filósofo falecido em favor de uma corrente perpétua de fé no livre direito do homem à verdade é à autodeterminação. Esse movimento, afirmava, "parece muitas vezes preso pela desordem e as nuvens internas bem como pelas épocas cruéis, mas não pode ser vencido, a não ser que a humanidade renuncie à sua essência".

As atividades de Patocka na Universidade Charles, inauguradas com sua obra de 1936, O mundo natural com problema filosófico, foram interrompidas em 1939 por ocasião da invasão alemã à Checoslováquia. Elas foram retomadas brevemente após a guerra, mas foi obrigado a interrompê-las logo após 1948. Foram novamente retomadas por um curto período em 1968, mas mais uma vez foi obrigado a se retirar. Ainda que as atividades professorais do mestre inspirado estivessem reduzidas a um seminário privado sobre fenomenologia, praticamente clandestino, ele conseguiu, apesar de todos os obstáculos, prosseguir com suas múltiplas pesquisas e a redigir seus trabalhos em um minúsculo apartamento subterrâneo. Suas limitadas possibilidades de publicação foram em seguida reduzidas à zero: publicou em 1960 uma tradução da Fenomenologia do espírito de Hegel e, em 1967, uma tradução de sua Estética, mas em seguida suas traduções só puderam aparecer sob diferentes pseudônimos. O único de seus escritos publicado depois da guerra foi sua notável monografia, Aristóteles, seus precursores e seus sucessores, pela Academia de Ciências Checoslovaca, em 1964. O tema principal desse livro é a continuidade do movimento, ao mesmo tempo físico e espiritual, como ideia dominante da tradição que conduz de Aristóteles à Hegel. Como o próprio Patocka afirma esse livro não é a história de soluções definitivas, mas de questões abertas que levam a novos problemas e visam incitar os filósofos a novas reflexões. O aprofundamento nessa questão difícil que é o movimento interno é revelador do desenvolvimento do pensamento de Patocka, de seu esforço perseverante e de sua pesquisa.

Com diferentes detalhes históricos a sorte foi cruel com a herança literária dos três filósofos checos que citamos mais acima. Komensky, exilado e errante por toda a vida, foi por muito tempo um autor proibido em sua pátria. Seus livros foram parcialmente impressos no estrangeiro, mas permaneceram em sua maior parte como manuscritos, alguns só foram descobertos em nossa época e, inclusive, em 1934, a mais importante e mais vasta obra dentre elas: De rerum emendatione consultatio catholica, "consulta universal sobre a reforma das ocupações que tornam o homem humano", segundo a interpretação que Patocka deu ao título dessa grande obra. Na última frase de seu livro sobre Aristóteles, Patocka caracterizou a obra de Komensky recentemente descoberta como "a síntese mais vasta e mais ambiciosa jamais tentada por um filósofo checo".

Após a primeira guerra mundial Masaryk, "dotado de toda sua força moral", como dizia Patocka, retornou da migração como o presidente libertador da Checoslováquia. Mas após a segunda guerra mundial, não somente a reedição de suas obras foi proibida, como as edições antigas foram retiradas das bibliotecas e destruídas, e a proibição foi imposta às ideias do autor.

Após os acontecimentos no fim dos anos 1960 nenhum escrito de Jan Patocka foi autorizado a circular na Checoslováquia. Sua recente contribuição à filosofia da história só circulou sob a forma de texto datilografado. Alguns de seus estudos foram publicados fora de seu país: O significado do mito do contrato com o diabo (as três fases da lenda de Fausto), na Alemanha; a versão francesa de seu antigo livro sobre o mundo natural em Haia (1976) e artigos na Itália, na Bélgica e na Polônia. Seu último estudo a ser publicado foi uma contribuição à revista holandesa Tijdschrift voor Filosofie, publicado em 1976; ele abordava a ideia da mobilidade contínua da linguagem e a conexão entre o estruturalismo científico e os fundamentos fenomenológicos; lá o filósofo checo se debruçava sobre os problemas levantados em seus escritos desde o início e os examinava.

As visitas às universidades estrangeiras, antes permitidas, foram proibidas em meados dos anos 1970. Ainda que um grau honorário lhe tenha sido conferido pela Universidade de Aix-la-Chapelle, somente ao termo de longas negociações diplomáticas a cerimônia teve lugar em Praga na residência do embaixador da República Federal da Alemanha. O projeto de um Festschrift pelo sexagésimo aniversário de Patocka foi proibido em Praga e realizado nesse ano apenas em Haia como septuagésimo segundo volume da Phaenomenologica, sob o título O mundo do humano - o mundo da filosofia.

No fim dos anos 1960 Patocka exortou a academia checoslovaca a defender o princípio de que a promoção dos homens de ciência deveria ocorrer com base no mérito mais do que pela lealdade política. O jornal de Praga Tvorba (Criação), chamado pelos que zombavam do Partido de "tvorba z niceho" (Criação ex nihilo), publicou um diatribe contra Patocka intitulado "Intenções desprezíveis por trás da cortina de fumaça da filosofia pura". Quando, em janeiro de 1977, Patocka tornou-se o porta voz do Grupo de Direitos do Homem e do Cidadão para a Carta 77, a imprensa checa intensificou seus ataques e, como ele escreveu "deu livre curso a uma feroz campanha de difamação sem levar em conta a verdade". Ele permaneceu firme, estoico, intrépido, lembrando-se da famosa resposta de Komensky às perseguições difamatórias que desencadearam contra ele: "eu não sou desprovido de consolo, porque tenho para mim o testemunho de minha consciência, e nada do que vocês me acusam, em sua maledicência, é verdadeiro".

Após as perseguições administrativas e os repetidos interrogatórios, Patocka, em uma longa mensagem a seus leitores checos e estrangeiros, reafirmou firmemente sua fé: "é necessária alguma coisa fundamentalmente não técnica, não unicamente instrumental, é necessária uma ética evidente por si só, não uma comandada pelas circunstâncias, uma moral incondicional... A moral não está lá para fazer funcionar a sociedade, mas simplesmente porque o homem é o homem. Não é o homem que define uma ordem moral segundo a arbitrariedade de suas necessidades, vontades, tendências e desejos, mas, ao contrário a moralidade é que define o homem". A mensagem termina com a seguinte declaração: "A assinatura de convenções sobre os direitos dos homens e da sociedade tornou-se possível como uma nova etapa da evolução histórica, isso constitui um retorno à consciência dos homens... As motivações da ação não se encontrarão mais de modo exclusivo ou preponderante no domínio do medo ou da vantagem material, mas no respeito pelo que no homem é superior, na concepção do dever e do bem comum e na compreensão de que, para se alcançar esse fim, deve se estar pronto para suportar certos inconvenientes, em aceitar ser mal julgado e até arriscar-se à tortura física".

O trabalho infatigável de Patocka para elaborar um novo tratado de fenomenologia no sentido amplo do termo foi interrompido. Após onze horas, em dois dias, de um penoso interrogatório policial, sofreu um ataque cardíaco em 3 de março de 1977, ingressou no hospital de Strahov no dia 4 de março e, após receber muitas visitas destinadas a prolongar seu interrogatório, escreveu em sua declaração de 8 de março: "sejamos sinceros: no passado o conformismo nunca trouxe qualquer melhoria para uma situação, somente um agravamento... O que é necessário é de se conduzir em qualquer tempo com dignidade, de não se acovardar e se intimidar. O que é necessário é falar a verdade. É possível que a repressão se intensifique em casos individuais. As pessoas se dão conta novamente de que existem coisas pelas quais vale a pena sofrer, e que sem essas coisas, a arte, a literatura, a cultura, entre outras, são apenas ocupações nas quais nos engajamos para ganhar o nosso pão cotidiano".

Após uma hemorragia cerebral Patocka morreu em 13 de março de 1977. Em seus funerais em 17 de março, os cerca de mil participantes estavam rodeados por uma centena de agentes civis e eram filmados pelos fotógrafos da polícia. Um determinado número de amigos de Patocka foi preso, seja no dia anterior aos funerais, seja no próprio cemitério. A missa de réquiem anunciada no dia seguinte pela família não foi realizada.

Foi somente no dia do funeral que o principal órgão do Partido, o Rúde Právo, noticiou pela primeira vez a morte do filósofo, com o único objetivo de advertir a imprensa ocidental de se abster de utilizar "um acontecimento trágico como a morte de Patocka para fins políticos". Em Paris, Le Monde, de 19 de março, publicou sob a pena do eminente professor Paul Ricoeur, vice-presidente do Instituto Internacional de Filosofia, um artigo em memória de Patocka, que após 1938 foi o representante checo desse Instituto: "foi porque não teve medo que Patocka... foi... literalmente morto pelo poder".

 

NOTA BIOGRÁFICA

Jan Patocka (1907, Turnov-1977, Praga), um dos principais nomes da filosofia checa do século XX. Influenciado pelo pensamento de Edmund Husserl, desenvolve uma fenomenologia asubjetiva e uma fenomenologia do Lebenswelt. Trabalha ainda com a filosofia platônica e aristotélica. Tendo estudado em Paris, Berlim e Freiburg, travou conhecimento direto com os pensamentos de Husserl, Heidegger e Fink. Foi um dos fundadores do Círculo de Praga. Obras principais (em francês): Essais hérétiques sur la philosophie de l'histoire (Lagrasse, Verdier, 1981); Platon et l'Europe (Lagrasse, Verdier, 1983); La Crise du sens, tome 1, Comte, Masaryk, Husserl (Bruxelles, Ousia, 1985); La Crise du sens, tome 2, Comte, Masaryk et l'action (Bruxelles, Ousia, 1986); Le Monde naturel et le mouvement de l'existence humaine (Dordrecht, Kluwer Academic Publishers, 1988); Qu'est-ce que la phénoménologie? (Grenoble, J. Millon, 1988); Papiers phénoménologiques (Grenoble, J. Millon, 1995); Éternité et historicité (Lagrasse, Verdier, 2011).
Tradução: Dr. Werther Holzer (Escola de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal Fluminense). E-mail: werther.holzer@uol.com.br
Roman Jakobson (1896, Moscow-1982, Boston), linguista russo, pioneiro da análise estrutural da linguagem. Autor de Linguística, Poética, Cinema (Perspectiva, 1970).
1 Publicado originalmente em 1975 (Editions Petlice, Praga), tradução francesa de 1981 (Éditions Verdier).

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