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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.23 no.1 Goiânia abr. 2017

 

ARTIGOS - ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

 

Reflexões da hermenêutica filosófica para a prática do psicólogo em contexto hospitalar

 

Hermeneutics philosophical reflections for psychologist practice in hospital context

 

Reflexiones de la hermenéutica filosófica para la práctica del psicólogo en el contexto hospitalario

 

 

Valéria Christine Albuquerque de Sá MatosI; Almir Ferreira Silva JuniorII

IPossui Graduação em Enfermagem e Psicologia pela Universidade Federal do Maranhão. É especialista em Saúde da Família pela Universidade Gama Filho e em Saúde Mental pela Universidade Estácio de Sá. Atualmente trabalha como enfermeira numa equipe de Saúde da Família em São Luís-MA e como psicóloga na clínica cirúrgica do Hospital Universitário Presidente Dutra. Endereço: Av. Monção, nº 05, Condomínio Dubai, bloco b, apartamento 908, bairro: Jardim-renascença, cep:65075-692, email: valcasmatos@gmail.com
IIPossui Doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Associado I no Departamento de Filosofia, Coordenador de Gestão do PIBID e Professor Permanente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Maranhão

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo refletir sobre a prática do psicólogo em contexto hospitalar considerando os fundamentos hermenêutico-filosóficos da saúde propostos pelo filósofo alemão Hans-Georg Gadamer. A atuação psicológica em ambiente hospitalar, na atualidade, tem requerido uma compreensão dos fenômenos do campo da saúde para além dos aspectos físicos, biológicos do ser humano, tão enfocados numa atuação pautada nos parâmetros de cientificidade da perspectiva médico curativa, abarcando questões relativas à existencialidade dos sujeitos numa perspectiva que aponte para a totalidade do ser. Nesse sentido, a hermenêutica filosófica fundada pelo filósofo Hans-Georg Gadamer, a partir de Verdade e método, oferece uma grande contribuição ao estabelecer uma compreensão dos fenômenos humanos num contraponto ao cientificismo e, consequentemente, dirigindo uma crítica à racionalidade científica moderna. Em sua coletânea de textos intitulada O caráter oculto da saúde, Gadamer faz uma reflexão sobre os fenômenos da saúde e doença numa perspectiva humana, histórica, ontológica, existencial e dialógica, contribuindo para reflexões que possam nortear uma prática psicológica melhor fundamentada.

Palavras-chave: Psicólogo em contexto hospitalar; Hermenêutica filosófica; Racionalidade Científica.


ABSTRACT

This article aims to reflect on the practice of psychologist in hospital context considering the hermeneutical-philosophical foundations of health proposed by the German philosopher Hans-Georg Gadamer. Psychological activities in hospital, at present, has required an understanding of healthcare phenomena beyond the physical, biological aspects of human beings, so focused on action based on scientific parameters of curative medical perspective, covering issues related to existentialism subjects from a perspective that points to the totality of being. In this sense, philosophical hermeneutics founded by the philosopher Hans-Georg Gadamer from Verdade e método, provides a major contribution to establishing an understanding of human phenomena in counterpoint to scientism and, consequently, directing a critique of modern scientific rationality. In his collection of texts entitled O caráter oculto da saúde, Gadamer reflects on the phenomena of health and disease in a human perspective, historical, ontological, existential, dialogical, contributing to reflections that may guide a psychological better based practice.

Keywords: Psychologist in hospital context; Philosophical Hermeneutic; Scientific Rationality.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre la práctica del psicólogo en el contexto hospitalario teniendo en cuenta las bases hermenéutico-filosóficas de la salud propuesto por el filósofo alemán Hans-Georg Gadamer. Las operaciones psicológicas en el hospital, en la actualidad, ha requerido una comprensión de los fenómenos de salud más allá de los aspectos físicos, biológicos de los seres humanos, por lo que se centró en la acción sobre la base de parámetros científicos de la perspectiva médica curativa, que abarca las cuestiones relacionadas con la existencialidade del sujeto desde una perspectiva que apunta a la totalidad del ser. En este sentido, la hermenéutica filosófica fundada por el filósofo Hans-Georg Gadamer de la Verdade e método, proporciona una importante contribución al establecimiento de una comprensión de los fenómenos humanos en contrapunto con el cientificismo y, por lo tanto, la conducción de una crítica de la racionalidad científica moderna. En su colección de textos titulada O caráter oculto da saúde, Gadamer hace una reflexión sobre los fenómenos de salud y enfermedad en una perspectiva humana, histórica, ontológica, existencial, dialógico, lo que contribuye a la reflexión que puede guiar una práctica psicológica major basada.

Palabras-clave: Psicólogo en el contexto Hospitalario; Hermenéutica Filosófica; Racionalidad Científica.


 

 

Introdução

Ao se destacar a relevância da subjetividade humana na busca pela compreensão do fenômeno da saúde, não há como ignorar o papel do psicólogo no campo da saúde, mais especificamente, no contexto hospitalar. É importante ressaltar que a psicologia hospitalar é uma especialidade recente, sendo reconhecida no ano 2000 pelo Conselho Federal de Psicologia - (CFP) (CFP, 2007). Em decorrência desse surgimento tão tardio, ressalta-se a necessidade de se pensar sobre a atuação do psicólogo no contexto hospitalar na atualidade, pois mesmo com o aumento de publicações e artigos nessa área, percebe-se uma deficiência de instrumental teórico que sedimente uma prática bem fundamentada (Ismael, 2010 & Spink, 2013).

Diante da hegemonia do saber médico como paradigma dominante em saúde é necessário ao psicólogo, que atua no âmbito hospitalar como parte da equipe multiprofissional, poder refletir sobre as bases do modelo médico-biológico como norteador de sua práxis, do seu saber fazer; e, nesse sentido, questionar o seu alcance e seus limites no propósito de compreender a amplitude dos fenômenos da saúde.

Ao buscar analisar os fenômenos da saúde exclusivamente na perspectiva médico-biológica, parte-se de compreensões objetivadas e tecnicistas, favorecendo uma naturalização dos fenômenos saúde e doença sob essa perspectiva. Influenciados pela teoria cartesiana de separação entre mente e corpo, as ciências médicas se afastaram de concepções mais totalizantes do ser humano,1 adotando como base científica doutrinas mecanicistas e biologicistas, que consideram o indivíduo como conjunto de órgãos e limitam o corpo humano a uma concepção de máquina. Nesse âmbito, as dimensões psicossociais do sujeito são minimizadas, considerando a primazia da dimensão orgânica e fisiológica.

Em uma outra perspectiva, cuja diretriz fundamental sustenta uma postura crítica à racionalidade científica moderna, a hermenêutica-filosófica instituída pelo filósofo alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002)2 questiona a busca pelo conhecimento indubitável, a autossegurança científica e a construção de um conhecimento verdadeiro necessariamente vinculados aos moldes metodológicos das experiências científicas oriundas das ciências naturais. Daí a advertência hermenêutica: "a experiência do mundo social-histórico não se eleva a uma ciência com o processo indutivo das ciências da natureza" (Gadamer, 1960/2015, p. 38). Desse modo, a compreensão dos fenômenos não pode estar submetida a uma diretriz metodológica única e absoluta quando se trata de se pensar as mais diversas experiências de verdade que integram o mundo da vida, dentre elas a experiência da arte, da história, da educação e da saúde.

Como desdobramento dos fundamentos hermenêuticos-filosóficos apresentados em Verdade e método, Gadamer (1993/2011), em uma coletânea de reflexões sobre a saúde intitulada O caráter oculto da saúde, propõe então uma discussão sobre os processos de saúde e doença, na perspectiva de um cuidado com a saúde e com ênfase em sua abordagem terapêutica; o que possibilita um olhar para além da racionalidade médico-científica, bem como uma abertura para pensar um pouco mais sobre a subjetividade do ser doente.

Diante do exposto, o propósito é analisar as contribuições de uma hermenêutica do cuidado com a saúde para o saber fazer do psicólogo no âmbito hospitalar, considerando-se que o saber específico do psicólogo na instituição hospitalar se constitui como complementar à compreensão médico biológica dos fenômenos de saúde e doença. Assim questiona-se: O que deve fazer o psicólogo? Como estabelecer o seu lugar? Nesse intento, justifica-se tomar-se como fundamentação teórica uma hermenêutica crítica que problematiza o paradigma da metodologia científica moderna como única referência para a compreensão das verdades científicas, cuja herança ainda determina a diretiva científica no modelo médico-biológico de interferência, bem como muitas pesquisas acerca da saúde.

Todavia, não se trata de uma reflexão que tenha como alvo a contraposição pura e simples dos dois paradigmas: o biomédico e o hermenêutico, o que poderia se configurar simplista por demais. Daí a questão orientadora: Em que medida o diálogo entre o paradigma hermenêutico-filosófico do cuidado com a saúde e o médico biológico contribuem para o esclarecimento do saber fazer psicológico no âmbito hospitalar?

 

Hermenêutica Filosófica: contribuições para o campo da saúde

Etimologicamente, a palavra hermenêutica advém da palavra grega hermeneia que significa interpretar, e da expressão hermeneuein, que faz referência ao ato de comunicar uma mensagem ouvida. O termo também vincula-se, pelo menos simbolicamente, à palavra Hermes, o deus mensageiro da mitologia grega, que, enquanto tal, seria responsável pela interpretação de desejos dos deuses para os mortais, exercendo um papel de mediador na revelação de uma mensagem, e, portanto, favorecendo a comunicação entre estes (Osés, 1997). Daí a noção de hermenêutica estar sempre vinculada à interpretação, revelação e comunicação de uma mensagem, denotando a sua relação com a experiência da linguagem.

Sob influência da fenomenologia heideggeriana, a partir da qual o compreender passa a ser pensado ontologicamente, ou seja, pela primazia do seu modo de ser - compreender como modo de ser do homem no mundo - a hermenêutica filosófica de Gadamer apresenta o seu diferencial, qual seja ela não se constitui como uma "doutrina da arte", ou como uma técnica de compreensão. Para além desse caráter interpretativo essencialmente metodológico, sua relevância está na abordagem hermenêutica de compreensão dos significados de fenômenos humanos, dos sentidos que permeiam as diversas expressões humanas que integram o mundo da vida. De modo que, como destaca o próprio filósofo: "O que está em questão não é o que nós fazemos, o que nós deveríamos fazer, mas o que, ultrapassando nosso querer e fazer, nos sobrevém, ou nos acontece" (Gadamer, 1960/2015, p. 14).

Em outras palavras, a discussão acerca da compreensão na perspectiva hermenêutica filosófica aborda este fenômeno como forma originária de ser-no-mundo3, no intento de questionar e problematizar o alcance das experiências científicas, em suas diferentes formas, tomando-se o cuidado de não cair num simples criticismo, mas de transpor os limites dessas experiências, no sentido de contemplar o horizonte de práxis da vida humana em toda sua extensão. Como sugere o título de sua obra central Verdade e método4 (1960/2015), trata-se de pensar, filosoficamente, uma relação entre verdade e método, sem que essa discussão, conforme acenado anteriormente, seja unicamente orientada pelos critérios de verdade impostos pela constituição da ciência moderna ao formular sua proposta metodológica universal para o alcance da verdade, cuja referência sempre foi, por excelência, as ciências da natureza5. A relação entre verdade e método carecia de uma ressignificação hermenêutica tanto em sua perspectiva teórica quanto no horizonte do seu saber-fazer, de sua práxis.

Com base em tais propósitos, o que significa pensar uma hermenêutica da saúde considerando-se esses fundamentos? Quais consequências uma ressignificação hermenêutico-filosófica sobre a verdade e o método proporcionariam para pensar o fenômeno da saúde e qual a sua atualidade para a contemporaneidade? Uma hermenêutica do cuidado com a saúde reivindica, necessariamente, um repensar da relação com a ciência e com a verdade?

Na tentativa de responder tais questões, tomar-se-á como referencial teórico de discussão, sobretudo, as reflexões gadamerianas desenvolvidas em Verdade e método (1960/2015) e a coletânea de ensaios hermenêuticos publicados sob o título Caráter oculto da saúde (1993/2011). Nessas discussões filosóficas gadamerianas é enfatizado que o verdadeiro problema posto pelas ciências humanas, manifestava-se pela impossibilidade de se compreender sua natureza, tendo em vista o padrão de conhecimento progressivo da legalidade, uniformidade e regularidade que tornariam previsíveis os fenômenos e processos individuais.

 

Hermenêutica da Saúde: aspectos norteadores do saber-fazer psicológico em âmbito hospitalar

Em O caráter oculto da saúde o filósofo Gadamer (1993/2011) suscita reflexões sobre o modo como a experiência contribui para a aquisição de uma gama de saberes, inclusive o conhecimento científico. E, nesse aspecto, a crítica gadameriana se volta para a maneira como a experiência é enquadrada pelo método científico, restringindo-a ao seu caráter objetivado e, na grande maioria das vezes, desconsiderando a primazia de elementos histórico-existenciais inerentes à vida humana.

Pensar a experiência de um ponto de vista hermenêutico é considerá-la em seus aspectos históricos, em sua imprevisibilidade, reconhecendo a própria finitude como horizonte de abertura permanente a novas expectativas. Além disso, é percebê-la num movimento dialógico, em que as relações de alteridade se estabelecem por meio da linguagem, buscando a compreensão do outro para além de uma objetificação (Silva Junior, 2013). Para Gadamer (1960/2015, p. 469), "[...] é uma pura ilusão ver no outro um instrumento completamente dominável, manejável". Esta forma de conceber o humano no âmbito de suas relações, contrapõe à perspectiva adotada pelas ciências naturais, em que se institui uma objetificação do outro, controlando-o, manipulando-o. No contexto da saúde, diversos fenômenos como doença, paciente, corpo, dentre tantos outros são alvos dessa instrumentalização, controle e manipulação.

Nesse sentido, é imprescindível poder pensar no saber médico, retomando e ampliando as reflexões aristotélicas sobre as distinções entre os conhecimentos teórico, técnico e prático. Gadamer (1993/2011) considera o saber médico um tipo especial de arte, mas com algumas problemáticas, uma vez que este não coincide em sua totalidade com a própria ciência e nem mesmo com o conceito grego de techne6, termo utilizado para diferenciar a prática médica das atividades exercidas pelos curandeiros e que remete à arte praticada por um artesão. Ou seja, a medicina não se configura unicamente como técnica, pois para a recuperação do sujeito concorrem outros elementos, como a própria dinâmica do organismo. Além disso, não é considerada arte, pois a saúde não é produzida pelo médico. Ao dar ênfase a essa difícil questão em torno da prática médica, Holanda (2011, p. 80) afirma que "[...] a medicina encontra-se num 'limbo' entre um fazer que nunca é essencialmente teórico [...], nem essencialmente arte".

Partindo desse pressuposto, pensar a medicina como "arte de curar" se coloca como questão emblemática. O crescente processo de medicalização favoreceu um distanciamento da medicina moderna das concepções gregas, em que se tinha uma medicina mais voltada para o cuidado, para a terapêutica. E nesse âmbito, a concepção de cura foi se estabelecendo em torno de "[...] práticas de normalização e sujeição dos indivíduos" (Fonseca, 2007, p. 161). O termo "cura" estaria atrelado ao de "sujeição", cabendo ao paciente submeter-se ao saber-fazer médico, numa relação onde o médico, enquanto ser-capaz-de-fazer, "produz" a cura e o paciente, passivamente, a recebe.

Diante dos próprios mecanismos produzidos pela natureza, caberia ao médico atuar como "favorecedor" nesse processo de restauração da saúde perdida, por vezes, deixando de intervir, configurando sua atuação em um "não fazer". Isso é comumente observado em diversas patologias, como algumas viroses, por exemplo, em que o sujeito deve apenas esperar a remissão dos sintomas.

Em suas reflexões, Gadamer (1993/2011, p. 118) amplia a noção de cura, afirmando que "[...] pertence à arte de curar, no entanto, não somente o combate efetivo contra a doença, mas também a reconvalescença e, por fim, o cuidado com a saúde". Deste modo, ele resgata a concepção grega de cura ao aproximá-la, novamente, a uma noção de cuidado. Uma hermenêutica da saúde, dentre outras coisas, constitui-se como uma proposta de pensar a saúde ressignificando a concepção de cura na perspectiva do cuidado com a saúde.

Ora, quando se pensa a prática psicológica no contexto hospitalar, quais as referências que orientam o seus saber-fazer? Responder essa questão implica, antes de tudo, não desconsiderar as leituras e interpretações científicas e médico-biológicas (mesmo por que elas são buscadas e exigidas na instituição hospitalar tendo em vista resultados de seu alcance), mas também considerar outros elementos que dimensionam o fenômeno da saúde. Portanto, é imprescindível também levar em consideração as bases epistemológicas que sustentam o conhecimento acerca do fenômeno da saúde e da psicologia.

Ao pautar a sua prática numa perspectiva de "cura", o psicólogo se confronta com a limitação do seu fazer diante, por exemplo, da terminalidade de um paciente, dentre tantos outros aspectos. Nesse intuito, Simonetti (2013, p. 21), ao considerar uma práxis voltada para a cura frente às questões da subjetividade humana, justifica que "[...] no fim das contas a cura não elimina a subjetividade, ou melhor, a subjetividade não tem cura". Por isso, ao atrelar-se a cura ao cuidado com a saúde, esta não se restringe a procedimentos técnicos e nem a diagnósticos médicos, mas possibilita uma ampliação do campo de atuação diante do ser-aí, da existência humana. Nesse sentido é que os saberes tanto médico quanto psicológico se colocam como instrumentos referenciais para que a saúde do sujeito se restabeleça, devendo-se respeitar a dinâmica da natureza nesse pêndulo que oscila entre saúde-doença.

Pensar sobre o "saber-fazer" do psicólogo no âmbito hospitalar numa perspectiva de cuidado é, antes de tudo, propor um resgate do sentido do termo "terapeuta", atentando para o modo como este, por exemplo, era concebido pelos gregos. Para os terapeutas de Alexandria, a palavra therapeutes possui dois sentidos verbais: de cuidar e de tratar. Sendo assim, o terapeuta seria responsável pelo cuidado com o corpo e com a alma, numa compreensão mais ampla, como se pode perceber na afirmativa de Leloup (1996, p. 26): "[...] o terapeuta (psicólogo em atuação no contexto hospitalar), pois, não cura, ele cuida. O terapeuta está lá para ajudar o doente a se colocar nas melhores condições possíveis, para que ele - enquanto sujeito vivente - atue, aja e daí advenha a cura". Assim, o psicólogo deve sustentar seu fazer no cuidado com o paciente, não se esquecendo do seu papel de cooperador no restabelecimento da saúde deste, favorecendo o dinamismo próprio do ser.

Partindo de sua compreensão hermenêutico-filosófica sobre o fenômeno humano, Gadamer compara os processos de saúde e doença ao equilíbrio, retomando este conceito da tradição dos escritos hipocráticos. Para este, não só a saúde humana pode ser interpretada enquanto experiência de equilíbrio, mas a natureza7 de modo geral. Nessa perspectiva, a doença é percebida como perturbação deste equilíbrio e a arte médica ou o ser-capaz-de-fazer médico voltam seus esforços para a tentativa de seu restabelecimento. Conforme essa perspectiva hermenêutica (Gadamer, 1993/2011, p. 50), afirma que "[...] doença, perda de equilíbrio, não significa apenas um fato médico-biológico, mas também um processo histórico de vida e um processo social".

Ao referir-se a outros elementos que atravessam a experiência do adoecimento, não se restringindo somente aos fatores biológicos, Gadamer (1993/2011) dá destaque à história de vida do sujeito, elemento este que tem estreita relação com outro ponto sustentado em sua teoria, a tradição, a cultura. Assim, pensar os fenômenos de saúde e doença, implica também na compreensão do processo de adoecimento dos sujeitos enquanto existenciais, situados, historicamente, e no horizonte de uma tradição que sempre se mantém reveladora; aspecto esse quase sempre desconsiderado pelo modelo médico-biológico. Ao trazer esta questão para o campo da saúde, mais especificamente, em relação ao processo de adoecimento de cada sujeito, ele chama a atenção para um aspecto que é quase que desconsiderado pelo modelo médico-biológico. Afinal, o resgate da história de vida e do contexto em que cada sujeito se encontra é imprescindível na compreensão de suas identidades socialmente construídas, oriundas dos processos de vida. E, desta forma, fica marcada a influência do que se herda na constituição do "eu". Não se pode pensar num movimento compreensivo sem considerar o fluxo da vida histórica.

Na realidade, não é a história que pertence a nós, mas nós é que a ela pertencemos. Muito antes de que nós compreendamos a nós mesmos na reflexão, já estamos nos compreendendo de uma maneira auto-evidente na família, na sociedade e no Estado em que vivemos. (Gadamer, 1960/2015, p. 281)

A relevância da história na compreensão das questões da saúde é minimizada pelo saber médico, que direciona o seu saber-fazer sobre um sujeito que é visto, estudado, tratado, e na maioria das vezes distanciado da amplitude de sua história de vida. Toda a gama de subjetividades geradas no contexto das diferentes culturas e da tradição é minimizada em seus efeitos sobre a dinâmica vivencial de cada sujeito.

Ao sustentar a importância da história, da tradição8 na compreensão das questões relativas ao mundo da vida, o pensador hermeneuta reflete que "[...] a tradição se mostra em ambos os casos como o contrário abstrato da autodeterminação livre, já que sua validez não necessita de fundamentos racionais, pois nos determina de modo espontâneo" (Gadamer, 1960/2015, p. 373). Para este, existe um espaço de aproximação entre a tradição e a razão, não se devendo menosprezar nenhuma forma de compreensão. A crítica empreendida pela hermenêutica filosófica à constituição do saber científico moderno se volta contra uma hipervalorização da razão pelas ciências naturais, em detrimento da tradição. É interessante constatar a aproximação entre estes dois pólos. O que para a ciência é uma relação inconciliável, no discurso gadameriano existe um ponto em comum, em que a razão colabora para que a tradição se mantenha ao longo da história.

Esse ponto de conflito entre tradição e razão é bem percebido no contexto hospitalar, no modo como os profissionais que atuam consolidados no paradigma médico-biológico lidam com as questões relativas à história de vida do paciente, suas vivências e suas concepções de mundo. Para Martins (2010, p. 18), "[...] as histórias pessoais, as memórias de família [...] e todo o contexto sociocultural dos indivíduos, foram banalizados pela terapêutica objetivista e utilitarista dominante". Ao lidar enfaticamente com as questões do adoecimento, a medicina científica dá destaque aos seus modelos explicativos de leitura das diversas patologias, deixando de lado as próprias experiências de vida dos sujeitos em seus diferentes contextos e ao longo de sua existência.

É interessante observar como a compreensão gadameriana dos fenômenos de saúde e doença não exclui o fato biológico, mas também não os restringe a esse mecanismo. Isso implica uma visão mais ampla desses fenômenos, considerando a profundidade e complexidade desse tema. Nesse mesmo raciocínio, Campos (2012) defende a "dialética multifatorial" na constituição da saúde e doença nos sujeitos, onde tanto os fatores particulares (biológicos, subjetivos) quanto singulares (políticos, do cotidiano de vida) e universais (sociais, ambientais) interferem nesses estados. Não há uma sobredeterminação de um paradigma em detrimento de outro, pois estes influenciam de diferentes modos, conforme cada situação. A "teoria e método paidéia9" defendidos pelo referido autor ressalta, dentre outros aspectos, a "escuta da história de vida" dos sujeitos/usuários dos serviços de saúde, entendendo que estes possuem um conhecimento privilegiado do seu adoecimento, de sua própria vida.

Também, nesse entendimento, ao analisar o sentido do adoecimento para pacientes e médicos, Laplantine (2004) identificou que ambos possuem uma compreensão " não racional" dessa experiência, fruto da vivência obtida com o adoecimento. Mesmo para o profissional médico, que apresenta uma formação que se volta para o entendimento da doença sustentado na racionalidade científica, não há como permanecer estático nesse posicionamento.

Diante da "universalidade" dos conhecimentos médicos-científicos, outros elementos são considerados pouco relevantes na busca pela compreensão do adoecimento enquanto "objeto" de estudo. Institui-se como grande desafio, nesse contexto, entender o lugar de relevância das questões referentes ao mundo vivido, e de como estes conteúdos são importantes para o estudo dos processos de vida, do adoecimento. Daí a necessidade e relevância de se pensar sobre a doença e saúde, não como objetos, mas experiências hermenêuticas, fenômenos que se dão no transcorrer da existência humana e que fazem parte do ser do homem; experiência de finitude, experiência histórica e experiência de linguagem. Este é um desafio que se coloca numa prática psicológica em âmbito hospitalar que concebe o adoecimento do sujeito.

Embora a perspectiva gadameriana defenda a influência da história sobre a constituição dos sujeitos, o referido autor não concebe uma sobredeterminação desta sobre os indivíduos, controlando-os, manipulando-os. Os sujeitos não são percebidos de modo passivo em relação às influências recebidas nos diversos contextos nos quais se insere, como o familiar, social, dentre outros, mas estas pré-concepções herdadas podem sofrer modificações diante do confronto com o novo, com outro olhar sobre um fenômeno em específico. Nesse sentido Gadamer (1958/1996, p. 19 - tradução nossa) sustenta que "[...] é cometer um grave contrassenso supor que a insistência sobre esse fator essencial que é a tradição (presente em toda compreensão) implica uma aceitação não crítica da tradição, ou num conservadorismo social e político".

Além do destaque dado à história de vida de cada sujeito, Gadamer também ressalta a influência dos processos sociais sobre o modo de adoecer. Interagindo com tal concepção, Laplantine (2004), em suas análises sobre as formas elementares de cura e doença, institui modelos de caráter metaculturais, destaca o modo como cada sociedade, num determinado momento de sua história, apresenta diferentes representações sobre estes temas, como as representações mágico-religiosas, naturalistas e as decorrentes do pensamento médico. Ressalta a necessidade de se pensar sobre as condições sociais desses processos, mesmo diante das dificuldades metodológicas que se levantam na realização desses estudos.

As teorias sociais têm sua contribuição fundamental para que se possa entender a origem destes na explicação dos fenômenos de saúde e doença, mas possuem suas limitações ao desconsiderar outros elementos também relevantes neste processo (Campos, 2012). No tocante à prática psicológica, esta deve considerar os diversos fatores que influenciam o fenômeno do adoecimento, dentre estes, a história de vida do paciente, seus valores, crenças, sua cultura. Por mais que não seja possível acessar a "totalidade" do que constitui a doença, pois sempre algum aspecto deixará de ser considerado no conjunto dessa análise, não se pode, no entanto, perder de vista suas múltiplas facetas. Para Simonetti (2013, p. 26) "[...] o aspecto psicológico não ocorre isoladamente, mas se dá em uma determinada cultura, e cada cultura tem seus determinantes sobre a doença, tais como usos, costumes, mitos, folclores, condições econômicas [...]".

Na prática da medicina científica, o que se observa, de um modo geral, é um esforço por dominar a doença, modificando o próprio percurso da natureza, dominando suas manifestações fisiopatológicas, mas, consequentemente, deixando de lado o interesse sobre a manutenção dos cuidados com a saúde e, de igual maneira, com a prevenção de doenças (Caprara, 2003). Ao se colocar o foco estritamente sobre a doença e seus parâmetros e medidas, acaba-se por desconsiderar a imensa riqueza presente nas variações do ser doente, em que os aspectos qualitativos são imprescindíveis na compreensão dessas experiências e na busca por intervenções terapêuticas.

Cabe ao psicólogo, que atua no contexto hospitalar, intervir em uma proposta de resgate da subjetividade humana, atentando para as diversas vezes em que esta é esquecida, objetificada no âmbito hospitalar. Por outro lado, deve tomar cautela para não incorrer num subjetivismo, desconsiderando os aspectos físicos, biológicos do adoecimento. Como anteriormente foi ressaltado por Ismael (2010) & Simonetti (2013), não se pode deixar de considerar a coexistência do psíquico com o físico e vice-versa, numa compreensão do todo do sujeito.

Nessa perspectiva crítica, ao refletir sobre o enfoque dado pelos médicos às causas físicas das doenças, Foucault ressalta a importância destes se voltarem, por outro lado, para o conhecimento das forças das doenças e dos medicamentos. Diz o filósofo francês que "A percepção da doença no doente supõe, portanto, um olhar qualitativo [...] é preciso toda uma hermenêutica do fato patológico a partir de uma experiência modulada e colorida; medem-se variações, equilíbrios, excessos ou defeitos" (Foucault, 1980/2014, p. 13). Numa abordagem qualitativa da doença, outros aspectos podem ser percebidos, como os psicológicos, sociais, dentre outros, ampliando a compreensão de determinado fenômeno, permitindo abarcar até mesmo suas múltiplas variações, aquilo que "escapa" a uma concepção objetivada.

Do mesmo modo, é alvo da reflexão gadameriana o destaque dado à doença pela cultura científica moderna. Antes, a medicina era reconhecida como "arte da cura" pelos gregos. Atualmente, percebe-se uma ênfase dada à doença e seus mecanismos como "objeto" do saber-médico. Pode-se dizer que se trata de uma "ciência da doença", e nesse âmbito, "doença como perturbação, incômodo, perigo, como um 'objeto', como aquilo que executa uma resistência" (Holanda, 2014, p. 126). E, dentro dessa lógica, a saúde acaba ocultada pela necessidade da ciência de subjugar a doença, e sendo assim, a própria natureza. A esse propósito, tem-se que:

[...] Mesmo quando se diz que se conseguiu dominar a doença, no final já se separou a doença da pessoa e ela é tratada como um ser com vida própria, com o qual tem de se lidar. Isso até ganha um sentido especial, se pensarmos nas grandes epidemias, cujo domínio foi tão amplamente alcançado pela medicina moderna [...]. No final de nossas reflexões se saberá que a saúde sempre se encontra em um horizonte de perturbação e ameaça. (Gadamer, 1993/2011, p. 117)

Como consequência de uma forte ênfase dada à doença no ambiente hospitalar, o que se tem é uma extrema impessoalidade e burocratização desse espaço. Não se prioriza o sujeito adoecido. Todo aparato tecnológico, normas e rotinas são voltadas para a identificação e combate das doenças. Há uma naturalização dessas questões, levando a uma reprodução desse modo de tratamento na formação e práticas médicas. Por isso, a compreensão do psicólogo no âmbito hospitalar acerca do fenômeno do adoecimento precisa transpor essa concepção patologizante e de busca por uma dominação da doença. Esta precisa ser entendida como um processo de desequilíbrio, de desarmonização do sujeito. Como bem lembra Chiattone (2014, p. 222), "[...] estar doente implica em desequilíbrios que podem ser compreendidos, em uma visão holística, como um abalo estrutural na condição do ser, chocando-se ao processo dinâmico de existir".

Ampliando a discussão sobre o fenômeno da doença, outro ponto relevante abordado por Gadamer em sua compreensão dessa experiência é o modo como o adoecimento faz com que o corpo seja sentido, presentificando a corporeidade. Na concepção do autor, este é "[...] o primado metódico da doença sobre a saúde" (Gadamer, 1993/2011, p. 81). Enquanto a saúde é esquecida pelo saber-fazer médico, pelo sistema de saúde e pelo próprio sujeito que a vivencia, a doença não só é sentida no corpo, mas faz com que o corpo perturbado se presentifique.

É fundamental pensar no corpo para além de um campo de estudo e intervenção médica, com suas estruturas anátomo-fisiológicas. Gadamer (1993/2011, p. 79) demonstrava essa preocupação com o modo como o corpo era percebido no campo da saúde, ao levantar o seguinte questionamento: "[...] o que acontece, realmente, com a possibilidade de perceber o corpo tão somente como corpo - e tratar o corpo como corpo?". Não deixando de considerar a importância dos estudos das estruturas anatômicas, é imprescindível na atuação hospitalar poder pensá-lo como "morada" de um sujeito que se relaciona com ele, que se manifesta por meio dele, que sente, percebe, vivencia este corpo de maneira única e particular.

Outro aspecto ressaltado pela perspectiva gadameriana é quanto a experiência de morte. Este ressalta que, para além desta experiência, não há outra vivência na dinâmica da vida que demonstre de modo tão veemente os limites da ciência, da técnica, do ser-capaz-de-fazer. Além disso, o que se observa no cotidiano hospitalar é que o avanço tecnológico conduz a um prolongamento artificial da vida, como ele mesmo enfatiza ao dizer que "O prolongamento da vida acaba por se tornar, em geral, um prolongamento do morrer e uma estagnação da experiência do eu" (Gadamer, 1993/2011, p. 69).

Nessa esfera, o psicólogo deve (pode) contribuir com outro olhar ressignificando a experiência da morte não como comumente é concebida na instituição hospitalar, uma inimiga a ser vencida, combatida ou mesmo como testemunho do fracasso de uma terapêutica instituída. É primordial entendê-la como fenômeno inerente à existência humana e gerador de sentido de vida. Compreender o sujeito como ser-para-a-morte10 é percebê-lo dentro de suas limitações e possibilidades em sua dinâmica existencial. Ora, enquanto a doença é enfocada, perseguida pelo saber científico, tanto as experiências de morrer e da saúde são ocultadas. O que se percebe no tocante, especificamente, à experiência da saúde, é que há um crescente distanciamento e esquecimento desse termo, em parte, pelo caráter que lhe é inerente, o do "autoesquecimento". Ao suscitar reflexões sobre o próprio conceito de saúde, Almeida Filho (2000) enfatiza a difícil tarefa de se conceituar este termo na atualidade, configurando-se, segundo ele, num tipo de "ponto cego" da ciência médica. Isso pode ser constatado pelas inúmeras disciplinas médicas encarregadas de lidar com diferentes patologias, não se podendo dizer o mesmo de uma única teoria da saúde.

Nisso, precisamente, reside aquilo que Gadamer afirma de "o caráter oculto da saúde", ou seja, no mistério e na complexidade em que esta se coloca, sinalizando que possui uma medida própria. Então escreve o filósofo que, "[...] se não se pode medir verdadeiramente a saúde é por ela ser um estado da adequação interna e de conformidade com si próprio, que não pode ser superado por outro controle" (Gadamer, 1993/2011, p. 114). Essa forma de compreensão da saúde vem de encontro com conceitos idealizados11, em que esta é concebida num patamar inatingível. Ao entender a saúde com sua própria medida, concebe-se que esta apresenta sua especificidade de acordo com cada sujeito, numa referência ao seu caráter subjetivo. Cada um tem sua própria medida de saúde, mesmo que a medicina moderna consiga estabelecer alguns parâmetros do que seja considerado normal e saudável. E isto deve ser considerado no momento do atendimento de um paciente pelo psicólogo que atua no contexto hospitalar.

A despeito dos parâmetros médicos, existe uma "medida própria" para cada pessoa. É importante, no momento da escuta, poder perceber a forma como o paciente compreende o seu adoecimento e suas expectativas quanto a sua recuperação. No momento em que um profissional da equipe sinaliza para o paciente sua melhora clínica, por exemplo, este também precisa sentir-se em conformidade consigo mesmo.

Na leitura gadameriana dos fenômenos saúde e doença, o sujeito somente se lembra de que estava saudável quando este adoece. A doença não existe sem a saúde e é ela que aponta para o lugar de sua falta. Ou seja, é a doença que diz que a saúde é ausente. Essa dinâmica entre saúde-doença, falta-presença, diz respeito ao balanço da vida, em que o desequilíbrio vai dando lugar ao equilíbrio novamente e vice-versa (Gadamer, 1993/2011).

Estar atento à dinâmica própria da vida é tarefa pertinente ao desenvolvimento das atividades profissionais do psicólogo no âmbito hospitalar, que precisa reposicionar os fenômenos de saúde e doença no espaço da existência humana. Atento a esse mesmo raciocínio, Canguilhem (1966/2000, p. 159), ao abordar os parâmetros instituídos pelo método científico, ressalta que "o ser humano não vive entre leis, mas entre seres e acontecimentos que diversificam essas leis", fazendo uma menção ao sujeito lançado no mundo da vida, onde as vivências do cotidiano ocorrem seguindo o fluxo da vida.

Além disso, a saúde também pode ser entendida como a disponibilidade do sujeito diante da dinâmica do mundo vivido. Desse modo, Gadamer (1993/2011, p. 118) sustenta que "[...] saúde não é, de maneira alguma, um sentir-se, mas é estar-aí, estar-no-mundo, estar-com-pessoas, sentir-se ativo e prazerosamente satisfeito com as próprias tarefas da vida". Para além de uma questão internalista, o autor aponta para uma aproximação entre saúde e alteridade. É também na relação com outras pessoas que o sujeito se constitui como "ser saudável". Assim também, pode-se pensar a saúde como uma experiência hermenêutica eu-tu. E isto pressupõe uma compreensão diferenciada da natureza humana, ou seja, o ser humano como ser-aí, como Dasein. Este termo, utilizado prioritariamente pelo filósofo Martin Heidegger (1889-1976), remete à constituição ontológica do homem. É na relação com os outros que o homem constrói sua existência, seu modo de ser, sua história.

[...] o ser com os outros pertence ao ser da presença que, sendo, está em jogo seu próprio ser. Enquanto ser-com, a presença 'é', essencialmente em função dos outros. Isso deve ser entendido, em sua essência, como uma proposição existencial. Mesmo quando cada presença de fato não se volta para os outros, quando acredita não precisar deles ou quando os dispensa, ela ainda 'é' no modo ser-com [...]. A abertura da co-presença dos outros, pertencente ao ser-com, significa: na compreensão do ser da presença já subsiste uma compreensão dos outros porque seu ser é ser-com. (Heidegger, 1927/2002, p. 175-176)

Não há como se compreender um sujeito, seja saudável, seja doente, desconectando-o de suas relações. É nesse movimento de abertura para com as questões da vida que se tem um sujeito disponível para novas experiências, novas possibilidades. Um horizonte se abre, permitindo até mesmo um aprendizado com o adoecimento. Para Gadamer (1993/2011, p. 81), ao considerar o sujeito como Dasein, pode-se afirmar que "[...] nesse 'estar-aí' o ser humano está presente em seu estar-entregue, em seu estar-aberto e em sua abertura, em sua receptividade espiritual para tudo que seja".

Nas diversas experiências obtidas no campo da saúde, o psicólogo que atua na instituição hospitalar não pode deixar de pensar sobre outros elementos importantes para a compreensão não só da saúde e do adoecimento, mas do ser que os experencia. Como comentado anteriormente por Simonetti (2013, p. 15), o foco da intervenção psicológica é "[...] toda subjetividade produzida em decorrência do adoecimento". Resgatar a subjetividade ao compreender estes fenômenos é entender que a saúde está ligada ao ser do sujeito, em uma perspectiva existencial, subjetiva da experiência humana. Esses aspectos são esquecidos numa compreensão objetivada, tecnicista de abordar os fenômenos. Daí por que uma hermenêutica do cuidado com a saúde constitui-se como uma hermenêutica do cuidado com o sujeito na radicalidade e amplitude de sua existência.

Conforme a perspectiva hermenêutica, o estar aberto, preparado para novas experiências é que sinaliza a saúde, o bem-estar. Este termo é utilizado pelo autor para enfatizar o modo como a saúde é ocultada, passando despercebida pelo sujeito. Ao invés de se falar saúde, em muitos momentos, fala-se em bem-estar. Na busca por suscitar uma reflexão acerca desse termo, Gadamer (1993/2011], p. 80) faz o seguinte questionamento: "[...], porém o que é bem-estar senão exatamente o fato de não se estar direcionado a isso, mas estar, desimpedidamente, aberto e preparado para tudo?".

A proposta de uma hermenêutica da saúde, nessa perspectiva de reconsiderar o fenômeno da saúde para além das diretrizes de uma objetividade de compreensão científica e, consequentemente, privilegiando sua dimensão subjetiva e existencial, aponta para a necessidade de um cuidado diferenciado com a saúde. Nesse aspecto, convém destacar que a tarefa daqueles que atuam no campo da saúde como ser-capaz-de-fazer, pode ser situada entre a natureza e a arte, e que, portanto, deve ser entendida dentro dos seus limites. Desse modo, é possível pensar nos desafios do cuidado com a própria saúde e com o de outras pessoas. Esta é uma tarefa árdua, que exige um comprometimento, um implicar-se no processo que ultrapassa um domínio técnico, exigindo outras habilidades para que se favoreça um restabelecimento do equilíbrio perdido (Gadamer, 1993/2011).

Na proposta de ultrapassar esse domínio técnico e exercitar outras habilidades, a hermenêutica filosófica sustenta a importância do diálogo terapêutico entre paciente e equipe na perspectiva de vigilância efetiva no cuidado com a saúde. Não se trata de um encontro intersubjetivo, mas de favorecer o restabelecimento do equilíbrio do paciente, o fluxo da comunicação da vida, por meio de decisões compartilhadas pelos profissionais da equipe de saúde, considerando o momento, a vivência do paciente diante de cada situação (Araújo, Paz & Almeida, 2012). Para que se aproximem médico e paciente, o "solo comum" deve ser o diálogo. Além disso, "[...] ele (diálogo) já é tratamento e continua sendo muito importante no tratamento que se segue, o qual deve conduzir à cura" (Gadamer, 1993/2011, p. 133). Nesse ponto, o psicólogo se coloca como profissional com uma posição de destaque, uma vez que ele é visto, no contexto hospitalar, com sua atuação voltada para intermediar as relações entre pacientes e equipes de saúde, transitando entre a escuta e a fala, favorecendo uma comunicação efetiva nesse âmbito (Simonetti, 2013).

Ao aproximar as palavras "tratamento" e "diálogo", Gadamer propõe diminuir o distanciamento entre profissional da saúde e paciente. A ciência moderna contribui para aprofundar o abismo entre estes, uma vez que o tempo disponibilizado para as consultas não proporciona um espaço para o diálogo. Na compreensão do filósofo, "[...] o diálogo promove a humanização da relação entre uma diferença fundamental, a que há entre o médico e o paciente. Tais relações desiguais pertencem às mais difíceis tarefas entre os seres humanos" (Gadamer, 1993/2011, p. 118).

A linguagem para o campo hermenêutico filosófico tem um destaque diante da dinâmica compreensiva. Para Lawn (2011), a linguagem sob o foco hermenêutico é essencialmente diálogo, remetendo à primazia da fala sobre a escrita. É pelo diálogo que o homem se conecta ao mundo, atribuindo-lhe sentido, interpretando-o. O diálogo, na compreensão gadameriana, vai além de uma conversa em que se estabelece uma troca de informações. Para que uma "arte da conversação" possa ser efetivada, é imprescindível que aqueles que se proponham não "passem ao largo um do outro", mas que se mantenham no "mesmo passo" (Gadamer, 1960/2015, p. 479). Como, então, favorecer um diálogo efetivo com o outro se utilizando de uma linguagem técnica, e, portanto, enigmática para quem a recebe?

Esta é uma questão importante quando se reflete sobre a comunicação estabelecida no contexto hospitalar. A linguagem utilizada pelos profissionais da saúde se coloca como "barreira" em muitos momentos, para uma compreensão das questões relacionadas com o adoecimento, tratamento. Os questionamentos trazidos pelos pacientes são percebidos como desnecessários ou incômodos pela equipe. Há pouca abertura para um diálogo. A comunicação que se estabelece nesse cenário, em muitos momentos, visa somente informar o sujeito de alguns procedimentos. É uma via de mão única e o profissional geralmente comanda o que é dito.

O abuso de termos técnicos pelos profissionais da saúde é algo incentivado na formação médico-científica, mas que interfere na relação profissional-paciente, dificultando no diálogo. Segundo Moura (2012), identificou-se como entrave na comunicação entre médicos e pacientes: a falta de clareza, o abuso de jargões e o não esclarecimento de expressões utilizadas por ambos. O que acontece na comunicação entre médico e paciente num "encontro clínico tradicional" é o que se denomina de "afunilamento da narrativa", uma vez que há uma seleção por parte do profissional médico do conteúdo trazido pelo paciente. Todo interesse se volta para os elementos que conduzam, especificamente, a uma lógica pautada na identificação de sintomas patológicos, sustentados pela racionalidade científica. Consequentemente, há uma perda de outros aspectos também relevantes para a compreensão das demandas trazidas pelo paciente, que não se restringem ao diagnóstico de doenças.

Nesse âmbito, o psicólogo em atuação no contexto hospitalar possui um papel fundamental, ao identificar por meio da escuta do paciente, questões que possam estar interferindo na comunicação com a equipe e impossibilitando o restabelecimento do equilíbrio. Ismael (2010, p. 21), ao abordar a importância da comunicação para o paciente, destaca que esta é relevante para "[...] diminuir a ansiedade, dirimir as fantasias, desmitificar as idéias preconcebidas". Além disso, o psicólogo possui uma tarefa desafiadora nesse contexto, que é de incentivar o paciente no diálogo com os profissionais da saúde, mesmo nas limitações encontradas quanto à terminologia médica utilizada por estes.

Para uma práxis que conduza ao desvelamento e à resolução de problemas, é fundamental um diálogo estabelecido com clareza. O saber-fazer do psicólogo deve-se fundamentar em formas de compreensão do processo de adoecimento, do cuidado e do diálogo terapêutico pautado em princípios éticos, em que o homem seja reconhecido em seus diversos modos de constituição, em sua complexidade, seja no campo biológico, psicológico, social, dentre outros, ou seja, na dimensão de sua totalidade.

 

Considerações finais

O olhar da psicologia no contexto hospitalar, com suas diversas abordagens que se propõem a pensar e aprofundar temas relativos à compreensão da pessoa humana, tem contribuído para fomentar e ampliar as discussões, o que se constitui um diferencial num espaço onde se tem um predomínio de profissionais com uma formação sustentada pelo modelo médico-biológico, com um enfoque objetivante dos fenômenos encontrados.

Diante dessa difícil tarefa de atuar num contexto onde a racionalidade científica é valorizada e a subjetividade humana, em alguns momentos, é minimizada em sua influência sobre o sujeito adoecido, é que o psicólogo em atuação no contexto hospitalar necessita nortear seu saber-fazer em parâmetros que o auxiliem a pensar mais profundamente sobre estes fenômenos, considerando que nesse espaço se identifica um universo de produção de subjetividades, de sentidos.

Partindo de uma concepção filosófica, ou, mais especificamente, do paradigma hermenêutico filosófico, considera-se como importante e necessário dirigir-se uma reflexão crítica à concepção metodológico-científica, cuja referência fundamenta o saber médico-biológico, como paradigma que sobredetermina as discussões e intervenções acerca dos fenômenos de saúde e doença, bem como a formação tanto médica quanto de outros profissionais que compõem a equipe multiprofissional. Combater a objetificação do humano é fundamental para se resgatar elementos de sua subjetividade, considerando o sentido atribuído por este quando lançado no mundo da vida.

É um desafio poder pensar para além de paradigmas reconhecidos, como o modelo médico biológico, que no decorrer dos tempos tem consolidado seu modo de pensar e atuar por meio da medicalização da sociedade num contexto mais amplo. Não desconsiderando seu lugar de relevância no campo da saúde, com grandes aquisições de conhecimentos técnicos que tem beneficiado as populações, é mister alargar as fronteiras com modos de compreensão que contemplem outros aspectos do sujeito, na dimensão de sua totalidade. Tal raciocínio, consideramos de grande relevância quando se trata de perguntar sobre o lugar e as diretrizes que orientam o saber fazer do psicólogo no âmbito hospitalar.

O pensamento gadameriano possibilita refletir, dentre tantas questões, acerca dos parâmetros adotados pela ciência moderna, e de como essa compreensão influencia a atuação humana nos diversos contextos da sociedade. Defende-se, neste estudo, um pensamento que vá além desses posicionamentos, rompendo com os dogmatismos impostos pela ciência, buscando perceber outras formas de experiência que não se restrinja à técnica. Todavia, não o se trata de se instituir um novo paradigma que tenha a pretensão de dar conta de todas as questões relativas ao campo da saúde, ao fenômeno humano, ou, até mesmo, de anular o paradigma médico biológico. Afinal, não podemos ser indiferentes à complexidade que envolve a reflexão sobre o tema da saúde, como bem ressalta Campos (2012, p. 60): "saúde tem várias dimensões qualitativas e quantitativas. Algumas passíveis de medições objetivas e realizada sem participação ativa dos sujeitos [...]. E outras difíceis de avaliar sem o concurso ativo dos sujeitos implicados".

E considerando-se os desafios enfrentados pelos psicólogos no cotidiano de trabalho no contexto hospitalar é que se evidenciou a relevância das questões levantadas por Gadamer em seu ensaio sobre o campo da saúde, em que diversos conceitos são trabalhados, dentre eles, a saúde, o adoecimento, a cura, o cuidado, a morte, a comunicação terapêutica, dentre outros, relacionando-os com uma práxis, com um fazer que rompa com as limitações do fazer técnico e científico. O que se intenciona nesta pesquisa, para além de uma filosofia como fundamento a uma prática, é sustentar uma atuação psicológica em âmbito hospitalar comprometida com a compreensão da saúde não apenas enquanto um fenômeno biológico, mas acima de tudo em sua dimensão histórico e existencial que por sua vez sobressai em diferentes situações nos contextos hospitalares e sempre revelam um sujeito conectado ao cotidiano da vida. Assim, a hermenêutica do cuidado com a saúde constitui-se uma referência não apenas de fundamentação teórica, mas de sabedoria prática capaz de rearticular o saber fazer do psicólogo em atuação no contexto hospitalar em diálogo permanente com o fenômeno da saúde ou com os fenômenos de saúde e doença.

 

Referências

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Recebido em 31.05.2016
Primeira Decisão Editorial em 23.09.2016
Aceito em 19.10.2016

 

 

1 Nos gregos se percebe uma visão mais totalizante do homem, em que instâncias como o corpo e a alma são consideradas integradas, coexistindo. Essas concepções foram defendidas por Hipócrates, o pai da medicina moderna.
2 Para Bleicher, a crítica hermenêutica se apresenta de três diferentes modos, que são: a teoria hermenêutica, que se refere à teoria geral das interpretações; a filosofia hermenêutica, em que se situa a hermenêutica filosófica, que estabelece uma crítica ao conhecimento que se propõe a uma explicação do ser do homem (objetivismo e metodologismo); e a hermenêutica crítica, que proporciona um olhar crítico aos pressupostos idealistas que subjazem tanto à teoria hermenêutica quanto à filosofia hermenêutica (Bleicher, 1992).
3 Em sua referência ao termo alemão verstehen, que significa "compreender algo", "saber como fazer algo", a expressão deriva do verbo stehen, cujo sentido implica "estar de pé", "manter-se em". Assim, distingue-se tanto de Verstand, como faculdade de compreensão e intelecto, quanto de begreifen, como procedimento de entender conceitualmente algo.
4 Em sua origem, o título da referida obra seria Compreender e acontecer, mas, por conta de insatisfação do editor ao atentar melhor ao subtítulo Fundamentos de uma hermenêutica filosófica, a obra resultou no título Verdade e Método: Fundamentos de uma hermenêutica filosófica. Como bem destaca Ernildo Stein, esse título revela um caráter provocativo, sobretudo, quando na leitura da obra, esta per-mite confrontar a verdade contra o método, destacando que nas experiências da arte, da história e da linguagem é produzido um tipo de verdade incompatível com o método lógico-analítico (Cf. E. Stein, Aproximações sobre hermenêutica, 1996, p. 44).
5 No campo da filosofia, o destaque é dado ao pensamento kantiano, ao conceber a supremacia das ciências naturais como modelo do conhecimento e da verdade. Em sua publicação a Crítica da razão pura (1781), Kant defende a subordinação da experiência à razão (objetificação), para que esta assim adquira um status de verdade.
6 Segundo Gadamer (1993/2011, p. 41), o conceito grego de techne refere-se a uma forma própria do saber prático que passa pelo aprendizado, ou, "é aquele saber que constitui num determinado "ser-capaz-de-fazer". Mas, trata-se de uma capacidade que se "fundamenta no conhecimento das causas" e que produz uma obra (ergon), algo novo.
7 A natureza é entendida por Gadamer (1993/2011, p. 44) enquanto "[...] algo que mantém a si mesmo e se mantém por si mesmo nas suas trajetórias".
8 Etimologicamente, esta palavra é originada do latim traditio, significando transmitir algo e se refere a um processo que se dá de geração em geração (Lawn, 2011). A defesa de Gadamer quanto a um resgate da tradição encontra-se respaldada por ser esta uma importante noção da teoria sociocultural, numa ação dinâmica de transmissão de conhecimento intergeracional, influenciando nossas atitudes. Daí que tradição, do ponto de vista hermenêutico-filosófico também significa transmissão (Uberlieferung).
9 A teoria e método paidéia defendido por Campos (2012) busca ampliar o modo de compreensão e de interferência sobre esses diversos fatores que influenciam e constituem os fenômenos de saúde e de doença.
10 Nessa perspectiva, Heidegger considera como estrutura existencial o ser-para-a-morte. Esta é uma condição existencial impossível de ser evitada. O ser-aí é essencialmente finito: "[...] há no Dasein uma permanente 'não-integridade', impossível de abolir, que encontra seu fim na morte" (Heidegger, 1927/2002, p. 25).
11 Pode-se destacar o conceito trabalhado pela Organização Mundial de Saúde, em que a saúde é entendida como completo bem-estar físico, psíquico, social, espiritual, dentre outros aspectos.

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