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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.23 no.1 Goiânia abr. 2017

 

TEXTOS CLÁSSICOS

 

A gênese psicológica do espírito materno1: F. J. J. Buytendijk (1960)

 

 

Tradução: Claudinei Aparecido de Freitas da Silva

(Universidade Estadual do Oeste do Paraná)

 

 

Eis a formulação: a gênese psicológica do espírito materno contém duas noções - a noção de gênese e a de espírito - cujo significado deve ser elucidado a fim de evitar qualquer mal-entendido. A concepção de uma gênese psicológica nos reenvia ao fenômeno de certo desenvolvimento orgânico, tendo a sua origem, pois, na estrutura de um gérmen realizando-se em estágios definidos e de maneira autônoma e determinada. Tal desenvolvimento pode ser cientificamente descrito por meio de uma pesquisa analítica segundo uma sucessão de formas. Essas transformações de estruturas não são, contudo, compreendidas como um desenvolvimento verdadeiro se não se tem visado, por meio de tais mudanças, a ideia temática que as une. Tal tematização se revela quando se compreende os estágios iniciais à luz do organismo completo; este aqui, sim, é concebido organicamente sob a condição de não ser descrito como um sistema de correlações, mas como um sistema de significações. M. Merleau-Ponty em seu estudo sobre A Estrutura do Comportamento2 e, o Sr. Ruyer, em sua profunda pesquisa acerca de A Gênese das Formas Vivas3, têm-nos, definitivamente, persuadido a propósito da diferença essencial entre as transformações físicas e os desenvolvimentos vitais.

Acredito que será necessário darmo-nos conta do fato de que a aplicação da noção de gênese no domínio psicológico levanta inúmeras dificuldades a serem consideradas em função do problema que nos ocupa, de momento.

A dificuldade fundamental tem sua origem na definição da psicologia. Caso se aceite a opinião corrente de que a psicologia é a ciência dos comportamentos, seremos obrigados a distinguir as reações vitais dos animais e do homem fundadas inteiramente nas estruturas nervosas dos comportamentos que resultam de uma intencionalidade consciente ou inconsciente. O problema da relação desses atos intencionais com a corporeidade está no centro da psicologia moderna4, já que esse problema tem sido posto de uma maneira incontestável pela reflexão sobre a realidade humana e animal. Na psicologia clássica, tem-se concebido a consciência e também o inconsciente como uma "interioridade" caracterizada por uma estrutura de conteúdos, representações, processos suscitados por forças ocultas, tendências inatas e adquiridas. Essa interioridade seria, portanto, uma totalidade determinada, "um organismo físico". Tal concepção consentiria, facilmente, a ideia de um desenvolvimento, de uma verdadeira gênese à maneira de um evento natural.

A concepção moderna da consciência ou do Ego rejeita, categoricamente, tal gênese, mas ela aceita uma historicidade individual que, de todo outro modo, põe a questão de um desenvolvimento. Cada história é caracterizada pela negação de qualquer determinismo absoluto; ela se faz segundo uma ordem provável e manifesta, portanto, certa regra, certa direção, mas também uma contingência.

Falando de uma gênese psicológica em geral, é preciso compreender como o desdobramento, a diferenciação das relações intencionais de um sujeito e do mundo atravessa uma historicidade, na qual o ocaso ocupa um lugar, mas também uma iniciativa, uma espontaneidade e, no ser humano, uma liberdade, que permanecem perfeitamente inexplicáveis.

A dificuldade que consiste em aplicar uma noção biológica aos fenômenos psicológicos parece ser menos decisiva se pretendermos descrever o desenvolvimento de uma função isolada, a formação de um hábito, o aprimoramento de uma aptidão, o desabrochamento de uma faculdade, de uma disposição.

Nesses casos, os fatos nos levam a supor um "gérmen" - embora desconhecido - das circunstâncias favoráveis que determinam a sua evolução. Quando, porém, está em questão um espírito no sentido de uma atitude pessoal, na qual se manifesta a escolha decisiva e permanente de um valor e, por conseguinte, de uma vocação exprimindo-se num projeto de mundo e de existência, é inadmissível ocultar o mistério da formação do "espírito" pela aplicação confusa da noção de gênese.

O único meio de seguir essa formação com uma justa deferência ao olhar da realidade humana será de reencontrar o solo de uma coexistência original pela qual um mundo se abre e começa a existir.

Se aceitarmos essa união transcendental do ser humano e de uma realidade na qual cada um de nós se encontra inserido, isto é, engajado de certa maneira, se pode tentar seguir o curso de uma existência que termina na manifestação de tal espírito. É nesse sentido que eu pretendo compreender a noção da gênese psicológica do espírito materno. A possibilidade de um esclarecimento do movimento existencial que conduz ao espírito materno nos é dado, imediatamente, pelo princípio da antropologia atual.

Eu tomo a liberdade de propor-vos esse princípio por uma formulação precisa, dada recentemente por A. de Waelhens:

A consciência é radicalmente, encarnada, embora sempre intencional; ela não é plenamente transparente, pois, uma vez encarnada, a consciência é real e, portanto, co-existente com as coisas e com outrem5.

A função da consciência é "a descoberta de significações que, incessantemente, a consciência-comportamento confere em tudo o que ela se relaciona - em virtude de sua co-existência com as coisas e de seu poder de torná-las inteligíveis" (p. 125). Pela noção não habitual de "consciência-comportamento", se pretende exprimir o fato fundamental, amplamente enunciado por M. Merleau-Ponty, de que o comportamento representa e exprime um "saber" que não é refletido. Assim, se deve aceitar uma consciência engajada, uma consciência posicional, uma vez que De Waelhens diz precisamente: "É o comportamento do homem, todo inteiro, que é luminoso" (lumen naturale) "como fundador ou instaurador do sentido" (p. 126). No comportamento se manifestam as intenções operantes (Fungierende Intentionalität, segundo Husserl)6, "que constituem a unidade natural e ante-predicativa do mundo e da vida, uma unidade que se manifesta mais claramente que em nossa consciência objetiva, em nossos desejos, nossas avaliações, nossa paisagem e que fornece o texto do qual os nossos conhecimentos buscam ser a tradução, em linguagem exata" (p. 123)7.

Nossa investigação acerca da gênese do espírito materno será orientada pela ideia de uma consciência-comportamento e pela concepção de que "o espírito se faz por meio do corpo" no curso da existência.

Essa expressão pode ser facilmente mal compreendida, porque ela parece sugerir que a natureza inteira do homem se encontra inscrita no corpo como uma estrutura totalmente montada. Para dissipar qualquer mal-entendido, eu quero sublinhar que a essência humana é "uma possibilidade que pode se atualizar de maneiras muito diferentes, segundo a relação de nossa liberdade com a situação onde a natureza nos tem postos"8. O corpo "cada vez aparece como um centro de perspectiva sobre o mundo" e - acrescenta Lavelle - "como um padrão em relação ao qual todos os objetos que estão no mundo adquirem, de repente, uma igualdade de interesse ou de sentido" (p. 318). Para precisar nosso ponto de vista de princípio, indicando a direção de nossa explicação da formação do espírito materno, é necessário, sem dúvida, sublinhar a inegável importância do corpo para a existência concreta, mas também cabe reconhecer, com Lavelle, que "o real nos separa do valor", mas que ele "nos abre o caminho que nos permite de acedê-lo" (p. 330). "É, por intermédio do corpo, que a referência ao espírito doa seu valor a mais humilde coisa, à ação mais elementar". Assim, o corpo pode ser o instrumento de uma vida, que carrega nela sua própria justificação que é a vida mesma do espírito (p. 318).

Pela noção alargada de intencionalidade - uma intencionalidade que se manifesta nos comportamentos realizados espontaneamente e sem reflexão - será possível seguir a historicidade da atitude maternal em nossa civilização. Uma análise das significações constituídas nos atos de juízos e de tomadas de posição voluntárias é também necessária como revelação das intencionalidades operantes. As ideias desenvolvidas por Merleau-Ponty concernentes à compreensão da história em geral devem ser aceitas para a nossa investigação. No Prefácio de sua Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty tem notado: "É verdade, como diz Marx, que a história não anda com a cabeça, mas também é verdade que ela não pensa com os 'pés'. Ou, antes, nós não devemos ocupar-nos nem de sua 'cabeça', nem de seus 'pés', mas de seu corpo"9. Aplicado à gênese do espírito materno, cabe, pois, se ocupar da corporeidade feminina. Isso, objetivamente, indica aqui uma maternidade possível de maneira que a aparência corporal da mulher, vivida por ela mesma e, percebida por todos, reenvia a essa possibilidade.

Há uma verdade indiscutível na expressão bem conhecida de Freud: "A anatomia é um destino".

Após ter explicado, provisoriamente, a noção de uma gênese psicológica e indicado o ponto de partida do estudo de tal gênese, eu tomo a liberdade de comentar a segunda noção, a noção de "espírito materno". Nas línguas germânicas, como o alemão e o holandês, se distinguem mutterschaft (moederschap, em inglês, motherhood) de Mütterlichkeit (moederlijkheid, em inglês, motherliness). A primeira palavra é facilmente traduzível em francês, porque a palavra maternité tem o mesmo significado, o mesmo valor e a mesma extensão. Ela indica, segundo a correspondente palavra neerlandesa, alemã e inglesa, o fato de que uma mulher deu à luz. Ao contrário, a palavra moederlijkheid não tem o equivalente, em francês. Na tradução francesa de meu livro La Femme10 - versão avaliada como perfeita por todos aqueles que, melhores que eu, têm o direito de juízo - o Sr. De Waelhens e o Sr. Micha têm escolhido como título do último capítulo, chamado, em holandês, de moederlijkheid, a "vocação maternal". Quando eu comparo a palavra vocação com a palavra espírito, eu sinto uma diferença quanto à atitude intencional da mulher animada por um "espírito maternal" e aquela que escolhe seguir uma "vocação maternal". Essa diferença, sem dúvida, é antes sugerida pela significação dessas duas palavras que pela realidade intencional que elas revelam.

Eu, no entanto, gostaria de insistir sobre o fato de que a palavra "espírito" invoca uma tomada de posição mais geral e não um ponto orientado para as perspectivas de uma atividade concreta. Para se dar conta da diferença entre o significado da palavra espírito e o da palavra vocação, basta por, de lado, a expressão "espírito materno", daquelas usadas em todas as línguas. Fala-se de um espírito científico, artístico, militar, burguês, de um espírito geométrico, de astúcia, de caridade, de um espírito nobre, cavalheiresco e, num sentido figurado, de um espírito das leis11.

Aprendi com Lalande (p. 1191) que a vocação é "a inclinação decidida e até mesmo, por vezes, imperiosa para uma profissão, uma arte, uma forma determinada de estudo ou de ação, em um indivíduo que possui as aptidões correspondentes". Há também um sentido mais recente, mas pouco usual, da palavra vocação, que se aproxima da ideia de "destinação" (visto mais frequentemente como providencial).

Em virtude dessa informação, eu entendo que a noção de "espírito materno", da qual eu me proponho explicar a gênese como uma atitude espiritual de ordem geral se exprime no modo do encontro12 e do comércio com os homens e o humano, como também no olhar das coisas. A princípio, essa atitude se assemelha, por sua estrutura intencional, à atitude de uma mãe dedicada em torno de seu filho.

Muito seguramente: a relação entre a mãe e a criança pode realizar, de uma maneira mais pronunciada e mais diferenciada, o espírito materno. Ela se manifesta de tal modo que certas características da espiritualidade geral feminina e humana se mostram mais claramente e de um modo mais evidente: nossa pesquisa tem, pois, uma dupla orientação. Primeiramente (A), pretendemos seguir o desenvolvimento comportamental dos filhos comparado com os dos rapazes a fim de compreender por meio de qual relação o ser humano realiza a possibilidade de um projeto de existência animado por um espírito materno geral. Secundariamente (B), tentaremos compreender como esse espírito engendra a amplitude do amor materno, inserido e ancorado no ambiente familiar, mas desabrochando-se na situação de maternidade.

Antes de desenvolver esses dois pontos de vista, será útil examinar brevemente: Primeiro: a opinião popular acerca da identidade entre feminilidade e espírito materno; segundo: a concepção de um instinto maternal; terceiro: a teoria psicanalítica, e finalmente: a explicação inteiramente histórica e social da atitude materna.

Quanto à opinião popular, é preciso se dar conta de que o juízo concernente à feminilidade representa uma tradição poderosa refletida na literatura. Por melhor que se choque, geralmente, com a expressão atribuída a Napoleão: Tota mulier in utero13, há um consenso de que a mulher cumpre o seu destino pela experiência capital da maternidade. As célebres mães da literatura francesa clássica, como Andromaque ou Athalie, manifestam um espírito heroico de sacrifício, compreendido como a revelação da verdadeira feminilidade. Em numerosos romances se confere o mais alto lugar à maternidade, pelo qual a mulher se completa. Quando a mulher é concebida como um ser humano completo, seu amor maternal não põe problemas. Este amor provém de uma tendência da natureza feminina, à qual é levada a aplicar o pensamento de Rousseau: "Natureza, ó doce natureza! Serão as inclinações que me deste, mais enganadoras que a razão, que tantas vezes me perdeu?"14. Tem-se, indubitavelmente, constatado na vida cotidiana mães "desnaturadas" e a literatura descreve tais naturezas ausentes ou degeneradas pelas imagens de mães insensíveis, tirânicas, rudes, indolentes e apáticas bem como aquelas que maltratam suas crianças ou aquelas a quem a criança permanece estranha.

A literatura e o teatro modernos de orientação existencialista nos apresentam, segundo Hélène Nahas15, apenas o inverso negativo do espírito materno, isto é, seus fracassos. Ela constata mesmo "no conjunto da obra de Sartre", uma espécie de ódio difuso da criança, no sentido de ser perversa e manhosa. Não é de se surpreender que a opinião tradicional seja rejeitada, categoricamente, e que o espírito materno seja desvalorizado se ele não exprime uma escolha decisiva.

A concepção de um instinto materno é formada, por analogia, com os comportamentos animais, principalmente os dos pássaros e dos mamíferos. A biologia das gerações anteriores tem distinguido, rigorosamente, os comportamentos inatos, quer dizer, os instintos, e os comportamentos adquiridos ou mesmo os hábitos. Tais instintos, como por exemplo, dos insetos sociais, mas também da nidificação e da migração dos pássaros, têm sido descritos por sua inexplicável finalidade. Essa aqui sugere uma "sabedoria" da natureza, uma ideia que dava lugar às especulações filosóficas ou teológicas, mas, sobretudo, porque ela tinha suscitado uma imagem romantizada do inatismo das pulsões internas, inconscientes, que determinam o curso da vida quanto aos seus aspectos dominantes e sua destinação posterior.

Inútil acrescentar que essa teoria clássica parece ser perfeitamente comprovada pelo fato de que cada espécie animal assegura, pelas condições sexuais e maternais específicas, a continuidade das gerações. É necessário aplicar essa concepção ao homem, especialmente porque os hábitos estáveis das sociedades humanas agem de uma maneira tão imperiosa que o sujeito acredita estar possuído por forças interiores das quais ele ignora a origem. Esses hábitos inalteráveis, experimentados como a garantia de segurança e da dignidade da humanidade, são valorizados pelas vocações, pela voz da consciência, pelas leis inscritas no coração.

Em função disso, se compreende porque nossas avós e nossas bisavós aceitaram as mudanças da maternidade com uma perfeição natural, tendo fé num instinto maternal infalível que é preciso seguir sem reflexão, nem hesitação. Em um livro divertido e espiritual intitulado: Em defesa das mães: como educar os filhos, apesar dos psicólogos mais zelosos (In defense of mothers: how to bring up children in spite of the more zealous psychologists), o psiquiatra inglês Leo Kanner tem insistido sobre a importância da fé no instinto materno por parte das gerações, do qual a sabedoria natural fora aceita pelos cientistas que consideram os exemplos do reino animal como provas irrefutáveis. Noutro lugar, o autor menciona uma observação de Margaret Mead: as tribos que têm medo do futuro de suas crianças perdem-se em embaraços educativos.

Pode-se concluir das experiências sociais que os hábitos estáveis têm uma função semelhante à dos instintos, mas a análise científica nos obriga a corrigir a hipótese de um instinto materno, mesmo os dos mamíferos, concebido como uma disposição autônoma inata.

Os estudos etnológicos têm demonstrado que o comportamento maternal depende da situação e também das experiências anteriores à posição no mundo dos filhotes. Sem dúvida, há uma disposição constitutiva da fêmea, diferenciada pelos hormônios durante o período de maturação sexual e após o acasalamento. A influência dos hormônios depende, em parte, conforme as pesquisas, das relações sociais, não pontualmente sexuais, durante a juventude do animal; noutra parte, o efeito dos hormônios se explica por uma mudança de irritabilidade ou da regulação térmica16. Das experiências realizadas acerca dos ratos por Eliane Beniest-Noiret17 tem-se provado que a presença de um ratinho, qualquer que seja a condição hormonal, é o suficiente para suscitar, mesmo nos indivíduos maus e nos ratos impúberes, comportamentos maternais. Comportamentos tais como romper o cordão umbilical, comer a placenta, lamber os menores, cobri-los, trazê-los de volta ao ninho quando eles estão perdidos e defendê-los contra um intruso.

As observações de Yerkes e de seus colaboradores sobre os chimpanzés mostrou que, há entre esses animais, mães hábeis e, por outro, de que são incapazes de executar as atividades normais. A conclusão de todas essas pesquisas é, certamente, a de que o comportamento maternal dos animais superiores se apoia sobre algumas reações elementares inatas, mas que também é determinada situacionalmente e historicamente. Nós veremos quais são as reações primárias e quais são as percepções desencadeadoras que se encontram no homem tendo, por base, a diferença dos sexos. Antes, porém, torna-se imprescindível tratar as teses psicanalíticas bem próximas da teoria biológica das energias instintivas, sua descarga em atividades dependentes de circunstâncias.

Ser-me-ia impossível resumir, mesmo que sucintamente, os numerosos escritos de Freud e de seus seguidores referentes à gênese do amor materno. Tal resumo, porém, seria supérfluo porque noções como libido, sexualidade infantil, complexo de Édipo e castração, bem como o de fenômenos de recalque, projeção, identificação, sublimação são tão correntes para nós. É que tais noções suscitam uma imagem, se bem que um pouco vaga, das etapas percorridas pelas meninas, levando a uma afeição maternal primária que se transformará num verdadeiro espírito maternal em condições favoráveis.

Esse curso de pensamento é muito conhecido: sendo assim, é mais preferível examinar algumas considerações de Sylvia Brody18 que, - em minha opinião - sem qualquer exagero, tem conseguido esboçar, do ponto de vista psicanalítico, o desenvolvimento inicial da conduta materna, fundado sobre a observação de uma menina de quatro anos.

Essa menina brinca com o seu irmãozinho de dezoito meses, sem, verdadeiramente, deixar de supervisionar o seu jogo. Ela entregou-lhe brinquedos, explicando os funcionamentos, estimulando os seus esforços. Levou-o a uma mesa, conduziu delicadamente a sua mão para um petisco e advertiu que comer seria muito perigoso. A garotinha imitava perfeitamente as condutas de sua mãe com muita paciência e tato. Durante os meses anteriores, a menina tinha demonstrado uma atitude hostil em relação à própria mãe por causa de seus cuidados para com o bebê. A seguir, os pais relataram ter advertido a filha que era melhor ser doce com o irmão pequeno porque, em breve, ele seria capaz de vencê-la. As observações meio-humorísticas dos pais poderiam surtir efeitos diferentes, mas a menina escolheu aceitar a atitude passiva de sua mãe em torno do nenê. Ela recalcou o desejo de ver seu irmãozinho negligenciado ao invés de ser amado. Se ocupando de seu irmão, ela se prepara - segundo a autora - de uma maneira masoquista ao restabelecer-lhe uma parte de seu ego-identificado e de sublimar as suas tendências sádicas. A mudança exemplar de comportamento da garota demonstra, em detalhe, uma parte do desenvolvimento psicológico normal: a adaptação de uma tendência instintiva e ativa a uma intenção de passividade, de acordo com as exigências da realidade e com o ideal do ego.

Concluindo, a autora propõe buscar, antes de tudo, a gênese do espírito materno no vínculo entre a criança e sua mãe durante os primeiros anos de sua vida. Ao longo desse período, a mãe satisfaz todos os desejos passivos da criança. Segundo Brunswick, citado por Sylvia Brody: "A criança (com a idade pouco perto dos quatro anos) reage à presença de sua mãe por uma agressão primitiva e defensiva que é um derivativo e uma proteção de sua atividade, tanto quanto uma defesa de sua passividade original mal superada". Um pouco mais tarde, entrando no estágio dito fálico, os desejos eróticos ativos são suscitados pela irritabilidade dos órgãos sexuais, pela observação de uma relação física dos pais e, frequentemente, pela curiosidade em olhar o nascimento de outras crianças. Por causa de o amor infantil ser sem limite e não ter um objeto ou um fim específico, ele culmina no desejo mais ambicioso, por parte da menina: fazer qualquer coisa corporalmente com a mãe, obter dela uma criança a fim de tornar-se igual a ela, ou melhor, dar uma criança a sua mãe para satisfazê-la, porque as "mães devem ter crianças". Há, portanto, muitos desejos que se confundem no desejo de um bebê: o desejo ativo da menina de ser uma mãe parecida com a sua própria mãe.

A nossa experiência confirma, sem dúvida, que, no estágio emotivo perturbador de inúmeras meninas se forma desejos e imaginações vagas que estão em relação à atitude materna; portanto, no cuidado de uma criança. Em geral, se vê que essa imitação da mãe se exprime em jogos ou aceitando pequenos trabalhos domésticos, encorajados pelo ambiente (milieu). Pode-se também aprovar a tese psicanalítica de que a menina será, muitas vezes, mais tocada pela rivalidade que o menino e que a sua ligação com a mãe lhe permita, com maior facilidade, conquistar um mundo de segurança, de paz e de consentimento.

No exemplo descrito por Sylvia Brody, somos informados de que a menina tem escolhido aceitar a atitude de sua mãe. Mas o que significa a noção de "escolha" na vida infantil? "Há, em todos os psicanalistas, uma recusa sistemática da ideia de escolha e da noção de valor que lhe é correlativa; é aí que constitui a falibilidade intrínseca do sistema" - como tem fortemente assinalado, justamente, Simone de Beauvoir19.

Eu penso que é preciso aceitar que a escolha é sempre motivada; mas um motivo não é uma causa20. O motivo atua por seu significado; atua, entretanto, numa decisão (Merleau-Ponty). Esta nunca depende de uma liberdade absoluta, nem no adulto, nem na criança, mas ela não é mais determinada à maneira de um fato da natureza.

Assim, embora aceitando, pois, vários princípios postos pela psicanálise, eu não creio que se possa explicar a gênese do espírito materno por um "mecanismo", um jogo determinado de tendências instintivas e de forças imperativas da realidade.

Existe uma relação íntima entre os princípios da etnologia biológica moderna e a teoria dos instintos desenvolvida por Freud21. A classificação dos instintos em psicanálise é mais rígida, pois ela engloba três pares de instintos opostos que são: 1. O ego-instinto e o instinto sexual; 2. A libido narcísica e a libido de objeto; 3. O instinto de vida (Eros) e o instinto de morte (Tânatos).

Não se aceita nem na psicanálise, nem na etnologia, um instinto social primário ou um instinto de maternidade. As duas disciplinas aceitam uma pulsão sexual geral que, nos períodos críticos, leva à formação dos hábitos.

***

A influência social sobre a gênese do espírito materno não é negada pela concepção popular que atribui à menina o gérmen completo de uma "alma feminina que é feita de ternura, de sutileza, de delicadeza"... que "não tem que desempenhar o papel do homem"22. Ela tem por função unicamente evitar os fatores desfavoráveis a fim de que essa alma oculta se revele e se desabroche em todo o esplendor de sua "natureza".

Na teoria biológica aplicada ao homem, como também em psicanálise, o meio social representa um campo de forças que, em relação às funções instintivas, determina absolutamente a gênese eventual de um espírito materno.

Sabe-se que o estudo dos costumes nas épocas históricas e nas sociedades primitivas, conforme mostraram, por exemplo, as pesquisas da Srª. Mead, têm suscitado, na opinião, a certeza de que as condutas das mães e, portanto, o espírito que as anima, depende exclusivamente do meio.

O ponto de vista, proposto pelo existencialismo de origem francesa, está fundado, radicalmente, sobre a ideia formulada por J.-P. Sartre de que o homem está "condenado à liberdade". Essa ideia está na base da obra notável de Simone de Beauvoir: O Segundo Sexo. É preciso reconhecer o grande valor desse minucioso estudo que nos trouxe numerosas observações penetrantes acerca da situação feminina em nossa civilização. Eu gostaria de recordar aquelas tão bem retratadas imagens das mulheres, que, antes, são "férteis" do que mães (p. 307), que se sentem, nesse caso, "interessantes" (313) e aquelas da qual o "amor materno se perde nas repreensões e nas cóleras, que ditam o cuidado da casa bem conservada" (p. 342).

A Srª. Beauvoir tem razão: "Não existe instinto mater-no" (p. 323), mas quando lemos: "Não há mãe 'desnaturada', pois o amor materno não tem nada de natural: mas, precisamente, por causa disso, há mães más", seremos obrigados a perguntar qual é o sentido que cabe atribuir à palavra "má". O primeiro princípio, a ideia forte da autora é que a mulher se faz por conta de suas decisões livres, mas a ideia de uma liberdade absoluta, de uma transcendência em qualquer caso orientada para uma ordem de valores objetivos, desveladas pelos encontros, exclui uma escolha autenticamente boa ou má.

O que está faltando na exposição de uma gênese do espírito materno determinada exclusivamente pela contingência da situação social, é justamente o fato fundamental de que a "natureza" de uma subjetividade é "o desvelamento das coisas e do mundo, de se fazer ela-mesma dizendo o que as coisas são" (De Waelhens)23.

Tal desvelamento das significações supõe certa coexistência original, assinalada no início desse texto - coexistência da consciência encarnada e de um mundo que se manifesta como uma ordem de significações e se apresenta em todo encontro como objetivo. A realidade, na qual estamos engajados após nosso nascimento, prefigura em nosso corpo e em toda coisa percebida as significações suscetíveis de ser valorizadas ou desvalorizadas. A ideia dessa ordem, prefigurada na realidade, pode ser formulada assim: há uma interioridade dos valores, portanto, uma interioridade espiritual em toda subjetividade encarnada e no mundo. "Assim como, em nossa experiência, toda presença é o signo de uma ausência, ela indica uma ausência da qual antecipa a presença"24. Toda experiência é a manifestação de uma significação que reenvia a uma perspectiva de valores.

A gênese do espírito materno tem sua origem nos primeiros encontros de um sujeito que é feminino pelas características pré-existenciais de sua corporeidade. Esses caracteres não são contingentes; eles determinam uma presença no mundo que atravessa a experiência já a partir, da primeira juventude, desvelando uma ordem de valores primários. Estes aqui representam a constituição geral de um mundo feminino que se diferencia sob a influência da educação e do meio social.

Em meu livro - A Mulher - defendi a tese de que o caráter decisivo determinante da origem de uma existência feminina e de um mundo feminino não deve ser buscado na anatomia, mas no dinamismo, isto é, no modo de execução dos movimentos; portanto, no estilo comportamental. Esse dinamismo "dá à vida a forma da generalidade e prolonga em disposições estáveis os atos pessoais"25. Uma enquete realizada por um de meus alunos tem demonstrado que existe, no curso do primeiro ano, uma diferença de tipo dinâmica entre o garoto e a menina.

Essa diferença resulta de um maior tónus muscular que é constitutivo dos garotos. Uma maior rigidez se exprime na execução de seus movimentos. Temos constatado que o garotinho se põe mais energicamente, mais bruscamente, enquanto que os movimentos das meninas são mais dóceis, mais flexíveis, menos expansivos e menos reativos. Por menor que seja essa diferença dinâmica, ela significa uma entrada num mundo específico. Ela inaugura experiências sensoriais e motoras que começam, imediatamente, a constituir um mundo diverso para ambos os sexos. A intencionalidade operante de um movimento expansivo faz surgir, nas coisas encontradas, a significação de obstáculos. Um obstáculo vivido é idêntico à experiência de uma inibição externa do movimento espontâneo. A reação correspondente será um fortalecimento da expansão que adquire facilmente o sentido de agressividade. Pode-se constatar, no desenvolvimento comportamental da criança, que a dinâmica constitui um esquema fundamental de um mundo e de um modo de existir que, reciprocamente, solicita essa dinâmica. Minha concepção referente ao sentido - quer dizer, à direção - fornecida pelo estilo dinâmico à existência humana, conforme a opinião de Madinier26, é que "a motricidade é uma intencionalidade original e, sem dúvida, a matriz de toda intencionalidade. Ela é fonte e forma da significação".

Para ilustrar essa relação de um dinamismo constitutivo com projeto de mundo valorizado integralmente, eu escolho o seguinte exemplo. Eu tive a oportunidade de acompanhar a vida de dois irmãos gêmeos heterozigotos, desde as suas primeiras crises de recém-nascidos até à idade adulta. Um dos meninos chorou muito forte no dia de seu nascimento, em crises espasmódicas, acompanhadas de movimentos bruscos; o outro expressou a sua entrada no mundo por gemidos bem doces, semelhantes aos balidos de um cordeiro. Essa diferença de dinamismo exprimida vocalmente é a típica descoberta para todos os movimentos espontâneos no curso da primeira juventude. Ela está na base dos jogos preferidos, das atividades esportivas, e também das reações afetivas, e, mais tarde, do modo de pensar, de trabalhar, de sentir.

Não é de estranhar que o primeiro garoto tenha escolhido o estudo da medicina e seja especializado em cirurgia enquanto que, o outro se tornou artista, pintor. Esse exemplo demonstra que - independentemente de uma diferença de sexo - o estilo dinâmico significa uma orientação original que pode dirigir o curso do desenvolvimento de uma maneira decisiva. Vale, entretanto, acrescentar que o dinamismo comportamental é raramente pronunciado no recém-nascido, como o foi em nosso exemplo. Ademais, verifica-se que a característica da motricidade se manifesta, em geral, mais tarde, e, é preciso, enfim, sublinhar que, na idade de um ano, o estilo do comportamento será desde então, em certo grau, influenciado, involuntariamente, pelo meio.

Essa influência será maior se o dinamismo for menos pronunciado e ela será mais forte se a característica da motricidade da criança for, imediatamente, valorizada. É o caso da mãe que compreende os movimentos expansivos de seu garotinho como expressão de virilidade ou da dinâmica da adaptação interpretada como manifestação de feminilidade.

***

Em relação à diferença constitutiva dos sexos, é necessário focar a atenção sobre os pais e as oposições fenomenais que se manifestam na experiência vivida entre as sensações elementares, das percepções de formas simples, e das atividades gerais. Sem enumerar as pesquisas pormenorizadas, eu queria mencionar a afinidade de uma atonia muscular com o sonho, a continuidade, a plasticidade, e, de outra parte, o parentesco fenomenal entre o tónus muscular e o estado de vigília, a luz, o frio, a dureza, as formas angulares, a atividade, a descontinuidade, a elasticidade. A oposição desses dois grupos de fenômenos é de importância para a ligação de preferências sensoriais e motoras, sobretudo, no desabrochamento inconsciente da vida e do jogo livre da imaginação. Vários autores, entre outros como Jung, Klages e G. Bachelard têm assinalado tais afinidades, parentescos e contrastes arquétipos. É fácil provar a sua função na gênese de uma existência masculina ou feminina como também quanto à formação espontânea das atividades e das experiências preferidas na juventude que influenciam o meio educativo.

***

A teoria de uma gênese da feminilidade fundada sobre um dinamismo da adaptação implica o fortalecimento desse estilo de existir sob a influência do meio cultural e de sua ordem de valores.

Enquanto que a força elementar de um movimento rígido e expansivo encontra um mundo de obstáculos, os movimentos flexíveis da menina fazem conhecer um mundo de qualidades e de formas, ou seja, de valores dados. É verdade que, de início, isso se aplica à percepção tátil, ligada intimamente aos movimentos. Essa percepção se realiza num comércio, um ser-com-outrem, a prefiguração de uma existência sobre o modo do nós (Wirheit) - o que significa dizer, segundo Binswanger, uma existência que escapa à dimensão do intencional ou que, se pode compreender como a suspensão de toda intencionalidade prática ou pragmática. A simpatia e a sintonia desinteressadas com "o outro" enquanto elas se dão na coexistência sensorial não serão limitadas ao tato, mas abraçarão todas as formas de sensibilidade. Essa atitude torna-se, em geral, preponderante e habitual na menina.

As primeiras fases da gênese masculina e feminina são bastante conhecidas pela observação dos jogos preferidos e das relações afetivas. Na idade de três anos, pode-se desde já constatar, em quase todas as meninas, um estilo comportamental do tipo tradicionalmente feminino.

Este estilo se manifesta no comércio com as coisas, nos movimentos de expressão, no modo de falar e de reagir às palavras do adulto. O dinamismo de adaptação se exprime no gosto das meninas, nos trabalhos de agulha, na repetição de movimentos lúdicos, na corda de pular, na bola contra a parede, em atividades de circuito fechado sem iniciativas criadoras.

O parentesco fenomenal entre as condutas e as experiências da menina explica que a atividade feminina teria antes uma afinidade com o cuidado enquanto que a atividade masculina é orientada mais para o trabalho. Essa afinidade se compreende facilmente em vista da intencionalidade geral das duas condutas. Em meu livro - A Mulher - permito-me resumir os principais pontos de vista amplamente estabelecidos. O trabalho supõe um objetivo a ser atingido por meio da situação aceita como um sistema de meios. Isso quer dizer que a realidade presente não é tomada por si mesma nem em suas qualidades sensoriais, nem nos valores que ela suscita. O mundo do trabalho é um mundo de obstáculos e de materiais. A atividade do trabalhador é descontínua, é uma sucessão de tensões e de descansos, motivados pelas imaginações, pelos raciocínios e cálculos, animados por decisões corajosas e pela audácia. O trabalho viriliza também a mulher: se o vê nos povos primitivos, nas classes populares, no campesinato. Observa-se, ao contrário, a feminização dos homens que não trabalham.

A estrutura do cuidado se opõe a do trabalho. No cuidado, se exprime uma consciência penetrada pela presença concreta dos valores e da obrigação de aceitar, de respeitar, de conservar valores, de participar de um modo de coexistência. O cuidado, todavia, se torna verdadeiramente tal e qual no momento onde a gente se constitui responsável pelos valores e onde se enfrentam as ameaças nas quais os valores são expostos; em que se está disposto a assumir os valores ocultos. No cuidado, a dinâmica da adaptação manifesta a sua significação humana. Incitando o sujeito a permanecer no seio das coisas, em escolher ser atencioso, desinteressado, em realizar e obedecer ao seu apelo, o estilo comportamental feminino permite conhecer o valor real e possível dos objetos respeitáveis.

O cuidado autêntico põe necessariamente, em presença, sobre o modo do nós aquele que tem cuidado e aquele do qual se tem cuidado.

O cuidado não progride como o trabalho progride, orientado em direção a um fim. O objeto do cuidado está no centro das atividades do cuidado que continua pela tensão para esse centro e que cessa com o seu desaparecimento. O trabalho pode ser representado simbolicamente sob a forma de uma linha reta; o cuidado sob a forma de um círculo fechado.

Há na vida do adolescente masculinizado devido a um dinamismo expansivo, uma evolução para certo nível de trabalho sério, aceito com toda responsabilidade.

Assim, a relação inaugurada pela adaptação, a ligação contínua e interna às coisas e a outrem, se desenvolve e se diferencia tendo em vista uma existência plenamente humana, mas que, pela ética do cuidado, é diferente da existência do homo faber, do trabalhador, do criador de uma cultura e de uma história.

Na verdade, é objeto de cuidado tudo o que manifesta uma imperfeição e a possibilidade de remediá-la.

É que o cuidado pode ser plenamente ele mesmo se se toma o ser humano por objeto -, em particular, a criança.

O sutil Alain escreve: "A função feminina é a de conservar a forma humana, de protegê-la", e é preciso acrescentar: de levá-la ao florescimento.

Essas reflexões nos levam a pensar que o estilo comportamental, fundado sobre a constituição da menina, introduz uma relação no mundo que se desenvolve, sem maior dificuldade, numa atitude geral de cuidado.

A espiritualização dessa atitude pela aceitação de uma intencionalidade integral de devoção, de um dom de si ao humano que reclama o cuidado, se chama espírito maternal. Esse espírito é - como todo espírito - plenamente humano porque ele ultrapassa a natureza, como também o corpo. Se se pretende que há, em nossa civilização, uma afinidade do homem ao espírito militar ou ao espírito geométrico e da mulher ao espírito materno ou ao espírito de caridade, cabe adicionar que essa afinidade significa a introdução de ou a prefiguração de uma decisão pessoal.

O espírito materno concebido como uma intencionalidade puramente humana e universal é, por princípio, independente da natureza da mulher indicando uma maternidade possível. Nem as diferenças de motricidade, nem as experiências infantis, nem a influência do meio conduzem fatalmente a certo "espírito". É útil não esquecer que não é livre a escolha que se apoia sobre uma corporeidade, uma historicidade e situações dadas. A realidade do homem é uma unidade incompreensível de "fatalidade e de liberdade". Em razão dessa unidade, será necessário prosseguir a nossa pesquisa acerca da gênese psicológica do espírito materno por uma análise da estrutura emocional à medida que ela é a expressão desse espírito - expressão de uma potência dispensadora de calor, de simpatia, de ternura, de amor, que faz germinar na civilização o oculto, o fraco, o frágil, o sutil.

***

Eu queria limitar essa análise à questão que se põe na reflexão sobre a gênese do espírito materno em geral e também do espírito maternal se constituindo na situação da maternidade. Essa questão é: Qual é a relação dos sentimentos espontâneos, dos valores e do amor, quer dizer, daquele amor do qual Santo Agostinho dizia que é "espiritual até na carne e carnal até no espírito"?

O sentimento mais próximo do dinamismo de adaptação e do cuidado que ele engendra é a ternura. Kunz27 tem bem fortemente descrito esse sentimento opondo-o à agressividade. A ternura é primariamente uma reação espontânea; é a expressão de um sentimento de enternecimento, suscitado por um ser ou por uma coisa que, pela sua doçura, sua fragilidade, seu charme, "chama" a carícia da mão, do olhar, da voz. O gesto, a palavra, o olhar tenro (ao pé da letra) descobrem o terno. Para a menina que, pela sua motricidade de adaptação e pela identificação com a sua mãe, começa a cultivar o ato de ternura ao olhar as bonecas, os animais e os objetos, se abre ao horizonte da existência feminina.

O que faz da ternura um ato propriamente humano é a intenção que, através do gesto terno, do terno olhar, da terna palavra visa em se tornar presente como pessoa e cuidar-se do outro. Essa ternura humanizada é a expressão de um espírito materno que ultrapassa um sentimento brotado pelo encontro. A "ternura" espiritualizada é detentora de valor, fonte de valorização; ela se encarna em todos os domínios de uma existência animada por um espírito materno. Esse espírito limita-se, inadequadamente, quando se vê, nela (ternura), apenas uma aptidão ou uma disposição à maternidade.

Na juventude, um espírito materno se anuncia por sentimentos provocados pela corporeidade e pelas situações. A influência de um meio, representando um sistema de valores, que mantém a oposição tradicional dos sexos, pode ultrapassar a sensibilidade e a emotividade primárias que se impregnam, pois, em valores universalmente reconhecidos. Nesse caso, a afetividade feminizada será intimamente transmitida transformando-se em espírito materno. Os pensamentos apropriados para iluminar essa transmissão e essa transformação - a fase decisiva da gênese do espírito materno - se encontram, pois, desde já, claramente formulados por Burloud28.

Ele tem sublinhado que as tendências afetivas nos inclinam originalmente para uma "categoria de coisas". A tendência afetiva aparece desse modo como um princípio "de abstração espontânea" (p. 121).

Não menos esclarecedora para o nosso problema é a declaração de Burloud que "as inclinações não tardam a ponto de, nos homens, se intelectualizar e se espiritualizar". "Múltiplas e sutis correspondências religam, contudo, ainda às inclinações espiritualizadas, o tom da voz, os elementos musicais da frase, os gestos, o andar, os jogos de fisionomia, numa palavra, os fenômenos de expressão" (p. 122).

Esse elo permanente de uma atitude espiritual e de sentimentos espontâneos constitui a ilusão charmosa de que uma mulher de espírito materno é completamente natural - sobretudo na manifestação do seu amor. Esse amor, mesmo o amor materno que - conforme Alain29 - é o modelo de todos os amores e também "o instrumento mais perfeito do conhecimento de outrem" (Lacroix)30 se alimenta da espontaneidade vital que é a sua fonte permanente.

Se aceitarmos que o espírito materno realiza um amor desinteressado, nos comprometemos com uma problemática que transborda largamente o tema proposto.

Ao se confrontar à experiência mais simples, a amabilidade do amado, à origem do amor, Platão tem, na meditação sobre a realidade humana, introduzido antinomias que Lavelle31 tem explicitamente formulado. É a antinomia da objetividade e da subjetividade, a antinomia do ato e do dado e a do individual e do universal.

Tais antinomias são superadas pela concepção de uma subjetividade transindividual e de uma coexistência originária. Após Pascal que desvelou o coração como um órgão de conhecimento até ao pensamento de Lavelle que compreendeu o amor como o ato pelo qual a liberdade afirma a verdade (p. 430), se reconhece o curso de uma reflexão que hoje continua tanto na filosofia quanto na psicologia. Compreendemos Madinier32: "O amor não é um desenvolvimento da simpatia; essa pode prepará-lo e condicioná-lo, mas o amor vem de outro lugar. Ele é uma nova forma de ser". Conforme tal pensamento filosófico, é a concepção do psiquiatra Binswanger que, ao superar a ontologia de Heidegger, mostrou que "a existência (Dasein) é, desde então, a possibilidade originária de um encontro amoroso, de um ser comum, um ser a dois e não dois. A realização dessa forma de existência supõe que a existência não se compreende em si-mesma a partir do mundo, mas a partir de seu fundamento como dom, presente ou graça"33, ou segundo a fórmula de Guardini: "O amor é a atitude que sabe que o verdadeiro pode ser possuído sob a forma do dom"34.

O espírito materno é a decisão definitiva a essa coexistência, implicando, de uma só vez, o valor revelado de um dom. Este espírito não procede de uma predileção subjetiva, mas de uma solidariedade fundamental, expressa na perfeição do vínculo entre a mãe e a criança.

"O amor materno não escolhe". - "A ideia de escolher e de recusar não pode entrar nesse modelo de amor"35.

Em um estudo penetrante, Minkowski36 tem-nos desvelado a identidade entre a coexistência e o co-devir; "movimento comum para frente". "Por esse co-devir tem-se indicado - ao menos a título de 'suspeita', à espera que o 'futuro' seja chamado a ser a 'primeira', a fundamental dimensão do tempo. Rumo... Rumo ao futuro. Ali encontra, no plano humano, sua origem, nossa indelével esperança, nossas sempre as mesmas profundas aspirações humanas porque procedem do devir, do co-devir e, portanto, do eterno".

Temos visto que a gênese do espírito materno é fundada sobre a diferença inata do dinamismo dos sexos. Essa diferença introduz uma existência e um mundo masculino e feminino constituídos sob a influência do meio de uma maneira plenamente tradicional.

Durante esse desenvolvimento, os comportamentos, a afetividade, as intencionalidades se formam em relação com todas as particularidades e com toda a historicidade de um sistema de valores. Em razão dessa valorização, a existência da menina é, de um só lance, animada por um espírito, leve, mas que pode tornar-se uma atitude típica através do número de decisões motivadas.

E isso permite aplicar a espiritualização da existência à noção de gênese, noção de origem biológica? Eu tentei mostrar que o recém-nascido carrega frequentemente certa marca constitutiva que prefigura a possibilidade e a probabilidade de um certo "espírito".

É preciso, pois, concluir que jamais está em questão uma gênese autônoma da individualidade humana, de um si-chamado homo natura37. A existência se constitui por uma dialética, portanto, por uma corporeidade significando um esquema de mundo e significada por este. Essa dialética torna explícito o co-devir de uma maneira que representa, ao mesmo tempo, o destino, a vocação; portanto, a inspiração e a aspiração da vida pessoal e sua destinação. O espírito materno não está, pois, nunca formado definitivamente. Ele se transforma nas profissões diversas e pelas circunstâncias de fato, mas sem perder a intencionalidade do cuidado nem a sensibilidade do coração, nem o amor fiel pelos valores revelados de um dom.

O espírito materno alcança na maternidade uma patética (pathétique) e uma ética excepcionais porque o amor da criança é enraizado na unidade familiar; estar em casa junto com o homem amado no lar e nos hábitos. Nesse caso, o espírito materno se nutre da imaginação de uma continuidade de gerações, valorizada após as mais antigas civilizações. A ideia dessa continuidade é inserida na vocação de preservar uma tradição, simbolizada pelos nomes dos pais e representada por eles.

De um ponto de vista racionalista, tem sido muitas vezes desprezado o papel da mulher que se presta em ser o meio para a glória real ou imaginária de uma família que não carrega o seu nome.

Pode-se, sem dúvida, depois de ter indicado assim uma das mais importantes perspectivas da vida humana, citar o pensamento de um filósofo francês, um pensamento de Lachelier que nos confronta com o mistério do espírito e de sua gênese:

"Nada está mais conforme a razão do que a existência de um real, pleno de qualquer espécie, e impenetrável ao entendimento".

 

Nota Biográfica

Frederik Jacobus Johannes Buytendijk (∗29.4.1887, Breda, †21.10.1974, Nijmegen) ou, mais conhecido acrônimamente, como F. J. J. Buytendijk. Cientista holandês de orientação fenomenológica, Buytendijk se notabilizou em setores concêntricos de investigação que vão desde a biologia, passando pela antropologia, pela fisiologia, pela psicologia, até chegar à medicina esportiva. Entre suas principais obras, destacam-se: Psychologie des animaux. Paris: Payot, 1928; El juego y su significado: el juego en los hombres y en los animales como manifestación de impulsos vitales. Traducción del Eugenio Imaz. Madrid: Revista de Occidente, 1935; De la douleur. Trad. A. Reiss & Préface Maurice Pradines. Paris: PUF, 1951; Phénoménologie de la rencontre. Trad. Jean Knapp. Paris: Desclée de Brouwer, 1952; Le football: une étude psychologique. Paris: Desclée de Brouwer, 1952; La femme, ses modes d'être, de paraître, d'exister: essai de psychologie existentielle. Trad. Alphonse de Waelhens et René Micha. Bruges: Desclée de Brouwer, 1954; Attitudes et mouvements: étude fonctionnelle du mouvement humain. Trad. Louis Van Haecht & Préface de Eugène Minkowski. Paris: Desclée de Brouwer, 1957; L'homme et l' animal: essai de psychologie comparée. Trad. Rémi Laureillard. Paris: Gallimard, 1965.

 

 

Recebido em 22.07.2016
Aceito em 28.08.2016

 

 

1 Tradução de Claudinei Aparecido de Freitas da Silva. Publicado originalmente em F.J.J.Buytendik, La genèse psychologique de l'esprit maternel ; publicado em Les Études Philosophiques. Paris: PUF, (oct/ dèc 1960), Nouvelle Série, 15e Année, nº 4, p. 453-472. (NT).         [ Links ]
2 M. Merleau-Ponty. La structure du comportement. Paris: PUF, 1942.         [ Links ] Em português: A estrutura do comportamento. Trad. M. V. M. Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (NT).         [ Links ]
3 Raymond Ruyer. La genése des formes vivantes. Paris: Flammarion, 1958. (NT).         [ Links ]
4 Por "psicologia moderna" se entende, aqui, as tendências ou correntes psicológicas (como a Psicanálise, a Gestalttheorie, etc.) emergentes no início do século XX. (NT).
5 Em Husserl et la pensée moderne. La Haye, 1959, p. 115-129.         [ Links ]
6 Ver: Husserl, E. Formale und transzendentale Logik. Hamburg: Meiner, 1992, p. 297 (Gesam. Schriften, 7). (NT).         [ Links ]
7 M. Merleau-Ponty. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945, p. xiii.         [ Links ] Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 16.         [ Links ]
8 L. Lavelle. Traité des valeurs (I). Paris: PUF, 1951, p. 291.         [ Links ]
9 M. Merleau-Ponty. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945, p. xiv.         [ Links ] Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 17.         [ Links ]
10 Cf. La femme, ses modes d'être, de paraître, d'exister: essai de psychologie existentielle. Trad. Alphonse de Waelhens et René Micha. Bruges: Desclee de Brouwer, 1954. Em português: A mulher, seus modos de ser, de aparecer, de existir: ensaio de psicologia existencial. Trad. de Teófilo Alves Galvão. Pelotas, RS: Editora UFPel, 2010 (Coleção FePraxis, vol. 3). (NT).
11 André Lalande. Vocabulaire technique et critique de la philosophie. Paris: PUF, 1947, p. 290.         [ Links ]
12 Cf. F.J.J.Buytendijk. Phénoménologie de la rencontre. Trad. Jean Knapp. Paris: Desclée de Brouwer, 1952. Ver ainda: C. A. F. Silva, "A dança da vida: Buytendijk e a fenomenologia do encontro". In: Revista Estudos Filosóficos, v. 13, 2014, p. 73-86. (NT).
13 Literalmente: "toda mulher está em seu útero". Trata-se do clássico princípio escolástico no qual havia a convicção de que as mulheres eram, por natureza, destinadas, exclusivamente, à maternidade. Esta ideia, reprisada por Napoleão Bonaparte – nos termos de que "a mulher nada mais é que seu útero" – e por todos aqueles que se recusavam aceitar o lugar social das mulheres para além dos limites do espaço privado, passa a ser desconstruída por trabalhos como os de Simone de Beauvoir e, no caso, como vemos aqui, de Buytendijk. (NT).
14 J.J. Rousseau. Nova Heloísa, III Parte, Carta XV. In: Obras completas. (t. IV) Paris: Hachette, p. 231.         [ Links ]
15 H.Nahas. La femme dans la littérature existentialle. Paris: PUF, 1957.         [ Links ]
16 Lehrman.
17 O comportamento dito "maternal" dos ratos. In: Union internal des sciences biolog., section de psychol. Réunion Bruxelles, 1957, éd. Impr. Mod. Agus, 1958.         [ Links ]
18 Sylvia Brody. Patterns of mothering. New York: International Universities Press, 1956, p. 376.         [ Links ]
19 Simone de Beauvoir. Le deuxième sexo (I). Paris: Gallimard, 1949, p. 85.         [ Links ]
20 Veja, a esse propósito, o instrutivo texto de Buytendijk, "Le corps comme situation motivante". In: La motivation. Paris: PUF, 1959, p. 9-34.         [ Links ] Em castelhano: "El cuerpo como situacíon motivante". In: La motivación. Tradução de Dora Douthat y Della Lerner. Buenos Aires: Proteo, 1969, p. 17-41. (NT).         [ Links ]
21 T. Fletcher. Instinct in man. London: Allen & Unwin, 1957, p. 272.         [ Links ]
22 A. Audeoud-Naville. Ève et l'arbre de la connaisssance. Genève: Mont-Blanc, 1947, p. 113.         [ Links ]
23 Alphonse De Waelhens. Existence et signification. Louvain-Paris: Nauwelaerts, 1958, p. 210.         [ Links ]
24 Alphonse De Waelhens. Op. Cit., p. 206.
25 Essa redação se encontra aplicada à corporeidade tal como em M.Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945, p. 171.         [ Links ]
26 G.Madinier. Conscience et signification. Paris: PUF, 1953.         [ Links ]
27 H. Kunz. Die Agressivität und die Zärtlichkeit. Bern: Francke, 1946.         [ Links ]
28 A. Burloud. Principes d'une psychologie des tendances. Paris: Alcan, 1938.         [ Links ]
29 Alain. Les idées et les ages. Paris: Gallimard, 1927, p. 237.         [ Links ]
30 J. Lacroix. Les sentiments et la vie morale. Paris: PUF, 1952, p. 35.         [ Links ]
31 L. Lavelle. Traité des valeurs (I). Paris: PUF, 1951, p. 211-218.         [ Links ]
32 G. Madinier. Conscience et amour: essai sur le 'nous'. Paris: PUF, 1938, p. 95.         [ Links ]
33 L. Binswanger. Grundformen und Erkenntnis menschlichen Daseins. Zürich, 1942, p. 153.         [ Links ]
34 R. Guardini. Notizen zu einem Bilde von Dantes Persönlichkeite. Schildgenossen, 18, 1939, p. 229.         [ Links ]
35 Alina. Op. Cit., p. 239.
36 Eugène Minkowski. "Co-existence et co-devenir". In: Rencontre, contributions à une psychologie humaine. Utrecht: Spectrum, 1957, p. 305.         [ Links ]
37 Ver a crítica de Ludwig Binswanger sobre a ideia de "homo natura" de Freud em L'évolution psychiatrique, 1938, p. 3-34.         [ Links ]

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