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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.23 no.3 Goiânia dez. 2017

 

TEXTOS CLÁSSICOS

 

A criança. A primeira empatia

 

 

Edmund Husserl

(1935)

 

 

O primeiro actus2 - qual é sua "base"?3 O eu já tem o "horizonte de mundo" - o horizonte originário começa onde o horizonte humano nasce implicitamente, do mesmo modo em que no começo originário da temporalização o horizonte de temporalização já está implicado como temporalização, encontrando-se implicado em uma temporalização sempre nova e, assim, tudo é implicado, em seu lugar, por tudo que é antecedente a si mesmo.

O horizonte originário, a massa hereditária é, em seu sentido originário, um horizonte vazio4. A primeira hylé, aquilo que afeta primeiramente [primeira afecção], torna-se aquilo que é apreendido5 [conhecido] primeiramente; essa é, em uma primeira virada, o tema primeiro enquanto o primeiramente preenchido [conhecido].

O eu antes desse despertar, o "pré-eu"6, o eu não ainda vivente, já possui, todavia, a seu modo, um mundo prévio, um mundo extemporâneo7-8, "dentro" do qual ele é não-vivente9, para o qual ele ainda não foi desperto. O pré-eu é afetado, recebe da [experimenta a]10 hylé como primeira plenitude, primeira participação no mundo dos sujeitos egóicos vivos, despertos, que já estão em relação viva uns com os outros e com os quais este eu forma, por isso mesmo, um primeiro vínculo nascente: ele tem os pais e estes últimos estão dentro de uma comunidade total de "eus" viventes imersos na temporalidade histórica total a qual pertencem. Os viventes despertam os não-viventes.

A criança originária; primordial11 - De que modo [po-demos entender que]12 como um "eu" se direciona como uma polaridade em direção a seus primeiros dados, em que consiste seu habitus "instintivo"? A criança dentro da carne materna13 já tem [605] cinesteses e suas "coisas" por meio de uma mobilidade cinestésica - ela já possui uma primordialidade se formando em estado originário.

A criança real14 - o recém-nascido15. De que modo o bebê, como eu de seus dados, é constituído para si mesmo por estes dados tanto quanto é afetado por eles e pelos atos egóicos16? Ele já é um eu em um estado mais elevado, superior, que produz experiência, ele já adquiriu experiência desde sua existência na carne materna, ele já tem suas percepções com um horizonte de percepção. Além disso, ele possui dados de um novo tipo, contrastes em seu campo de experiência sensível; novos atos, novas aquisições sobre o fundo daquilo que foi adquirido previamente, ele é um eu de hábitos superiores, mas sem reflexão sobre si, sem temporalidade formada, sem re-lembranças17 disponíveis, presente fluido entre retenção e protensão. Edificação de "coisas" primordiais, edificação da carne primordial, cada um dos órgãos individuais singulares, em mobilidade de modo cinestésico. A mãe como unidade corporal primordial? Está indo muito rápido. Formação de unidades isoladas em motivação cinestésica. Formação tardia de todo um campo de percepção de identificação móbil do ato de reconhecer, embora sem a repetição da lembrança estar formada. A mãe como unidade visual e tátil - transformação de "imagens sensíveis" relacionadas a certos aspectos principais - mas uma unidade motivada de uma maneira que não é simplesmente cinestésica.

A criança deseja a mãe em seu "aspecto" normal no qual se satisfazem as necessidades originais da criança, ele grita sem vontade, o que frequentemente "produz um efeito". É somente bem tarde que a criança tem um espaço entre os corpos espaciais e tem a mãe como corpo em seu campo espacial. A primeira mãe como o que há de idêntico, de reconhecido e como "premissa" para a satisfação do desejo; quando ela vem e está aí, então a satisfação se produz. Não há ainda nenhuma empatia (Einfühlung). O que há de instintivo na relação da carne própria, desde os órgãos próprios já constituídos, os lábios, no discurso, os olhos e os movimentos dos olhos, etc. até os movimentos dos lábios e a fala da mãe, etc. A carne estranha como carne e empatia (Einfühlung).

A primeira empatia (Einfühlung) - Dificuldades em compreender quando ela ocorre, mesmo depois que a carne já é constituída como um órgão e que, também já, a função dos órgãos de sentido está constituído para as coisas externas. A carne materna, as mãos maternas, se aproximam e se afastam de mim quando vão se ativar em seu espaço, etc. A primeira possessão da carne própria, do espaço exterior de coisas, seja quando estão de repouso ou quando se movem, por meio das cinestesias da carne, por meio do funcionamento de seus órgãos. O eu oculta-se quando não é tematizado como eu. Mas, ele é o centro do afeto e da ação, da identificação, da possibilidade. A repetição no outro, a síntese - o mesmo mundano. O mesmo corpo de carne do outro em sua primordialidade e na minha. A conexão eu-tu. Se vincular pelos atos, a síntese dos centros egóicos. O falar, o nominar das coisas comuns. Os signos, produtos pelos quais os outros as reconhecem, de modo que sejam compreendidos desde si mesmos como comunicações de um agir próprio, de um querer especialmente dirigido a eles. Anteriormente, indução, uma coisa recorda a outra em [606] certas circunstâncias, em seguida a produção involuntária de tais lembranças; em particular, sons proferidos originalmente de modo involuntário, como despertares indutivos, referências a processos, às significações subjetivas por meio dos quais se apresentam, etc.

Troca - vínculo pela comunicação, tendo nela e com ela os seus pressupostos, os nomes para as coisas comuns - sem empatia (Einfühlung).

Os nomes para os humanos. A criança aprende com a mãe a compreender os sons proferidos como referências, como signos dirigidos a qualquer coisa designada.

Talvez, algo a considerar: a criança pronuncia involuntariamente sons em uma cinestesia involuntária, ela as repete, produzindo involuntariamente sons semelhantes, aprende a querer repetir todos seus sons (empregados, ademais, na generalidade) e os produzir de maneira arbitrária. As cinestesias possíveis pertencem a seus sons. Mas a mãe pronuncia de seu lado sons parecidos, desde o início, uma imitação dos sons infantis. A criança os ouve, mas os possui sem as cinesteses às quais pertence, que são despertadas por associação, mas que não estão presentes ao mesmo tempo, ao invés disso, há cinestese-zero, a partir da qual começa a produção. A criança se repete - a mãe também - qual papel esta repetição poderá ter?

Os nomes têm18 antes de mais nada [como]19 pressuposto um mundo objetivo. A criança aprende a compreender o que quer dizer mamãe, papai, etc., e a que estes nomes se referem; ela aprende a compreender que um nomeia o outro, que um chama o outro, como a criança chama a mãe, quer qualquer coisa dela e a obtém, faz a experiência da sua recusa, etc. Os outros não se chamam uns aos outros por nomes dentro de sua relação entre si, mas [o fazem]20 em relação à criança, eles se nomeiam uns aos outros pelos nomes de "mamãe", "papai", etc.

Como nomes, a criança aprende primeiro "mamãe", "papai" etc. A mãe não diz à criança "já estou indo", "eu levo isto", mas "mamãe já vem", "mamãe leva". Como a criança vem a dizer "eu" - a compreender o "tu" quando lhe falam, compreender o "ele", o "nós", o "vós" - os pronomes pessoais, quando os seres que o rodeiam, não lhe falam a ele, mas entre si, utilizando os pronomes pessoais? A isto se acrescentam todas as palavras que remetem a nomeação do que é pessoalmente orientado, o "aqui" e o "agora", o "próximo" e o "distante", "direita" e "esquerda", etc. (a partir de mim, a partir de nós, a partir de um passado, etc.), o "presente", o "passado", o "futuro" - todas as palavras subjetivamente relativas como tais, em todas suas relações graduais que pertencem à subjetividade, portanto que fazem em definitivo o mundo circundante [um mundo]21 histórico, o mundo circundante como presente e como nosso, o mundo circundante como passado, etc, o mundo circundante como aquele dos homens estranhos, etc.

[607] Aqui, a fenomenologia do subjetivo - do objetivo (do relativamente objetivo) deve ser percorrida em suas maneiras subjetivas de aparecer, nos modos que o sujeito tem de se presentar e que tem o outro de se presentar diversamente, de maneira correspondente (ao que pertencem todas as orientações espaço-temporais).

Eu, em minha vida fluida, em minha consciência fluida de mundo, em minha atividade contínua, em minha praxis que é praxis mundana para aquele que é maduro - praxis no mundo que é para ele sempre permanente, mas que está em mudança nos modos dos dados. Minha vida, minha vida de validade, de validades dotadas de sentido, a aquisição pela atividade, alcançando sempre mais uma vez com o sentido, análise - reativação dos atos dotados de um horizonte de ação, etc. O que há de mundano em minha vida, em minha vida os outros homens e eu como homem pertencente ao mundo. Cada entidade real [tem]22 para mim em minha vida validade dentro de cada modo seja qual for, em um horizonte de validade do mundo que é para mim um horizonte atual a cada vez. Minha ação, toda minha atividade relacionada ao ente, mas ela se realiza na atividade de intencionar e de ter um efeito puramente no encadeamento subjetivo.

O ôntico como unidade dos modos onticamente subjetivos, os modos subjetivos de dados, com o núcleo de experiência no qual eu faço a experiência, a experiência possível quanto aos encadeamentos, com as direções ativas, os objetivos visados e as modalidades do objetivo atribuído, que tem por objetivo a experiência, a autodoação, o preenchimento, a concordância. Os outros, já homens, já objetivos. Mas sujeitos de sua vida, de sua atividade, de suas validades e de seus objetivos atribuídos, por meio de modos fluentes de aparição como aquelas dos objetos - os mesmos que as dos outros em seus modos de aparição têm em validade, têm por objetivos e que eu tenho eu mesmo.

Eu atuo, eu penso, eu em minha atividade - minha atividade em ligação com aquela dos outros. Ligação fundamental da experiência, dentro da qual [é feita a experiência]23 do mesmo objeto como aquele de meus modos de aparição e dos modos estranhos de aparição, de minhas validades de ser e das validades de ser diversas, que aqui estão em relação uns com os outros (eu nos outros, os outros em mim enquanto realização de uma co-validade, vínculo do eu e do tu); vínculo na mudança do agir, acordo prático, conflito prático; bloqueio prático de um pelo outro, percurso prático produzindo um novo objeto transformado que é todavia, no entanto, objeto para todos. Caractere de significação para mim, caractere de significação para muitos, para todos, mas em relação aos sujeitos. No interior da comunidade.

O mundo das coisas, os homens (e os animais), a intersubjetividade como correlato da objetividade - antes da objetivação dos homens. Os homens como objetos para cada um. Os homens em seus modos de aparição - cada um tem dos outros seus modos de aparição respectivos. Cada homem é objeto no modo segundo o qual seus modos de aparição de homens, assim como as coisas, lhe pertencem também objetivamente. No intrincamento, uma infinidade, ao horizonte. Eu tenho o outro em meu modo de aparição, sua carne como corpo me aparece no horizonte dos modos primordiais de aparição, como substrato da empatia (Einfühlung), na qual o mesmo corpo aparece ao outro em seus modos particulares de doação como carne e como órgão. Mais longe: o outro tem um mundo circundante dentro de seus modos de aparição, aí compreendido eu como dentro de seu campo, e aparecendo em meus modos de consciência dele, tudo é incluído nesses modos de consciência, o que eu disse dele [608] é como que incluído em sua consciência. Precisamente isto continua assim mais adiante - uma "reflexão" recíproca infinita, que naturalmente não é nada mais que uma implicação intencional, uma iteração, que é uma potencialidade de estados de empatia (Einfühlung).

 

Referências bibliográficas

Allen, J. (1976). A husserlian phenomenology of the child. Journal of phenomenological psychology, 6, 164-179.         [ Links ]

Husserl, E. (1935). Das Kind, Die erste Einfühlung. In: Husserlina, Zur Phanomenologie der Intersubjektivität, Dritter Teil, Band XV.         [ Links ]

Husserl, E. (1993). L'enfant. La première Einfühlung. Alter, 1, 265-270. (Tradução de N. Depraz). (Manuscrito original de 1935).         [ Links ]

Perkins, P. A. (2011). El vínculo madre-hijo como suelo del destino. Contrastes. Revista Internacional de Filosofia, XVI, 313-329        [ Links ]

Sancipriano, M. (1965). L' "Urkind" di Husserl. Aut aut: Rivista di Filosofia e di Cultura, 86, 7-26.         [ Links ]

Toulemont, R. (1962). L'essence de la société selon Husserl. 1. ed. (P.-M. Schuhl, Ed.) Paris: Presses Universitaires de France.         [ Links ]

 

 

Nota Biográfica

O presente texto é uma tradução da versão francesa de um apêndice de EDMUND HUSSERL de 1935 sobre a infância, Das Kind. Die Erste Einfühlung, traduzido por Natalie Depraz. O texto traduzido por Depraz foi publicado em 1993, no primeiro número da revista Alter (Husserl, 1935/1993). Com o intuito de produzir uma tradução para o português que pudesse ser o mais fiel possível às ideias e ao texto de Husserl, foram utilizados outros textos de apoio que apresentam traduções, trechos e interpretações do manuscrito, a saber, Allen (1976), Perkins (2011), Sancipriano (1965) e Toulemont (1962). Ao longo do texto foram mantidas as paginações do original publicado no volume XV da Husserliana.
Tradução: Joanneliese de Lucas Freitas (Universidade Federal do Paraná)
Revisão Técnica: Vitor Chaves de Souza (Universidade Metodista de São Paulo). Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlândia)
1 Nota de Natalie Depraz: Este apêndice se encontra no volume XV da Husserliana, p. 604-608, e corresponde a dois extratos do manuscrito K III 11, p. 8 e p. 5-6, a página 5 do manuscrito correspondente às páginas 604 (l. 41) à 606 (l. 28) do apêndice, a página 6 às páginas 606 (l. 29) à 608, que se situa ao fim do apêndice. Estas duas páginas formam, portanto, uma unidade. Por outro lado, a página 8 do manuscrito (p. 604, ls. 22-40), localizado no início do apêndice, constitui o final do manuscrito. Agradecemos os Pr S. Ijsseling e R. Bernet dos Arquivos Husserl em Leuven de terem autorizado a publicação deste apêndice.
2 It [Atto proto-creativo]
3 Ger [Der erste Aktus - was ist seine "Unterlage?"]
4 Ger [Leerhorizont]
5 Literalmente "agarrado" (saisi) no texto francês
6 Fr [le moi préalable]; Ing [pre-ego]; Ger [das Vor-Ich]; It [pre-io]
7 Fr [inactuel]; Ing [non-actional]; Ger [inaktuelle]
8 Segundo interpretação de Allen (1972, p. 169) o termo "inaktuelle" refere-se a uma não operatividade do mundo para a Urkind.
9 Fr [non-vivant].
10 Inclusão minha.
11 Ing [Primal child]; Fr (Depraz) [l'enfant originaire]; Fr (Toulemont) [l'enfant premier]; It [proto-bambino]; Ger [Das Urkind]
12 Inclusão minha
13 Ger [Das mutterleibliche Kind]; Fr [L'enfant dans la chair maternelle]
14 Ger [das wirkliche Kind]; Fr [L'enfant emmailloté]; It [Il bambino effettivo]
15 Segundo interpretação de Toulemont (1962), o recém-nascido é o primeiro estágio posterior ao nascimento, onde acontece a "segunda infância" [zweite Kindheit], onde se encontra a "criança verdadeira" [das wirkliche Kind]. O segundo estágio, onde surge a empatia, temos a criança "mundana", propriamente "humana" [weltliches, menschliches Kind]
16 Ger [Ichaktien]
17 Fr [re-suvenirs]; Ger [Wiedererinnerungen]
18 Nota de N. Depraz: "Ont" (ter), correção simultânea de "são" (sont); de início havia, portanto, "os nomes são antes pressuposição do mundo objetivo"
19 A partícula "como" foi inserida por Depraz em sua tradução, segundo a autora, não constava do original.
20 Inclusão minha
21 Inclusão minha
22 Inclusão de N. Depraz.
23 Inclusão de N. Depraz.

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