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Revista da Abordagem Gestáltica

versión impresa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.24 no.1 Goiânia abr. 2018

http://dx.doi.org/10.18065/RAG.2018v24n1.2 

ARTIGOS: RELATOS DE PESQUISA

 

Sentidos das oficinas terapêuticas ocupacionais do CAPS no cotidiano dos usuários: uma descrição fenomenológica

 

Senses of CAPS therapeutic activities in the daily life users: a phenomenological description

 

Significados de las actividades terapéuticas de lo CAPS en la vida diária de los usuários: una descripción fenomenológica

 

 

Ondina Pena PereiraI; Ana Carolina Ribas PalmaII

IPossui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais, mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais, doutorado em Antropologia pela Universidade de Brasília e pós-doutorado em Psicologia Social na Université du Québec à Montreal. É professora adjunta da Universidade Católica de Brasília. Email: ondinapena@gmail.com
IIDoutoranda e Mestre em Psicologia pela Universidade Católica de Brasília (UCB), Especialista em Saúde Coletiva e graduada em Enfermagem pela Universidade Estadual de Minas Gerais (UNIMONTES). Email: carolenfermeira31@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é o de apresentar os resultados da investigação realizada no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade de Unaí, na qual se buscou conhecer a percepção dos usuários acerca dos sentidos das atividades terapêuticas ocupacionais em seu cotidiano, buscando o seu ponto de vista na constituição dos sentidos dessa participação. Pretende-se nele descrever fenomenologicamente o relato dos participantes. Além da observação empírica, essa pesquisa apoia-se em uma referência bibliográfica que evidencia o estatuto da loucura no mundo atual e a forma como a psiquiatria pretende tratá-la. Entre tais referências, está a história da loucura e do processo de transformação da loucura em doença mental, e como esta se tornou objeto do código médico. Os relatos dos participantes sobre suas vivências cotidianas da loucura evidenciam que eles têm muito a dizer sobre seu universo, assim como sobre a relação entre razão e loucura.

Palavras-chave: Sentidos; Fenomenologia; Oficinas Terapêuticas Ocupacionais; CAPS.


ABSTRACT

The objective of this paper is to present results of the research carried out at the Psychosocial Care Center (CAPS) of City of Unaí-MG, in which we sought to know the users' perception about meanings of occupational therapeutic activities in their daily life, seeking their point of view in the constitution of meanings of this participation. It intends to describe in it phenomenologically report of the participants. In addition to empirical observation, this research is based on a critical bibliographical reference regarding the status of madness in the present world and the way Psychiatry intends to treat it. Among such references is the history of madness as the process of transforming madness into mental illness, and how it became object of medical code. The participants' reports of their everyday experiences of madness, show that they have much to say about their universe, as well as about the relationship between reason and madness.

Keywords: Meanings; Phenomenology; Occupational Therapeutic Activities; CAPS.


RESUMEN

El propósito de este artículo es presentar los resultados de la investigación llevada a cabo em el Centro de Atención Psicosocial (CAPS) de la ciudad de Unaí, que tenía como objetivo conocer la percepción de los usuarios acerca de los significados de las actividades terapéuticas ocupacionales en su vida diaria, en busca de su punto de vista la constitución de los sentidos que la participación. El objetivo describir fenomenológicamente a los participantes. Además de la observación empírica, le apoyamos en una referencia bibliográfica en relación con la locura de estatus en el mundo de hoy y cómo la psiquiatría tiene la intención de tratarlo. Entre estas referencias, es la historia de la locura el proceso de transformación de la locura en la enfermedad mental, y cómo se convirtió en el objeto del código médica. Los informes de los participantes sobre sus experiencias diarias de mostrar la locura que tienen mucho que decir sobre su universo, así como sobre la relación entre la razón y la locura.

Palabras-clave: Siginificado; Fenomenología; Terapéutico talleres ocupacionales; CAPS.


 

 

Introdução

Este artigo pretende descrever fenomenologicamente o relato dos usuários do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Unaí-MG acerca dos sentidos das oficinas terapêuticas ocupacionais em seu cotidiano. Descrever os relatos dos usuários, nesta pesquisa, foi uma forma de buscar evidenciar sua percepção, e suas vivências em relação às atividades do CAPS desenvolvidas com eles, assim como evidenciar os conhecimentos que os sujeitos certamente possuem sobre sua condição, o que pode contribuir para melhorá-la.

Apoiamo-nos aqui em investigação realizada no citado CAPS, com o acompanhamento, observação e participação em 28 seções de atendimento, com a presença de 08 usuários e 02 profissionais. Além dessa base empírica, apoiamo-nos em uma referência bibliográfica crítica com relação ao estatuto da loucura no mundo atual, centrado no isolamento social, e a forma como a psiquiatria pretende tratá-la. Uma psiquiatria que pouco valoriza a atenção clínica biopsicossocial e enfatiza formas de isolamento e segregação social como recursos terapêuticos principais.

Entre tais referências, está a história da loucura tal como foi descrita e documentada por Foucault (1972), na qual o autor mostra o processo de transformação da loucura em doença mental, e como esta se tornou objeto do código médico. Foucault considera que a psiquiatria é o resultado de uma progressiva dominação e integração do louco à ordem da razão, efetuada pelas práticas institucionais. Assim, ao contrário das histórias tradicionais da psiquiatria, para o autor, não se trata de uma evolução do saber médico sobre a loucura, com uma possível descoberta da essência da loucura, mas sua inscrição na ordem disciplinar.

Dessa forma, ao entrar para o domínio médico, a loucura se tornou doença mental e nesta nova condição, passível de análise e exame, a pessoa "louca" torna-se objeto, podendo ser estudada e detida num internamento dito terapêutico, onde é ínfima a busca por tratamento clínico psicossocial, e onde são valorizadas a segregação e o isolamento social. Na sua nova condição asilar, a loucura passa a ser percebida como ordem interna ao sujeito, como uma alienação do sujeito ao mundo externo, e entra para a esfera de ação da psicologia. A loucura tornou-se produto da razão, que a define a partir de seus próprios referenciais.

Com essa mudança, a loucura não se define mais a partir de si mesma, não encontra mais o espaço de alteridade necessário para isso. Antes da sua objetivação em doença mental, a loucura era possível, pois o ambiente a sua volta permitia a constituição do sujeito como louco, uma vez que ele podia falar a linguagem de sua própria loucura. Frente a sua apropriação pela razão, a loucura tornou-se simplesmente doença mental.

Por muitos anos, a pessoa com diagnóstico de doença mental foi tratada em instituições que tiveram o isolamento como princípio terapêutico fundamental. A rigidez das regras e as excessivas medidas de segurança dessas instituições eram justificadas pela pretensa periculosidade dos considerados doentes mentais. Neste sentido, havia a necessidade de exclusão do louco, promovendo o afastamento do seu meio familiar, da sua comunidade e da sua vida, o que acirrava a alienação.

Contrariando a tradição de isolamento social nas práticas de convivência com a loucura, o CAPS utiliza estratégias e diretrizes alternativas com o intuito de promover a inclusão social do louco, propondo uma nova abordagem da loucura. A psiquiatria tradicional com seus métodos de classificação e normatização está focada na separação entre o "normal" e o "patológico", utilizando técnicas clássicas de segregação social e isolamento do louco.

Neste contexto de reinserção social e abordagem biopsicossocial, o CAPS oferece atividades terapêuticas ocupacionais que, segundo Brasil (2004, p. 20), constituem-se como uma "das principais formas de tratamento oferecidos nos CAPS". As oficinas terapêuticas ocupacionais são atividades realizadas em grupo com a presença e orientação de um ou mais profissionais e monitores. Os tipos de atividades realizadas nas oficinas podem variar conforme a disponibilidade técnica do serviço, interesse dos usuários, e outras necessidades.

De acordo com a proposta, as oficinas terapêuticas ocupacionais do CAPS podem ser expressivas, culturais, geradoras de renda, entre outras modalidades, e tem por objetivo fomentar uma maior integração social e familiar dos usuários, a manifestação de sentimentos e problemas, o desenvolvimento de habilidades corporais, a realização de atividades produtivas, e por fim o exercício coletivo da cidadania (Brasil, 2004).

A diferença entre as oficinas terapêuticas ocupacionais e as demais oficinas terapêuticas está na produção: ali valoriza-se a confecção de simples objetos, em uma produção individual, que se realiza, entretanto, dentro de um grupo, com o qual cada indivíduo partilha know-how e experiências de vida e de tratamentos. Nas demais oficinas terapêuticas podem ser valorizados outros elementos da relação terapêutica, tais como a expressão verbal, musical, corporal, entre outras atividades (Brasil, 2004).

No CAPS de Unaí-MG, as oficinas terapêuticas ocupacionais acontecem semanalmente, organizadas pela terapeuta ocupacional do serviço com o apoio da instrutora de artesanato. São atividades distribuídas em dois turnos que envolvem artesanato com argila, tecido, papel, tintas, colagens, pintura em tela, desenhos, entre outras atividades artesanais e terapêuticas. Frequentam as oficinas usuários de ambos os sexos, na faixa etária entre 18 e 65 anos, que receberam diferentes tipos de diagnósticos psiquiátricos de toda a equipe multiprofissional do CAPS.

A reorganização da assistência em saúde mental voltada para o novo paradigma da reforma sanitária tem no CAPS seu serviço terapêutico básico, e dentro dos CAPS encontram-se as oficinas terapêuticas que reúnem todos os objetivos de reinserção social e restauração da cidadania dos seus usuários. É nosso objetivo neste artigo verificar a percepção dos usuários acerca dos sentidos das atividades terapêuticas ocupacionais do CAPS em seu cotidiano, buscando sempre o seu ponto de vista. A relevância desse projeto está em enfatizar que são os usuários que sabem, porque experimentam, tudo aquilo da experiência que os mantém presos aos códigos ou, pelo contrário, tudo que os liberta e acata sua voz.

 

Materiais e métodos

Para esta pesquisa foi escolhido o método fenomenológico uma vez que a proposta fenomenológica se propõe a descrever os fenômenos da vida. A fenomenologia busca a captação da verdade em seu estado nascente, sempre reconhecendo que a verdade encontra-se dentro dos limites da perspectiva humana. Zilles (2012) afirma que para Husserl a fenomenologia é o método apropriado, que possui o rigor necessário para a luta contra o absolutismo do paradigma cientifico que empobrece os problemas humanos.

Husserl (2000) propõe a utilização do método fenomenológico sempre que se deseje pesquisar fenômenos. Conforme o autor, o método fenomenológico é apropriado sempre que se deseja destacar as experiências vividas dos indivíduos. O método enfoca fenômenos subjetivos, já que para o indivíduo verdades essenciais acerca da realidade são baseadas em experiência vivida. O autor afirma ainda que o importante é o fenômeno na forma em que se apresenta e não nossos pensamentos, leituras e deduções sobre ele. Aqui se encontra a noção de dar lugar à dimensão das vivências, pois é a partir dela que emerge o transcendental.

Segundo Husserl, fenomenologia não é sinônimo de fenomenismo no sentido de que tudo que existe seja apenas um fenômeno da consciência. A reflexão sobre os fenômenos da consciência é, entretanto, o ponto de partida para examinar os diferentes sentidos ou significados do ser e do existente à luz das funções da consciência. Através deste método pretende chegar a um fundamento certo e evidente do ser e de suas aparições. A tarefa da fenomenologia é, pois, estudar a significação das vivências da consciência. (Zilles, 2012, p. 17)

A fenomenologia se propõe a descrever o fenômeno, aquilo que aparece, que se manifesta ou se revela por si mesmo, incluindo sentimentos, pensamentos, desejos e vontades. O fenômeno é ao mesmo tempo um objeto que se refere ao sujeito e o sujeito relativo ao objeto. Não é produzido, é percepção. Para Amatuzzi (2001, p. 17), a pesquisa fenomenológica "pretende dar conta do que acontece, pelo clareamento do fenômeno." Para este autor, a pesquisa fenomenológica pretende construir uma compreensão de algo. Quando isto é feito com base numa análise sistemática de registros da experiência, ocorre uma pesquisa fenomenológica no sentido mais empírico do termo (Amatuzzi, 2001).

Neste trabalho, buscamos no relato dos usuários do CAPS a experiência intencional, vivida. Enquanto pesquisa fenomenológica, o relato foi tomado na sua intencionalidade. Para tal, permanecemos ativas no campo, como interlocutoras presentes que solicitavam e acolhiam. Amatuzzi (2001) afirma que na pesquisa fenomenológica o pesquisador pode atuar como facilitador do acesso ao vivido. O acesso ao vivido durante os relatos foi facilitado pelas pesquisadoras através das conversas durante as oficinas terapêuticas. Assim, atuamos nas oficinas, através de conversas, estimulando os usuários do CAPS no retorno a sua experiência concreta.

O município de Unaí-MG está localizado na região noroeste do estado de Minas Gerais, com uma população de aproximadamente setenta (70) mil habitantes, possui uma rede assistencial de saúde com gestão prioritariamente municipal. O município conta com uma unidade hospitalar municipal, quatorze unidades básicas de saúde, um núcleo de apoio à saúde da família, um núcleo de especialidades médicas, e uma unidade do centro de atenção psicossocial (CAPS).

O local para realização do trabalho de campo desta pesquisa foi o Centro de Atenção Psicossocial de Unaí-MG, situado na Av. Transamazônica, 395, bairro Divinéia. Esta unidade foi escolhida porque funciona conforme as normas preconizadas pelo Ministério da Saúde para atendimento de transtorno mental em CAPS, além de ter sido o local onde puderam ser encontrados os participantes desta pesquisa. Esta unidade funciona com equipe multidisciplinar, no período de doze horas diárias, em regime de demanda espontânea.

As oficinas terapêuticas ocupacionais na unidade do CAPS em Unaí acontecem de segunda a sexta-feira, nos turnos matutino e vespertino, sob responsabilidade da Terapeuta Ocupacional e da instrutora de artesanato. Nas oficinas os usuários são distribuídos por afinidade com a atividade a ser desenvolvida, por objetivos terapêuticos, e/ou por avaliações da equipe multidisciplinar. São realizadas ali atividades de pintura, bordado, produção de objetos artesanais, entre outras atividades ocasionais.

As oficinas do CAPS Unaí são destinadas à participação de adultos de ambos os sexos, oriundos do município de Unaí. Nas oficinas podem ser atendidos os usuários que solicitam a terapêutica ocupacional, os encaminhados por outros profissionais do CAPS, e os selecionados pela terapeuta ocupacional durante os atendimentos individuais.

Oito usuários frequentam as oficinas terapêuticas ocupacionais regularmente. São seis mulheres e dois homens. A faixa etária dos colaboradores da pesquisa variou entre 31 e 52 anos de idade. A renda média dos pesquisados variou em torno de um a dois salários mínimos. Todos receberam diagnóstico médico psiquiátrico e fazem tratamento no CAPS Unaí.

Os participantes dessa pesquisa foram oito (8) usuários do CAPS Unaí selecionados entre os frequentadores dos grupos nas oficinas terapêuticas ocupacionais. Foram selecionados os usuários que apresentaram disposição em participar da pesquisa e estavam presentes nos encontros do grupo. Foram selecionados os usuários que mais frequentam as oficinas conforme os registros da terapeuta ocupacional, que apresentaram interesse e disponibilidade em participar do estudo, observando os critérios de inclusão e exclusão dos participantes, e sempre respeitando os preceitos éticos em pesquisa da resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Todos os participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Esses documentos de consentimento, assinados, foram arquivados pelas autoras para possíveis consultas posteriores. Para que este trabalho tenha sido realizado no CAPS Unaí foi solicitada uma autorização prévia da coordenadora da unidade. Esse trabalho foi submetido ao comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Católica de Brasília e aprovado sob o número de protocolo de aprovação 14745513.3.0000.0029.

Para exposição dos resultados desta pesquisa nomeamos ficticiamente os participantes com o intuito de garantir o seu anonimato.

Entre os participantes dessa pesquisa verificou-se que a maioria dos usuários do CAPS que frequentam as oficinas terapêuticas ocupacionais são do sexo feminino, cor parda, com tempo de tratamento terapêutico em média de oito (08) anos, apresentam diagnósticos médicos variados, residem com familiares, já se submeteram a internações hospitalares psiquiátricas, fazem uso de diversos medicamentos psicotrópicos, frequentam outras atividades terapêuticas no serviço, não possuem independência financeira, não são trabalhadores formais. Nessa pesquisa optou-se pela técnica de observação participante:

A técnica de observação participante se realiza através do contato direto do pesquisador com o fenômeno observado para obter informações sobre a realidade dos atores sociais em seus próprios contextos. O observador, enquanto parte do contexto de observação, estabelece uma relação face a face com os observados. (Minayo, 2004, p. 59)

Através da observação participante, acompanhamos as reuniões dos grupos de usuários do CAPS nas oficinas terapêuticas ocupacionais, entre 01 de maio e 30 de junho de 2013. Foram encontros diários, com três horas de duração em média, em que foram registrados os relatos dos usuários durante as oficinas, bem como as atividades realizadas e a interação geral do grupo. O registro no diário de campo contemplou todas as atividades do grupo durante o período pesquisado.

Cada encontro do grupo reúne oito (08) participantes em média. Estes usuários foram acompanhados durante o período de dois meses, enquanto participamos como observadoras das oficinas nas quais conduzimos conversas com os participantes sempre direcionadas conforme os objetivos da pesquisa.

A observação participante ocorreu da seguinte forma: uma das autoras permaneceu junto aos usuários ao longo dos encontros das oficinas terapêuticas ocupacionais do CAPS Unaí. A pesquisadora chegava ao inicio da reunião do grupo e participava do grupo acompanhando as atividades até o fim. Durante a reunião do grupo foram registrados, em gravador, os áudios das conversas dos participantes das oficinas, enquanto os usuários realizavam suas atividades ocupacionais. Todas as suas conversas em grupo foram registradas em gravador e posteriormente transcritas. Foi registrado, também, um diário de campo com as observações das pesquisadoras acerca das posturas dos membros do grupo.

Após a fase de observações e conversas, as gravações foram atentamente escutadas e transcritas na íntegra, dando-se início à fase de análise dos relatos. Houve uma releitura do material registrado, das anotações de campo, e organização dos registros da observação. Os relatos foram reunidos para análise onde foram descritos os sentidos das oficinas terapêuticas para os usuários do CAPS.

 

O caps e seu funcionamento

Nos CAPS, os usuários são assistidos em regime de atenção diária. O tratamento acontece através de atendimentos individuais e em grupos, e oficinas terapêuticas que buscam a inclusão social, através do desenvolvimento da cidadania. Cada usuário que chega ao serviço é acolhido por um profissional e, em equipe, é traçado um plano terapêutico que visa a atender as necessidades do tratamento (Minas Gerais, 2007).

Conforme Portaria GM/336/02, o CAPS oferece as modalidades de atendimento: Atendimento Intensivo (diário, para sofrimento psíquico grave, em crise ou dificuldades intensas no convívio social e familiar); Atendimento Semi-Intensivo (o usuário pode ser atendido até 12 dias no mês); Atendimento Não-Intensivo (até três dias no mês); todos estes atendimentos também podem ser domiciliares (Brasil, 2004).

Dependendo da modalidade de atendimento, os CAPS podem atender durante o dia e a noite. Espera-se que sejam um ambiente terapêutico e acolhedor, para inclusão de indivíduos em situação muito desestruturada e que não consigam, naquele momento, acompanhar as atividades organizadas da unidade. O sucesso do acolhimento do indivíduo em situação desestruturada é essencial para o cumprimento dos objetivos de um CAPS, que é o de atender aos portadores de sofrimento psíquico grave e evitar as internações (Brasil, 2010).

Os CAPS oferecem diversos tipos de atividades terapêuticas, por exemplo: psicoterapia individual ou em grupo, oficinas terapêuticas, atividades comunitárias, atividades artísticas, orientação e acompanhamento do uso de medicação, atendimento domiciliar e aos familiares (Brasil, 2005).

Há no CAPS o intuito de proporcionar aos usuários um atendimento biopsicossocial completo, incluindo todas as terapias que podem contribuir na assistência. No CAPS os grupos de terapia ocupacional se constituem em torno de atividades compartilhadas, em propostas sugeridas por Terapeuta Ocupacional ou escolhidas pelos próprios integrantes. Nesta participação ativa os usuários podem ter uma aproximação do processo como um todo, inteirando-se das dinâmicas vivenciadas (Minas Gerais, 2007).

Uma das atividades realizadas no CAPS é a terapia ocupacional. A terapêutica ocupacional foi formalmente instituída por Hermann Simon na década de 1920 e, após algum tempo de desvalorização e esquecimento, foi redescoberta e amplamente utilizada. Atribuir um papel terapêutico ao trabalho ajudou a retirar indivíduos da posição passiva de doentes e permitiu às pessoas assumir um papel ativo na sua recuperação.

No Brasil, a pioneira neste tipo de terapêutica foi a médica Nise da Silveira que trabalhou no Centro Psiquiátrico Pedro II em 1946. A psiquiatra considerava as terapias vigentes na época muito agressivas para o tratamento dos transtornos mentais. Escolheu a terapia ocupacional como tratamento, pois entendia que em um ambiente cordial, com monitor sensível, os pacientes poderiam expressar suas vivências utilizando a pintura, o desenho e a escultura. (Rocha, 2005) Nise da Silveira considerava a terapêutica ocupacional essencial para "criar oportunidade para que as imagens do inconsciente e seus concomitantes motores encontrassem formas de expressão" (Silveira, 1981, p. 13).

Nise da Silveira acreditava que a pintura e a modelagem tinham valor terapêutico em si, na medida em que davam forma a emoções, promovendo forças autocurativas. Naquele período, Nise da Silveira desenvolveu diversas pesquisas no campo da saúde mental incluindo pesquisas sobre o efeito devastador da cirurgia de lobotomia (comum na época) sobre a criatividade. Entretanto, a despeito dos bons resultados de suas atividades, para muitos psiquiatras daquele período a terapia ocupacional não tinha valor algum no tratamento dos pacientes (Guerra, 2008).

A maior influência sobre Nise da Silveira foi a obra do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. A terapia por meio da arte, na perspectiva do suíço, tem por objetivo instrumentalizar a formação de símbolos pela energia psíquica em diversas produções, ativando a comunicação entre o consciente e o inconsciente. Assim, as produções artísticas possibilitam a expressão das sensações, percepções e sentimentos. Posteriormente, sob a influência do movimento de Reforma Psiquiátrica, diversos serviços resgataram as atividades ocupacionais, por meio da organização de grupos de trabalho, formados por diferentes profissionais, que criaram seu próprio modo de trabalhar. Estes serviços ofereciam atendimentos individuais e grupais, acompanhamento medicamentoso, atividades recreativas e expressivas. Inicialmente, as oficinas abertas propiciavam aos usuários o livre contato com os materiais disponíveis: papel, tecido, tinta, argila e outros. A concepção desses espaços abertos de expressão de vivências foi fortemente influenciada pela experiência de Nise da Silveira (Rocha, 2005).

Atualmente, no CAPS, as atividades nas Oficinas de Terapia Ocupacional (TO) tornaram-se meios de expressão e comunicação não verbal. Estes espaços proporcionam um ambiente de produção significativa, articulando a subjetividade ao mundo real e concreto. Durante o trabalho de terapia, o indivíduo tem a possibilidade de entrar num movimento de organização e reorganização interna constante, através da visualização de dificuldades e manifestações das possibilidades que se dão no âmbito do afeto e da ação. O intuito da TO não é o simples aprendizado de técnicas e aprimoramento de habilidades. A execução de atividades terapêuticas proporciona outras experimentações de estar no mundo tornando o indivíduo um agente de sua própria saúde (Bettarello, 2008).

 

Os sentidos das oficinas terapêuticas no cotidiano dos usuários

A seguir, os elementos comuns, invariantes, presentes na maioria dos discursos foram agrupados em busca de uma sistematização dos relatos. Para Amatuzzi (2001), ocorre neste momento da pesquisa um trabalho de separação e construção conceitual, com o intuito de buscar uma estrutura geral do vivido.

O sentido de afastamento da dor cotidiana: não pensar em nada

O grupo terapêutico ocupacional do CAPS é considerado um refúgio para a maioria dos usuários. Eles afirmam em seus relatos que percebem a oficina terapêutica ocupacional do CAPS como um lugar de afastamento da rotina diária, um lugar para ocupar a mente e ao mesmo tempo não pensar em nada:

Iara: Aqui é bom demais, nossa! Tem dias que eu venho para cá e ai eu me esqueço de tudo, de tudo, de tudo... Eu estando aqui, fazendo estes trabalhos aqui, eu não me lembro de nada! É bom demais! Aqui não penso em nada! A gente não pensa nada ruim, de jeito nenhum.

Alberto: Aqui é bom para não pensar em nada. A gente ocupa o tempo da gente. Às vezes é bom para a gente não ficar pensando, sabe?! Coisas que aconteceram lá atrás e a gente só fica pensando, às vezes...

O sentido de não pensar em nada é o de se afastar da dor decorrente de pensamentos ruins, negativos. Nas oficinas do CAPS, em Unaí, os usuários tentam não pensar em nada ocupando a mente com as atividades artesanais e conversas do grupo. Os usuários buscam um distanciamento dos pensamentos causadores de dor, tristeza ou sofrimento. Eles buscam esquecer os problemas cotidianos, evitando pensar no passado, nas experiências de sofrimento que vivenciaram e que ainda são causadoras de sofrimento. Um momento em que as experiências tristes da vida, ao serem provisoriamente esquecidas, podem ser retomadas para ganharem significados diferentes, potencializados pela vivência de criação.

Ocorre ali um afastamento da rotina, a busca de um lugar alternativo de contato com o outro sem ter que se submeter a um olhar de discriminação. As oficinas são consideradas refúgios, lugares seguros. Nas oficinas, o usuário sente-se livre para dar visibilidade a sua potência de indivíduo criador. A oficina se apresenta como um espaço de escuta e acolhimento das individualidades. Há uma busca pela liberdade de expressão e um afastamento da banalidade de ser. O contexto grupal terapêutico do CAPS de Unaí deixa aberta aos usuários a possibilidade de experimentar novas formas de se relacionar, que trazem novos sentidos e significados ao seu cotidiano.

Sentido de troca de experiências e apoio mútuo

A dinâmica de funcionamento da oficina de terapia ocupacional do CAPS é peculiar. Nas oficinas os participantes conversam enquanto elaboram trabalhos artesanais e cada usuário coloca assuntos diferentes em pauta. Então, todos os membros do grupo participam da conversa, colocam suas ideias e propõem soluções para os problemas uns dos outros. Os usuários compartilham experiências vivenciadas no cotidiano bem como as soluções possíveis para problemas comuns a todos.

Gabriela: Ah, não! De forró eu não participo não! Não sei nem por onde começa! Eu chego lá eu não tenho nem assunto no tal do forró!

Abigail: Mas, tem que sair também! Passear... Por que aí, minha filha, você melhora. Vixe! Você melhora muito!

Neusa: Quando eu fico em casa, Deus me livre, é a mesma coisa de ficar dentro de uma prisão!

Abigail: Tá chegando minha hora! A Isadora (artesã) vai ter que me ensinar isso aqui quinhentas vezes! Minha mão atrapalha o movimento!

Neusa: Não é difícil, não!

Abigail: Mas você tem as duas mãos normais, eu não tenho!

Gabriela: É bonito, mas é complicado!

Artesã: Este pontinho é mais fácil!

Gabriela: Mais fácil? Deus me livre!

Abigail: O problema aqui dona Roberta (Terapeuta Ocupacional) vai ser trançar!

O espaço de troca se abre nas oficinas terapêuticas onde o grupo se reúne para realizar atividades artesanais e descobre habilidades sociais que vão muito além de técnicas artesanais ou processos de produção de objetos. Aqui há um sentido de compartilhamento, apoio mútuo e troca constante. As conversações entre eles instauram relações de afeto que trazem alegria e fortalecem as pessoas. A convivência com o outro se apresenta como uma experiência prazerosa e enriquecedora. O convívio se torna um importante catalisador do processo terapêutico proposto nas oficinas.

Neste grupo os usuários compartilham suas experiências e trocam sugestões com os demais participantes. O espaço favorece as trocas tornando-se um ambiente terapêutico onde o profissional assume papel coadjuvante e o usuário papel central no apoio ao outro. Para Barbosa (2012), nas oficinas se fala de coisas tristes, de impasses, de dificuldades, mas sempre de forma leve. Isto não significa que se deixa de dar a devida importância às falas do outro e de se encaminhar devidamente as questões colocadas. Este autor afirma ainda que:

Desse modo conseguimos nos aproximar de outras facetas das pessoas ali presentes, pois elas contam histórias corriqueiras, banais, algo que não está diretamente baseado em seu problema de saúde mental que as faz estar em um CAPS. Assim nós lembramos que os usuários do CAPS são pessoas que se viram e, na grande parte das vezes, se viram muito bem, quando estão fora do circuito de instituições de saúde mental, quando não estão protegidos, nem tutelados, nem preservados e nem presos. (Barbosa, 2012, p. 19)

Cada usuário expressa sua individualidade no grupo. Por meio de histórias corriqueiras, cotidianas, são acessados sentimentos mais profundos e memórias dolorosas. Não sendo acessados e expressos de forma direta, esses conteúdos comparecem de forma a não adquirirem o tom grave do sofrimento que afastaria o usuário da proposta terapêutica do grupo. De forma alusiva, às vezes de forma lúdica, os conteúdos vêm à tona e podem ser trabalhados sem produzir grandes ameaças.

Ocorre aqui também a dimensão de aproximação da complexidade de ser de cada indivíduo, com o desenvolvimento de um olhar voltado para a multiplicidade de cada usuário, como pessoas em sua multidimensionalidade. As características individuais são respeitadas e valorizadas com um olhar para além do diagnóstico.

O sentido de aprendizado

Segundo os usuários, a oficina terapêutica representa não só um espaço de encontro e convivência, mas também de aprendizado. Na medida em que podem aprender algumas atividades artesanais e receber orientações de profissionais mais experientes nas tarefas. E há também uma troca entre os participantes, onde todos aprendem entre si. O sentido do aprendizado está presente na maioria dos relatos:

Alberto: Então isso aqui é bom por causa disso: distrai e passa o tempo. E a gente aprende a fazer alguma coisa também.

Álvaro: Eu fiz um bocado de pintura aí! Eu faço pra aprender. Aqui tem muita gente pra me ensinar.

Iara: Eu gosto de aprender. Tem gente que não gosta de aprender, de jeito nenhum! Eu tudo que vejo os outros fazerem eu quero aprender.

Gabriela: Porque nós temos que estar aqui para obedecer, para aprender. Tem coisas que às vezes a gente enxerga de outra forma. Como as pessoas que estão aqui são profissionais, elas têm que ter o direito de corrigir a gente, explicar, ensinar...

Apesar da posição visivelmente subalterna de Gabriela em relação aos profissionais, trata-se aqui também de expressar nitidamente uma posição no mundo, para que lhe seja permitido mostrar como "enxerga de outra forma". E isso talvez seja a mais importante das conquistas da aprendizagem: aprender a simplesmente ser singular, sem atenção a hierarquias. De qualquer forma, as oficinas são um espaço de aquisição de novos conhecimentos e habilidades, que podem ser utilizados em seu cotidiano. Eles acreditam que podem aprender um novo ofício e assim alcançar uma colocação no mercado de trabalho e na comunidade, pois esperam realizar trabalhos artesanais que possam ser valorizados. Acreditam que, ao aprender artesanato nas oficinas, terão novos papeis na comunidade a que pertencem.

Ocorre aqui um sentido de busca de pertencimento, isto é, por novo papel na comunidade. Marzano & Sousa (2004) afirmam que o CAPS é um lugar que possibilita mudança de vida, o que está de acordo com o relato dos usuários. Para estes autores, os usuários consideram que o CAPS abre possibilidades de dar sentido a sua vida e conquistar sua cidadania. Uma ocupação pode ser entendida como uma experiência individual, marcada pela singularidade e especificidade. É uma experiência construída pessoalmente, não reproduzida. Para Villares (1999), ocupação é um evento subjetivo que ocorre numa dimensão percebida de tempo, espaço e condição cultural e social. A ocupação é uma experiência única naquele momento específico, afirma Villares (1999).

Na mesma linha de pensamento, Ballarin (2007) considera importante que os interesses e desejos dos usuários sejam objeto de atenção nos atendimentos de terapia ocupacional. Para tanto, os profissionais precisam direcionar sua atenção e percepção para realização de uma leitura que leve à compreensão da singularidade do sujeito (Ballarin, 2007).

A tecnologia utilizada em intervenções terapêuticas ocupacionais deve ser dirigida à compreensão das necessidades do ser humano, relacionadas ao cotidiano e não exigem sofisticação dos equipamentos ou investimentos altos (Ballarin, 2007). Neste tipo de intervenção terapêutica, segundo Ballarin (2007), o vínculo, o restabelecimento da estima própria e o auto-reconhecimento são pontos relevantes, com vistas ao fortalecimento da convivência e reapropriação do espaço.

Um lugar que faz a diferença: sentido de acolhimento

De acordo com os relatos, o CAPS é um lugar que faz diferença em suas vidas, lugar em que são acolhidos e bem tratados. Dessa forma, afirmam se sentirem seguros e em família, principalmente ao se reportarem ao carinho da equipe, ao acolhimento. Consideram, portanto, a oficina terapêutica ocupacional como um lugar de cuidado, e, mais ainda, como um lugar de pertencimento.

Alberto: Aqui no CAPS fez muita diferença. Aqui a gente conversa com as pessoas, as pessoas perguntam como a gente está. Tem encontro terapêutico, tem as oficinas, tem muita coisa aqui. Aqui está melhor para mim. Eu tomava remédio demais! Pode notar: quando eu cheguei aqui no CAPS tomei jeito demais! Aí fui melhorando.

Álvaro: Eu me sinto bem! Todo mundo aqui trata a gente bem, ajuda! Eles não maltratam ninguém. Aqui, há alguns anos atrás, não tinha CAPS, não tinha nada. Mandavam fazer o tratamento na policlínica. Lá faziam consulta e davam remédio, me davam uns remédios fortes.

Irani: Aqui eu me sinto bem! Eu gosto daqui. Aqui foi onde eu consegui meu benefício. Através daqui.

Gabriela: Aqui é uma família que eu encontrei! Você vem e recebe um carinho. Quando vem a dificuldade, a sua própria família te abandona. Às vezes a gente vem para cá muito insegura, isso aqui é uma forma de segurança. E tem que ver o carinho da equipe! Todo mundo me trata com muito carinho, me acolheu como se eu fosse da família! Um acolhimento pra mim muito importante! Acho que o mais importante é que você chega aqui e as pessoas não têm cara ruim para você. Eles te tratam de forma igual! Eles não fazem diferença entre as pessoas. Acho que o que mais cativa a gente é isso aí! Aqui é como se fosse a casa da gente! Uma família que acolhe a gente! A oficina é importantíssima.

Abigail: Aqui eles cuidam muito bem da gente, sabe? Tanto que se alguém fala mal daqui, que só tem doido, minha filha, eu dou resposta mesmo!

Ao encontrarem alguma escuta, respeito por seus pensamentos e escolhas, os usuários das oficinas terapêuticas as consideram como espaços onde seus sentimentos são qualificados e suas relações mais humanizadas. Parece que ali o espaço da alteridade, necessário ao desenvolvimento de uma convivência mais fluida entre os usuários, os profissionais e a comunidade, é respeitado. O vínculo entre usuários e profissionais foi colocado como um dos pontos fortes das oficinas, assim como o bom relacionamento entre os usuários e a troca de experiências entre eles. Nesse ponto, todos expressam a sensação de terem um lugar no mundo, lugar no qual podem ser o que são, sem medo de serem recusados.

Também de acordo com os estudos de Nasi & Schnider (2011), os usuários do CAPS percebem acolhimento, apoio, escuta e atenção na atuação dos profissionais. Neste espaço, para os autores, há uma criação de vínculos entre profissionais e usuários que proporciona um relacionamento baseado na confiança. "As oficinas, assim como o trabalho e a arte, podem funcionar como catalisadores da construção de territórios existenciais, nos quais os usuários podem reconquistar seu cotidiano." (Nasi & Schnider, 2011, p. 1161).

 

Considerações finais

Descrever fenomenologicamente o relato dos usuários nesta pesquisa foi uma forma de evidenciar não só os conhecimentos que os indivíduos certamente possuem sobre sua condição, o que pode contribuir para melhorá-la, mas também as formas de cuidado que eles consideram eficazes, o que contribui para o aperfeiçoamento dos métodos terapêuticos a serem aplicados. No CAPS, a proposta das oficinas terapêuticas ocupacionais abarca o novo paradigma da reforma psiquiátrica com vistas a fomentar uma maior integração social e familiar dos usuários, cumprindo essa função.

Por sua configuração, a oficina terapêutica do CAPS é um ambiente propício para manifestação de sentimentos e pensamentos dos usuários. Abre-se aí um espaço para o desenvolvimento de habilidades corporais e realização de atividades produtivas. Neste sentido, o nosso objetivo de conhecer a percepção dos usuários do CAPS-Unaí acerca dos sentidos das atividades terapêuticas ocupacionais em seu cotidiano, foi alcançado.

Levando em conta os relatos e comentários os usuários, as oficinas terapêuticas ocupacionais do CAPS-Unaí possuem vários sentidos. Os que mais se destacaram e, assim, contornam o essencial desses sentidos foram o afastamento da rotina diária, um lugar para não pensar em nada, a possibilidade de se distanciarem de sentimentos e pensamentos negativos que permeiam seu cotidiano. Outros sentidos mais pragmáticos também comparecem. Por exemplo, o sentido de aprendizado: os usuários consideram as oficinas como um espaço para aprender uma nova habilidade que pode ser utilizada no futuro como fonte de renda, vislumbrando, assim, outros horizontes, o que é reforçado pelo sentido atual de pertencimento. Assim, pertencer a um grupo, que é recebido com carinho, cuidado e acolhimento da equipe torna possível o fortalecimento dos laços entre os participantes do grupo, a partir do qual cada um dos indivíduos desenha seu futuro.

Seus relatos sobre suas vivências cotidianas com a loucura evidenciam que eles têm muito a dizer sobre seu universo, assim como sobre a relação entre razão e loucura, tão estudada por Foucault. Os usuários do CAPS, em alguns momentos, evidenciam em seus relatos uma não apropriação do código médico. Aparece aqui uma resistência sutil, resistência da loucura, que insiste em manter o "vaguear da razão extraviada" (Foucault, 1999, p. 520).

Para Foucault (1999), nossa consciência não encontra mais o vestígio de outro mundo nesta figura empírica, como no século XVI. Na loucura perfila, em relevo, a finitude, que, para Foucault, é "o recôncavo mesmo de nossa existência" (Foucault, 1999, p: 520). A partir desta figura da finitude, para Foucault, nós somos, pensamos e sabemos. Na loucura, a finitude está subitamente diante de nós, a um tempo real, impossível. Para o autor, trata-se de um pensamento que não podemos acessar, objeto que se furta sempre ao conhecimento.

Os chamados loucos contribuem para a sociedade atual com um olhar próprio, característico, empiricamente deslocado para além do olhar social rotineiro. Atravessada pela homogeneidade do código médico, a sociedade reduziu a expressão da loucura a poucos espaços. O resgate da expressão do saber do louco, em nossa sociedade, contribui para acrescentar olhares diferenciados sobre nossas relações e formas de viver.

 

Referências

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Recebido em 21.01.2017
Primeira Decisão Editorial em 04.05.2017
Aceito em 23.05.2017

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