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Revista da Abordagem Gestáltica

versión impresa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.24 no.1 Goiânia abr. 2018

http://dx.doi.org/10.18065/RAG.2018v24n1.5 

ARTIGOS: ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

 

F. J. J. Buytendijk e a gênese do espírito materno

 

F. J. J. Buytendijk and the genesis of the maternal spirit

 

F. J. J. Buytendijk y la génesis del espíritu materno

 

 

Claudinei Aparecido de Freitas da Silva

Doutor pela UFSCar (2007), Mestre pela UNICAMP (2000) com Pós-Doutorado pela Université Paris I - PANTHÉON-SORBONNE (2011-2012) na área de Filosofia. Graduado pelo IFA (1990) e pela UNIOESTE (1994). Docente e Orientador nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação (Mestrado) de Filosofia. Email: cafsilva@uol.com.br

 

 


RESUMO

O artigo objetiva fundamentalmente explicitar um importante conceito antropológico de F. J. J. Buytendijk: a noção de uma gênese psicológica do espírito materno. Para tanto, pautando-se metodologicamente numa abordagem fenomenológica descritiva, trata-se de compreender o mistério dessa formação para além de todo reducionismo biológico, desvelando, pois, nela, os elementos da historicidade e do cuidado em sua infraestrutura mais profunda. A premissa básica que aqui se discute é a ideia de que essa gênese jamais está formada definitivamente, já que tem sua origem nos primeiros encontros de um sujeito que é feminino pelos caracteres pré-existenciais de sua corporeidade e intencionalidade numa perspectiva dialética. É sob esse prisma, como resultado alcançado, que o pensador holandês vê, em tal movimento, não só um princípio da antropologia moderna, mas um estado de questão que abre, de maneira fecunda, um horizonte fenomenológico, sem precedentes.

Palavras-chave: Buytendijk; Psicologia; Fenomenologia; Gênese; Espírito Materno.


ABSTRACT

The article aims fundamentally to make explicit an important anthropological concept of F. J. Buytendijk: the notion of a psychological genesis of the maternal spirit. For this, methodologically based on a descriptive phenomenological approach, it is a question of understanding the mystery of this formation beyond any biological reductionism revealing, lastly, in it, the elements of the historicity and care in their most profound infrastructure. The basic premise discussed here is the idea that this genesis never formed definitely, since it has its origin in the first encounters a subject who is feminine by pre-existential character of its corporeality and intentionality in a dialectical perspective. It is from this viewpoint, as a result achieved, that the Dutch thinker sees in such a movement, not only a principle of modern anthropology, but a state of question that opens, fruitfully, a phenomenological horizon unprecedented.

Keywords: Buytendijk; Psychology; Phenomenology; Genesis; Maternal Spirit.


RESUMEN

El artículo trata de explicitar fundamentalmente un importante concepto antropológico de F. J. J. Buytendijk: la noción de una génesis psicológica del espíritu materno. Por lo tanto, y se basan metodológicamente un enfoque fenomenológico descriptivo, hay que comprender el misterio de esta formación más allá de cualquier reduccionismo biológico, revelando, por fin, en ella, los elementos de la historicidad y cuidado en su infraestructura más profunda. La premisa básica que se discute aquí es la idea de que esta génesis nunca es formada definitivamente, ya que tiene su origen en los primeros encuentros de un sujeto que es femenino por el carácter pre-existencial de su corporalidad y la intencionalidad en una perspectiva dialéctica. Es en este punto de vista, como resultado alcanzado, que el pensador holandés ve en tal movimiento, no sólo un principio de la antropología moderna, sino un estado de la cuestión que se abre, fructíferamente, un horizonte fenomenológico sin precedentes.

Palabras-clave: Buytendijk; Psicología; Fenomenología; Génesis; Espíritu Materno.


 

 

A Valdelice, espírito materno

 

Estado de questão

O objetivo central desse estudo consiste em explicitar fundamentalmente um importante conceito antropológico de F. J. J. Buytendijk: a noção de uma gênese psicológica do espírito materno. Esse estado de questão discute como premissa básica, a tese de que tal gênese jamais se encontra formada definitivamente, já que tem sua origem nos primeiros encontros de um sujeito que é feminino pelos caracteres pré-existenciais de sua corporeidade e intencionalidade numa perspectiva dialética. O que se objetiva ainda é compreender como Buytendijk estabelece o estatuto dessa formação para além de qualquer reducionismo biológico, desvelando nela, o elemento da historicidade e do cuidado em sua infraestrutura existencial mais profunda. É esse contexto mais geral que o ensaio La genèse psychologique de l'esprit maternel (publicado, em 1960, pela Revista Les Études Philosophiques, de Paris) situa de maneira particularmente reveladora. Buytendijk põe em cena a condição feminina como ser no mundo retratada na experiência da maternidade.

 

Método fenomenológico

A devida compreensão desse tema implica, antes de tudo, uma opção metodológica que a obra de Buytendijk jamais perdera de vista: uma abordagem fenomenológica descritiva. Trata-se, pois, de descrever o mistério da formação da gênese do espírito materno a partir de alguns delineamentos conceituais como as noções de gênese, a distinção entre espírito e vocação, espírito materno, a categoria de cuidado, promovendo, enfim, uma discussão sucintamente pontual acerca de diferentes teorias relativas à experiência materna. Partamos, então, da análise do primeiro conceito: a noção de gênese.

 

O conceito de gênese

Buytendijk inicia o estudo, elucidando dois conceitos basilares: as noções de gênese e de espírito. Trata-se de uma distinção que, a seus olhos, assume importância capital no tocante à compreensão mais profunda da essência da maternidade, tema nuclear do ensaio. Primeiramente, o pensador holandês passa, em revista, a ideia de gênese. Ele lembra que esta é comumente definida em termos organicistas. "A concepção de uma gênese psicológica nos reenvia ao fenômeno de certo desenvolvimento orgânico, tendo a sua origem, pois, na estrutura de um gérmen realizando-se em estágios definidos de maneira autônoma e determinada" (Buytendijk, 1960, p. 453). Ora, se quisermos descrever os estágios iniciais desse processo é preciso, antes, compreendê-lo à luz do organismo completo, em sentido próximo, por exemplo, de Goldstein (1983), como também de Merleau-Ponty (1942) ou de Ruyer (1958). Para cada um desses autores, a gênese do organismo não se define como "um sistema de correlações, mas como um sistema de significações", observa Buytendijk (1960, 453). Eles têm-nos definitivamente "persuadido a propósito da diferença essencial entre as transformações físicas e os desenvolvimentos vitais" (Buytendijk, 1960, 453). Qual seria, enfim, a dificuldade? Ela tem sua origem na própria psicologia.

Caso se aceite a opinião corrente de que a psicologia é a ciência dos comportamentos, seremos obrigados a distinguir as reações vitais dos animais e do homem fundadas inteiramente nas estruturas nervosas dos comportamentos que resultam de uma intencionalidade consciente ou inconsciente. O problema da relação desses atos intencionais com a corporeidade está no centro da psicologia moderna, já que esse problema tem sido posto de uma maneira incontestável pela reflexão sobre a realidade humana e animal (Buytendijk, 1960, p. 453).

A psicologia moderna (como a Psicanálise ou a Gestalttheorie) é, acima, contrastada por Buytendijk com a psicologia clássica que, canonicamente, sempre definira a consciência e o inconsciente como uma interioridade composta de "conteúdos, representações, processos suscitados por forças ocultas, tendências inatas e adquiridas" (Buytendijk, 1960, p. 454). "Essa interioridade seria, portanto, uma totalidade determinada, 'um organismo físico'" (Buytendijk, 1960, p. 454). Nos termos de tal concepção, a noção de gênese ou desenvolvimento assume o caráter de um evento natural. Ora, numa direção oposta, acena Buytendijk (1960, p. 454),

[...] a concepção moderna da consciência ou do Ego rejeita, categoricamente, tal gênese, mas ela aceita uma historicidade individual que, de todo outro modo, põe a questão de um desenvolvimento. Cada história é caracterizada pela negação de qualquer determinismo absoluto; ela se faz segundo uma ordem provável e manifesta, portanto, certa regra, certa direção, mas também uma contingência. (Buytendijk, 1960, p. 454)

O que essa segunda direção nos encaminha é para outra compreensão bem mais refinada e, em rigor, profunda da noção de gênese. O método analítico clássico que define o desenvolvimento por meio de funções isoladas acaba por se tornar uma posição meramente reducionista do organismo, perdendo de vista o seu todo, isto é, outras variáveis ou aspectos que interagem no processo de formação orgânico. Assim:

Ao falar de uma gênese psicológica em geral, é preciso compreender como o desdobramento, a diferenciação das relações intencionais de um sujeito e do mundo atravessa uma historicidade, na qual o ocaso ocupa um lugar, mas também uma iniciativa, uma espontaneidade e, no ser humano, uma liberdade, que permanecem perfeitamente inexplicáveis. (Buytendijk, 1960, p. 454)

Vejamos o quanto Buytendijk acentua, em sua análise, a ideia de historicidade. Trata-se de um conceito-chave para se compreender, no contexto da própria psicologia moderna, o sentido da noção de gênese, aqui, em curso. Ele argumenta:

Nesses casos, os fatos nos levam a supor um "gérmen" - embora desconhecido - das circunstâncias favoráveis que determinam a sua evolução. Quando, porém, está em questão um espírito no sentido de uma atitude pessoal, na qual se manifesta a escolha decisiva e permanente de um valor e, por conseguinte, de uma vocação exprimindo-se num projeto de mundo e de existência, é inadmissível ocultar o mistério da formação do "espírito" pela aplicação confusa da noção de gênese. O único meio de seguir essa formação com uma justa deferência ao olhar da realidade humana será de reencontrar o solo de uma coexistência original pela qual um mundo se abre e começa a existir. (Buytendijk, 1960, p. 454)

Pois bem: "esse mundo que se abre e começa a existir" tem o seu próprio gérmen no "solo de uma coexistência original"; coexistência essa marcada sob o signo da historicidade. O que isso significa, exatamente? Significa que

Se aceitarmos essa união transcendental do ser humano e de uma realidade na qual cada um de nós se encontra inserido, ou seja, engajado de certa maneira, é possível tentar seguir o curso de uma existência que termina na manifestação de tal espírito. É nesse sentido que se pretende compreender a noção da gênese psicológica do espírito materno. A possibilidade de um esclarecimento do movimento existencial que conduz ao espírito materno nos é dado, imediatamente, pelo princípio da antropologia atual. (Buytendijk, 1960, p. 454-455)

O que Buytendijk observa, nessas breves passagens, é que todo processo de gênese não pode prescindir de uma compreensão mais radicada fenomenologicamente. Noutras palavras, reside, aqui, o fato de que toda ideia de espírito ou de consciência perde seu arco de transparência absoluta uma vez confrontada com a experiência. É o que mostraram Merleau-Ponty (1945) e De Waelhens (1959) ao considerar a consciência como irrefletida, encarnada e, por isso mesmo, coexistente. É a esse propósito que Buytendijk, na trilha aberta por Merleau-Ponty, retoma e amplia a noção fenomenológica de intencionalidade como ato de consciência, isto é, como "consciência de algo" (Husserl, 1976, §84, p. 188) escavando, pois, originariamente, uma "intencionalidade operante (Fungierende Intentionalität) como logos do mundo estético" (Husserl, 1992, p. 297). Trata-se de um logos que encerra uma historicidade primordial, àquela a que se reportara Merleau-Ponty (1945, p. xiii) como uma "unidade natural e ante-predicativa do mundo e da vida, uma unidade que se manifesta mais claramente que em nossa consciência objetiva, em nossos desejos, nossas avaliações, nossa paisagem e que fornece o texto do qual os nossos conhecimentos buscam ser a tradução, em linguagem exata". Quando, enfim, Buytendijk fala de um "solo de coexistência original" é precisamente esse sentido e alcance que se deve ter sempre em vista.

É a partir desse solo, em sua historicidade primordial, que podemos melhor compreender a noção de uma gênese do espírito materno projetando-a como uma consciência-comportamento. Como vemos, o mistério dessa gênese se transfigura numa encarnação existencial, uma vez que se trata de um espírito que se reconhece enquanto corpo. A formação do espírito maternal é tributária desse essencial reconhecimento em que a corporeidade feminina radica um modo de ser existente e histórico. Buytendijk faz isso com o intuito de situar o comportamento materno em nossa cultura como uma intencionalidade operante. É por meio desse alargamento conceitual que, no seio da carnalidade feminina, uma maternidade se torna possível, revelando-se verdadeiramente sob a forma de um espírito. Afinal, o que se entende, à luz dessa gênese psico-fenomenológica, por espírito?

 

Espírito ou vocação?

Uma vez caracterizado o conceito de gênese numa perspectiva histórico existencial, Buytendijk passa a problematizar a noção de espírito materno. A maternidade exprimiria, em primeiro plano, o caráter de um espírito ou de uma vocação? Essa é a questão de fundo que permeia o segundo momento do texto. Para tanto, o autor procede a uma correção conceitual na versão francesa de sua obra La Femme (1954), tradução essa primorosamente editada sob os cuidados de Alphonse de Waelhens e René Micha. Buytendijk nota que os referidos tradutores verteram o título do último capítulo do livro, moederlijkheid, no original holandês, por la vocation maternelle. Ora, de imediato, Buytendijk discute o uso dessa opção quando se compara, por exemplo, vocação com a palavra espírito. Ocorre, pois, aí, uma diferença significativa, à medida que uma coisa é a atitude intencional da mulher animada por um espírito maternal, outra, bem diversa, é a atitude em que se escolhe seguir uma vocação maternal. Trata-se de uma distinção antes sugerida pela significação de ambos os termos do que pela realidade intencional que eles revelam. Em função disso, tal diferenciação torna-se mais explícita se considerarmos o seguinte, nota o autor:

Eu, no entanto, gostaria de insistir sobre o fato de que a palavra "espírito" invoca uma tomada de posição mais geral e não um ponto orientado para as perspectivas de uma atividade concreta. Para se dar conta da diferença entre o significado da palavra espírito e o da palavra vocação, basta por, de lado, a expressão "espírito materno", usada em todas as línguas. Fala-se de um espírito científico, artístico, militar, burguês, de um espírito geométrico, de astúcia, de caridade, de um espírito nobre, cavalheiresco e, num sentido figurado, de um espírito das leis. (Buytendijk, 1960, p. 457)

O termo vocação deriva do latim vocatione que significa chamado, apelo, destinação. O vocábulo, quase sempre, sugere uma inclinação, uma tendência decisória, orientada individualmente para certas aptidões que podem ser intelectuais, artísticas, profissionais, etc. Já espírito, como bem indica Buytendijk, implica um movimento de intencionalidade, quer dizer, uma tomada de posição mais geral. O que, no entanto, nosso autor visa, ao precisar essa distinção conceitual?

Ele busca seguramente demarcar um importante terreno metodológico de sua teoria sobre a gênese da experiência materna. Essa é imbuída não propriamente de uma vocação, mas, de um espírito. Não se trata, pois, de uma significação espiritual qualquer, mas de uma dimensão mais elevada pela qual a vivência maternal transcende seu agenciamento orgânico, biológico ou funcional. Por isso, como vimos, Buytendijk retoma do vocabulário fenomenológico, o conceito de intencionalidade. A intencionalidade é mais da ordem espiritual do que essencialmente vocacional. Desse modo, ser ou existir como mãe revela, em contexto intencional, bem mais uma atitude de espírito do que uma escolha ou simples decisão vocacional. Somos postos em face de uma atitude ou comportamento que diz mais respeito à estrutura fundamental do ser feminino; estrutura dinamicamente operante à qual, de fato e de direito, inscreve-se corporalmente em sua fenomenalidade trans-ginecológica ou biológica. Essa inscrição já rompe com todo solipsismo uma vez que é coextensiva a outro corpo (da gestação ao nascimento). Sob esse aspecto, a coexistência original toma um sentido bem peculiar, já que é a partir dela que se prefigura um pacto simbólico, intencional entre a mãe e a criança. Uma história aí se escreve a quatro mãos, desde esse pano de fundo, dado o caráter existencial dessa experiência realmente única.

É uma vez aberto esse cenário que a noção de gênese trabalhada por Buytendijk se reveste singularmente de um sentido fenomenológico. Não se trata de explicar tão somente, mas, de compreender a essência do vínculo materno. Essa é a diferença de base entre uma análise tributariamente naturalista do espírito materno e uma descrição fenomenológica (intencional). Basta ver que a formação de tal espírito não se restringe a uma categorização rigidamente organicista. Ela é uma gênese histórica marcada sob o signo da existência para além de toda determinação fisiológica. Como, então, situar melhor tal alcance hermenêutico?

Buytendijk acredita perspectivá-lo por meio de uma relação sui generis: "a modalidade do encontro" (Buytendijk, 1952b; Silva, 2014). Trata-se de um nível fenomenológico mais elaborado, vivo e, portanto, real no circuito do mundo inter-humano e das coisas. É o que exemplarmente presenciamos, de maneira extraordinária, no próprio vínculo materno em que a atitude da mãe não apenas gera, mas acolhe, revelando, por meio de tal gesto, uma estrutura intencional (Buytendijk, 1960). É mediante essa estrutura (Gestalt) que o gesto materno pode encerrar uma dimensão mais primordial do encontro em sua efetividade, em carne e osso.

Sendo assim, antes de detidamente explorar tal argumento, Buytendijk examina quatro aspectos teóricos essenciais: de início, a opinião popular acerca da identidade entre feminilidade e espírito materno; em seguida, a concepção de um instinto maternal; em terceiro, ele revisita, em linhas gerais, a teoria psicanalítica, para, finalmente, discorrer sobre o caráter histórico-social da atitude especificamente materna.

 

Breves teorias da maternidade

Feminilidade e espírito materno

Comecemos pela opinião vulgar. A feminilidade é vista, de modo geral, segundo uma velha e legendária máxima atribuída a Napoleão: Tota mulier in utero. Em meio a essa venerável tradição, rememora Buytendijk, se firmou um consenso de que a mulher cumpre o seu destino pela experiência capital da maternidade:

As célebres mães da literatura francesa clássica, como Andromaque ou Athalie, manifestam um espírito heroico de sacrifício, compreendido como a revelação da verdadeira feminilidade. Em numerosos romances se confere o mais alto lugar à maternidade, pelo qual a mulher se completa. Quando a mulher é concebida como um ser humano completo, seu amor maternal não põe problemas. (Buytendijk, 1960, p. 458)

Já, na literatura, se retrata o que também ocorre no cotidiano, ou seja, transcorrem situações adversas como, p. ex., a figura da mãe desnaturada, insensível, rude ou apática. Sobre isso, Hélène Nahas (1957) focaliza, no contexto literário e dramatúrgico moderno de viés existencialista, o inverso negativo do espírito materno, isto é, seus fracassos. Há, mormente na obra de Sartre, uma espécie de ódio difuso da criança, no sentido de ser perversa e manhosa. Nesse caso, não restam dúvidas, que a imagem tradicional da maternidade seja, de modo iconoclástico, desconstruída, sobretudo, se tal espírito estiver existencialmente desfocado do plano de uma escolha decisiva. Lembremos que, para Sartre, a liberdade brota de uma escolha originária inalienável (Sartre, 1943). A mulher, portanto, "está condenada a ser livre já que não se poderia encontrar outros limites à sua liberdade, além da própria liberdade, ou, se preferirmos, que não somos livres para deixar de ser livres" (p. 515).

Instinto maternal

O segundo aspecto se relaciona à própria definição de instinto materno. Tal instinto se conceitua tendo como paradigma, o comportamento animal, lato senso. É o que a biologia clássica postula ao distinguir rigorosamente os comportamentos inatos instintivos dos comportamentos adquiridos (por força do hábito). Nessa cosmovisão, tudo é explicado teleologicamente, à medida que se professa, como metaforiza Buytendijk, uma "sabedoria da natureza", quer dizer, uma ideia que dava "lugar às especulações filosóficas ou teológicas, mas, sobremaneira, porque ela tinha suscitado uma imagem romantizada do inatismo das pulsões internas, inconscientes, que determinam o curso da vida quanto aos seus aspectos dominantes e sua destinação posterior" (Buytendijk, 1960, p. 459). Ora, pois: é partindo dessa fé professada em torno do instinto materno que a sabedoria natural fora aceita pelos cientistas. Os inúmeros exemplos coletados do reino animal se tornam, sob essa premissa, provas irrefutáveis. E complementa Buytendijk (1960, p. 459):

É inútil acrescentar que essa teoria clássica parece ser perfeitamente comprovada pelo fato de que cada espécie animal assegura, pelas condições sexuais e maternais específicas, a continuidade das gerações. É necessário aplicar essa concepção ao homem, especialmente porque os hábitos estáveis das sociedades humanas agem de uma maneira tão imperiosa que o sujeito acredita estar possuído por forças interiores das quais ele ignora a origem. Esses hábitos inalteráveis, experimentados como a garantia de segurança e da dignidade da humanidade, são valorizados pelas vocações, pela voz da consciência, pelas leis inscritas no coração. (Buytendijk, 1960, p. 459)

Por outro lado, não deixa de ser significativo o fato de que a análise científica "nos obriga a corrigir a hipótese de um instinto materno, mesmo os dos mamíferos, concebido como uma disposição autônoma inata" (Buytendijk, 1960, p. 459). É o que atestam os estudos etnológicos:

Eles têm demonstrado que o comportamento maternal depende da situação e também das experiências anteriores à posição no mundo dos filhotes. Sem dúvida, há uma disposição constitutiva da fêmea, diferenciada pelos hormônios durante o período de maturação sexual e após o acasalamento. A influência dos hormônios depende, conforme as pesquisas, em parte das relações sociais, não pontualmente sexuais, durante a juventude do animal; noutra parte, o efeito dos hormônios se explica por uma mudança de irritabilidade ou da regulação térmica. (Buytendijk, 1960, p. 459-460)

A que conclusão chegamos? "A de que o comportamento maternal dos animais superiores se apoia sobre algumas reações elementares inatas, mas que também é determinada situacional e historicamente" (Buytendijk, 1960, p. 459).

 

Teoria psicanalítica

Buytendijk abre alas agora para a psicanálise que, aliás, mostrou-se bem próxima da teoria biológica das energias instintivas. Entre os inúmeros escritos de Freud e de seus seguidores relacionados à gênese do amor materno, o que temos é uma imagem um tanto vaga de certos conceitos corolários como libido, sexualidade infantil, complexo de Édipo e castração, bem como o de fenômenos de recalque, projeção, identificação, sublimação. Ao mesmo tempo, Buytendijk faz referência ao trabalho de Sylvia Brody, Patterns of mothering (1956), o qual - na opinião do pensador holandês - soubera melhor descrever, do ponto de vista psicanalítico, o desenvolvimento inicial da conduta materna, fundado sobre a observação de uma menina de quatro anos.

Essa menina interage com o seu irmãozinho de um ano e seis meses, sem, contudo, deixar de supervisioná-lo. Ela repassa-lhe brinquedos, instruindo-lhe sobre cada funcionamento. Ela o estimula o tempo todo, à maneira de sua mãe, com muito tato e paciência. É fato, porém, que, meses antes, a garotinha havia externado certa hostilidade em relação à figura materna por conta dos caprichos e cuidados com o bebê. Aí, então, os pais relataram que haviam advertido a filha no sentido de agir de uma forma mais dócil com o irmão pequeno, pois, em breve, ele seria capaz de dominá-la. Apesar das recomendações paternas um tanto jocosas, a menina, a exemplo de sua mãe, escolhe em adotar uma atitude mais passiva em relação ao nenê. No fundo, o que ocorre? Psicanaliticamente falando, a menina termina por recalcar o desejo de ver seu irmãozinho negligenciado ao invés de ser amado. Se ocupando de seu irmão, ela se prepara - segundo a autora - de um modo masoquista ao restabelecer-lhe uma parte de seu ego-identificado e de sublimar as suas tendências sádicas. O que tal mudança de comportamento revela? Não há dúvida de que esse processo advém do desenvolvimento psicológico normal, ou seja: "a adaptação de uma tendência instintiva e ativa a uma intenção de passividade, de acordo com as exigências da realidade e com o ideal do ego" (Buytendijk, 1960, p. 461).

Ao reconstituir a gênese do espírito materno por meio do vínculo entre a criança e sua mãe durante os primeiros anos de vida, Brody narra, ao longo desse período, a maneira como a mãe satisfaz todos os desejos passivos da criança. Tal comportamento é corroborado por Brunswick (1940), citado por Brody (1956, p. 378): "A criança (com a idade pouco perto dos quatro anos) reage à presença de sua mãe por uma espécie de agressão primitiva, defensiva, que é um subproduto e uma proteção de sua atividade, bem como uma defesa de sua passividade original mal superada". Essa interpretação psicanalítica se encerra, segundo o comentário de Buytendijk, nos seguintes termos:

Com a entrada no estágio dito fálico, os desejos eróticos ativos são suscitados pela irritabilidade dos órgãos sexuais, pela observação de uma relação física dos pais e, frequentemente, pela curiosidade em olhar o nascimento de outras crianças. Por causa de o amor infantil ser sem limite e não ter um objeto ou um fim específico, ele culmina no desejo mais ambicioso, por parte da garotinha: fazer qualquer coisa corporalmente com a mãe, obter dela uma criança a fim de tornar-se igual a ela, ou melhor, dar uma criança à sua mãe para satisfazê-la, porque as "mães devem ter crianças". Há, pois, muitos desejos que se confundem no desejo de um bebê: o desejo ativo da menina de ser uma mãe parecida com a sua própria mãe. (Buytendijk, 1960, p. 461)

A esse respeito, Buytendijk marca, por fim, sua posição:

A nossa experiência confirma, sem dúvida, que, no estágio emotivo perturbador de inúmeras meninas se forma desejos e imaginações vagas que estão em relação à atitude materna; logo, no cuidado de uma criança. Em geral, se vê que essa imitação da mãe se exprime em jogos ou aceitando pequenos trabalhos domésticos, encorajados pelo ambiente (milieu). Pode-se também aprovar a tese psicanalítica de que a menina será, muitas vezes, mais tocada pela rivalidade que o menino e que a sua ligação com a mãe lhe permita, com maior facilidade, conquistar um mundo de segurança, de paz e de consentimento. No exemplo descrito por Sylvia Brody, somos informados de que a menina tem escolhido aceitar a atitude de sua mãe. Mas o que significa a noção de "escolha" na vida infantil? (Buytendijk, 1960, p. 461-462)

Ao lançar essa pergunta, diversamente do que poderia supor, Buytendijk não se filia à visão sartriana. Na verdade, ele se encaminha, na contramão, da leitura de Beauvoir (1949, p. 85) que postula "haver, em todos os psicanalistas, uma recusa sistemática da ideia de escolha e da noção de valor que lhe é correlativa; caracterizando aí uma falibilidade intrínseca do sistema". Não parece ter sido o caso, como acima, de Brody, segundo o tom interrogativo do comentário final de Buytendijk. Para este, a escolha é sempre motivada. Ou seja: o "motivo" não é uma "causa" (Buytendijk, 1959) haja vista que implica um significado, uma decisão. É que a dimensão decisória (tanto na criança quanto no adulto) jamais depende de uma liberdade absoluta (segundo a acepção existencialista reportada), embora para essa concepção, a liberdade não se determina como um fato ou acontecimento natural.

Ora, essa crítica, todavia, visa atingir outro alvo da doutrina psicanalítica, a saber, sua teoria dos instintos. Por isso, nota Buytendijk (1960, p. 462): "embora aceitando, pois, vários princípios postos pela psicanálise, eu não creio que se possa explicar a gênese do espírito materno por um "mecanismo", um jogo determinado de tendências instintivas e de forças imperativas da realidade". É bem verdade, por uma parte, que "não se aceita nem na psicanálise, nem na etnologia, um instinto social primário ou um instinto de maternidade. As duas disciplinas aceitam uma pulsão sexual geral que, nos períodos críticos, leva à formação dos hábitos" (Buytendijk, 1960, p. 462). O que em termos buytendijkianos se enuncia aqui é tão somente o limite da noção de instinto como um mecanismo ou dispositivo interno explicativo acerca da maternidade. Esta, reiteremos, não é nem uma vocação, nem um instinto, mas uma estrutura de outra ordem. É o que retomaremos e aprofundaremos, agora, ao ilustrar o quarto e último aspecto da vivência materna.

 

Projeto existencial

Uma vez traçados, em linhas gerais, alguns lugares-comuns ou posições teóricas, Buytendijk refina seu argumento concernente à existência de um espírito materno. Sua posição põe a toda prova que certas características da espiritualidade humana e, em especial, feminina se mostram de uma maneira peculiarmente evidente. Para tanto, dois aspectos devem serem considerados: i) o estatuto da possibilidade de um projeto existencial animado por um espírito materno geral e ii) a amplitude do próprio amor materno via o engendramento desse espírito.

Buytendijk se reporta, de relance, a O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir, tido por ele, como um trabalho notável e penetrante acerca da condição feminina em nossa civilização. Entrementes, à par do elogio, o autor não poupa uma fina crítica:

A Sr.ª Beauvoir (1949, p. 323) tem razão: "Não existe instinto materno", mas quando lemos: "Não há mãe 'desnaturada', posto que o amor materno nada tem de natural; mas, precisamente, por causa disso, há mães más", seremos obrigados a perguntar qual é o sentido que cabe atribuir à palavra "má". O primeiro princípio, a ideia forte da autora é que a mulher se faz por conta de suas decisões livres, mas a ideia de uma liberdade absoluta, de uma transcendência em qualquer caso orientada para uma ordem de valores objetivos, desveladas pelos encontros, exclui uma escolha autenticamente boa ou má. (Buytendijk, 1960, p. 463)

Buytendijk reforça seu ponto de vista em relação ao existencialismo sartriano e, em particular, à obra de Beauvoir. Para o crítico holandês, muito embora tais autores situem a experiência humana como um projeto existencial, a gênese do espírito materno deve ser buscada para aquém ou, talvez, além de um caráter transcendente da liberdade ao qual à mulher estaria absolutamente condenada. Em rigor, Buytendijk quer pensar outro estatuto da liberdade; uma liberdade vivida, situada, encarnada junto às coisas e, não, alhures, à maneira existencialista, a título de uma consciência translúcida e autônoma que permanece estranha ao mundo.

A teoria buytendijkiana da liberdade se encontra nesse registro: ela postula uma coexistência original, na qual estamos engajados após o nascimento, prefigurada em nosso corpo e no mundo percebido. É sob esse prisma que se pode falar de uma interioridade espiritual que, no fundo, não é um puro espírito, mas uma subjetividade encarnada, expressão máxima de um paradoxo genuíno, conforme De Waelhens (1967, p. 205): "assim como, em nossa experiência, toda presença é o signo de uma ausência, ela indica uma ausência da qual antecipa a presença". Essa relação entre o presente e o ausente é o signo da ambiguidade inalienável da condição humana, e, em particular, da experiência materna. Observa atentamente Buytendijk (1960, p. 464):

A gênese do espírito materno tem sua origem nos primeiros encontros de um sujeito que é feminino pelas características pré-existenciais de sua corporeidade. Esses caracteres não são contingentes; eles determinam uma presença no mundo que atravessa a experiência a partir já da primeira juventude desvelando uma ordem de valores primários. Estes aqui representam a constituição geral de um mundo feminino que se diferencia sob a influência da educação e do meio social.

Tanto em seu clássico La Femme (1954/2010) quanto em Attitudes et mouvements (1957, p. 431-439), Buytendijk advoga que o caráter decisivo no tocante à origem de uma existência feminina não se funda estritamente na anatomia, mas num dinamismo peculiar: o modo de execução dos movimentos. Ele caracteriza esse dinamismo como um estilo comportamental. É um fato, nota ele, de que há uma diferença, por mínima que seja, entre o movimento constitutivo da menina e do menino. O primeiro, em função de um maior tónus muscular, é mais rígido, brusco, enérgico enquanto que, no segundo estilo, percebemos um movimento mais dócil, flexível, menos expansivo e reativo, típico da feminilidade. Tal diferença revela uma entrada num mundo específico, isto é, esboça um esquema fundamental de um modo de existir. Comentando Madinier, ilustra Buytendijk (1960, p. 465): "a motricidade é uma intencionalidade original; ela é, certamente, a matriz de toda intencionalidade; ela é fonte e forma da significação". A gênese de uma existência masculina ou feminina parte justamente de tais estilos dinamicamente intencionais.

Nessa perspectiva, Buytendijk elabora a teoria de uma gênese da feminilidade sem prescindir de uma simples observação voltada às primeiras fases da gênese masculina e feminina bastante conhecidas nos jogos preferidos e nas relações afetivas. Ele volta a retratar: o estilo feminino

[...] se manifesta no comércio com as coisas, nos movimentos de expressão, no modo de falar e de reagir às palavras do adulto. O dinamismo de adaptação se exprime no gosto das meninas, nos trabalhos de agulha, na repetição de movimentos lúdicos, na corda de pular, na bola contra a parede, em atividades de circuito fechado sem iniciativas criadoras. (Buytendijk, 1960, p. 467)

É aqui, não resta dúvida, que se encontra um dos pontos mais controversos de sua doutrina. A propósito, não é de se surpreender até onde essa posição sofrera duros ataques vindos de todas as partes, como do movimento feminista. Le Football (1952a, p. 32) é outro estudo emblemático no qual Buytendijk sustenta a tese de que se trata de um jogo caracteristicamente masculino. Tivesse ele vivido até os tempos atuais, talvez se apercebesse do disparate dessa leitura um tanto anacrônica em que se assiste a uma significativa evolução do futebol feminino! De todo modo, o que nos interessa, malgrado tais excentricidades, plausivelmente discutíveis, é o de não perdermos o foco central de seu texto. Se, por um lado, Buytendijk parece construir certo estereótipo do feminino à primeira vista como um autor um tanto extemporâneo, é de se levar em conta, por outro, o quanto o estilo comportamental da mulher é elevado comparativamente ao do homem. Sua proposição em torno da categoria de cuidado, mostra-se, particularmente reveladora sob esse aspecto à medida em que o cuidado é oposto ao trabalho.

 

Espírito materno e cuidado

Buytendijk vai mais longe: teoriza uma ética do cuidado como essencialmente mais feminina que masculina. Isto porque:

A espiritualização dessa atitude pela aceitação de uma intencionalidade integral de devoção, de um dom de si ao humano que reclama o cuidado, se chama espírito maternal. Esse espírito é - como todo espírito - plenamente humano porque ele ultrapassa a natureza, como também o corpo. Se se pretende que há, em nossa civilização, uma afinidade do homem ao espírito militar ou ao espírito geométrico e da mulher ao espírito materno ou ao espírito de caridade, cabe acrescentar que essa afinidade significa a introdução ou a prefiguração de uma decisão pessoal. (Buytendijk, 1960, p. 468)

Essa passagem salta aos olhos. Nela, Buytendijk eleva o sentido último da ética do cuidado tendo, no espírito materno, sua expressão paradigmática, por excelência. Não se trata de um instinto, mas, sim, de uma estrutura intencional que transcende os limites de uma definição meramente fisiológica. O espírito materno concebido como uma intencionalidade puramente humana e universal é, por princípio, independente da natureza da mulher indicando uma maternidade possível. Nem as diferenças de motricidade, nem as experiências infantis, nem a influência do meio conduzem fatalmente a certo "espírito". É útil não esquecer que não é livre a escolha que se apoia sobre uma corporeidade, uma historicidade e situações dadas. A realidade do homem é uma unidade incompreensível de "fatalidade e de liberdade" (Buytendijk, 1960, p. 468).

Disso advém outra questão posta pelo autor: "Qual é a relação dos sentimentos espontâneos, dos valores e do amor, ou se quiser, daquele amor do qual Santo Agostinho dizia que é 'espiritual até na carne e carnal até no espírito'"? (Buytendijk 1960, p, 469). Eis uma possível resposta:

O sentimento mais próximo do dinamismo de adaptação e do cuidado que ele engendra é a ternura. Kunz fortemente descreveu bem esse sentimento opondo-o à agressividade. A ternura é primariamente uma reação espontânea; é a expressão de um sentimento de enternecimento, suscitado por um ser ou por uma coisa que, pela sua doçura, sua fragilidade, seu charme, "chama" a carícia da mão, do olhar, da voz. O gesto, a palavra, o olhar tenro (ao pé da letra) descobrem o terno. Para a menina que, pela sua motricidade de adaptação e pela identificação com a sua mãe, começa a cultivar o ato de ternura ao olhar as bonecas, os animais e os objetos, se abre ao horizonte da existência feminina. (Buytendijk, 1960, p, 469)

Buytendijk aprofunda ainda mais esse sentimento de enternecimento inscrito na dinâmica própria do espírito materno, sob a ética do cuidado:

O que faz da ternura um ato propriamente humano é a intenção que, por meio do gesto terno, do terno olhar, da terna palavra visa em se tornar presente como pessoa e cuidar-se do outro. Essa ternura humanizada é a expressão de um espírito materno que ultrapassa um sentimento brotado pelo encontro. A "ternura" espiritualizada é detentora de valor, fonte de valorização; ela se encarna em todos os domínios de uma existência animada por um espírito materno. Esse espírito limita-se inadequadamente quando se vê, na ternura, tão só uma aptidão ou uma disposição à maternidade. (Buytendijk, 1960, p, 469)

Buytendijk chama a atenção para a importância dessa estrutura única. É o elo entre a atitude espiritual e os sentimentos espontâneos que constitui a ilusão por assim dizer charmosa de que uma mulher maternalmente se mostra como que natural. É que essa manifestação amorosa constitui, aos seus olhos, um protótipo ou modelo de todos os amores (Buytendijk, 1960, p. 470). Alega então nosso autor que se "aceitarmos que o espírito materno realiza um amor desinteressado, nos comprometemos com uma problemática que transborda amplamente o tema proposto" (Buytendijk, 1960, p. 470).

Nessa direção, já nos situamos longe, bem longe, de toda antinomia, entre o ato e o dado, eu e outrem. Ora, tais contradições, projeta Buytendijk (1960, p. 470; grifo nosso), são "superadas pela concepção de uma subjetividade transindividual e de uma coexistência originária". Trata-se de uma reflexão que se prolonga, nos tempos atuais, tanto na filosofia quanto na psicologia. Como nota Madinier (1938, p. 95): "O amor não é um desenvolvimento da simpatia; essa pode prepará-lo e condicioná-lo, mas o amor vem de outro lugar. Ele é uma nova forma de ser". É o que, para além de Heidegger, Binswanger teria entrevisto:

A existência (Dasein) é, desde então, a possibilidade originária de um encontro amoroso, de um ser comum, um ser a dois e não dois. A realização dessa forma de existência supõe que a existência não se compreende em si-mesma a partir do mundo, mas a partir de seu fundamento como dom, presente ou graça. (Binswanger, 1942, p. 153)

Em meio a esse circuito hermenêutico, Buytendijk (1960, p. 471) reconhece um dom: "O espírito materno é a decisão definitiva a essa coexistência, implicando, de uma só vez, o valor revelado de um dom. Este espírito não procede de uma predileção subjetiva, mas de uma solidariedade fundamental, expressa na perfeição do vínculo entre a mãe e a criança". Nesses termos, podemos dar razão a Alain (1927, p. 239) quando atesta que "o amor materno não escolhe [...]. A ideia de escolher e de recusar não pode entrar nesse modelo de amor". Ora, parece evidente que todas essas referências mencionadas por Buytendijk em função de seu valor filosófico ou psicológico apenas corroboram o pressuposto de sua tese nuclear segundo a qual o espírito materno desvela uma gênese bem mais do que instintiva ou vocacional. É o que se reitera nas linhas finais de seu texto:

É preciso, pois, concluir que jamais está em questão uma gênese autônoma da individualidade humana, de um si-chamado homo natura. A existência se constitui por uma dialética, em suma, por uma corporeidade significando um esquema de mundo e significada por este. Essa dialética torna explícito o co-devir de uma maneira que representa, ao mesmo tempo, o destino, a vocação; enfim, a inspiração e a aspiração da vida pessoal e sua destinação. O espírito materno não está, portanto, nunca formado definitivamente. Ele se transforma nas profissões diversas e pelas circunstâncias de fato, mas sem perder a intencionalidade do cuidado, a sensibilidade do coração e o amor fiel pelos valores revelados de um dom. (Buytendijk, 1960, p. 472)

Ao ler mais essa passagem, difícil não perceber sobre o quanto Buytendijk parece ambientar-se, tão proximamente a Winnicott, na atmosfera da psicanálise infantil (Winnicott, 2006; Dors, 2015a, 2015b, 2016). Trata-se de uma convergência também instrutiva para com Goldstein, autor do qual Buytendijk partilhara muitas de suas intuições (Silva, 2012; 2015).

 

Concluindo

Para finalizar, duas ordens de questões poderiam, a princípio, ser evocadas, numa direção recíproca. A primeira delas situa até onde Buytendijk é um espiritualista ao evocar a noção de espírito materno. A segunda circunscreve em que medida essa problemática abre outra que poderia muito bem ser-lhe seu complemento mais imediato: o espírito paterno.

O texto, do início ao fim, deixa claro a forte intenção de rebater toda forma de espiritualismo, mormente se essa rubrica designar algum gesto que acene alguma posição doutrinária como a do idealismo alemão ou do neocriticismo francês. Buytendijk se coloca como que inteiramente avesso à categoria clássica de espírito, razão pela qual ele visa uma maior aproximação com autores como Merleau-Ponty e Gabriel Marcel. Com relação ao primeiro, o pensador holandês retoma conceitos capitais como a de estrutura do comportamento, percepção, experiência originária e o sentido da história. É nessa medida que a tese anti-darwiniana de Merleau-Ponty (1945, p. 199), de que "o homem é uma ideia histórica e não uma espécie natural", ganha um peso considerável nas reflexões buytendijkianas. E é sob esse prisma que a noção de gênese se revestia estruturalmente pela dinâmica da historicidade em franco diálogo com o movimento psicanalítico que, como se sabe, o fenomenólogo francês travara intenso debate.

De Gabriel Marcel, Buytendijk reinscreve a significação última da ideia de encarnação e seu valor ontológico transcendente. Situar, portanto, a categoria de espírito, nesse contexto, é, antes, evocar um nível de experiência mais radical, isto é, concreta, carnal. Fato é que tanto Marcel quanto Merleau-Ponty são críticos contumazes do idealismo fenomenológico de matriz husserliana/sartriana bem como da tradição fortemente espiritualista que marcara época, na passagem de século (XIX-XX), na França. Assim, o que Buytendijk busca é ressignificar a noção de espírito projetando-a noutro horizonte. A experiência da maternidade talvez seja um caso exemplar dessa dimensão única e irredutível que se abre. Fica patente, à letra do texto, que, em inúmeras de suas formulações (até pelas fontes citadas), paira sempre uma inspiração de cariz teológico-cristã. Isso, contudo, de modo algum compromete o seu sentido e alcance, sobretudo naquilo que sua obra pode revelar de originalmente fenomenológico.

Finalmente, parece-nos, ainda, que a concepção buytendijkiana de espírito não separa, na esfera mais ampla da experiência humana, a essência profunda da maternidade e da paternidade. Aliás, ambos os níveis coexistem, inextrincavelmente. É verdade também que, sob certos aspectos, a leitura de Buytendijk soa um sintomático conservadorismo à luz de nosso tempo em meio, é claro, ao caloroso debate que as questões de gênero têm assumido, de maneira implacável e, programaticamente, propositiva. O que, certamente, não diminui a relevância e o caráter genuíno e por que não provocativo de suas teses. Em face disso, por evidentes razões teóricas sem perder a perspectiva histórica, Buytendijk acentua bem mais o horizonte feminino da vivência humana tendo, pois, na maternidade um ângulo vivo e privilegiado de interesse. Nessa visão de conjunto, o estatuto psicológico-fenomenológico de seu trabalho diz muito. Trata-se de unir; não de separar. É esse vetor, enfim, fenomenológico que a obra buytendijkiana se orienta ao formular uma noção inteiramente nova e, ao fim e ao cabo, não reducionista acerca do mistério da vida, cujo cenário tem, na figura da mãe, um protagonismo exemplar.

 

Referências

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Recebido em 14.09.16
Primeira Decisão Editorial em 29.03.17
Aceito em 19.05.17

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