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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.24 no.2 Goiânia maio/go. 2018

http://dx.doi.org/10.18065/RAG.2018v24n2.4 

ARTIGOS: RELATOS DE PESQUISA

 

Deixou o corpo em casa, foi para terapia: o corpo segundo psicólogos

 

He/she left the body home, went to therapy: the body according to psychologists

 

Ha dejado el cuerpo en sucasa, sefue a la terapia: el cuerposegún los psicólogos

 

 

Joanneliese de Lucas FreitasI; Paula ArenhartII; Mariana AbuhamadIII

IProfessora Associada da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Orientadora no programa de pós-graduação em Psicologia da UFPR. Endereço Institucional: Praça Santos Andrade, 50, sl. 215, Ala Alfredo Buffren, Centro, Curitiba - PR, CEP: 80060-240. Email: joanneliese@gmail.com
IIPsicóloga graduada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Email: arenhartpaula@gmail.com
IIIPsicóloga. Formada em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Psicologia, na linha de Avaliação e Reabilitação Neuropsicológica, pela UFPR. Email: mari_ana812@hotmail.com

 

 


RESUMO

O problema corpo-mente está historicamente vinculado à compreensão de psiquismo em psicologia. A literatura aponta que apesar de terem aumentado os estudos sobre corpo e corporeidade na psicologia brasileira, ainda prevalece entre psicólogos um conceito de corpo reduzido ao bios. No presente trabalho investigou-se a concepção de corpo entre psicólogos atuantes em uma cidade do sul do Brasil. Foram realizadas entrevistas com 21 profissionais, seguidas de análise qualitativa fenomenológica dos resultados utilizando-se o método de Van Manen. Foi observado que os participantes apresentam dificuldades na problematização da relação entre corpo e psiquismo e na articulação do tema em seus aspectos teóricos e práticos. Há uma tendência a separar os fenômenos em "interiores" e "exteriores". Em geral, entendem que o corpo estaria subordinado à linguagem e ao psiquismo, excetuando no adoecimento orgânico, quando a corporeidade ganha maior evidência. Concluímos que os entrevistados tendem a compreender o corpo de maneira dicotômica ao mental, predominando uma compreensão de corpo como mera expressão do psiquismo, freqüentemente desenraizado de sua historicidade.

Palavras-chave: Corpo; Psiquismo; Psicologia.


ABSTRACT

The body-mind problem is historically connected to the understanding of the psyche in psychology. The literature points out that despite the recent increase in the number of studies about body and corporeality in Brazilian psychology, the concept of a body reduced to bios still prevails among psychologists. In this paper, we investigate the conception of the body among psychologists in a city in southern Brazil. We interviewed twenty-one professionals and analyzed the results by Van Manen's phenomenological qualitative method. We observed that participants presented difficulties to circumscribe the relation between body and psyche and to articulate its theoretical and practical aspects. There is a tendency to separate phenomena as "inner" and "outer". Frequently they understand that the body is subordinated to language and psyche, except during organic illness when corporeality gains more evidence. We conclude that interviewees tend to understand the body in a dichotomous relation to the mental, as predominates among them an understanding of the body as a mere expression of the psyche, often uprooted from its historicity.

Keywords: Body; Psyche; Psychology.


RESUMEN

El problema cuerpo-mente es históricamente vinculado a la comprensión del psiquismo en psicología. La literatura señala que a pesar de haber aumentado los estudios sobre cuerpo y corporeidad en la psicología brasileña, aún prevalece entre psicólogos un concepto de cuerpo reducido al bios. En el presente trabajo se investigó la concepción de cuerpo entre psicólogos actuantes en una ciudad del sur de Brasil. Se realizaron entrevistas con 21 profesionales, seguidas de análisis cualitativo fenomenológico de los resultados utilizando el método de Van Manen. Se observó que los participantes presentan dificultades en la problematización de la relación entre cuerpo y psiquismo y en la articulación del tema en sus aspectos teóricos y prácticos. Hay una tendencia a separar los fenómenos en "interiores" y "exteriores". En general, entienden que el cuerpo estaría subordinado al lenguaje y al psiquismo, exceptuando en la enfermedad orgánica, cuando la corporeidad gana mayor evidencia. Concluimos que los entrevistados tienden a comprender el cuerpo de manera dicotómica al mental, predominando una comprensión de cuerpo como mera expresión del psiquismo, frecuentemente desenraizada de su historicidad.

Palabras-clave: Cuerpo; Psiquismo; Psicología.


 

 

Introdução

Compreender os problemas relativos à dimensão corporal humana implica pensar também o "psiquismo" e suas acepções, uma vez que historicamente, estas são duas concepções que se modulam e se implicam mutuamente (Costa, 2011). Trabalhos de autores tão diversos quando Piaget e Luria, bem como de filósofos com impacto relevante na psicologia, tal como Merleau-Ponty, não cessam de apontar para as relações entre corporeidade e consciência (Bueno, 1997). Refletir sobre o tema é, pois, ampliar a compreensão sobre como corporeidade e consciência são pesquisados e trabalhados em seus problemas teóricos e práticos.

O modo de se entender a relação soma-psiqué tem mudado ao longo dos anos no campo psicológico e tem se tornado cada vez mais, interesse da área (Freitas, Bevilacqua, Castilhos, Michel,& Pértile, 2015; Scorsolini-Comin & Amorim, 2008). Em uma revisão sistemática sobre a produção científica brasileira a respeito da temática do corpo e da corporeidade, Freitas et al. (2015) apontam que embora haja incremento no interesse pela questão em diversas perspectivas teóricas e áreas de aplicação, esta é ainda fortemente tratada apenas teoricamente pela literatura, pouco pensada em seus problemas práticos, aplicados e éticos. Tornando o problema ainda mais difícil, os autores apontam que são evidentes a complexidade e a fragmentação ontológica, epistemológica e metodológica deste campo, produzindo não apenas problemas diversos, mas também práticas e técnicas múltiplas e variadas.

O problema já esteve presente como tópico central do paralelismo psicofísico, mesmo que implicitamente (Araiza & Gisbert, 2007; Correio & Correio, 2014). Os primeiros estudos em psicologia que centram especificamente na experiência corporal do sujeito surgem no campo da neuropatia, no início do século XX. Atribui-se ao neurologista Henry Head a compreensão do importante conceito de "esquema corporal" que "de modo mais geral, trata-se de reconhecer a existência de um sistema dinâmico que constitui modelos organizados acerca de nossa condição corporal e que governa, principalmente, nossa postura e nossa motricidade" (Verissimo, 2012, p. 389). As variáveis psicológicas eram concebidas de maneira bastante limitada e o esquema corporal permitia explicar mudanças e problemas no nível corporal, além de atribuir ao corpo um papel de centralidade. Seu pressuposto era o de que tais mudanças seriam coordenadas por mecanismos neurais (Fisher, 1986; Pruzinsky& Cash, 2002).

Com Schilder (1935/1950) o conceito de esquema corporal permitiria a explicação de problemas como o do membro fantasma, tratando a problemática do corpo a partir de espaços de relação entre o sujeito e seu mundo, organizando os "conhecimentos pré-existentes acerca da relação entre psique e soma" (Penna, 1990, p. 167). Schilder sofreu influência da psicanálise e da sociologia e propôs uma nova leitura do conceito de esquema corporal, articulando estes saberes com a fisiologia, introduzindo o conceito de imagem corporal (Barros, 2005; Penna, 1990). A imagem corporal institui a existência de duas instâncias de realidade, uma interna a todo ser humano e outra externa ao mundo que sempre esteve lá. Não por acaso, segundo Barros (2005), "houve uma predominância do termo 'esquema corporal' na neurologia e de 'imagem corporal' nos meios da psicologia" (p. 548). De fato, de acordo com Capisano (1992), há na literatura "sinonímias de confusão" entre esquema corporal e imagem corporal, mesmo entre autores consagrados. Contudo, a literatura aponta que esta é uma temática que, ao menos do ponto de vista da produção científica, tem perdido espaço para outras compreensões do corpo e da corporeidade, mesmo entre psicanalistas (Freitas et al., 2015).

Outro campo clássico de reflexão sobre o corpo presente na psicologia é o da psicossomática, que também sofreu forte influência da psicanálise. Segundo Mello Filho (1992), a psicossomática desenvolveu-se em três fases: a inicial ou psicanalítica, a intermediária ou behaviorista e a multidisciplinar, com forte influência dos aspectos sociais em seu pensamento. Contudo, Freitas et al. (2015) apontam que este campo não tem produzido em suas publicações problematizações expressivas em torno do problema do corpo, quando comparada a outras áreas.

Desde o final do séc. XX vemos crescer a influência das abordagens fenomenológicas na psicologia (Castro & Gomes, 2011), com impactos importantes para a compreensão do problema do corpo e da corporeidade (Freitas et al., 2015). Sua contribuição permite-nos recolocar o bios em sua condição cultural e humana, radicalmente diferente da leitura cartesiana e das neurociências (Freitas, 2011). A perspectiva fenomenológica da corporeidade em psicologia é fortemente estruturada a partir das reflexões husserlianas de Körper e Leib, bem como dos estudos posteriores de Merleau-Ponty (1945/2009) sobre corpo. A psicologia fenomenológica fundamentada neste autor, evidencia a consciência como "consciência encarnada no mundo", sempre em situação irredutível ao nível biológico, constituindo-se como alternativa às explicações por vezes biologizantes, bem como às proposições construtivistas sobre o corpo (Ortega, 2008). Sua influência tem sido encontrada até mesmo como suporte para análises de perspectivas outras que não as fenomenológicas, tais como, por exemplo, no trabalho de Amorim e Ferreira (2008), nomeadamente no campo da psicologia do desenvolvimento.

O estudo de Freitas et al. (2015) aponta que no início do séc. XXI, no escopo da psicologia brasileira, a corporeidade tem sido predominantemente tratada em seu aspecto teórico, carecendo de estudos empíricos ou que apontem para problemas práticos. Os autores também chamam atenção para o fato de que tópicos tais como distúrbios alimentares, transexualidade e fibromialgia, são freqüentemente discutidos pela literatura psicológica sem qualquer referência a uma concepção de corpo ou corporeidade, apesar de intimamente conectados a esta temática.

A preocupação com o corpo como objeto e questão para as práticas psicológicas, não é recente (Neubern, 2013), contudo não há trabalhos publicados sobre os modos de compreensão do tema entre profissionais de psicologia (Freitas et al., 2015). Quando o corpo é discutido no bojo da prática é geralmente reduzido ao campo biológico, em oposição ao psiquismo (Correio & Correio, 2014; Neubern, 2013), conduzindo a métodos e práticas que paradoxalmente, não tematizam o corpo como problema psicológico, desbravando o comportamento, o campo simbólico ou o campo social, permitindo às ciências médicas e biológicas a colonização do somático (Birman, 1999;Connolly, 2013). Segundo Freitas et al. (2015) a área de atuação que mais tem se preocupado com a temática é a clínica, especialmente entre as abordagens fenomenológicas e psicanalíticas. Goia (2007) afirma que as terapias corporais exerceram forte influência sobre o imaginário dos profissionais de psicologia, entretanto não é um dado que foi corroborado pela literatura, não tendo sido apontadas as terapias corporais como influência marcante no campo teórico dos estudos sobre corpo (Freitas et al.,2015).

Há muito a literatura aponta uma separação entre o mundo acadêmico e a prática psicológica (Bastos & Gomide, 1989; Bastos, Gondim & Borges-Andrade, 2010). Em uma tentativa de compreender como o problema corpo-mente pode implicar na prática profissional do fisioterapeuta, por exemplo, Paim e Kruel (2012) investigaram os modos como estagiários do curso de graduação de fisioterapia entendem o corpo. Os autores concluem que suas concepções estão profundamente marcadas pela técnica e centradas na compreensão dos aspectos biológicos do corpo, apontando para entrelaçamentos importantes entre suas concepções teóricas e sua prática. Entretanto, em uma primeira busca no Google acadêmico não foram encontrados trabalhos semelhantes na psicologia. Nota-se que as revisões sobre o tema também não fazem referência a trabalhos sobre este problema, mas apontam aí uma lacuna. Constatando-se uma necessidade de maior compreensão desse fenômeno no campo da psicologia e suas implicações e impactos na prática psicológica, tal como apontado por Freitas et al. (2015), a presente pesquisa teve como objetivo investigar a forma como o corpo e a corporeidade são atualmente conceituados e compreendidos por psicólogos que atuam na clínica, seja em consultórios ou hospitais. Destaca-se que devido às confusões teóricas e inúmeras diferenças epistemológicas encontradas no estudo de Freitas et al. (2015), o presente trabalho tratou de forma equivalente os termos "corpo" e "corporeidade", entendendo que uma diferenciação de tais termos, não se coaduna com o escopo da pesquisa que tem por objetivo justamente compreender o modo como os profissionais entendem o problema, não cabendo a nós, portanto, defini-los a priori, mas justamente buscar compreender o modo como estes termos se mostram para certo grupo de profissionais da psicologia, em suas articulações teóricas e práticas. Destarte, os termos são tomados no presente trabalho como equivalentes.

 

Metodologia

Trata-se de um estudo exploratório, de caráter qualitativo. O foco do desenho metodológico - desde a construção da entrevista até a análise - foi o de investigar os sentidos atribuídos por psicólogos à temática do corpo, tanto do ponto de vista teórico, quanto do ponto de vista de suas experiências na prática clínica. Optou-se por um modelo de entrevista semiestruturado e os dados dos relatos foram submetidos a uma análise fenomenológica temática, segundo o método de Van Manen (1990). A análise proposta por Van Manen busca identificar no corpus dos dados falas significativas dos participantes e posteriormente, agrupa tais declarações em unidades temáticas. Em seguida, o pesquisador sintetiza os temas em uma descrição estrutural que possa contribuir para a compreensão da experiência do participante, no caso, com o problema da corporeidade, por meio dos sentidos revelados.

 

Participantes

Foram realizadas entrevistas com 21 profissionais de psicologia que atuam na área da saúde, recrutados por conveniência, sendo 18 deles atuantes em consultórios particulares e três em hospitais, representantes de variadas vertentes teóricas, na região da cidade de Curitiba/PR. Os 21 entrevistados, de ambos os sexos, tinham idade entre 24 e 58 anos. Apenas quatro atuavam há menos de cinco anos, todos os outros atuavam na área há mais de dez. De todos os entrevistados apenas três possuíam título de especialista pelo Conselho de Psicologia.Os critérios de inclusão foram: ser formado em psicologia e atuar na área da saúde há pelo menos um ano. O critério de exclusão foi negar-se a assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

 

Procedimentos

Para a realização das entrevistas foi apresentado TCLE que informava ao participante os detalhes da pesquisa, seu caráter voluntário e confidencial, bem como todos seus direitos. Todos os procedimentos éticos foram resguardados. As entrevistas foram realizadas por duas das três pesquisadoras responsáveis. Todas as entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas.

O roteiro de entrevistas semiestruturado era composto por basicamente três eixos estruturantes. O primeiro eixo (1) A Definição de Corpo, teve o objetivo de compreender de que maneira profissionais distantes do debate teórico, definem corpo conceitualmente; (2) O Lugar do Corpo do Paciente na Prática Psicológica, que pretendeu investigar, por meio da solicitação de exemplos práticos de sua atuação, se a dimensão corporal tem sido relacionada à dimensão psíquica na prática psicológica; e (3) O Corpo do Psicólogo na Prática, com o interesse de investigar como o profissional percebe seu próprio corpo e o corpo do seu cliente, uma vez que essa relação é parte significativa das diversas formas de intervenção. Ao final, perguntou-se quais autores os participantes utilizavam para a compreensão da temática da pesquisa, com o objetivo de esclarecer as referências utilizadas para o trabalho, visto que não necessariamente a filiação teórica é determinante destas relações práticas.O roteiro se estruturou da seguinte maneira:

1. Perguntar sobre os elementos que fundamentam a sua prática em psicologia (Ex: Com o que você trabalha, especificamente? No que a sua prática está centrada?)

2. O que é corpo para você?

3. Este corpo X (inserir definição do entrevistado) aparece na sua prática? - Se sim: Como aparece?

4. Perguntar sobre exemplo da atuação onde a questão corporal se apresenta.

5. E o corpo do terapeuta? Tem relevância no processo terapêutico? De que modo?

6. No que diz respeito ao corpo, quais autores lhe oferecem subsídios para a sua prática? Qual a relação entre esta teoria e a sua prática?

 

A análise seguiu os seguintes passos metodológicos para a construção temática (Van Manen, 1990): (1) abordagem holística para identificação de falas e expressões significativas; (2) abordagem seletiva para apreensão de falas representativas; (3) abordagem detalhada ou linha por linha para aprofundamento da compreensão de sentido e (4) agrupamento das expressões para a discriminação das Unidades Temáticas e descrição estrutural das mesmas.

 

Resultados e Discussão

As unidades temáticas foram reagrupadas em quatro grandes eixos, em função daqueles sentidos que se mostraram mais evidentes e relevantes frente aos objetivos do trabalho, a saber: (a) Sentidos de Corpo; (b) Elementos Centrais Norteadores da Prática Psicológica; (c) O Lugar do Corpo do Paciente na Prática Psicológica e (d) O Corpo do Psicólogo, conforme pode ser verificado na Tabela 1.

Destaca-se que não houve nenhuma tendência significativa de respostas quanto à linha teórica, especialização ou área de atuação. Dos 21 profissionais entrevistados, apenas quatro indicaram facilmente autores que lhes oferecem respaldo teórico em relação às concepções de corpo e corporeidade, o que conduz ao questionamento se realmente estes são considerados pelos psicólogos como objetos ou problemas relevantes. Os 17 entrevistados restantes, ou não sabiam indicar nenhum autor que lhes fosse uma referência na área, ou acabaram indicando dois dos autores best-sellers em publicações sobre a temática: Pierre Weil e Wilhelm Reich. Contudo, ressalta-se que apesar dessas indicações, tais autores não representam referência para os participantes ou suas abordagens, apontando para uma inconsistência prático-conceitual no trato da problemática, ou mesmo, uma invisibilidade do tema para estes profissionais que não conseguem identificar em suas abordagens autores de relevo para o seu estudo, ou mesmo se o corpo é campo de estudo em sua perspectiva.

Observa-se a partir destes dados que as terapias corporais ainda exercem influência sobre o imaginário dos profissionais de psicologia, conforme defendido por Goia (2007), entretanto, sua influência técnico-teórica na prática profissional parece ser pequena, como veremos a seguir. Alguns profissionais declararam não utilizar nenhuma literatura referente à temática, apontando mais uma vez para o problema da invisibilidade do corpo enquanto capítulo relevante para o psicólogo, o que conduz ao questionamento sobre como e se tais questões têm sido tematizadas na graduação.

Eixo 1: Sentidos de Corpo

Os sentidos dados ao corpo nas entrevistas, podem ser divididos em três grupos distintos que refletem três noções diferentes sobre a relação entre corpo e psiquismo, a saber, (a) Compreensão teórica e prática da unidade entre mente e corpo, (b) Compreensão teórica da unidade entre mente e corpo e (c) Compreensão de mente e corpo como entidades separadas.

No primeiro grupo, percebe-se que seja do ponto de vista teórico, seja em exemplos práticos, as concepções de corpo dos entrevistados estão fundadas em uma compreensão de que corpo e mente constituem-se como uma unidade mente-corpo. O corpo é, pois, apresentado pelos entrevistados como articulado em uma unidade constitutiva com o psiquismo. Essa categoria reúne as compreensões de corpo não dualistas, nas quais não há sentido separar o somático do psíquico. Aqui, apenas dois psicólogos romperam com a concepção dual de corpo-mente, assinalando que o sujeito "é corporeidade" (sic) e por isso não haveria distinção entre corpo e sujeito, apontando uma compreensão fenomenológica de corpo, embora sejam profissionais que não se alinham a tal abordagem. Esta perspectiva aparece tanto nas respostas conceituais dos dois participantes, quanto em seus exemplos práticos: "corpo é um jeito da gente se colocar no mundo e também da gente poder discutir esse mundo" (P20); "é o todo do sujeito" (P10).

Na segunda unidade temática, os psicólogos entrevistados demonstraram uma concepção teórica de corpo como fenômeno não dicotomizado, ou seja, o definem a partir de uma referência de totalidade, não dualista, como podemos verificar: "eu não sei se consigo separar muito o corpo da mente e tudo, eu acho que é uma coisa só, né, um todo" (P6); "[o corpo] sou eu, eu sou corpo" (P5). Entretanto, nota-se que ao relatarem exemplos de suas práticas, estes mesmos participantes contraditoriamente falaram do corpo como manifestação de uma dimensão interior, das emoções, do inconsciente ou mesmo como uma expressão da saúde ou de uma autoimagem interiorizada conforme, por exemplo, observa-se na fala de P3: "Eu sempre imagino que o corpo acaba sendo ou refletindo a forma como uma mente está, né", logo após de ter definido o corpo como unidade, totalidade: "eu imagino que seria um conjunto nos-so, ... alguma coisa inteira, o corpo, a mente, as suas manifestações como sendo um conjunto, não separados". Identifica-se, portanto, que esse grupo a princípio tem uma compreensão teórica que busca romper com concepções que antagonizam soma e psiqué, porém, os entrevistados demons-tram dificuldade de implicar esta concepção em suas intervenções práticas. Nota-se que do ponto de vista das intervenções técnicas, o psiquismo se apresenta para estes mesmos participantes como aspecto predominante na compreensão dos fenômenos, em detrimento dos eventos sociais ou das expressões e vivências corporais, sendo o psiquismo considerado como a causa destes fenômenos últimos.

O terceiro grupo, que apresentas compreensões teóricas de mente e corpo como entidades separadas, agrupa as concepções fortemente dicotomizadas tanto nas descrições teóricas do tema, quanto em sua exemplificação da prática. Esta é uma concepção sobre a relação mente-corpo que parece ainda se apresentar com maior força entre os entrevistados, pois além de estar explícita em seus argumentos teóricos e em seus exemplos práticos, é a unidade temática que agrega o maior número de participantes, tal como podemos notar na tabela 1.

Neste grupo, o corpo sempre aparece nos discursos como uma categoria objetiva, delineado desde de uma perspectiva mecanicista e dualista, e representa, dessa forma, apenas uma "parte" do "indivíduo". É destacado nas falas em seu aspecto concreto e biológico, como depositário de conflitos internos, ou como reflexo do próprio "psiquismo". Como depositário, o corpo surge como o reflexo de um estado emocional e, nesse sentido, se transforma em um "corpo-objeto", puro reflexo da psiqué: "Bom, o corpo é um depositário, muitas vezes, né, um depositário, assim, de sintomas, da angústia, da tristeza... ele manifesta muitas vezes aquilo que você não quer dizer" (P14).

Analisando as três diferentes apreensões sobre corpo, nota-se que, apesar de nem sempre problematizado e por vezes invisibilizado, a questão parece estar conquistando maior espaço não apenas na literatura, tal como apontam Freitas et al. (2015) e Scorsolini-Comin e Amorim (2008), mas também tem sido tema e ponto de articulação e reflexão nas práticas psicológicas. Porém, pudemos identificar nas entrevistas uma dissonância entre o modo como o corpo é compreendido teoricamente e como é tratado na prática. Mesmo constatando que uma parte significativa das conceituações encontradas sobre o corpo utiliza-se da ideia de "totalidade", delineando o seu significado a partir de um sentido de unidade, poucos profissionais demonstraram de fato romper com um pressuposto de separação entre as instâncias psíquicas e somáticas ao exemplificarem suas práticas. Essa dissonância parece refletir uma apropriação ainda superficial da escassa, mas crescente, bibliografia que a psicologia dispõe sobre o assunto, uma vez que a literatura aponta que as tendências das compreensões teóricas em psicologia são plurais e rejeitam apreensões dicotomizadas do problema corpo-mente (Freitas et al., 2015).

Os resultados da pesquisa evidenciam um corpo "dividido" entre teoria e prática. Apesar do frequente relato de que se considera o sujeito como totalidade, ao longo das entrevistas essa totalidade foi representada como uma mera soma entre as partes - corpo, "mente" e mundo - e não como uma configuração complexa do humano, confirmando a tese de Ortega (2008) de que tal dicotomia mente-corpo não foi ainda superada pela psicologia. Não que o corpo tenha sido negligenciado na relação entre sujeito e mundo, ou em relação a uma "interioridade", mas ele é compreendido de maneira tal que apenas se relaciona, parte extra partes, com o "mundo" e com a "interioridade", cindindo o humano.

É reconhecida, sem dúvida, a sustentação material exercida pela fisiologia do corpo humano e o sistema nervoso em nossa condição humana. Entretanto, parece-nos ainda difusa e pouco aprofundada entre os entrevistados a compreensão de que é diferente considerar que, apesar de as condições neuropsicológicas serem condições sine qua non para o psiquismo, não são, entretanto, per se produtoras do fenômeno humano, nem tampouco podem ser compreendidas como causa de uma consciência, ou inversamente a consciência ou o psiquismo, causa de fenômenos tais como o adoecimento (Freitas, 2011). Aqui se levanta a hipótese de que a questão sobre a relação mente-corpo não tem sido discutida nos cursos de psicologia, no mínimo no que tange à relação teoria-prática, tão relevante para a formação, como nos aponta Bueno (1997), especialmente ao notar-se que os avanços conceituais apontados pela literatura (Freitas et al., 2015; Scorsolini-Comin & Amorim, 2008) não estão representados nas compreensões e práticas dos profissionais aqui estudados.

Eixo 2:Elementos Centrais Norteadores da Prática Psicológica

Após análise cuidadosa do material, podemos afirmar que há uma tendência entre os participantes para considerar o corpo em suas práticas, seja como expressão, seja como modo de alcançar a autopercepção ou, ainda, como recurso a ser utilizado pelo psicólogo, mesmo que não seja considerado por eles como um elemento de relevância central para o seu trabalho. Os elementos centrais que constituem e norteiam a prática do psicólogo, tal como descritos pelos participantes foram:(a) o Discurso, (b) a História Pessoal e (c) O Paciente. Frente às dificuldades apresentadas por alguns para responder sobre quais aspectos sua prática se fundamenta, percebeu-se que a prática psicológica é alicerçada em diferentes questões que nem sempre são evidentes aos próprios profissionais.

O discurso foi referenciado como elemento norteador da prática em psicologia que, segundo os entrevistados, além de articular a história pessoal, distingue o sujeito, explícita ou implicitamente. Aqueles que destacam o discurso como central em seu fazer técnico, o fazem por entender que é a partir da fala que são realizadas intervenções e progressos diversos em seu trabalho, tais como: a construção do vínculo terapêutico, a organização das sensações de seus clientes ou a edificação de um novo repertório, como, por exemplo, explicitado na fala de P5: "o discurso é reconhecidamente o mais importante". As dualidades corpo-mente, interioridade-exterioridade, também aparecem nos casos em que o corpo é significado como discurso e se mostraria na clínica apenas como tal.

Mesmo quando os psicólogos apontavam que o elemento norteador de suas práticas é A História Pessoal, esta foi sempre vinculada ao discurso. Nota-se que a fala para este grupo é sempre destacada - nunca a corporeidade -como elemento estruturador e articulador de sentido da história pessoal, como observa-se na fala de P14: "essa história [do paciente] é como ela se narra".

Quando o elemento norteador da prática psicológica foi o Paciente, pode-se perceber que o corpo apareceu, mesmo que implicitamente, como elemento significativo, porém, sempre articulado ao discurso. Nesse sentido, podemos considerar que o corpo está inserido como recurso do fazer psicológico, conforme afirmação de P6: "eu acho que você tem que olhar um todo, né, o momento, a forma como ele diz, a voz..., a expressão muitas vezes". O discurso seria, portanto, um modo pelo qual o corpo se insere na clínica, mas aqui, um discurso indireto, como expressão corporal.

O corpo estaria, deste modo, inserido na clínica de três modos: como um "corpo que fala": "acho que é muito importante o quanto o corpo pode comunicar coisa pra gente"(P3); como delimitador e denunciante de uma fala:"[o corpo] é então instrumento nesse sentido de estar dando alguns indícios de como que você tem que trabalhar (...) o corpo coloca assim, um limite, de como você vai trabalhar e por onde" (P9); ou ainda, como uma fala sobre o corpo, desconectada da prática, como discutido acima.

O corpo não surgiu explicitamente como elemento norteador da prática dos entrevistados, entretanto destaca-se que o tema apareceu implicitamente como elemento fundante do vínculo terapeuta-cliente em três entrevistas (P2, P7 e P9). Explicando: os psicólogos entrevistados entendem que o vínculo entre psicólogo e paciente seria alcançado não apenas por meio da fala, mas também por meio do corpo, e nesse sentido, o corpo se inseriria como o locus da empatia no estabelecimento do vínculo e da relação: "o corpo é também como um instrumento de comunicação, de interação ali do vínculo"(P9).

Ter o discurso como central para o trabalho do psicólogo é coerente com a prática psicoterapêutica, uma vez que o relato do paciente é o material de trabalho primeiro neste contexto. Interessante notar, como fica evidente nas entrevistas, que toda experiência do corpo se "contamina" pela ideia da linguagem e da comunicação, como vemos na fala de P5: "o discurso é reconhecidamente o mais importante, né", onde o corpo passa a se apresentar como um corpo "falante", que denuncia os processos psíquicos humanos, porém, destaque-se: sempre como instrumento para o sentido, nunca como origem do sentido: "o corpo aparece e me reflete bastante coisa desse morador"(P9); "todas as emoções acabam refletindo no corpo"(P12).

Eixo 3: O Lugar do Corpo do Paciente na Prática Psicológica

Na análise deste eixo percebe-se que há várias formas de compreensão sobre os modos como o corpo do paciente pode aparecer na prática psicológica. As temáticas aqui delimitadas foram: (a) Reflexo/ Expressão de Interioridade, (b) Psicossomática, (c) Instrumento de Trabalho, (d) Evidência Clínica, (e) Denúncia de Estado Emocional, (f) Casos-Limite e (g) Imagem Corporal.

O único momento no qual foi encontrada uma diferença significativa entre as falas dos psicólogos hospitalares e daqueles que trabalham em consultórios, diz respeito à significação do corpo do paciente. Destaca-se que não foram encontradas diferenças entre abordagensou especializações, como foi apontado anteriormente. Entre os psicólogos que atuam em consultórios, o corpo apareceu como evidência de estados corporais momentâneos, enquanto entre aqueles psicólogos que atuam em contextos hospitalares, o corpo emerge como marca permanente que afeta inquestionavelmente a direção da intervenção. Tal diferença aponta para o fato de que a área de atuação pode marcar as compreensões a respeito do corpo mais densamente que o referencial teórico adotado. Entretanto, as alterações corporais observadas nos processos de adoecimento orgânico não pareceram ressaltar aos entrevistados quaisquer consequências maiores além de uma alteração da imagem corporal, marcando que diferentemente da tendência apontada nos estudos teóricos (Freitas et al., 2015), o conceito de imagem corporal ainda parece ter repercussões nas compreensões e no fazer cotidiano dos psicólogos.Temos como exemplo a fala de P1 "eu trabalho muito com a alteração de imagem corporal, né...o tratamento oncológico afeta muito a imagem corporal e a percepção que a pessoa tem do seu próprio corpo também se altera".

Mesmo com as reconhecidas ambiguidades levantadas, apesar de ainda ser pouco problematizado, o corpo e a corporeidade parecem ganhar posição de maior destaque em casos que apontam para questões de saúde e adoecimento, confirmando os dados de Scorsolini-Comin e Amorim (2008) e Freitas et al. (2015). Apesar de o tema parecer assumir posição de importância em tais casos, é automaticamente tomado como "reflexo", carecendo, portanto, de um espaço de reflexão mais profunda, restringindo-se a ser tomado em seu aspecto biológico, tal como apontado por Correio e Correio (2014) e Neubern (2013). Essa necessidade se instaura à medida em que percebemos a dificuldade em delimitar o corpo como categoria conceitual em psicologia, temática de relevância para futuros estudos.

O modo mais comum de compreensão do corpo na prática psicológica encontrado foi como "reflexo de um campo mental", de uma interioridade ou do inconsciente, isto é, um corpo que reflete as questões emocionais do sujeito, como vemos por exemplo, em P12: "todas as emoções acabam refletindo no corpo". Na análise dos exemplos práticos fornecidos pelos entrevistados, nota-se que o corpo é também significado como expressão de um "eu" interiorizado: "a gente se utiliza muito dessa linguagem corporal, que vai expressar o eu da pessoa, né" (P7), ou ainda: "O corpo é a tela, onde as nossas emoções são projetadas, então ele vai...ele vai receber essa emoção que pode ser uma forma alegre né, como uma paixão"(P1).

Outro modo frequente de compreensão sobre a inserção da corporeidade na prática, remete aos conceitos da Psicossomática, onde o corpo é evidenciado pelos fenômenos das somatizações e das patologias: "tem muito do corpo na psicossomática, do quanto as pessoas adoecem por conta do psíquico... têm muitas pessoas que eu vejo que não conseguem lidar com algumas situações e adoecem, né" (P6). Mesmo quando não foi estabelecida uma relação direta entre patologias diversas e corporeidade, o corpo é o lugar concedido ao sofrimento humano: "a depressão é uma coisa que deixa o corpo acabado, bem visivelmente"(P2).A compreensão do sofrimento orgânico enquanto somatização permite que a corporeidade se torne um problema de maior evidência, fortemente manifesta para os participantes da pesquisa e corrobora os estudos de Correio e Correio (2014) e Neubern (2013), que apontam que o tema da corporeidade se restringe ao biológico no contexto das discussões da prática psicológica.

Esse corpo que "comunica "está, nas entrevistas, diretamente vinculado a um corpo que subsidia o trabalho do terapeuta, tal como um Instrumento de Trabalho, demarcando a separabilidade entre corporeidade e sujeito, entre corpo e consciência. O corpo do cliente assim tematizado é tido como um recurso que oferece subsídios ao terapeuta, alerta sobre as condições do paciente e também pode ser um instrumento para que ele redirecione a atenção do cliente a fim de que este se perceba de outro modo, como vemos, por exemplo, na fala de P13: "vou usando o corpo como referência pra ir trabalhando né, pra ir chamando a atenção, porque daí é uma coisa bem concreta". Em alguns casos, essa elaboração ganha sofisticação e complexidade, e o corpo aparece no cotidiano da prática como se influenciasse na elaboração psíquica, isto é, o corpo é utilizado como um dispositivo para o paciente atingir um estado de relaxamento que permitiria a emergência de processos criativos: "eu uso como um dispositivo para o paciente entrar em estado de relaxamento... que vai permitir os estados de regressão à dependência na clínica e de emergência de processos criativos, né" (P4).

Outro modo de significação do corpo no processo terapêutico é como Denunciante de um Estado Emocional, o que também pode oferecer, segundo os entrevistados, subsídios ao terapeuta e promover redirecionamentos do processo. Em outras palavras, o corpo ganha relevo quando a fala e a corporeidade estão incongruentes e contraditórias, uma em relação à outra, estabelecendo-se como um tipo de linguagem: "às vezes o cliente diz uma coisa e o corpo fala outra, né, às vezes fala: 'eu não tô nervoso', mas você vê a pessoa mexendo muito a perna, né, vermelho" (P6).

Além de ser considerado como denunciante de um estado emocional momentâneo, o corpo é também tido pelos psicólogos como o lugar da Evidência Clínica, onde os avanços se tornam evidentes tanto em suas formas concretas tais como a postura, o andar e o vestuário, até nas mudanças estabelecidas na relação com o corpo ao longo do tratamento: "os pacientes ao longo do tratamento vão mudando a maneira de se vestir, né, vão mudando a maneira de se portar..." (P4).

As temáticas Casos-limite e Imagem Corporal apresentam pouca expressividade, mas são relevantes por tornar visível o corpo como um objeto pouco pensado na prática clínica cotidianamente, se manifestando apenas no extraordinário. Apenas fora do limite, no exacerbado, no exagero, há corpo:

"em alguns casos limites, em casos mais graves, em situações iniciais, talvez é... quando a coisa é muito corpórea, uma agitação muito grande, daí eu considero, né" (P5); ou ainda:

(...) quando elas conseguem falar dessa dor da perda, automaticamente esse corpo vai voltando ao estado "normal", digamos assim que é o estado natural que é o corpo dela, ela sai dessa conversão à medida que ele coloca essa dor em palavras, aí o corpo deixa de se manifestar. (P17)

A imagem corporal agiria como uma representação, segundo P13: "em algum momento da sessão eu peço para o paciente fazer um bonequinho ali que represente ele, quer dizer ele vai me mostrar um corpo, né... geralmente são pessoas que têm uma imagem regredida dentro de si mesmas".

Nota-se que nos relatos de suas atividades práticas, grande parte dos psicólogos pareceu incentivar a autopercepção corpórea de seus pacientes como uma possibilidade de conscientização da realidade psíquica, em que, a partir da corporeidade do cliente, poder-se-ia inferir sobre sua vida psíquica. Isso porque a corporeidade aparece fortemente como manifestação de um tipo de linguagem - a linguagem corporal, que viria concretizar a subjetividade em determinado momento da experiência. O corpo, então, favoreceria nesses casos a individuação. As experiências subjetivas são compreendidas pelos entrevistados como sendo vividas e expressas com e pelo corpo. O corpo do cliente seria, portanto, um dado imediato sobre o sujeito que permite o trabalho do terapeuta, mas ainda um sujeito cindido.

Percebe-se que o corpo não é considerado como um elemento central nas práticas dos profissionais entrevistados, nem tampouco tema frequente de suas reflexões cotidianas. Por outro lado, nota-se que o corpo emerge ao longo das entrevistas como fortemente articulado à prática, mesmo que de formas variadas, servindo de apoio para avaliação do processo psicoterapêutico e das intervenções técnicas, porém, não exatamente no campo das psicoterapias corporais, tal como defendido por Goia (2007), mas marcadamente influenciados por conceitos da psicossomática e da imagem corporal, mesmo que pouco estruturados pelos entrevistados.

Eixo 4: O Corpo do Psicólogo

O Corpo do Psicólogo parece não merecer a atenção dos entrevistados no processo psicoterapêutico, uma vez que este não foi evocado antes que fosse perguntado especificamente sobre ele, excetuando-se nas entrevistas de P2 e P4. Porém, quando questionado, o corpo do psicólogo tornou-se elemento indispensável às práticas psicológicas para todos os entrevistados. As temáticas aqui apreendidas foram: (a) Corpo como Sujeito, (b) Elemento de Comunicação e (c) Acolhimento.

O corpo do terapeuta ser compreendido como Sujeito dentro do setting terapêutico significa que os psicoterapeutas entendem que seu corpo representa a sua própria unidade, o lugar das experiências vividas que estaria interferindo e influenciando diretamente na relação terapêutica: "é claro que faz, né [parte da relação terapêutica], considerando que eu também sou meu corpo" (P5).

É bastante expressiva a compreensão do corpo do terapeuta como Elemento de Comunicação, contato e troca: "comunicação corporal, é nosso, é instintivo, e necessariamente vai interferir no relacionamento paciente-terapeuta" (P17). Mas não é apenas como contato que o corpo aqui aparece. Percebe-se que os entrevistados consideram que a relação entre terapeuta e cliente sofre influência do corpo concreto do terapeuta, da sua postura, dos seus olhares, movimentações, timbre de voz e inclusive de seu vestuário, apontando para os aspectos sociais e simbólicos do corpo na cultura:

a forma como o terapeuta se veste... como ele se comporta com o seu corpo, também fere na relação com o paciente... o que você ia achar se eu viesse trabalhar de bermuda ou chinelo, também existe uma postura que a gente tem que respeitar. (P1)

Com o intuito de estabelecer qualidade na relação terapêutica, o corpo do terapeuta também aparece como carecendo de cuidados básicos acerca de suas necessidades fisiológicas e psicológicas: "tem que comer bem pra você não estar com fome no horário da sessão, não dá pra ficar com vontade de ir pro banheiro..." (P2). Outro aspecto relevante para a relação terapêutica é, segundo os entrevistados, um desgaste do corpo do terapeuta ao longo do trabalho. Como relata P4: "tem uma paciente, assim, que me deixa tensa, tensa, tensa, que eu termino o atendimento, sabe, com uma dor nas costas". Para P4 e P6, isso acontece também porque o corpo do terapeuta está inserido na prática como lugar de acolhimento: "a postura do terapeuta interfere bastante, de você acolher, de você ouvir... o paciente vai se identificar muito com isso, né" (P6).

Ao tentar compreender o lugar do corpo do próprio psicólogo na prática, pode-se perceber que seu corpo está completamente inserido em suas práticas, já que a caracterização de suas atuações como relacionais pressupõe que esse corpo seja o lugar de estabelecimento da relação e da interação. Apesar disso, este corpo foi descrito com pouca representatividade no processo. Apenas uma pequena parte dos entrevistados consegue pensar sobre seu corpo, mas, faz-se imperativo observar que não apresentar reflexões sobre seu corpo não se relaciona nos resultados a uma redução da importância do terapeuta na prática psicológica, apenas evidencia a separação corpo-mente presente na compreensão dos entrevistados.

 

Considerações Finais

A manipulação do corpo pelas ciências o tem compreendido apenas em sua concretude e materialidade, propiciando a omissão desse corpo enquan-to conjunto de experiências subjetivas. É o que percebemos nas entrevistas: os participantes entendem que o homem experimenta seu corpo para construir sua imagem corporal, todavia, há um esquecimento do corpo, que somente é lembrado no adoecimento. Nesse sentido, o adoecimento parece ser condição relevante para que o campo da psicologia questione e reformule as concepções vigentes sobre o corpo e a corporeidade, o que pode ser retomado e aprofundado por estudos posteriores.

Neste mesmo caminho, merece investigação mais aprofundada a relação da área de atuação com as concepções de corporeidade, uma vez que se demonstrou que a área de atuação parece ter mais influência nas concepções sobre corpo e corporeidade do que a formação teórica. Destaca-se ainda a relevância de ampliar tal estudo para outras áreas de atuação do psicólogo, bem como um aprofundamento das questões relativas à prática específica do psicólogo hospitalar, devido à sua lida com o adoecimento orgânico diariamente, sendo este, como apontado, um problema relevante para que o corpo seja compreendido de modo específico entre os entrevistados.

Percebe-se a necessidade de um aprofundamento do tema pela Psicologia, frente à falta de unidade encontrada entre o discurso dos entrevistados e a literatura científica, bem como entre seus discursos e exemplos práticos. Se por um lado o corpo está sendo conceituado a partir da ruptura com o dualismo cartesiano, essa ruptura ainda é superficial, pois, nas entrevistas analisadas, ela não se articula com um referencial teórico adequado e, na maioria das vezes, não se encontra presente nos exemplos.

Concluímos que entre os psicólogos entrevistados, o corpo não é visto desconectado da psiqué, mas ainda é fortemente representado como reflexo dessa. Percebemos que as concepções sobre corpo são ainda fortemente marcadas pelos conceitos de "esquema corporal" e "imagem corporal", primeiros construtos sobre a questão em psicologia. A corporeidade estaria conectada sim à subjetividade, mas apenas como imagem ou reflexo, raramente tida como lugar de apreensão do sentido ou da própria emergência de sentido como vemos nas perspectivas fenomenológicas, a despeito de se articular com o fenômeno da linguagem em alguns exemplos. Este dado mostra que apesar de estudos apontarem para um incremento da influência desta abordagem do ponto de vista teórico, seu impacto na prática e suas implicações técnicas não se mostram ainda significativas.

Nota-se, como apontado pela literatura, uma separação entre o mundo acadêmico e a prática, especialmente no que tange à compreensão da temática do corpo e da corporeidade. Ao observar as dificuldades em problematizar a relação entre corpo e psiquismo encontradas nas entrevistas, e a tendência a uma separação inequívoca entre "interioridade" e "exterioridade", questionamos sobre a condução da formação em psicologia, tendo em vista que grande parte das teorias psicológicas rejeitam noções como "interioridade" e "exterioridade", desde algumas perspectivas fenomenológicas, passando pela análise do comportamento e leituras estruturalistas da psicanálise, ou mesmo perspectivas histórico-culturais contemporâneas. O fazer psicológico contemporâneo parece, constantemente, estar buscando assimilar o mental ao físico. Entretanto, a relevância do corpo entre os psicólogos entrevistados ainda se revela atrelada a um projeto de uma "engenharia metafísica", na qual a atitude mental se insere em uma atitude corporal de maneira dicotômica e frequentemente desenraizada de sua historicidade.

 

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Recebido em 12.07.16
Primeira decisão editorial em 27.04.17
Segunda decisão editorial 03.08.17
Aceito em 19.11.17

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