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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.24 no.2 Goiânia maio/go. 2018

http://dx.doi.org/10.18065/RAG.2018v24n2.7 

ARTIGOS: RELATOS DE PESQUISA

 

"Meu nome é Ana" - um estudo fenomenológico-existencial da experiência de mulheres com anorexia nervosa

 

"Hi, my name is Ana" - a women's experience existential-phenomenological study with nervosa anorexia

 

"Hola, mi nombre es Ana" - un estudio de las mujeres experimentan fenomenológico-existencial con anorexia nervosa

 

 

Élida Mayara da Nóbrega CunhaI; Elza Maria do Socorro DutraII

IMestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Gestalt-terapeuta e Especialista em Psicologia Clínica com foco Humanista-Existencial Fenomenológico pela UFRN. E-mail: elida.mnc@gmail.com
IIProfessora Titular de Psicologia Clínica Fenomenológica na Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Pós-doutora pela UFF-RJ. Docente-pesquisadora do PPgPsi, orientadora de Mestrado e Doutorado. Coordenadora do Grupo de Estudos Subjetividade e Desenvolvimento Humano-GESDH/UFRN/CNPq. Coordenadora do GT- Psicologia & Fenomenologia-ANPEPP (2014-2016) e Vice-coordenadora (2016-2018). E-mail: elzadutra.rn@gmail.com

 

 


RESUMO

A pesquisa teve como objetivo compreender, a partir de um olhar fenomenológico-existencial heideggeriano, a experiência de anorexia. Foram utilizadas entrevistas semiestruturadas como meio de acesso à experiência. Foram entrevistadas duas pessoas do sexo feminino, com idades de 17 e 30 anos. A entrevista iniciava-se com uma pergunta disparadora: "Como foi, ou como é, a sua experiência de anorexia?", que permitiu às entrevistadas falarem sobre as suas experiências. O diário de campo também foi utilizado como recurso metodológico, buscando uma maior aproximação das experiências das entrevistadas e da pesquisadora. As entrevistas e o diário de campo foram interpretados à luz da hermenêutica heideggeriana. Os sentidos que apareceram nas narrativas desvelaram questões para além do corpo físico e da patologia, estando envolvidos família, desejos, amigos, experiências, projetos de vida. Dentre as ideias heideggerianas ressaltadas, estão o cuidado, inospitalidade, habitar, abertura às possibilidades e facticidade, que puderam ser discutidos na interpretação, gerando reflexões acerca dos sentidos da experiência de anorexia nervosa na existência das entrevistadas.

Palavras-chave: Anorexia Nervosa; Pesquisa Fenomenológica; Heidegger.


ABSTRACT

This research's objective was to understand, from an existential-phenomenological perspective, anorexia experience. Semi-structured interviews were used as a means of access to the experience. Female two people were interviewed, at the age of 17 and 30. The interview begins with a starter question, "How was, or how, their anorexia experience?", which allowed the interviewee to talk about their experience. The field diary was also used as a methodological resource, seeking a greater approximation of the experiences of the interviewees and the researcher. The interviews and the field diary were interpreted by Heidegger's hermeneutics. The senses unveiled in the narratives revealed issues beyond the physical and pathological issue, being involved family, wishes, friends, experiences, life projects. Among the Heideggerian ideas highlighted are careful, inhospitality, to dwell, openness the possibilities and factuality, which could be discussed in the interpretation, generating reflections on the meanings of anorexia nervosa experience in the existence of the interviewees.

Keywords: Anorexia Nervosa; Phenomenological Research; Heidegger.


RESUMEN

La investigación tuvo como objetivo comprender, desde una mirada existencial-fenomenológica de Heidegger, la experiencia de la anorexia. Fueron utilizadas entrevistas semiestruturadas como medio de acceso a la experiencia. Fueron entrevistadas dos personas del sexo femenino, con edades de 17 y 30 años. La entrevista comienza con una pregunta de arranque (¿Cómo fue o es su experiencia de la anorexia?"), permitiendo la entrevistada habla de su experiencia. El diario de campo también fué utilizado como recurso metodologico, buscando una mayor aproximación de las experiencias de los entrevistados y el investigador. Las entrevistas y el diario de campo fueron interpretados a la luz de la hermenéutica de Heidegger. Los sentidos que aparecen en los relatos revelan temas más allá del cuerpo físico y la patología, siendo tambén implicado la familia, los amigos, deseos, experiencias, proyectos de vida. Entre las ideas de Heidegger, hay énfasis al cuidado, inhospitalidad, la apertura de las posibilidades y facticidad, discutidos en la interpretación, promoviendo reflexiones sobre sus sentidos y su existencia.

Palabras-clave: Anorexia nerviosa; Investigación fenomenológica; Heidegger.


 

 

Introdução

A presente pesquisa pretendeu, a partir da ótica fenomenológica heideggeriana, lançar luz sobre a experiência de mulheres que passam, ou passaram, pela vivência da anorexia nervosa. O olhar fenomenológico-existencial vai de encontro ao modelo que compreende a realidade humana dicotomizada como objetiva (corpo) e subjetiva (mente), assim como a concepção de busca de causas psíquicas para as doenças. No olhar heideggeriano, pois, o físico e o psíquico não são considerados simples objetos de estudo objetivando determinar seus princípios e funcionamento, e sim se atribuem à possibilidade própria do existir humano em sua abertura existencial (Dantas, 2011b).

Diante disso, pode-se discutir sobre existirem outras formas de se abordar a temática, que não somente através da perspectiva dos manuais diagnósticos. Para tal, o artigo inicia-se trazendo a ideia pela qual a anorexia e os transtornos alimentares são usualmente pensados, para, então, caminhar e buscar desvelar outros possíveis sentidos diante dessa experiência.

Na atualidade, ao abordar os transtornos alimentares (TAs), a discussão avança no sentido de serem compreendidos como síndromes psiquiátricas que costumam acometer, principalmente, jovens adolescentes. Os mais conhecidos TAs são a anorexia nervosa (AN) e a bulimia nervosa (BN), ambas apresentando um alto grau de morbidade/mortalidade e sendo acompanhadas, frequentemente, por uma série de complicações clínicas. Além disso, a incidência de TAs tem crescido (Silva, Bezerra, Borges, Bitencourt, Honorato & Amaral, 2006), o que aponta para uma necessidade de se estudar, pesquisar e buscar melhoras na prevenção e tratamento desses transtornos.

A inspiração para o título do presente artigo vem de uma carta da Ana, um texto que circula na internet, cuja autoria é atribuída a Ana (entidade que personifica a anorexia), mas o autor, de fato, não é divulgado. A carta inicia-se da seguinte forma: "Meu nome, ou como sou chamada pelos também chamados 'doutores', é Anorexia. Anorexia Nervosa é meu nome completo, mas você pode me chamar de Ana. Felizmente nós podemos nos tornar grandes parceiras...".

Os transtornos alimentares são incansavelmente estudados, porém o olhar comumente é perpassado por questões diagnósticas e médicas. Há uma vasta produção acerca desse tema, atravessando as diversas áreas de conhecimento. Caminhos que vão desde a etiologia, discussão da conceituação e dos critérios diagnósticos, às diretrizes para o tratamento. Ainda que exista uma extensa produção, há linhas de pesquisa pouco exploradas, como, por exemplo, a experiência de quem passa pela Anorexia Nervosa, pelo olhar da fenomenologia heideggeriana. Ao debruçar-se sobre esse fenômeno a partir de um olhar fenomenológico-existencial, pode-se trazer à tona a perspectiva existencial, diferindo, assim, das principais pesquisas sobre o tema. Tais motivações, de ordem existencial, nos inspiraram a conhecer a experiência de quem vivencia o adoecer anoréxico, o que envolve compreender o que a pessoa experiencia (ou experienciou) nesse processo, e não apenas os seus sintomas. Buscou-se ouvir não somente "sua anorexia", mas sim a sua experiência de vida.

A partir do problema de pesquisa, algumas questões foram suscitadas nesse contato com a realidade com pessoas que sofrem com Transtornos Alimentares, mais especificamente da anorexia nervosa: como é a relação da pessoa que sofre com anorexia nervosa, com o seu corpo? Quais os sentidos atribuídos a esse corpo? Como é vivenciar a busca incessante pela perda de peso? Qual o sentido do não-comer e a relação com o alimento? Existiria uma busca por um padrão de beleza?

Mesmo tendo em vista que os sintomas dos TAs não são específicos da modernidade, já que os indícios do que se conhece hoje como a anorexia são descritos desde a Idade Média (Galvão; Claudino & Borges, 2006), e os da bulimia, desde a Antiguidade (Cordás; Salzano & Rios, 2004). Há bastante discussão sobre os fatores de risco, com ênfase na pressão contemporânea sobre o corpo ideal, que poderiam levar ao desencadeamento desses transtornos. Al-guns estudos epidemiológicos reforçam a ideia de que a incidência de anorexia e bulimia tem relação com a forte valorização da magreza nas sociedades ocidentais desenvolvidas, denotando que o aumento desse índice sucede, concomitantemente, com a evolução e a valorização da magreza como ideal de beleza feminino (Ahem & Hetherington, 2006; Morgan; Vecchiatti & Negrão, 2002; Morgan & Azevedo, 1998).

Há uma tendência, por parte dos estudos de amostras clínicas, em subestimar as taxas de incidência, pois é apenas uma minoria que procura ajuda nos serviços de saúde. As taxas da AN variam de 0,10% (registros hospitalares) a 12% (registros ambulatoriais) para grupos de 100.000 pessoas/ano (Nunes, Appolinario, Galvão, Coutinho & colaboradores, 2008). Inclusive, há poucos dados sobre essa epidemiologia e escassez de números atualizados.

Foram encontradas algumas pesquisas, em português, que compreendem a anorexia de modo fenomenológico. Entre estas, há um conhecido artigo que discute o caso clínico de uma mulher que, se vivesse nos dias atuais, e pensando de acordo com o modelo médico atual e os conhecimentos desenvolvidos sobre a temática, poderia ser considerada com anorexia - segundo os conceitos de Ludwig Binswanger, médico suíço fortemente influenciado pelas ideias heideggerianas (Moreira, Cruz & Vasconcelos, 2005). Outros estudos, alguns perpassados pela psicanálise e gestalt-terapia também abordam a Anorexia pelo olhar da fenomenologia (Jonckheere, 2004; Nunes & Vasconcelos, 2010; Nunes, 2010).

Ao adotar a ótica da fenomenologia-existencial, que considera o homem como um ser de possibilidades, em constante movimento e atribuindo sentidos ao mundo, é possível pensar a experiência de Anorexia Nervosa como sendo uma das muitas possibilidades de ser-no-mundo. Martin Heidegger (1889-1976), filósofo alemão, cunhou o termo Dasein (ser-aí) ou presença, como o modo-de-ser do ser humano. A essência do Dasein é sua própria existência, visto que ele "compreende a si mesmo a partir de sua existência, de uma possibilidade própria de ser ou não ser ela mesma" (Heidegger, 1927/2013, p. 48). Isto é, o Dasein, na existência, possui uma essência que é sua e assim ele é "pura expressão de ser" (Heidegger, 1927/2013, p. 48), e é através da existência que ele compreende a si e as suas possibilidades.

Diante do exposto, o objetivo geral da pesquisa foi compreender, a partir de uma perspectiva fenomenológica-existencial heideggeriana, a experiência de anorexia. Isto é, a experiência no sentido da existência, em busca da compreensão dos possíveis sentidos que essa experiência tem para a pessoa entrevistada.

 

Ana, quem é você?

A anorexia, tal qual se conhece hoje, é um advento da idade moderna. De acordo com Cordás (2004), é a partir de 1960, com o crescente número de pacientes com Anorexia Nervosa e as tentativas de diferenciar os tipos de pacientes com o quadro, que surgiu o reconhecimento da doença como síndrome psiquiátrica específica, com aspectos característicos que a distinguem de outros transtornos. Sendo esta forma, vale salientar, biologizante e restrita de se olhar a anorexia, como ainda será abordado. E "o biológico é, para nós, sempre tardio e sempre curto demais para dar conta de nosso modo de ser originário" (Casanova, 2013, p.42).

Apesar de se apontar que a anorexia tem suas raízes há muitos séculos (Cordás, 2004), é importante destacar que as semelhanças dizem respeito aos sintomas de séculos atrás e os de hoje em dia. Mas o sentido entre as épocas é diferente, visto que antigamente o intuito era distinto do emagrecer e possuir um corpo esbelto, como na atualidade. As primeiras menções à condição de aversão à comida despontam com o termo fastidium em fontes latinas da época de Cícero (106-43 a.C.) e variados textos do século XVI. Já no século XIII, é encontrada uma grande quantidade de descrições de mulheres que se infligiam jejum como uma forma de aproximação espiritual de Deus; eram as chamadas "santas anoréxicas". Os sintomas eram acompanhados de perfeccionismo, rigidez no comportamento e insatisfação consigo própria.

De acordo com Weinberg (2010), Richard Morton, em 1694, é autor do primeiro relato médico de Anorexia Nervosa, descrevendo o tratamento de uma jovem mulher que apresenta recusa alimentar e ausência de ciclos menstruais, rejeitando qualquer ajuda oferecida, chegando a morrer de inanição. No entanto, a denominação mais específica para a "anorexia nervosa" surgiu com William Gull, a partir de 1873, referindo-se à forma peculiar de doença que afeta, principalmente, mulheres jovens e caracteriza-se por emagrecimento extremo, cuja falta de apetite é decorrente de um estado mental mórbido e não de qualquer disfunção gástrica. Ao passo que, nos dias atuais, o termo Anorexia não é utilizado em seu sentido etimológico para a Anorexia Nervosa (o termo anorexia deriva do grego "an-", deficiência ou ausência de, e "orexis", apetite), pois tais pacientes não apresentam real perda de apetite até estágios mais avançados da doença, e sim uma recusa alimentar, objetivando o emagrecer. Ou seja, o termo "Anorexia" significa falta de apetite; contudo, os pacientes costumam sentir fome, porém, a controlam em demasia e rigidamente (Cordás & Claudino, 2002).

Percebe-se que a cada momento histórico o corpo era visto através de significados que refletiam o seu horizonte histórico (Barbosa, Matos & Costa, 2011). No que respeita à essa imagem corporal, é importante lançar luz no atual horizonte. Com a chegada do século XX, o corpo passa a se apresentar por outro viés, a reprodução corporal não se exibe somente na área da pintura - ou fotografia, como era até então - agora ela passa a alcançar um número maior da população, já que o ser humano está mais conectado à tecnologia. A compreensão atual de corpo diferencia-se de qualquer outro período histórico já vivenciado. É o período com maior ênfase na beleza associada à magreza, juventude e prazer. A constante busca pelo hedonismo é, também, um fator determinante nesse processo (Maroun & Vieira, 2008). É preciso apontar a relação entre a anorexia e a concepção de corpo vigente, levando em consideração que essa concepção nem sempre foi a mesma ao longo das civilizações.

A história do corpo está sempre em movimento, em aberto e em um eterno porvir. Juntamente com a história do corpo caminha o ideal de beleza. Este segue o fluxo histórico, apresentando suas próprias nuances diante do contexto social vivido (Jorge & Vitalle, 2008), e, em cada momento histórico, as significações hermeneuticamente solidificadas favorecem determinados modos de ser. Como já apontado anteriormente, há autores (Ahem & Hetherington, 2006; Morgan; Vecchiatti & Negrão, 2002; Morgan & Azevedo, 1998) que acreditam que o atual horizonte histórico seja um intensificador no que concerne ao desenvolvimento dos transtornos alimentares.

De acordo com Oliveira e Hutz (2010), o final do século XX e início do século XXI são caracterizados pelo culto ao corpo. É uma frenética busca pelo corpo perfeito (e idealizado), assumindo-se uma postura obsessiva, passando a ser um estilo de vida para muitas pessoas, especialmente para mulheres das classes médias urbanas. Os meios de comunicação, por sua vez, veiculam propagandas de corpos que se encaixam em um padrão estético, corporal, que é inacessível para a maior parte da população, mediado pelos interesses da indústria de consumo. Divulga-se a representação da beleza estética associando-a a específicos ideais de saúde, magreza, beleza e comportamento (Barbosa, Matos & Costa, 2011).

No tocante às influências sócio-culturais, segundo Teixeira (2001), a busca pela magreza tem sido um caminho percorrido por inúmeras pessoas do sexo feminino, gênero no qual recai a maior cobrança por um corpo magro, em sua maioria, e é a partir da década de 1980 que a mesma passa a ser valorizada, enfaticamente, na cultura ocidental. Para isso é necessário, às mulheres, submeterem-se a dietas, horas na academia, utilização de produtos dietéticos. Frente a essa ideia da cobrança às mulheres, "os transtornos alimentares têm sido vistos como uma construção e exposição de gênero, como uma inscrição corporal, dolorosa e caricaturada das normas que regem a construção do feminino na contemporaneidade" (Mattos, 2006, p. 41).

Diante do cenário contemporâneo, como acontece o desenvolvimento da anorexia nervosa? Segundo Fernandes (2006), o quadro da AN instala-se de forma progressiva e, diversas vezes, de forma tão lenta que inibe a precoce busca por ajuda profissional. É comum que a restrição alimentar tenha seu ponto de partida no silêncio, escondida atrás de uma suposta falta de apetite ou na busca pelo emagrecer.

Como já dito, a Anorexia Nervosa hoje é compreendida como uma psicopatologia, sendo objetificada e diagnosticada, segundo a psiquiatria moderna. Os critérios diagnósticos, de acordo com o DSM-V (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 5ª edição) são, principalmente: Medo intenso de ganhar peso ou de se tornar gordo, mesmo estando com peso abaixo do normal; perturbação no modo de vivenciar o peso ou a forma do corpo; e restrição da ingesta calórica em relação às necessidades, levando a um peso corporal significativamente baixo.

É interessante trazer aqui a reflexão sobre os manuais diagnósticos, por exemplo, e o uso de medicações, que ignoram qualquer referência à esfera do singular, o que podem remeter à questão da técnica, abordada por Heidegger (1954/2012a). Os manuais limitariam a experiência de quem adoece à hipótese, sintomas e relações de causa-efeito? A sociedade atual vive em uma era tecnológica, isto é, está sob o horizonte histórico de uma ciência tecnicista. A discussão hermenêutica vai de encontro a esse pensamento categorial-abstrativo. Heidegger defende que não é necessário, e possível, não fazer uso da técnica, pois mesmo que o homem negue veementemente o uso da mesma, ele está preso, sem liberdade. Heidegger vai apontar que "livre é o relacionamento capaz de abrir nossa Presença à essência da técnica" (Heidegger, 1954/2012a, p.11). Como seria, então, poder considerar o saber médico vigente e não se aprisionar somente nele?

É importante apontar que, por mais que os transtornos alimentares venham crescendo entre o público masculino, a prevalência em mulheres é muito maior, o que faz com que eles sejam considerados desordens femininas (Mattos, 2006). Isto pode apontar para uma questão de gênero, já que das mulheres ainda hoje se espera que sejam "femininas", isto é, sorridentes, simpáticas, atenciosas, abnegadas, submissas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas. Frente ao olhar do outro, as mulheres se veem impostas a experienciar continuamente a distância entre o corpo real, a que estão presas, e o corpo ideal, a que estas procuram, incessantemente, alcançar. No cenário contemporâneo, ser magra contribui para essa concepção de "ser mulher" (Bordieu, 1999). Esse é o público mais cobrado para que siga e apresente beleza e jovialidade. Dos homens, então, costuma-se esperar provisão financeira, força e vigor.

 

Método

Este estudo é caracterizado como uma pesquisa qualitativa fenomenológica, de inspiração heideggeriana. Na pesquisa fenomenológica consideram-se a experiência vivida, a historicidade, as muitas formas de linguagem, o tempo, isto é, a experiência como instrumento indispensável para a compreensão da existência humana. Esse modo de olhar e compreender o mundo e as variadas formas de expressão do Dasein - que somos nós, os homens, que coexistimos com os entes - levam a uma mudança na visão de homem e dos meios para compreendê-lo, sendo o pesquisador fenomenológico aquele que viabiliza esse "projeto" de olhar o homem diferenciadamente das ciências naturais, por exemplo, e sendo as relações subjetivas entre pesquisador e fenômeno consideradas (Souza, 2007). O pesquisador, então, aproxima-se dessa realidade e faz parte da experiência narrada, visto que o poder estar-com-o-outro faz parte do poder estar em contato, e de se comunicar; o ouvir e contar história fazem parte deste contexto, que assume suas próprias configurações na ocasião da entrevista (Dutra, 2002).

A estratégia utilizada para atingir o objetivo proposto foi o uso da narrativa, como instrumento de acesso à experiência. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas, com uma pergunta disparadora - "Como foi, ou como é, a sua experiência de anorexia?" - que permitiu à entrevistada falar sobre a sua vivência.

Diante das relações e do mundo, o homem é um ser de compreensão, ele está sempre compreendendo e dando sentidos ao mundo. Para Heidegger, de acordo com Dantas (2011a), a compreensão é a estrutura fundamental da existência humana e a interpretação é uma elaboração do que já foi compreendido. Para Heidegger (1927/2013), o que foi interpretado não é isento de pressuposições. É na circunvisão que o ente vai se abrindo às suas possibilidades.

No que concerne ao procedimento de análise buscou-se a interpretação das entrevistas com base na analítica existencial. Tendo isso em vista, construtos como Dasein, ser-no-mundo, ser-com, corporar, inautenticidade, angústia, técnica e tonalidade afetiva apresentaram-se como possibilidades na interlocução da analítica existencial com as narrativas provenientes das entrevistas.

As participantes da pesquisa foram selecionadas através de divulgação, entre os profissionais da área da saúde, quais sejam: nutricionistas, psicólogos, enfermeiros, médicos - assim como divulgação virtual - rede social e blogs. Na divulgação foram explicitados os objetivos da pesquisa, sendo solicitado que, caso a pessoa atendesse aos critérios do estudo, participasse, ou caso conhecesse alguém que esteve vivendo a experiência da anorexia nervosa, indicasse para participação.

Foram realizadas incontáveis ligações e estabelecidos inúmeros contatos, na busca por realizar a pesquisa. No entanto, a maior parte deles foi infrutífera. O que, de certa forma, já era esperado, pois este é um público de difícil acesso, já que quem está doente não se reconhece enquanto tal. Foram, então, entrevistadas duas pessoas. O número de participantes não respondeu a um critério a priori, mas sim a como o campo de pesquisa se apresentou. Nesse molde de pesquisa, acredita-se ser possível, em termos de existência, compreender seu fluir e não reduzi-la a seu caráter representativo, quantitativo e explicativo.

Das duas entrevistadas, uma estava vivendo a experiência da Anorexia Nervosa, e tinha 17 anos; e outra que já tinha passado por essa vivência, duran-te adolescência, na ocasião tinha 30 anos de idade. Houve um encontro com cada participante e cada entrevista durou cerca de uma hora.

Como já dito, a narrativa foi usada como instrumento de acesso à experiência. A forma de acessar o vivido pela linguagem aconteceu, nesta pesquisa fenomenológica heideggeriana, através da narrativa. É através dela que a coisa desvelada é conservada, é através, então, da linguagem que o que foi desvelado pode ser registrado. Critelli (1996), de forma tão leve, nos fala que o que foi desvelado é exposto na e pela palavra. É o homem quem guarda o sentido do ser, através das palavras. "A linguagem é a morada do ser" (p.74).

Assim, a narrativa, segundo Dutra (2002), destaca-se na pesquisa fenomenológica, pois a expressão da experiência se dá através da linguagem, atribuindo sentido ao vivido. Heidegger (1927/2013) defendia que "o fundamento ontológico-existencial da linguagem é a fala" (p. 223), ela é tão originária quanto a disposição e o compreender. Ele vai além e defende ser necessário apropriar-se do conhecido, abrindo-se à afetação das experiências para dar forma à sua interpretação. E, "só o que é falado pode ser presença" (Critelli, 1996, p.76).

Um diário de campo também foi utilizado, servindo como mais um instrumento de pesquisa, no qual foram registradas impressões sobre as entrevistadas, os lugares, as expressões corporal e facial, assim como os sentimentos e pensamentos que na entrevistadora emergiram. Através dele é comunicado o vivido, percebido, sentido; é tecer histórias interligadas, que também são tecidas por entre outrasnarrativas. É uma forma de ver, pela perspectiva de quem escreveu, a experiência e como ocorreu o desvelar dessa troca existente na entrevista. O uso de mais esse instrumento visava auxiliar na compreensão das experiências de pesquisadas e pesquisadora.

No momento da entrevista, as entrevistadas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, assim como o termo de autorização de gravação de voz. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética, sendo o CAAE (Certificado de Apresentação de Apreciação Ética) o de número 42952015.0.0000.5537.

O caminho percorrido para a análise das falas das participantes passou pelo registro/gravação das entrevistas e transcrição. Posteriormente os depoimentos foram interpretados. Acerca dessa etapa, pode-se dizer que "os depoimentos são comentados e interpretados a partir dos significados que se revelam na experiência narrada e como produto das reflexões feitas pelo pesquisador na sua trajetória de vida pessoal e profissional, ancoradas numa ótica existencial da condição humana" (Dutra, 2002, p. 377). A análise, então, seguiu por esses caminhos: gravação e transcrição das entrevistas; leitura das referências concernentes à temática e olhar heideggeriano, interpretação hermenêutica, análise do diário de campo e, finalmente, a síntese compreensiva da experiência.

 

Resultados e discussão

As entrevistadas

Foram duas entrevistadas: Lia e Tris1. Aqui serão apresentados trechos das narrativas com o intuito de ilustrar essa etapa do estudo.

Lia. Não sei se um dia vou descobrir o que é verdade".

Lia, 17 anos, estudante, mora com a família. Faz acompanhamento com psiquiatra, psicóloga e nutricionista. Os tratamentos começaram após a mesma dizer que se sentia mal emocionalmente e família procurar ajuda psicológica. Lia conta um pouco da sua experiência de não-comer, considerando-a como um estilo de vida, e que começou há cerca de dois anos, apesar dela mesma se dizer magra e a pouca alimentação ter sido uma constante em sua vida.

Pode parecer um pouco estranho, mas eu não vejo como algo ruim. Porque eu admiro muito a pessoa ser magrinha. Eu vejo isso como um caminho para ter esse estilo de vida. Já vi histórias de pessoas que morreram, que ficaram muito doentes, mas eu não consigo ver como doença. (...). Desde pequena eu tive muita dificuldade para comer, todo mundo reclama que sou bem ruim para comer. (...) esse ano mesmo que as médicas falaram [sobre a anorexia], mas eu sempre tive esse estilo de vida de não comer. Mas foi há cerca de uns dois anos que comecei a não comer por não querer.

Apesar de considerar o não-comer um estilo de vida, começou o tratamento da anorexia de forma indireta, pois relata que se sentia mal emocionalmente (isolava-se e sentia-se triste com frequência) e foi esse o motivo de procurar tratamento psicológico. Assim, pois, ela inicia o acompanhamento medicamentoso e o psicoterapêutico. Lia complementa contando que "eu sempre fui assim, mas nesses últimos meses estava insuportável. Aí falei com minha avó e a gente começou a procurar [ajudaprofissional]". À época da entrevista Lia estava em acompanhamento há cerca de um ano.

Lia conta que algumas pessoas vinham falar com ela, "brigar" para que ela comesse, porém conta nunca ter se preocupado quando as pessoas falavam que emagrecer muito faz mal, "por mais que as pessoas viessem falar, mas na minha visão eu não iria chegar a esse ponto. É como se fosse fantasia, às vezes. Eu nunca cheguei a me sentir mal mesmo". Já que ela se sentia bem com seu corpo magro, não chegava a passar mal (desmaios, por exemplo, por falta de alimentação) e via como estilo de vida, faz total sentido, durante todo seu relato, que ela não acreditasse que algo ruim (como se vê nas notícias) pudesse acontecer como consequência do seu não-comer.

Um trecho que chama a atenção e pode causar certa apreensão, é quando ela conta que "algumas vezes eu cheguei a pensar em como seria ter menos [peso], mas eu não sei se conseguiria. Por mais que eu tivesse menos, em alguma hora eu não ia conseguir porque tem outras coisas dentro de mim [referindo-se aos órgãos]". Então o que aconteceria com Lia caso ela não tivesse "coisas dentro" de si? Emagreceria ao ponto de não-existir mais?

Ao continuar o relato sobre seu corpo, Lia diz que

Eu, sempre fui assim, com esse corpo, mas quando eu me vejo, eu vejo que está uma coisa em excesso em mim. Nesses dois anos para cá comecei a me ver assim. A maioria das pessoas diz que não vê. Mas sou eu mesma, eu me olho no espelho e acho que tem alguns lugares que têm muita coisa, por mais que não pareça, mas para mim tem.

Para Heidegger (1987/2001), o corpo é sempre um corporar (Leiben), em que o corporar é sempre o modo-singular-de-ser-do-homem-no-mundo. Em vista disso, o fenômeno do corporar opõe-se à mensurabilidade. Para ele, o corpo humano não é compreendido como um objeto de carne e osso, e nem como um puro organismo, biológico. O Dasein não tem um corpo, ele é seu corpo, ele é corpóreo. O corpo humano expressa ideias, significados, experiências pessoais. Com base nessa ideia, fica o questionamento sobre qual é o sentido que Lia atribui a si mesma, à sua experiência do emagrecer e estar cada vez com o peso mais baixo. O que significa isso para ela?

Em outro momento ela traz as relações familiares e diz não ter intimidade com o pai "(...) eles são separados, acho que desde que eu nasci. Eu meio que nunca tive intimidade com eles, só com minha avó. A minha mãe é como se fosse minha irmã mais velha". E mais para o fim da entrevista ela traz uma fala forte, mas que é dita de forma absolutamente impessoal: "por mais que eu não tenha culpa de ter nascido, eu acho que isso foi um problema para os meus pais. É esse o pensamento que eu tenho". Talvez, ao ser um problema para os pais, ela pudesse se sentir um peso. Como lidar com esse "excesso" de peso? Outra impressão que emerge é a de que Lia se sente um fardo para quem convive com ela. Um fardo tão grande que ela, talvez, precise diminuir o peso. Incomoda tanto o outro, é um fardo tão grande, que ela quer sumir: (não) comer até sumir. Seria isso?

É interessante refletir sobre as relações estabelecidas na família de Lia. Segundo ela, seu padrão alimentar sempre foi de pouco consumo, não era algo que ela escondia, era explícito e toda sua família sabia. No entanto, somente de pouco tempo para cá foi que começou um olhar voltado para com sua alimentação, para com sua saúde. Isso aconteceu, segundo a cronologia que Lia narrou, após procurar ajuda por não se sentir bem emocionalmente e, então, as profissionais (psiquiatra e psicóloga) terem alertado para a questão da anorexia. Surgem as perguntas: Ela era vista? Como ela era vista?

Lia fala sobre o admirar a beleza magra e narra que

eu comecei a perceber que eu achava bonita a magreza quando eu via algumas pessoas e me dei conta que eu poderia conseguir aquilo. Acho que isso começou quando eu tinha em torno de 11, 12 anos. (...) São as imagens que as pessoas colocam, por exemplo. Eu acho que posso chegar assim. Não tão magra quanto, mas próximo. (...). Não as pessoas famosas, porque me parece meio artificial: elas têm muito dinheiro, podem fazer o que quiserem. É mais das meninas que são minha faixa de idade, que têm essa coisa mesmo, como estilo de vida. Mais ou menos isso, pessoas iguais a mim. (...). Acho que eu via muitas imagens e achava aquilo muito bonito, queria aquilo para mim. Então acho que foi isso que me fez fazer isso consciente, com noção de querer.

Desperta a atenção quando ela fala sobre pessoas famosas, de serem artificiais. Apesar de todo o horizonte histórico, o olhar de Lia não é para essas pessoas e sim para com seus pares, meninas como ela; como há identificação da parte dela com as meninas que são "iguais a mim". Identificação que talvez ela não encontre em muitas outras situações.

Lia conta que antes ela conseguia ver o espaço entre suas pernas, "esse osso daqui [aponta para os ossos da bacia] eu também via bastante e eu acho isso muito legal. Aí quando eu não consigo ver isso, para mim, está fora do comum, do meu padrão". Esse espaço entre as pernas e os ossos da bacia já não estão mais tão visíveis, segundo ela, porque seu peso aumentou, por consequência do uso das medicações.

Na busca por esses corpos que Lia olhava e admirava, ela conta sobre os sintomas físicos:

Meu ciclo [menstrual] ficou confuso... eu não sabia desse detalhe, estava tudo bagunçado. Acho que vim me dar conta quando comprei um livro que falava de uma menina que tinha anorexia... O livro é Garotas de Vidro2. Eu gosto bastante desse livro. E tem uma parte que ela fala desde o período que ela começou a ter esse estilo de vida foi quando ela parou de menstruar, aí me dei conta. Eu não sabia que uma coisa tinha a ver com a outra.

O livro citado pela entrevistada é narrado, e tem por protagonista, Lia (e daqui vem a inspiração para o codinome da entrevistada), uma jovem de 18 anos, que está no último ano do colégio. Em certas passagens do livro, a personagem Lia está tão perdida em meio às suas dores, dúvidas e angústias, parecendo achar âncora no seu desejo de manter um peso cada vez mais baixo; das certezas que ela parece ter, a constante perda de peso aparenta ser uma das únicas.

E foi esse livro que chamou atenção da entrevistada. Foi através dele que ela disse ter se dado conta que, realmente, poderia estar com alguns sintomas da anorexia - lembre-se que ela não fala diretamente, em momento algum, que desenvolveu Anorexia Nervosa. Foi através dele que ela relacionou as consequências do transtorno alimentar com algo que estava sendo vivido por ela naquele momento: a amenorreia. Algo externo, a narrativa do livro, foi o que fez Lia atentar para a possibilidade da anorexia. E, de fato, a amenorreia era, até pouquíssimo tempo, um dos critérios diagnósticos, isto é, uma das consequências da anorexia, sendo um indicativo sério de uma disfunção fisiológica.

Voltando às falas da entrevistada, "A minha psicóloga fala que eu tenho que tomar meu lugar no mundo. Aí isso parece meio errado para mim, mas eu estou tendo que lidar com isso. Para mim, era algo normal eu não conseguir ficar à vontade na minha própria casa".

A compreensão da possibilidade da existência de Lia estar tão atrelada à expectativa do outro, buscando a não-decepção do outro, o não-incomodar, remete à ideia de talvez ela buscar ser invisível, ou pouco vista. Ela conta, também, que não se sente fazendo morada em sua própria casa. O habitar, para Heidegger (1954/2012b), diz da abertura de sentido. Ele se refere à construção de um sentido que pode vir a possibilitar ao homem uma aproximação com o seu ser si mesmo, de maneira a poder habitá-lo.

Ao trazer Camasmie (2014) para a discussão, ela aponta que habitar esse espaço "de estranheza, de desamparo, pode ser tão insustentável, que ele arrasta muitas vezes de volta o ser-aí a abrigar-se na convivência imprópria" (p.130). A convivência imprópria, à qual a autora se refere, remete à discussão sobre impropriedade. Heidegger (1981) aponta que, no modo de ser impróprio, o Dasein preserva o conhecido e evita a abertura de sentido, ou seja, restringe suas possibilidades de ser.

Talvez seja possível pensar na relação entre o não-comer e um possível modo impróprio da existência, levando em consideração que é no mundo, e a partir dele, como horizonte de constituição dos sentidos, que a experiência do não-comer pode ser compreendida. Assim como as conseqüências desse não-comer, sendo o emagrecimento extremo uma delas. Quiçá Lia, por habitar um lugar de estranheza, seja "empurrada" à impessoalidade, experienciando, então, o viver da massa, a busca do "a gente" pela magreza. Que lugar "estranho" seria esse que Lia estaria habitando?

Ao voltar a narrativa aos seus sintomas, ela conta que "Eu não sabia que eram sintomas de depressão, não diretamente. Achava que tinha alguma coisa errada, mas não a esse ponto. Quando a médica falou da possibilidade de tomar remédio, eu fiquei pensando no que minha avó ia achar. Esse foi o problema maior. (...). Não gosto de decepcionar os outros. Não espero nada de mim. Para mim, é normal se eu não conseguir alguma coisa".

O não-ter lugar no mundo, que se desvela durante toda a entrevista de Lia, remete ao pensamento de Critelli (1996) de que é condição existencial do homem a não-pertença ao mundo, a inospitalidade. O mundo não oferece fixação, nem abrigo, nem acolhimento, como acontece com os elementos naturais; um mundo provisório e imprevisível. É diante dessa fluidez que os infindáveis modos-de-ser se desvelam. O Dasein é sempre essa possibilidade de vir-a-ser. Então, "a ontológica inospitalidade do mundo e a ontológica liberdade humana são regentes de toda forma do homem conhecer o mundo" (Critelli, 1996, p. 18).

Às vezes parece que, para algumas pessoas que eu tenho mais proximidade, elas não têm interesse em ouvir essas coisas. Estou me referindo às coisas que eu penso tanto em relação a isso [da tristeza], em relação a peso

E o que seria a depressão, com a qual Lia é diagnosticada e medicada, se não a falta de sentido diante do mundo? O mundo é "uma trama fluida, que desaparece sob nossos pés tão logo o sentido que ser faz se dilui e, então, nos faz falta" (Critelli, 1996, p. 18). Quando o sentido se esvai, sobra o ser-aí, sozinho, solto, cara a cara com o nada, sem as coisas e pessoas para lhe abraçar e unir na existência, como antes.

Heidegger (1927/2013) disse que "o irromper fisiológico da angústia só é possível porque a presença, no fundo do seu ser, se angustia" (p. 257). E foi essa angústia que Lia parece ter sentido e que a fez buscar por ajuda. Não foi seu corpo, o não-comer, a amenorreia, etc. Nada disso gerava angústia ao ponto de buscar por ajuda. Porém, seus sentimentos com relação a si mesma, e ao outro, sim. A falta de sentido diante de sua história de vida foi angustiante a ponto de não mais suportar viver com isso. A angústia aparece como um mobilizador existencial. Diante dela, então, Lia abriu-se à possibilidade de transitar pelos dois modos: próprio e impróprio.

Lia termina a entrevista dizendo que, ao ver cenas mais fortes sobre a AN, "(...) nessa visão me parece algo ruim, mas o que eu vivo, não me parece. Fica essa confusão. Não sei se um dia vou descobrir o que é verdade" (grifo nosso).

A questão de descobrir o que é verdade, remete à ideia de aletheia. A palavra aletheia vem do grego e tem seu sentido atrelado à verdade. Já Heidegger (1927/2013) retoma o termo para definir a tentativa de compreensão da verdade, porém, ele aponta seu uso no sentido do desvelamento, da desocultação, de trazer à luz. A verdade sendo aquilo que se mostra desvelado. Pensando nisso, surge o questionamento de que verdade é essa que Lia quer descobrir? O que ela busca desvelar? Que sentidos são esses que podem vir a ser desvelados?

Diante da frase acima, pode-se remeter a uma frase dita pela Lia, do livro Garotas de Vidro, sobre sua possível distorção corporal: "Ninguém consegue me explicar por que meus olhos funcionam diferentes dos delas. Ninguém pode fazer isto parar".

Tris - "Nosso corpo não é fita métrica!"

A segunda entrevistada entrou em contato depois da divulgação realizada. Para a surpresa da entrevistadora, ela é uma pessoa conhecida: seus caminhos se cruzaram nos cursos. Marcou-se data, local e horário, e a pesquisadora foi ao seu encontro.

Antecipando aqui um pouco a descrição, no final da entrevista, questionada se tinha algum nome que gostaria de ser chamada na pesquisa, ela pensou por um segundo e, então, seus olhos brilharam e ela respondeu rapidamente: Tris. Tris de Divergentes, sabe? "Divergentes" é uma série de livros (e estão virando filme), com quatro volumes; o primeiro deles se chama exatamente Divergente. O livro volta um pouco mais adiante.

Tris, 30 anos, profissional da área da saúde e mora com sua família. À época da entrevista sem sintomas de anorexia.

Tudo começou, eu não digo cronologicamente, mas se eu fosse organizar na minha cabeça, eu acho que tudo começou quando eu tinha uns 12 anos, eu estava na sexta série e eu me desenvolvi muito depois das minhas amigas. Se você olhar em fotos, é bem interessante porque é todo mundo "pá, pá, pá" [e faz gestos que indicam volume de corpo: seios, bumbum, pernas] e eu bem com corpinho de criança; não tinha peito, era muito magrelinha, muito. (...). Aí o que é que aconteceu? Eu também fui a última a menstruar, então eram os sinais da adolescência chegando para todo mundo, menos para mim.

Interessante como, ao longo da entrevista, Tris aponta seguidas vezes para sua não-menstruação e como isso a colocava mais 'distante' (do desenvolvimento físico) das amigas. Porém, mais à frente, ela relata que uma das características que apontavam para a anorexia foi exatamente a amenorreia. Algo que fazia falta, no começo do seu desenvolvimento de transição de criança para adolescente, e mais ligado à feminilidade, foi exatamente o que foi paralisado durante alguns meses.

Ela fala sobre a influência das imagens que via "eu sempre comprava Boa Forma. Lembro demais que minhas amigas compravam Capricho, era febre. Eu não. Eu comprava Boa Forma. E tem exercícios, né? Eu fazia todos! Todos!".

É comum, de acordo com Bittencourt e Almeida (2013), que os jovens, principalmente as adolescentes do sexo feminino, busquem um ajustamento dos seus corpos, no que cerne à exibição de um corpo considerado esteticamente adequado, tendo como padrão as imagens de mulheres consideradas ideais, como modelos e atrizes. Com ajuda das thinspiration (fotos de mulheres jovens e magras, que servem como inspiração), elas mantêm-se fortes no propósito de que qualquer sacrifício de desejos é válido para alcançar o objetivo estético. Ao não se desenvolver fisicamente como suas amigas, fala também da sua motivação para emagrecer:

O que motivava a emagrecer era a barriga. (...) eu não tinha uma barriga como a das meninas. Então, na minha cabeça, era parando de comer que minha barriga iria diminuir. Eu era magrinha?

Era. Me enxergava como magra? Não, por causa da minha barriga. Hoje quando eu vejo foto, "eu era tão magra". Era como se eu dissesse assim "ah, eu não tenho esse corpo violão como o delas, mas eu vou ter uma barriga assim".

A experiência de mundo de Tris estava perpassada pela questão corporal, de acordo com o seu relato, pela forma como ela experienciava seu corpo. Retomando o corporar, de Heidegger, e, ao pensar o corpo como uma dimensão de realização da existência, segundo Dantas (2011b), não podemos falar de uma pessoa que adoece como algo somente físico que ocorre diante de um corpo biológico, mas, sim, precisamos falar sobre a totalidade de uma existência, pois é sempre uma existência humana que sofre e não somente um corpo simplesmente dado. Então não era o querer emagrecer, e não ter barriga, e, consequentemente, o ter chegado à anorexia que trazia o sofrimento relatado por Tris, mas, sim, sua existência como um todo que estava em sofrimento.

Na adolescência foi que eu fiquei muito magrinha, nessa época, até os 13, 14. (...). E eu sempre aparentei ser muito mais nova do que eu era. Até aí, a ir pela cara, tudo bem, mas o meu corpo denunciava que eu não estava nessa idade ainda.

Nesse trecho da fala da entrevistada, há semelhança com uma fala da Tris, a personagem do livro, ao falar sobre seu corpo: "Ainda pareço uma criança, apesar de ter completado dezesseis anos em algum momento dos últimos meses". Em outra parte do livro, há essa fala: "Eu gostaria de ser mais alta. Se eu fosse alta, meu físico magro seria considerado esbelto, e não infantil", demonstrando a insatisfação consigo mesma. Insatisfação que a entrevistada também demonstrou, ao longo de sua narrativa. Essa insatisfação da entrevistada cresceu ao ponto de fazê-la querer modificar seu corpo, e a forma que ela achou para tal foi começar a dieta para ficar com a barriga "retinha".

Sobre ela buscar magreza e a participação de sua família, Tris conta que:

Ninguém percebia isso. Começaram a perceber quando eu comecei a aloprar em dieta. Porque eu ficava pedindo para minha mãe, 'mãe, eu quero emagrecer, eu quero emagrecer'. Aí fui para a endócrino. E ela passou a dieta. Então, por um lado, minha mãe ficou mais segura, mas eu comecei a aloprar. Por exemplo, se comia X num dia, eu comia metade. E eu comecei a emagrecer muito, muito mesmo. Eu cheguei a ficar com 47kg, com essa altura que tenho hoje [cerca de 1,67]. Eu fiquei um bom tempo, na 8ª serie, com 47kg.

Os sinais físicos do seu não-comer começaram a ficar mais visíveis "minha mãe começou a perceber que meu cabelo estava caindo. (...) Um dia mexendo no meu cabelo, tinha um buraco. Um buraco! Que tinha começado a cair. E eu já estava há seis meses sem menstruar". Tris relata que seu cabelo cair foi um choque para si, ainda mais porque ela conta que achava seu cabelo lindo e que o mesmo era muito elogiado. Com a amenorreia, Tris conta que relatou sobre isso para a mãe, mas a mãe achou que pudesse ser pelo período inicial do seu ciclo, da adolescência. No entanto,

quando começou a queda do cabelo, aí ela começou a preocupar. Aí a gente foi fazer uma bateria de exame. (...). Foram seis meses assim, aí eu lembro que eu fui à nutricionista. Eu tive uma nutricionista muito legal na época, eu acho que ela ajudou muito. (...). Foi ela quem nomeou a questão da anorexia.

Esse modo de cuidar, por parte da família, é relatado por Tris quando ela fala que "A nutricionista falou sobre a anorexia para minha mãe. Meu pai nunca foi muito engajado, não. Muito mais no sentido dela comentar, sabe? 'olha, presta atenção se Tris está comendo'. Eles nunca foram, como eu posso dizer, muito envolvidos com isso, não".

Tris conta que, apesar da pressão materna em vigiar a sua alimentação, a mesma não chegou a desenvolver características da bulimia, que seria um comportamento purgativo, depois de comer. "Na frente da minha mãe eu comia. Nunca desenvolvi bulimia ou algo do tipo, não. Mas ela ficava vigiando". No entanto, depois desse tipo de situação, ela costumava exagerar ainda mais na atividade física.

Diante de todo seu contexto vivido, o ponto-chave para que Tris percebesse que algo estava acontecendo consigo e fosse buscar ajuda, foi quando seu cabelo - do qual ela tanto tinha orgulho - começou a cair e a amenorreia já se estender há seis meses. É interessante pontuar como a anorexia foi sendo desenvolvida diante da experiência de não adequação a um corpo socialmente esperado para aquela determinada idade, mas é na perda de aspectos de seu corpo, vividos como possibilidade de pertencimento, que a anorexia passa a ser reconhecida.

As consequências físicas da anorexia se alastram, de fato, por todo o corpo. Consequências essas que passam pelas alterações metabólicas, endócrinas - como a amenorreia -, ósseas e de crescimento, hidroeletrolíticas - como arritmias cardíacas -, hematológicas, visuais, cardiovasculares, pulmonares, renais e gastrointestinais (Assumpção & Cabral, 2002). No caso de Tris, os principais sintomas, percebidos e relatados por ela, foram a queda do cabelo e amenorreia.

Diante do seu cabelo caindo, pode-se refletir sobre se o temor, enquanto tonalidade afetiva, se posiciona diante de si. Diante da imagem que ela tem de si mesma, do medo do que pode estar acontecendo para seu cabelo cair; de ouvir do outro (no caso, a nutricionista) que tinha uma doença. Heidegger (1927/2013) aborda a disposição afetiva, mais conhecida como humor, "o estar afinado num humor" (p. 193). Para Heidegger, o homem, na compreensão, encontra-se disposto com um humor que aponta como ele - o homem - está. Este humor, pois, influencia a percepção sobre algo. Através do olhar ontológico, a disposição afetiva é um modo fundamental do Dasein, sendo ele a abertura original na qual as coisas se desvelam. Essa disposição afetiva conduz a maneira como o homem se relaciona com o que lhe vem ao encontro, atribuindo-lhe sentidos. Assim sendo, o homem possui uma pré-compreensão das coisas que foi predisposta pelo seu humor; tudo que vem ao encontro do homem, como as coisas e os outros, passam a afetá-lo e através dessa afetação é possível uma compreensão. Heidegger chama de temor (ou medo).

Diante disso, é interessante perceber como aspectos de pertencimento em seu corporar, algo que Tris tentava construir, a colocam diante do temor. Diante desta tonalidade afetiva, o temor manifesta, em termos ônticos, a condição ontológica da angústia, já que não existem garantias ou parâmetros fixos na possibilidade de ser. Tris lida, pois, com o não-pertencimento, com a singularidade de seu corpo e com o seu próprio ser si mesma.

Ao sair da fase obsessiva pela magreza, Tris conta que, ao chegar ao pré-vestibular, cerca de dois anos depois da fase mais magra, a pressão e a ansiedade, costumeiramente características desse período, ela começou a comer em excesso e a engordar.

"Quando foi no pré-vestibular foi que a coisa saiu do eixo porque eu engordei muito. Muito, muito, muito. No Pré eu cheguei a pesar 68. Saí de um extremo para outro. A coisa era triste porque eu descontava o estresse na comida e era aquela coisa, 'eu desconto aqui, mas eu estou ficando uma bola'. Era compulsivo mesmo". Tris aponta que "a sensação, era muito mais prazerosa de eu estar muito magra do que eu estar gordinha".

Interessante como Tris reagia e demonstrava, através do corpo, suas questões vividas em cada época: magreza, sobrepeso, peso saudável. Quando tinha o corpo mais infantil, ela emagreceu ao ponto de ficar ainda mais infantilizado. Após esse período, ela engorda. Ao engordar, passa a tentar esconder seu corpo, com ênfase na sua barriga. A relação com seu corpo parece permeada por insatisfações. Que relação é essa com seu próprio corpo?

Ao retomar a história de vida de Lia, a entrevistada anterior, abordou-se sobre o habitar. Na cotidianidade elas parecem habitar o que já está habitado por outros, no modo de ser do impessoal. Ficam absortas no que já está previamente dado, apresentando-se enquanto uma habitação tranquila e satisfatória, já que, além de abrigar-se, pode também identificar-se com os demais que ali se encontram. Uma habitação que é de todos, mas não aponta para ninguém, a habitação do "todos nós, ninguém". Como Tris tem se relacionado com suas possibilidades de ser-no-mundo?

Essa possível restrição nos modos-de-ser, pode remeter à técnica que Heidegger (1954/2012a) abordava, e foi falada no início deste artigo. A questão da técnica moderna é que ela se compreende como elemento de mediação que não permite desvelar outras possibilidades dos entes, mas apenas uma única verdade sobre. O padrão de beleza imposto seria uma dessas verdades, levando a refletir sobre a objetificação e coisifição, características tão próprias dessa era da técnica, que reduz o homem a uma categoria específica de corpo. Ao coisificar seu corpo - seja na anorexia ou, no outro extremo, o excesso de peso - Tris experimenta sofrimento, reduzindo boa parte da sua cotidianidade ao corpo. Ao trazer sua narrativa para os dias atuais, Tris expõe que a preocupação com o corpo,

dura até hoje. Só que hoje é mais assim: eu sei que a dobra da calça existe porque meu bucho vai para cima, o que é natural. Hoje eu consigo ver como natural, antes era muito engraçado. Eu ia sair com meus amigos, na época de cursinho, eu não sentava. Porque era aquela coisa, não podia dobrar a barriga. Quando eu ia para aula, era sempre com blusa muito folgada, para esconder. Eu não me sentia bem, eu não me sentia bem. Hoje em dia, eu sento, o negócio vai dobrar, mas não estou nem aí, entendeu? [risos].

Tris narra, de forma bem tranquila, que hoje ela olha para tudo que viveu e compreende que a experiência da anorexia trouxe mais benefício do que malefício. Trouxe uma noção e conscientização do que, e quanto, precisa comer para estar saudável. Tris ainda ao falar sobre o hoje: "se você perguntar 'você está bem com seu corpo?', não. Porque eu viajei agora e comi muito, entendeu? Mas muito feliz comendo [risos]". Continua ao falar sobre a situação atual, do quanto é interessante como "fica registrado no corpo. (...). Se alguém me perguntar se eu estou satisfeita com meu corpo hoje, não estou. Mas estou estressada com isso ou isso faz parte das minhas cinco maiores preocupações? Não. De forma alguma".

Talvez Tris estivesse no modo impessoal e, apropriando-se dessa sua condição, construindo e começando a habitar seu corpo, possa ter se aproximado, em alguns momentos, da propriedade. Ela conseguiu, inclusive, enxergar e abrir novas possibilidades de existir diante do mundo e do seu corpo. Heidegger (1981) não faz juízo de valor quanto aos modos próprio e impróprio, não existindo aspecto evolutivo e nem definitivo. É uma decisão que acontece a cada momento, não havendo na existência nada predefinido. Ele aponta apenas que são modos de-ser-no-mundo e que o Dasein transita entre esses modos durante a vida.

Quando, ao ir finalizando a entrevista, foi questionada sobre deixar um recado para quem está ou esteve na anorexia, Tris encerra dizendo que

O recado que eu deixo para quem está ou esteve com anorexia é que comam felizes [risos], que comer é bom! [risos]. Que seu corpo não é fita métrica, que para mim é bem isso, eu via meu corpo como fita métrica. Acho que o maior recado que eu podia passar era isso: nosso corpo não é fita métrica!(grifo nosso)

 

Considerações finais

A pesquisa buscou posicionar o leitor, o mais próximo possível do fenômeno anorexia nervosa, objetivando apreender aquilo que se mostrou na experiência das participantes da pesquisa. Para tanto, foi preciso estar aberto para o que ali se desvelava, da forma como era apresentado pelas entrevistadas. Há uma ideia que tenta ser afirmada por alguns pesquisadores: a de que as pessoas que passam pela anorexia nervosa apresentam determinadas características semelhantes, como tipos de personalidade, famílias com determinados traços, entre outras. Porém, o que o estudo mostrou, mesmo o número de entrevistadas podendo ser considerado pequeno, é que elas são tão diferentes! É importante pontuar aqui que alguns aspectos em comum foram encontrados, mas muito mais na construção de sentido desenvolvida na interpretação das entrevistas do que em aspectos externamente observáveis. Nesse contexto simultaneamente simbólico e concreto, a anorexia aparece como possibilidade. Lia e Tris têm suas próprias peculiaridades, suas próprias histórias. E como seria restringi-las somente à anorexia? Reduzir-se-ia, pois, suas ricas trajetórias a um diagnóstico?

Heidegger (1987/2001), em seus Seminários de Zollikon, amparou boa parte da discussão sobre o que é considerado doença. A questão da anorexia nervosa, inspirada em uma fenomenologia heideggeriana, não pode ser pensada como uma doença física ou psicológica, como costuma ser vista, de acordo com o saber médico vigente. Mas, sim, o padecer enquanto modo de desvelamento da própria existência, sendo o sofrer ontológico e inerente à condição humana, e não somente como algo que precisa ser expurgado, como a medicina moderna leva a crer.

A pessoa que está no modo de ser da anorexia precisa ser compreendida como um ser-no-mundo capaz de construir seus próprios sentidos. E essa não é tarefa fácil: estar imerso na cotidianidade faz com que o pensamento objetivante seja o predominante. No caso específico da anorexia, seria pensar a experiência como uma doença, e somente ela, com determinado tipo de tratamento - medicamentoso e psicoterapêutico, muitas vezes um tratamento descontextualizado da vida do paciente.

O corpo foi algo muito pensado, narrado e perpassado por tantos sentidos. Heidegger (1987/2001) fala sobre o corporar, algo que vai além de se pensar o corpo meramente físico. Ele propõe exatamente a não-dicotomia do corpo. O corporar do corpo, para Heidegger (1987/2001), é um modo do Dasein. E "o corpo não é alguma coisa, algum corpo material, mas sim todo o corpo" (Heidegger, 1987/2001, p. 114), em que o limite do corporal é o horizonte-do-ser no qual o Dasein permanece. Ficou muito claro, com a fala das participantes, que não foi um corpo físico que adoeceu. A existência foi atravessada pela experiência da anorexia, pelo modo de ser possível naquele momento. E quantos sentidos Lia e Tris mostraram, com suas narrativas, sobre o corpo!

Perante as duas histórias tão ricas, é possível levantar alguns pontos quanto à anorexia: existe outra forma de se tratar a anorexia, conhecida enquanto doença, diferente de como é tratada hoje? Como será que é hoje o olhar da família e dos profis-sionais que cuidam de pessoas com o quadro? Algo pode e/ou precisa ser alterado? Ao pensar e lançar respostas a esses questionamentos, consideramos que a anorexia pode, sim, ser compreendida e olhada de uma outra forma, que não somente como uma psicopatologia. Talvez aqui caiba, por parte dos profissionais e familiares, um cuidado especial; cuidado esse que possa ir além dos sintomas da doença, podendo buscar uma aproximação para com essas histórias de vida.

A tão defendida e enaltecida eficácia das medicações apresenta-se como uma ratificação da compreensão da subjetividade como engrenagem, que pode ser ajustada ou consertada. Entraria, pois, a anorexia nessa roda-vida de que é algo que precisa ser ajustado? Ou melhor, seria possível ela ficar de fora desse movimento técnico contemporâneo? A anorexia se desenvolve como tentativa de ajuste, como visto, e é olhada exatamente através de novas tentativas de ajuste!

Uma das contribuições, para o campo científico, da pesquisa realizada é exatamente essa, de se tentar pensar a anorexia, tão vista como apenas um transtorno que busca magreza extrema, e às vezes estereotipada - como meninas que querem emagrecer para parecer com determinada pessoa que apareceu na capa da revista famosa -, de outra forma, através de outro um olhar, por outro prisma, quem sabe. Olhar esse que repousa nos desvelamentos de diversas outras possibilidades, que Lia e Tris puderam ajudar a pensar a partir das suas experiências neste trabalho. O adoecer, então, pode ser visto como uma das possibilidades de ser, que estão em jogo no existir, nesse eterno vir-a-ser.

Trazer as ideias heideggerianas de inospitalidade, habitar, abertura às possibilidades, e tantas outras, pode fazer pensar não somente no fenômeno aqui estudado, a anorexia, mas também na vida que cada um vive. Pois a vida está repleta de histórias, permeadas por impessoalidades, dificuldades, em um mundo que não nos acolhe.

 

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Recebido em 14.09.16
Primeira Decisão Editorial em 07.02.17
Aceito em 22.06.17

 

 

1 Nomes fictícios
2 Garotas de Vidro é um livro da autora americana Laurie Halse Anderson (2012).

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