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Revista da Abordagem Gestáltica

versión impresa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.24 no.3 Goiânia sept./dic. 2018

http://dx.doi.org/10.18065/RAG.2018v24n3.12 

ARTIGOS: ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

 

A (des)conexão criança e natureza sob o olhar da gestalt-terapia e ecopsicologia

 

The (dis)connection child and nature depicted by gestalt-therapy and ecopsychology

 

(Des)conexión niño y naturaleza segun la terapia de la gestalt y la ecopsicología

 

 

Fernanda Nascimento Pereira DocaI; Marco Aurélio BilibioII

IPsicóloga Clínica e da Saúde. Formação em Gestalt-Terapia pelo Instituto de Gestalt-Terapia de Brasília - IGTB. Mestrado e Doutorado em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde pela Universidade de Brasília. Psicóloga da Fundação Universidade de Brasília - FUB. fernandanpdoca@gmail.com
IIPsicólogo Clínico, com Mestrado em Psicologia Clínica e Cultura e Doutorado em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília. Diretor do Instituto Brasileiro de Ecopsicologia - IBE. Email: marcoecopsi@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta uma reflexão com base na Gestalt-terapia e na Ecopsicologia sobre a conexão natural e espontânea entre a criança e a natureza - uma atitude EU-TU - e o processo de introjeção dos valores da cultura que conduzem à desconexão, à perda da reciprocidade e da relação dialógica entre ambos, transformando-a em uma atitude EU-ISSO. Utiliza como substrato para esta reflexão uma história infantil - A árvore generosa - que, com a linguagem da imaginação, transmite facilmente à criança os valores da sociedade urbana-industrial-capitalista, os quais têm se enraizado no seu modo de sentir, pensar e agir; definhando, pouco a pouco, a saúde física e mental do homem e da sociedade em que se insere. Evidencia a importância da awareness acerca da relação interdependente do homem com a teia da vida para o desenvolvimento de uma nova ética, capaz de nutrir a reconexão entre ambos e reestabelecer uma relação de respeito, apoio e cooperação mútua entre todos os seres viventes.

Palavras-chave: Terapia Gestalt; Ecologia; Psicologia da Criança; Literatura Infantojuvenil.


ABSTRACT

This article presents a reflection based on Gestalt therapy and Ecopsychology on the natural and spontaneous connection between child and nature - an I-THOU attitude - and the process of introjection of cultural values that lead to disconnection, loss of reciprocity and the dialogical relationship between both, transforming it into an I-IT attitude. A children's story is the starting point for this reflection: The giving tree. Using the language of imagination, it easily transmits to the child values of an urban-industrial-capitalist society, which have been rooted in their way of feeling, thinking and acting, depleting, little by little, the physical and mental health of man and society. The article highlights the importance of awareness about the interdependent relationship of man and the life web in the development of a new ethic, capable of nurturing the reconnection between both and reestablishing a relationship of respect, support and mutual cooperation amongst all living beings.

Keywords: Gestalt Therapy; Ecology; Child Psychology; Juvenile Literature.


RESUMEN

En este artículo se presenta una reflexión basada en la terapia Gestalt y la Ecopsicología sobre la conexión natural y espontánea entre los niños y la naturaleza - una actitud YO-TU -y el proceso de introyección de los valores culturales que llevan a la desconexión y a la pérdida de la reciprocidad y de la relación de diálogo entre ellos, convirtiéndola en una actitud YO-ESTO. Se utiliza como sustrato para esta reflexión un cuento para niños - El árbol generoso - el cual, con el lenguaje de la imaginación, transmite fácilmente a los niños los valores de la sociedad urbano-industrial-capitalista, que han creado raíces en su forma de sentir, pensar y actuar; consumiéndose, poco a poco, la salud física y mental del hombre y de la sociedad en la cual opera. En el artículo se destaca la importancia del awareness acerca de la relación de interdependencia entre el hombre y la red de la vida para el desarrollo de una nueva ética, capaz de nutrir la reconexión entre los dos y volver a establecer una relación de respeto, apoyo mutuo y cooperación entre todos los seres vivos.

Palabras-clave: Terapia Gestalt; Ecología; Psicología Infantil; Literatura Infanto-Juvenil.


 

 

Introdução

A Gestalt-terapia é uma abordagem, teoria e método de psicoterapia, que se fundamenta epistemologicamente nos pressupostos filosóficos do Humanismo, do Existencialismo e da Fenomenologia; bem como nos pressupostos teóricos da Psicologia da Gestalt, da Teoria de Campo e da Teoria Holística Organísmica (Ribeiro, 2012). Constitui uma "abordagem original, não deturpada e natural da vida" (Perls, Hefferline, & Goodman, 1969/1997, p. 32) por organizar-se em torno de princípios de estrutura e funcionamento biológico, retirando deles a inspiração para sua compreensão acerca do sentir, pensar e agir do homem (Latner, 1973/1986). Assim, a Gestalt-terapia começa com a natureza e a partir da observação de seu livre funcionamento, extrai o cerne de sua fundamentação teórica e prática (Latner, 1973/1986).

A Gestalt-terapia compreende o homem como uma totalidade integrada ao ambiente em que vive e com o qual possui uma relação de interdependência, de forma tal que pessoa-mundo constitui uma unidade de sentido (Ribeiro, 2012). Reconhece o vínculo natural e profundo do ser humano com o seu meio ambiente - sendo este compreendido não apenas em sua dimensão espacial e geográfica na qual ele vive e age (ser-no-mundo), mas sobretudo em sua condição de organismo vivo ao qual o homem pertence. A Gestalt-terapia integra, por conseguinte, o ser humano ao seu ambiente, percebendo-os como um campo, ou seja, uma totalidade de forças mutuamente influenciáveis e interdependentes que constituem uma teia sistemática de relacionamentos (Yontef, 1993/1998).

Esta visão sistêmica e holística da Gestalt-terapia, focada no contato da pessoa consigo mesma, com o outro e com o seu ambiente, contrasta com a visão limitada às relações intra e interpessoais das demais abordagens psicoterápicas. Ademais, evidencia o caráter ecológico ínsito da Gestalt-terapia (Roszak, 1995), a qual traz em sua essência a percepção da relação pessoa-mundo como uma totalidade organizada, articulada e indivisível, ou seja, uma gestalt plena (Ribeiro, 2009).

Dessa forma, a Gestalt-terapia constitui um campo fértil para o desenvolvimento da Ecopsicologia - uma abordagem emergente que busca unificar a sensibilidade dos psicólogos ao conhecimento e experiência dos ecologistas e à ética dos ativistas ambientais (Brown, 1995; Swanson, 1995). A Ecopsicologia não intenta, em momento algum, criar um novo tipo de terapia. Clama apenas pela ampliação da visão individualista das abordagens existentes, criadas pela sociedade urbana-industrial desconectada de suas raízes. Busca o estabelecimento de um diálogo profícuo entre a Psicologia e a Ecologia, enfatizando que uma carece da outra (Roszak, 1995).

Em sintonia com a Gestalt-terapia, a Ecopsicologia postula a inseparabilidade do homem e da natureza, bem como a conexão profunda e a relação sinérgica e autorreguladora existente entre o mundo humano e o mundo natural. Simultaneamente, a Ecopsicologia denuncia a desconexão com o meio ambiente vivenciada pela sociedade contemporânea, como uma resultante do paradigma vigente da cultura urbana-industrial-capitalista, por meio da qual a natureza é agredida e destruída, estabelecendo uma crise de sustentabilidade da raça humana no planeta, que pode gerar o seu próprio colapso (Bilibio, 2013).

Na perspectiva da Gestalt-terapia, o processo de alienação e/ou a desconexão da pessoa de seu meio ambiente transcorre sorrateiramente desde a infância, na medida em que as crianças vão assimilando os valores dos pais, da escola e da sociedade na qual se inserem e, pelo processo de metabolismo mental, integra-os à sua personalidade (Perls, 1947/2002).

Contudo, dado o seu estágio de desenvolvimento, as crianças não têm a capacidade de discriminar o alimento intelectual, moral, psicológico e social que ingerem - denominado introjeto - entre nocivos/tóxicos ou saudáveis e, portanto, não têm consciência das implicações de suas escolhas, bem como da sua responsabilidade perante as mesmas. Assim, simplesmente engolem estes introjetos tal como eles lhe vêm, absorvendo-os com uma grande dose de fé, como uma verdade absoluta, ou seja, "é-assim-que-a-coisa-é" (Polster & Polster, 1973/2001).

De forma congênere, a Ecopsicologia acredita que o ser humano, desde o seu nascimento, tem em sua dimensão psíquica, a presença da natureza que o conecta com a matriz da vida e sua sabedoria integrativa, a qual denomina inconsciente ecológico.

Desta forma, guarda sentimentos e afetos inatos de pertencimento e respeito para com ela, os quais se expressam por meio da postura de encantamento da criança com a natureza e, consequentemente, na vivência de uma relação de reciprocidade e ética entre ambas. Contudo, a cultura conduz a criança ao abandono da ressonância sensível e interessada com a natureza, especialmente com os animais, reprimindo o inconsciente ecológico e dando lugar à normose (Bilibio, 2013).

Independente da terminologia utilizada, fato é que, tanto para a Gestalt-terapia quanto para a Ecopsicologia, ocorre um processo genérico de (de) formação cultural, por meio do qual a desconexão com o mundo se estabelece e perpetua, de tal forma que o potencial para o engajamento sensível e empático inato da criança com o mundo natural se esvai (Barrows, 1995). A criança transforma então a sua relação espontaneamente dialógica com a natureza, na qual reconhece os demais seres vivos como um Outro, digno de consideração, respeito e afeto - atitude designada por Buber como EU-TU -, em uma relação objetivante e utilitária, na qual o homem se separa da natureza para servir-se dela - atitude EU-ISSO (Buber, 1974/2001).

As histórias e contos infantis, oriundos que são da cultura, colaboram na inoculação na criança destas concepções de separatividade, superioridade e domínio do homem sobre a natureza - introjetos tóxicos que conduzem à desconexão. Com suas imagens, metáforas e sentimentos construídos com a linguagem da imaginação, que é a linguagem natural da criança, as histórias infantis penetram facilmente no seu mundo interior (Sunderland, 2000/2005). Desta maneira, falam diretamente ao seu sentimento e influenciam, por conseguinte, o seu pensamento e comportamento.

Por este motivo, o presente artigo tem por objetivo a reflexão com base na Gestalt-terapia e na Ecopsicologia, sobre o processo de introjeção dos valores da cultura urbana-industrial-capitalista. Este processo promove a desconexão e a transformação da atitude espontaneamente dialógica da criança com a natureza (EU-TU) em uma atitude objetivante (EU-ISSO), conduzindo ao adoecimento físico e mental tanto dos indivíduos quanto da sociedade. O substrato desta reflexão foi extraído de uma história infantil - A árvore generosa - escrita em 1964 por Shel Silverstein e traduzida para língua portuguesa por Fernando Sabino.

 

No princípio éramos um só: A relação EU-TU com a natureza

A essência do homem se manifesta por meio de seus existenciais, ou seja, ele é um animal-racional-ambiental. Esta última dimensão humana revela que ele é parte da natureza e, junto com o mundo, constitui uma unidade de sentido, uma gestalt plena, uma totalidade organizada, indivisível e articulada (Ribeiro, 2009).

Para Roszak (2001), o homem abriga, em sua subjetividade, a história cósmica do Universo, des-de a explosão do Big Bang até os dias atuais. Essa dimensão subjetiva, chamada por ele de inconsciente ecológico, acolhe a Ipseidade do ser, qual seja, a sua estrutura ontológica, a síntese existencial de um longo e árduo processo evolutivo por intermédio do qual cada ser foi individualizado pela força cósmica da totalidade, tornando-se único (Ribeiro, 2005). Assim, o ser humano é fruto do Universo. Seu corpo é constituído pelos elementos da natureza, sendo, portanto, o Universo em Pessoa (Ribeiro, 2009). Possui naturalmente uma conexão profunda com o Universo e, como uma rede, conecta-se a todos os demais seres vivos - na chamada teia da vida - tendo com eles uma relação de interdependência, por meio da qual se afetam mutuamente (Capra, 1996/2006).

Desde os primeiros momentos de vida, a criança é sensível não apenas ao contato humano, mas também ao contato com o seu ambiente, como por exemplo, a brisa, as variações de luz, temperatura e calor, aos sons e tudo o mais que lhe cerca (Barrows, 1995). Especialmente na sua primeira infância, ela expressa essa sensibilidade e conexão com a natureza através de uma postura espontânea e intuitiva de encantamento pela vida que a cerca. Na ludicidade de sua experiência, a natureza tem voz, sentimento, pensamento e ação (Roszak, 2001). A criança estabelece com ela uma relação animista na qual ocorre uma espécie de reconhecimento da alteridade no não-humano, aliás, no mundo mais-que-humano (Bilibio, 2013).

Instintivamente a criança, enquanto um EU, transforma todos os seres vivos em um TU e estabelece com eles uma relação de reciprocidade social e afetiva. Para além de sua forma, da "coisa-em-si", a natureza é para a criança um Outro, com o qual se encontra face-a-face e entra em contato pleno de aceitação, respeito e cuidado. Uma árvore, por exemplo, não é apenas um objeto - que tem forma, cor e propriedades que podem ser experienciadas no tempo e no espaço -, mas sim uma totalidade que inclui todas estas características e que se apresenta à criança, "em pessoa", tendo algo a ver com ela e vice-versa (Buber, 1974/2001).

A relação de reciprocidade entre criança e natureza é poeticamente enunciada na história infantil escrita por Silverstein (1964/2006):

Era uma vez uma árvore que amava um menino. E todos os dias o menino vinha, juntava suas folhas e com elas fazia coroas de rei; com elas brincava de rei da floresta. Subia em seu grosso tronco, balançava-se em seus galhos, comia suas maçãs. E brincavam de esconder. Quando ficava cansado, o menino repousava à sua sombra fresquinha. O menino amava a árvore profundamente (p. 6-28)1.

Nesta relação de amor mútuo e reciprocidade, criança e natureza se entregam e se integram um ao outro, nutrindo-se e autoecorregulando-se organísmicamente (Buber, 1974/2001; Ribeiro, 2009).

Assim como o homem, enquanto ser humano, precisa da árvore para obter o oxigênio, elemento fundamental para a sua sobrevivência, sem o qual pode viver apenas alguns poucos minutos, a árvore precisa do homem para obter o gás carbônico, para juntamente com a água e a luz solar, produzir seu próprio alimento pelo processo da fotossíntese. A experiência de integração com a natureza gera um sentido de pertencimento e uma postura ética de respeito e cuidado com a Mãe-Terra e com todos os seres nela viventes. Transcendem-se assim as diferenças na existência dos seres e encontra-se a igualdade na essência de criação divina. E, por meio dela, pode-se vislumbrar em cada ser, a orla do Tu eterno, sentindo o sopro provindo Dele, encontrando assim a intenção original de Deus, o sentido verdadeiro das coisas (Buber, 1974/2001). Logo, a conexão profunda e a comunhão com o Universo deságuam no processo de Espiritualidade, no qual o homem transcende sua corporeidade e a materialidade das coisas para descobrir o tudo que existe no Todo e, então, expressa um profundo e harmonioso amor por e pelo Universo (Ribeiro, 2009).

 

Crescemos, desenvolvemos, nos diferenciamos e desconectamos da natureza: O papel dos introjetos culturais

Não obstante o instinto natural da criança de se sentir parte integrante de uma totalidade maior, o processo de desenvolvimento desperta em seu ser a percepção acerca das diferenças entre ela e os demais seres vivos ao seu redor. Ao enxergar-se como um ser único e distinto de seu ambiente, a criança toma posse de si, do seu EU e profere a palavra-princípio da separação: EU-ISSO. Esta separação é necessária uma vez que, somente a partir dela, a criança pode perceber o mundo nas suas dimensões de espaço e tempo, contemplá-lo, escutá-lo, senti-lo, manipulá-lo, apreendê-lo e, conscientemente, entrar em relação com ele (Buber, 1974/2001).

Ademais, em termos gestálticos, crescer significa assimilar aquilo que é diferente (Perls, Hefferline, & Goodman, 1969/1997). Logo, é o contato com o mundo e com os seres que nele habitam, os quais são diferentes do EU da criança, que faz surgir em seu ser uma configuração única que, em parte, a diferencia dos outros seres e, em outra parte, a faz assemelhar-se a eles. Desta maneira, crescer é o resultado da diferenciação que permite à criança saber-se única. A consciência ativa dessa unicidade é que possibilita à pessoa, em qualquer idade, ser-no-mundo de forma genuína e saudável. Todavia, a cultura na qual a criança está imersa, transforma a diferenciação em desconexão, ou seja, acaba por afastá-la do contato com a natureza, atrofiando sua sensibilidade e promovendo a alienação de sua dimensão de ambientalidade. Esse processo ocorre pela assimilação dos introjetos da cultura dominante, que é transmitida às crianças por seus pais, sua escola e a sociedade como um todo; não apenas verbalmente, mas, sobretudo por meio de atitudes e comportamentos.

Esta cultura, estabelecida após o capitalismo e a Revolução Industrial, promoveu o deslocamento das pessoas do campo para a cidade, dando origem aos grandes aglomerados urbanos e instituindo um novo paradigma, uma nova ordem ideológica, econômica, social e política, pautada em crenças disfuncionais de alienação do homem em relação à natureza.

Essas crenças disfuncionais são meta-introjeções da cultura dominante e podem ser sintetizadas em: (a) o mito da superioridade, como se o homem fosse superior à natureza e, por conseguinte, seu proprietário e dominador absoluto; (b) o mito do mundo como matéria e, portanto, desprovido de vida e consciência; (c) o mito do homem como espécie com direitos divinos que, por ter sido criada à imagem e semelhança de Deus, acredita-se com o poder de substituí-Lo; (d) o mito do progresso tecnológico como, necessariamente, atrelado ao da segurança, do bem-estar, da ética e da moral; (e) o mito do consumo como meio de satisfação de nossas necessidades não apenas básicas, mas também emocionais e sociais; (f) o mito do crescimento ilimitado, como se a quantidade de energia e recursos do planeta fossem infinitos e que o homem não tivesse de se preocupar com a sustentabilidade da vida; (g) o mito do livre mercado; (h) o mito da geração privilegiada e; (i) o mito da solução pela tecnologia, como se esta fosse onipotente para resolver todo e qualquer problema (Mendes, 2013; Papa Francisco, 2015; Villarraga, 2013).

Vivendo em sociedade, a criança aceita e engole esses introjetos como "é-assim-que-a-coisa-é". Suas necessidades instintivas de conexão com a matriz da vida, por serem pouco congruentes com o establishment, passam a ser abjetas e mais tarde esquecidas, sendo sua alma exaurida (Polster & Polster, 1973/2001). Silverstein (1964/2006) ilustra de forma clara e simples como essas mudanças vão sendo incorporadas na fala e nos comportamentos da criança:

Mas o tempo passou. O menino cresceu. E a árvore muitas vezes ficava sozinha. Um dia o menino veio e a árvore disse: 'Menino, venha subir no meu tronco, balançar-se nos meus galhos, comer as minhas maçãs, repousar à minha sombra e ser feliz'. 'Estou grande demais para brincar', o menino respondeu. (...) 'Quero comprar muitas coisas, eu quero me divertir e preciso de dinheiro'. (...) 'Estou muito ocupado pra subir em árvores. Eu quero uma casa pra me abrigar; eu quero uma esposa, eu quero ter filhos, pra isso é preciso que eu tenha uma casa' (p, 31-36;41).

Essa cultura da valorização do ter em detrimento do ser difundida pela publicidade através dos diferentes tipos mídia, modifica os padrões de consumo e o estilo de vida da sociedade. Os desejos passam a ser tratados como necessidades e o supérfluo como necessário, de tal forma que as pessoas se tornam escravas do consumo, que as obriga a trabalharem cada vez mais para terem uma renda maior e, assim, ao poderem ter isto ou aquilo, sentirem-se "pertencentes" à sociedade e "amados" por seus iguais. As crianças não passam imunes a esses valores que são instilados pela cultura. Ao contrário, o público infantil constitui um dos alvos prediletos da publicidade, por ser vulnerável e facilmente seduzido pela associação de objetos de consumo com personagens da moda. Outrossim, possui a capacidade de afetar diretamente os adultos, influenciando cerca de 80% das compras de uma casa2.

Dessa forma, a publicidade adentra sorrateiramente o mundo infantil camuflada nos filmes, desenhos, programas de televisão, jogos, entre outros. Haja vista que as crianças, nos tempos atuais, gastam boa parte do seu tempo na televisão ou em outros dispositivos eletrônicos, nos quais a publicidade infantil é veiculada, percebe-se o quão expostas elas são aos introjetos culturais tóxicos que as afastam, tanto física quanto emocionalmente, da experiência sensível de integração com a natureza.

 

Desconectados, a tratamos como um objeto: A atitude EU-ISSO com a natureza

A desconexão, fruto da cultura, faz com que as crianças desenvolvam, ao longo do tempo, uma postura egótica perante a natureza, tratando-a como um objeto a ser utilizado e dominado. Dessa forma, passam a buscar a natureza apenas pelo que ela pode lhe oferecer.

(...) 'Você tem algum dinheiro que possa me oferecer?'

'Sinto muito', disse a árvore, 'não tenho dinheiro. Tenho apenas minhas folhas e tenho minhas maçãs. Mas leve as maçãs, Menino. Vá vendê-las na cidade. Então terá o dinheiro e você será feliz'. E assim o menino subiu pelo tronco, colheu as maçãs e levou-as embora. (...) 'Você tem uma casa pra me oferecer?'

'Eu não tenho uma casa. A casa em que moro é a floresta. Mas corte meus galhos e faça a sua casa, e seja feliz'. O menino depressa cortou os galhos e levou-os embora para fazer uma casa. (...) 'Você tem algum barquinho que possa me oferecer?'

'Corte meu tronco e faça seu barco. Viaje pra longe e seja feliz'. O menino cortou o tronco, fez um barco e viajou (Silverstein, 1964/2006, p. 36-39; 41-42; 46-49).

O tratamento da natureza como um ISSO, faz com que o homem perca a ressonância sensível para com ela, deixando de encontrá-la como um Outro e, consequentemente, por não reconhecer a sua alteridade, passa a estabelecer com ela apenas uma relação utilitária.

Fato é que o homem precisa usar os recursos da natureza para garantir a sua subsistência e, neste sentido, não pode prescindir de torná-la um ISSO. Assim sendo, não se deve concluir que "a atitude EU-ISSO seja algo negativo, inferior ou mal (...) ela se torna fonte de mal, na medida em que o homem deixa subjugar-se por esta atitude" (Buber, 1974/2001, p. 35).

Deste modo, o problema se instala quando o viés "coisificador" permanente na relação com o mundo natural, estabelecendo assim uma fixação inflexível no modo EU-ISSO (Bilibio, 2013), transformando o uso em abuso e a ação do homem em exploração. Neste sentido, a natureza passa a ser vista como um grande e inesgotável supermercado, do qual se podem retirar os produtos das prateleiras sem se preocupar com os limites de reposição do estoque (Villarraga, 2013). Essa atitude conduz a degradação e a perda da biocapacidade do planeta, ou seja, a capacidade do mesmo de dar suporte à vida.

Concomitantemente à ação de exploração da natureza, a fixação no modo EU-ISSO promove também ações de poluição do meio ambiente. Isto porque, na medida em que a sociedade fomenta o consumo, suscita simultaneamente a cultura do descarte - usa e joga fora -, gerando uma quantidade imensa de resíduos não biodegradáveis que destroem as condições de vida do planeta. Nesta perspectiva, a Terra, casa comum de todos os seres vivos, é tratada pelo homem como um imenso depósito de lixo (Papa Francisco, 2015). As estatísticas demonstram que, se todas as pessoas no mundo adotassem o mesmo estilo de vida da minoria que detém o poder econômico e financeiro, o padrão de consumo e, consequentemente, de descarga de resíduos no meio ambiente, tornaria insustentável a vida humana em pouquíssimo tempo. Logo, a pegada ecológica da sociedade urbana-industrial, ou seja, a medida de terras produtivas e de área de água para o seu sustento (Wackernagel & Rees, 1962), imprime uma marca de destruição que caminha para a aniquilação dos ecossistemas e das condições de vida na Terra.

Esse movimento é diametralmente oposto ao funcionamento da natureza, a qual trabalha em ciclos, usando de forma eficiente os recursos disponíveis, na medida em que o resíduo de uma espécie é o alimento de outra (Villarraga, 2013), tal como enunciado na lei de Lavousier: "na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". A exploração e o aniquilamento dos recursos da Terra, gerados pela fixação na postura EU-ISSO do homem perante a natureza, em última instância, culminam no risco de extinção de todas as espécies que compõe a teia da vida, inclusive do próprio homem. Isso porque o aquecimento global, a diminuição dos mananciais de água doce e potável, a poluição do ar, entre outros problemas ambientais vivenciados na atualidade tornam cada vez mais inóspita as condições de vida na Terra.

Oportuno salientar que, ao extinguir, dia após dia, as condições de sua própria existência, o homem pratica um ato de retroflexão que pode ser compreendido como um ecocídio (Bilibio, 2013; Ribeiro, 2009). Esta metáfora é apropriada na medida em que o homem tem consciência (ao menos cognitiva) das consequências de seus atos, visto que o conhecimento acerca dos problemas ecológicos globais causados pelo estilo de vida moderno se expande todos os dias e, a despeito deste saber, mantém seu padrão de vida, caminhando consciente rumo à consumação de sua própria destruição (Franklin, 2013). Ademais, o ecocídio enquanto um fenômeno contemporâneo oriundo da sociedade urbana-industrial-capitalista também traz em seu cerne o sofrimento e adoecimento psíquico do homem, os quais refletem o estado de desarmonia relacional consigo mesmo e com o mundo que o cerca.

 

A desconexão com a natureza nos adoece: Transtorno de Déficit de Natureza

Segundo Perls (1969/1977), a saúde é o "equilíbrio apropriado da coordenação de tudo aquilo que somos" (p. 20). É, portanto, em primeira instância, a consciência cognitiva, sensorial e afetiva - denominada em Gestalt-terapia como awareness (Yontef, 1993/1998) - de tudo aquilo que define a existência do homem. E, sendo o homem um ser-de-relações, sua saúde encontra-se diretamente relacionada à qualidade das relações que estabelece, ou seja, com a natureza do contato que fez e continua a fazer com o campo (Ribeiro, 2007).

De posse da awareness acerca de si e da realidade que o cerca, alcançada por meio de um contato pleno consigo mesmo e com o campo, o homem saudável é capaz de identificar as necessidades internas e externas vivenciadas no aqui-e-agora, bem como suas capacidades e potencialidades para lidar com elas; formar figuras claras, completas e fortes; realizar ajustamentos criativos entre as necessidades e os recursos disponíveis, num processo de autorregulação organísmica; satisfazer estas necessidades e; por fim, após a resolução das figuras, destruí-las (ou transformá-las) para que uma nova necessidade possa emergir, num processo dialético e fluido (Latner, 1973/1986).

Se, por um lado, a concepção de saúde para a Gestalt-terapia envolve a fluidez do contato, de maneira oposta, o adoecimento advém de limitação e/ou interrupção deste processo, o qual implica em uma desarmonia relacional e, consequentemente, a adoção de um padrão de funcionamento rígido e repetitivo de comportamento. Neste estado, há perda da totalidade organísmica pela interrupção do contato com um ou mais dimensões do campo que compõem o espaço vital da pessoa, a saber: geobiológico, psicoemocional, socioambiental e sacrotranscendental (Ribeiro, 2009).

Isto posto, inequívoca se torna a compreensão de que a interrupção da fluidez do contato e da troca com o meio ambiente, ocasionada pela negação e/ou a alienação da natureza enquanto parte do homem e vice-versa - fixação na atitude EU-ISSO -, gera o enfraquecimento do eu e conduz o homem a um processo de adoecimento.

A história infantil - "A árvore generosa" - expressa de modo simples e límpido este processo de adoecimento. No princípio, o contato genuíno do menino com a árvore, a relação de reciprocidade e troca entre ambos fomentavam o amor e a alegria. O gradual processo de afastamento, físico e emocional, do menino guiado pelas necessidades ilusórias criadas pela sociedade enferma na qual vive, dominada pelo sistema capitalista e consumista que visa apenas o ter, desvitalizam-no pouco a pouco.

"Venha, venha, meu Menino", (a árvore) sussurrou: "venha brincar".

"Estou velho para brincar", disse o menino, "e estou também muito triste".

(...) "Desculpe, Menino", a árvore disse, "não tenho mais nada pra lhe oferecer. As maçãs já se foram".

"Meus dentes são fracos demais pra maçãs", falou o menino.

"Já se foram os galhos pra você balançar", a árvore disse.

"Já não tenho idade pra me balançar", falou o menino.

"Não tenho mais tronco pra você subir", a árvore disse.

"Estou muito cansado e já não sei subir", falou o menino.

"Eu bem gostaria de ter qualquer coisa pra lhe oferecer", suspirou a árvore. "Mas nada me resta, e sou apenas um toco sem graça. Desculpe...".

"Já não quero muita coisa", disse o menino, "só um lugar sossegado onde possa me sentar, pois estou muito cansado" (Silverstein, 1964/2006, p. 46; 52-54).

Assim como a retirada das matas e florestas no processo de desmatamento deixa o solo vulnerável à erosão, a retirada da natureza da vida do homem deixa o seu ser exposto e desprotegido, criando pouco a pouco um vazio existencial. Surge então a ansiedade, a depressão, o pânico, o estresse, as doenças psicossomáticas, entre outros adoecimentos típicos da sociedade moderna. E, com eles, cresce o uso e abuso das drogas lícitas e ilícitas, que alienam ainda mais o homem de si mesmo, de tal forma a obnubilar sua consciência cognitiva, sensorial e afetiva (awareness). Nesse estado, o homem não percebe que seu adoecimento espelha o adoecimento do sistema em que vive (Bilibio, 2013), bem como o fato de que os sintomas por ele manifestos camuflam e desviam o foco da matriz dos problemas, que é a perda da sua totalidade organísmica, a desconexão e a interrupção da fluidez do contato com o campo.

Cabe ressaltar que a desconexão do homem com a natureza tem adoecido não apenas os adultos e velhos, mas igualmente, e de forma cada vez mais intensa, as crianças. Patologias antes raras na infância, tais como ansiedade, depressão, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, além da obesidade, têm se tornado epidemias nos tempos atuais. Louv (2016) em seu livro "A última criança na natureza", discorre sobre como a perda da experiência de integração da pessoa com a sociedade e a natureza coloca as crianças fora do contato e da sintonia com os processos regenerativos e de autorregulação proporcionados pela interação entre os seres humanos e seres mais-que-humanos, fazendo-as padecer do que ele denominou de Transtorno de Déficit de Natureza.

Para Louv (2014, 2016), o Transtorno de Déficit de Natureza não é um diagnóstico médico, mas sim uma condição de atrofia do sentido de pertencimento e interdependência com a natureza. Ele conduz o homem a insular-se no contato apenas com sua própria espécie e desconectar-se da teia da vida. Trata-se de "uma tendência civilizacional que vem sendo gestada por séculos (...) que se expressa na vida sob quatro paredes, com tomadas e uma série de excitantes produtos eletrônicos" (Bilibio, 2013, p. 110) e "cria a geração mais eletronicamente 'conectada', e ao mesmo tempo, a mais desconectada do mundo natural, de que se tem notícia" (Bilibio, 2013, p. 27).

Pesquisas indicam que a vivência essencialmente urbana e tecnológica, distante e desconectada do ambiente natural, acarreta grande prejuízo às crianças (Louv, 2016; Profice, 2016). Os ambientes fechados e artificiais nos quais elas ficam restritas, bem como as atividades com as quais se ocupam (tal como televisão, o vídeo-game e/ou outros brinquedos eletrônicos) privilegiam apenas o seu desenvolvimento cognitivo e limitam gradualmente o desenvolvimento de seus sentidos e sua sensibilidade. Devido aos perigos da vida urbana, restringem a sua mobilidade física, impedindo-as de brincar e correr livremente na vizinhança, limitando não apenas seu desenvolvimento motor, mas também a sua autonomia e independência, além de favorecer o sedentarismo.

Ademais, o encarceramento das crianças em seus próprios lares e/ou escolas, ambientes considerados "seguros e protegidos", circunscrevem suas relações e trocas afetivas apenas aos humanos que fazem parte destes ambientes, impactando o seu desenvolvimento psicológico, social e afetivo pleno. Também tolhe a capacidade da criança de explorar, imaginar e criar, por impedir o seu brincar livre e desestruturado na natureza, o qual naturalmente a expõe a desafios, recursos e estímulos variados que enriquecem sua vivência e aprendizagem. A retirada da natureza (e do brincar livre nela) da vida da criança causa estes e outros tantos prejuízos ao seu desenvolvimento e saúde global, pois equivale, segundo Louv (2016), a tirar o seu oxigênio, ou seja, um elemento fundamental à vida.

 

Retorno à Natureza: O caminho para a cura

(...) Muito tempo depois o menino voltou.

'Desculpe, Menino, não tenho mais nada pra lhe oferecer. Eu bem gostaria de ter qualquer coisa pra lhe oferecer. Mas nada me resta e eu sou apenas um toco sem graça. Desculpe...'

'Já não quero muita coisa', disse o menino, 'só um lugar sossegado onde possa me sentar, pois estou muito cansado.'

'Pois bem', respondeu a árvore, enchendo-se de alegria, 'eu sou apenas um toco mas um toco é muito útil para sentar e descansar. Venha, Menino, depressa, sente-se em mim e descanse'. Foi o que o menino fez. E a árvore ficou feliz (Silverstein, 1964/2006, p. 52-56).

Da mesma forma que a desconexão com a natureza pode adoecer o ser humano, a sua reconexão com o mundo natural o conduz a estados de saúde e plenitude. Várias pesquisas têm comprovado os efeitos benéficos do contato com a natureza para a saúde, não apenas das crianças, mas para as pessoas de todas as faixas etárias.

Estes estudos, sumariamente apresentados por Louv (2014, 2016) e Profice (2016), demonstram que a natureza é um ambiente restaurador nato que promove o relaxamento, auxiliando na redução do estresse e da ansiedade e na recuperação do desgaste psicológico. Alivia o cansaço mental decorrente do excesso de atenção dirigida, ajudando o cérebro a restabelecer sua capacidade de atenção, concentração e processamento de informações. Aguça os sentidos, atiça a curiosidade e favorece o desenvolvimento da capacidade imaginativa. Convida ao movimento promovendo o desenvolvimento e a coordenação motora. Enseja a alegria, o entusiasmo e a interação positiva facilitando a socialização e o estabelecimento de vínculos afetivos. E, mais recentemente, descobriu-se que o contato com a natureza ameniza os sintomas do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade.

Considerando estes e outros tantos benefícios, Louv (2014) cunhou a expressão "Vitamina N" para designar o tônico e/ou terapia da natureza, um tipo de tratamento baseado na conexão mente/corpo/natureza, que é amplamente acessível, sem custos, livre de efeitos colaterais e estigmatizantes e que traz benefícios substanciais à saúde. Pela sua eficácia - empiricamente conhecida há séculos e mais recentemente comprovada pela ciência - este tipo de tratamento tem sido cada vez mais recomendado, de forma coadjuvante, pelos profissionais de saúde sob a forma de prescrição de natureza.

Iniciativas cada vez mais frequentes, como a da Academia Americana de Pediatria, que criou uma base de dados on-line (DC Park Rx), buscam incentivar o contato da natureza. Na iniciativa DC Park Rx3, mais de 350 parques em Washington foram mapeados, no intuito de auxiliar os médicos no momento de prescrever atividades na natureza. Pelo endereço do paciente, o profissional pode localizar o parque mais próximo à sua residência e incentivá-lo a realizar atividades neste local. É a ciência começando a levar o homem de volta para casa, para a natureza. E este retorno urge, pois como alerta Louv (2014), os benefícios do mundo natural tornar-se-ão irrelevantes se o homem continuar a destruir a natureza que o cerca. É inadiável, portanto, o desenvolvimento de uma nova ética existencial e social, por meio da qual o homem reconheça-se como parte do todo e perceba o imperativo de cuidar do bem comum (Papa Francisco, 2015).

Esta nova ética deve incluir ações de sustentabilidade, tal como a proposta dos 3Rs: (1) reduzir o uso de matérias-primas e energia, bem como a quantidade de material a ser descartado; (2) reutilizar os produtos usados dando a eles outras funções e; (3) reciclar, retornando o que foi utilizado ao ciclo de produção. Mas, sobretudo, ela deve primar, como parafraseado por Villaraga (2013), pelos seguintes 3Rs: (1) respeito por si mesmo; (2) respeito pelo próximo, seja ele humano ou mais-que-humano e; (3) responsabilidade por todas as ações.

Para a Gestalt Ecoterapia o surgimento desta nova ética de cuidado para com o meio ambiente será estabelecido por meio de experiências de reconexão; pelo reconhecimento do sentimento profundo de tristeza perante a degradação e perda da natureza; pela identificação das introjeções que nos conduzem à desconexão e destruição do meio ambiente; e, por fim, pelo consequente descarte destes velhos conceitos repassados pela cultura, os quais deverão ser substituídos por conceitos sistêmicos acerca da teia da vida.

Estes conceitos sistêmicos foram detalhadamente enunciados por Fritjof Capra na sua proposta de alfabetização ecológica, a qual propõe um processo de educação para uma vida sustentável com base no ensino dos princípios básicos da ecologia (Stone & Barlow, 2005/2006). Por meio dela, o indivíduo deve compreender que todo organismo é um sistema vivo, no qual se aninham outros sistemas vivos (suas partes), sendo ele próprio, parte de um sistema vivo maior (comunidade). Nesta comunidade, as relações estabelecidas entre os diversos sistemas vivos ocorrem de forma não linear, constituindo redes complexas, nas quais um conjunto comum de propriedades e princípios de organização é compartilhado, processos e padrões de relacionamento são identificados de forma a sustentar a vida como um todo. Pela integração e interdependência na rede, tudo o que acontece em um sistema afeta a sustentabilidade dos demais a ele conectados. Desta forma, quanto maior a diversidade da comunidade e a complexidade das interconexões de seus sistemas, maior a capacidade de recuperação e sobrevivência diante de adversidades. Isso porque as espécies com funções ecológicas sobrepostas podem substituir, mesmo que parcialmente, umas às outras. Além disso, na teia da vida a matéria está sempre se reciclando, de forma tal que o detrito de uma espécie alimenta outra, não gerando assim resíduos, sendo até mesmo a energia transformada e renovada a todo instante. Por meio deste fluxo contínuo o ecossistema se autoecorregula e atinge um equilíbrio dinâmico, e os sistemas se desenvolvem e coevoluem numa dança contínua (Stone & Barlow, 2005/2006).

A awareness do homem acerca destes princípios básicos da ecologia e do seu papel na teia da vida modifica os seus sentimentos, pensamentos e comportamentos, além de resgatar a atitude EU-TU para com a natureza. Como a água que brota da terra, do manancial da awareness pulula a nova ética que nutre a reconexão do homem com o Universo e reestabelece relações de respeito, apoio e cooperação mútuos entre todos os seres viventes.

 

Considerações Finais

A reflexão, ora apresentada, evidencia a convergência da Gestalt-terapia enquanto abordagem da Psicologia, que traz em seu arcabouço teórico o conceito de mundo-pessoa como uma totalidade indivisível que se autoecorregula mutuamente, com a Ecopsicologia que evidencia a conexão natural e profunda do homem com a natureza. Ambas as disciplinas, confluem ainda, embora utilizando terminologias diferentes, na percepção dos processos que conduzem a criança à perda progressiva do sentido de pertencimento e integração com a teia da vida. Outrossim, comungam do entendimento de que a perda da ressonância sensível e da postura de encantamento perante o mundo e os seres vivos fomentam a mudança da atitude natural e espontânea com a natureza (EU-TU) para uma atitude utilitária e objetivante (EU-ISSO). Neste tipo de relação, a desconexão e alienação do homem com o Universo se fazem presentes e, lamentavelmente, vão sendo transmitidas de geração a geração e se enraizando no mais íntimo do ser humano.

O olhar da Gestalt-terapia e da Ecopsicologia acerca da desconexão entre a criança e a natureza desvela, desta maneira, o abismo que a cultura urbana-industrial-capitalista tem criado, sem se dar conta do destino comum e entrelaçado da grande teia da vida, na qual o homem é tão somente um fio desta complexa trama (Perry, 1854/2006). Neste caminho, ilude-se o homem que assimila os mitos da cultura dominante como verdades absolutas e inquestionáveis. A realidade mostra um presente muito diferente do que estes mitos preconizam, além de indicar um futuro ainda mais penoso, visto que, com desequilíbrio climático, a crise hídrica e o desflorestamento, bem como com os riscos alimentares decorrentes destas condições, a raça humana tem colocado a si mesmo, juntamente com toda a teia da vida, em risco de extinção.

Imprescindível se faz, portanto, parar e questionar: Como estamos cuidando da Terra e dos Filhos da Terra? Porquanto a essência deste cuidado é tal como a semente lançada no solo que plantada, germina, cresce e frutifica no grande ciclo da vida. Pelas sementes que plantou (e continua plantando) o homem colhe agora um fruto aparentemente atraente e sedutor, mas que é venenoso em sua essência. Um fruto que, ao invés de nutri-lo, intoxica-o, exaure suas forças e pouco a pouco tira a sua vida. Assim, se quiser preservar a si mesmo, manter-se vivo e saudável, necessário se faz que ele cultive outras sementes, as quais contenham em si o gérmen do respeito, do cuidado e do amor entre todos os seres.

 

Referências

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Recebido em 21.05.2017
Aceito em 14.02.18

 

 

1 O livro infantil, ora citado, contém inúmeras páginas com gravuras. Diante disto, as páginas aqui indicadas referem-se a um conjunto de textos com imagens, representando, assim, um intervalo mais amplo que o usual.
2 Criança, a alma do negócio. Documentário de Estela Renner e Marcos Nisti. Maria Farinha Filmes. Trailer disponível em: http://mff.com.br/filmes/crianca-a-alma-do-negocio/
3 http://aapdc.org/chapter-initiatives/dc-park-rx/

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