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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.25 no.1 Goiânia jan./abr. 2019

http://dx.doi.org/10.18065/RAG.2019v25.7 

ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

 

Contribuição do pensamento de Rodolfo Kusch para o desenvolvimento de uma psicologia existencial Latino-Americana

 

Contribution of the Rodolfo Kusch's thought for the development of a Latin-American existential psychology

 

Contribución del pensamiento de Rodolfo Kusch's para el desarrollo de una psicología existencial Latino-Americana

 

 

Gustavo Alvarenga Oliveira Santos

Doutor em Psicologia pela Universidad de Buenos Aires, Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Professor do Departamento de Psicologia, vinculado ao Instituto de Educação, Artes, Ciências Humanas e Sociais (IELACHS), da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Email: gustalvarenga@hotmail.com

 

 


RESUMO

Esse texto propõe apresentar os principais conceitos do pensamento do filósofo argentino Gunther Rodolfo Kusch e demonstrar de que modo esses podem ser úteis para a construção de uma Psicologia Fenomenológico-Existencial e/ou Humanista para o contexto latino-americano. Para tanto o texto faz uma breve introdução do pensamento do autor e, partindo de seus principais conceitos: mero-estar, ser e estar-sendo, demonstra de que forma esses podem ser úteis para pensar a psicologia em nosso contexto, principalmente a que se dedica ao atendimento às populações marginalizadas.

Palavras-chave: Psicologia Fenomenológica; Psicologia Existencial; Psicologia Humanista; Fenomenologia.


ABSTRACT

This text proposes to present the main concepts of the thought of the Argentine philosopher Gunther Rodolfo Kusch and to demonstrate how they can be useful for the construction of a Phenomenological-Existential and/ or Humanist Psychology for the Latin American context. For that, the text briefly introduces the author's thought and, starting from his main concepts: mere-being, being and stay-being, demonstrates how they can be useful for thinking about the psychology in our context, especially that is dedicated to serving marginalized populations.

Keywords: Phenomenological Psychology; Existential Psychology; Humanistic Psychology; Phenomenology.


RESUMEN

Este texto se propone a presentar los principales conceptos del pensamiento del filósofo argentino Gunther Rodolfo Kusch y demostrar de qué modo estos pueden ser útiles para la construcción de una Psicología Fenomenológico-Existencial y/o Humanista para el contexto latinoamericano. Para ello el texto hace una breve introducción del pensamiento del autor y, partiendo de sus principales conceptos: mero-estar, ser y estar-siendo, demuestra de qué forma estos pueden ser útiles para pensar la psicología en nuestro contexto, principalmente a la que se dedica a la atención a las poblaciones marginalizadas.

Palabras-clave: Psicología Fenomenológica; Psicología Existencial; Psicología Humanista; Fenomenología.


 

 

Introdução

Nos últimos anos nota-se, no Brasil, um crescente número de produções acadêmicas oriundas da prática profissional de psicólogos inseridos nas políticas públicas na área da saúde, jurídica e da assistência social. Silva e Carvalhaes (2016) entendem que esse aumento vem acompanhado "(...) da dificuldade destes profissionais entre seguir os modelos tradicionais de Psicologia ou ousar experimentar e inventar novos modos de atuação, apostando na potência desta sensação de confusão como disparadora para interlocuções" (p. 250). Esses novos modos de atuação requerem, a nosso ver, referenciais teóricos que sejam mais adequados à compreensão da população atendida pelo profissional nas políticas citadas. Argumentamos nesse texto que essa população é distinta à população para quem e para a qual a psicologia de origem européia foi pensada e articulada.

No caso da psicologia inspirada ou baseada no eixo fenomenológico-existencial e/ou humanista1, uma possibilidade de interlocução advinda da sensação de confusão apontada pelos autores citados, pode se dar com pensadores que, baseados no pensamento fenomenológico, salientaram a distinção a latinoamericana, em outro artigo de minha autoria (Santos, 2017) apresentamos Dussel e Maldonado Torres como importantes interlocutores dessa empreitada. Jà no presente artigo propomos o filósofo argentino, pouco conhecido no Brasil, Gunther Rodolfo Kusch cujo pensamento pode subsidiar uma compreensão mais adequada da população latino-americana em termos ontológicos, corroborando com o afirmado por Silva e Carvalhaes (2016) que:

O aumento de psicólogas (os) nos diferentes campos onde se desenvolvem políticas públicas requer a análise de perspectivas teóricas e metodológicas que se apresentam como formas hegemônicas do fazer psicológico, bem como na necessidade de rever e reinventar possibilidades de atuação (p. 250).

Com base na primeira assertiva descrita pelas autoras entendemos que o filósofo argentino pode subsidiar a análise da população latino-americana desde a perspectiva da psicologia fenomenológico-existencial e/ou humanista, já que ele se propõe a reconsiderar a fenomenologia levando em consideração seu limite e alcance para a compreensão do ser latino-americano. Entendemos que a psicologia desenvolvida a partir desse eixo, salvo uma exceção (Moffatt, 2011), ainda não construiu modelos teóricos-metodológicos que abarquem a especificidade da população do nosso continente, uma vez que seguimos nos baseando exclusivamente em teorias importadas cuja origem se dão em um tempo-espaço distinto ao nosso, impedindo que métodos e teorias psicológicas sejam revistos e aprimorados no sentido de responder às questões próprias ao nosso contexto, em especial o trabalho que produzimos nas políticas públicas.

Percebemos que, frente a essas demandas, a psicologia clínica e inspirada no eixo fenomenológico-existencial e/ou humanista deve entender o popular como um mundo com significados, expressões e horizontes vivenciais distintos em relação ao mundo vivido das classes medias europeias e latinoamericanas, que, em geral, servem de base para as teorizações da psicologia clínica. Dessa forma, consideramos que se podem ampliar as possibilidades de análise, compreensão e, por conseguinte, os modos de intervenção. Estherman (2006) entende que toda teoria tem sua origem no mundo-da-vida tal como entendido por Husserl, de forma que o pensamento teórico é uma interpretação sistemática e conceitual desse mundo que esse varia em cada cultura. Assim, toda teoria tem como pano de fundo distintas experiências culturais. O autor defende que sua obra, Filosofia Andina, é uma interpretação conceitual e sistemática da experiência vivida pelos povos ancestrais que habitavam os Andes e, por exercer essa função hermenêutica, é filosofia, não no sentido ocidental, já que tem como pano de fundo um mundo da vida distinto ao europeu ou helênico. De toda forma, a filosofia ocidental parte também do mundo-da-vida, mas agrega um outro nível que é, segundo Esthermann (2006): "La reflexión e interpretación histórica de esa misma filosofia originaria. Es el nível, en donde la filosofia se convierte en historia de la filosofia" (p. 81). Portanto, a filosofia europeia torna-se história da filosofia, principalmente, desde o século XIX, afastando-se do pensamento originário que a fenomenologia de Husserl reivindica quando ressalta a necessidade de se voltar às coisas mesmas.

Portanto, as fontes para se estudar o pensamento filosófico não-europeu são distintas, já que muitas culturas não dispõem de textos escritos, imprescindíveis para o estudo histórico, de forma que o teórico deve recorrer a outras formas nas quais a interpretação do mundo se manifesta com os cantos, ritos, símbolos, hábitos e costumes. Já que, como sugere o autor, nesse caso não se trata de fazer uma logologia, conhecimento sobre o conhecimento, típico da filosofia ocidental atual, mas uma logo-práxis cuja fonte em geral é estética. Entendemos essa proposta de extrema relevância, pois consideramos que a experiência cultural, latino-americana e africana, é distinta à dos países europeus e dos EUA. Nesse sentido, não nos parece absurdo considerar que, tomando como base a fenomenologia-hermenêutica de Heidegger, possa se compreender a originalidade dessa experiência sem que para isso seja necessário desprezar a tradição europeia, mas situá-la em nosso contexto.

No caso da produção dos psicólogos de orientação fenomenológico-existencial e/ou humanista, temos a tendência a universalizar o pensamento dos países centrais, como os da França, Alemanha, Inglaterra e EUA. Ao fazer isso, não possibilitamos que nossos construtos teóricos se aprimorem ou sejam revistos tendo como base a originalidade de nosso mundo-da-vida. Por outro lado, entendemos que, por vezes, parece haver um esforço imenso de parte dos autores latinoamericanos para que o mundo vivido imediato se encaixe em pressupostos teóricos pouco análogos ao que está sendo estudado. Frente a isso cabe a seguinte provocação: Será que a mudança na forma e na estrutura dos atendimentos psicológicos decorrente das novas políticas públicas não nos deveriam provocar a modificar nossas bases teóricas em prol de um entendimento mais consoante ao mundo vivido popular que tem como transfundo a experiência pós-colonial e não a propriamente ocidental de onde provem nossas teorias?

Esse artigo argumenta que o pensar e atuar em uma psicologia de orientação fenomenológico-existencial e/ou humanista pode se configurar numa base em que, pelo menos, a experiência latino-americana, que é a nossa, seja considerada como pano de fundo de nossa produção profissional ou acadêmica. Não se trata da criação de uma Psicologia Fenomenológico-Existencial latino-americana, mas de um pensar orientado fenomenologicamente desde outro solo vital, o nosso.

Considerando o exposto até aqui e com vistas a iniciar a se pensar uma psicologia fenomenológico-existencial e/ou humanista levando-se em conta a América-Latina apresentaremos a seguir o pensamento fenomenológico-existencial do argentino Gunther Rodolfo Kusch (1922-1979) que sugere uma fenomenologia-hermenêutica própria ao latinoamericano, distinto do europeu e que, portanto, pode subsidiar entendimentos, compreensões e análises a respeito do mundo popular brasileiro com uma proximidade maior.

Assim em um primeiro momento apresentaremos brevemente o autor e sua ontologia fenomenológica e num segundo momento, partindo desses conceitos, problematizaremos algumas questões a respeito da teoria e prática da psicologia fenomenológico-existencial sob a luz dos conceitos kuschianos, encerraremos com as considerações finais.

 

1. O estar-sendo americano: entre o "Ser-Alguém" e o "mero-estar"

Por ser um autor desconhecido do público brasileiro, cabe aqui uma breve apresentação do autor que trabalharemos nesse artigo. Gunther Rodolfo Kusch (1922-1979) foi filho de imigrantes alemães, nasceu em Buenos Aires e se graduou em Filosofia nessa mesma cidade pela Universidad de Buenos Aires em 1948, onde atuou como docente até que, por ocasião do Golpe militar de 1976 abandonou a capital e se mudou para o interior do país, atuando também na Universidade Nacional de Salta, norte da Argentina.

Se pudéssemos resumir a pergunta principal que embasa todo o pensamento de Kusch essa seria: o que há aqui na América que não nos faz europeus? Pergunta intuída no contraste de sua cidade natal que se fazia de européia com sua arquitetura inspirada nas cidades do velho continente, e suas periferias, becos, subúrbios, bem como a vida no interior do país, negava esse mesmo ser europeu. Assim a ontologia do mundo vivido da periferia, do interior do país ou o lado obscuro (hedor) da cidade limpa de traços europeus (pulcritud) foram seu principal foco de análise e atenção. Em sua primeira obra La seducción de la barbárie análisis herético de um continente mestizo de 1953, o autor propõe o conceito de mero-estar, como o protótipo da ontologia do povo americano, conceito esse chave para toda sua obra e que será desenvolvido até sua última obra Ezbozo de uma antropologia filosófica americana de 1979.

A obra de Kusch é composta de oito livros filosóficos e duas obras de teatro2, em suas obras filosóficas, mesclam-se reflexões de cunho fenomenológico, relatos de campo, entrevistas e suas impressões pessoais, provindas de suas experiências in loco nos subúrbios das grandes cidades latinoamericanas e de suas viagens ao interior do Brasil, Argentina e Bolívia. O leitor de sua obra, acostumado com o formalismo europeu, tende a se surpreender com o tom coloquial que acompanha profundas reflexões filosóficas em um estilo peculiar. De modo geral, seu autor de referência foi Martin Heidegger, com quem compartilha a pergunta sobre o ser, mas não deixou de citar Husserl em muitas ocasiões, principalmente em sua obra: La negación en el pensamiento popular, onde tece algumas considerações sobre os conceitos originários da fenomenologia.

De toda forma, Kusch desvela a insuficiência da fenomenologia europeia por se apoiar prioritariamente em uma concepção de história reduzida, o que ele chama pequena história e nela encontrar apenas o ser burguês, olvidando de um Outro modo de lebenswelt que ultrapassa esse mesmo ser. Segundo Tasat e Perez (2013), a principal obra de Kusch, do ponto de vista filosófico, é América Profunda de 1962 onde se explicitam mais claramente seus principais conceitos. Apresentaremos esses conceitos, já indicados no título dessa sessão, seguindo o raciocínio dessa obra, mas agregando reflexões de outras, complementando com autores comentadores.

A principal contribuição de Kusch para a fenomenologia está na distinção entre ser-alguém (ser-alguién) e mero-estar, entendemos que esses conceitos já demonstram uma atitude frente ao saber germânico, pois traduz ao castelhano uma intuição filosófica deslocando o alemão como língua própria ao filosofar. O autor defende que é possível filosofar a partir da América Latina. Kusch (1999) entende que a história europeia, concebida por ele como pequena história, é curta, tem início com a colonização da América e está contida na história maior, grande história, que se compõe pela chamada pré-história e outras formas de estar no mundo anteriores à formação das grandes cidades europeias e também presente em outros espaços como na África, Ásia e no continente americano como um todo. Em termos ontológicos a pequena história é dominada pelo ser-alguém enquanto a grande história pelo mero-estar. O humano na condição de mero-estar se encontra diante do que o autor denomina como ira de deus, ou seja, está disposto ao cosmos sem a proteção dos muros da cidade que o distancia da realidade natural. No mero-estar se busca um equilíbrio com as forças que governam o todo que, não raras vezes, atuam em desfavor da manutenção da vida humana, como pestes, secas e tempestades. Essas forças serão conjuradas através de ritos, com o intuito de preservar a harmonia e o equilíbrio entre a vida e o cosmos. Na condição de mero-estar, o humano é vulnerável, assume sua insegurança ontológica, assumindo os riscos do viver junto aos entes. Assim habita o mundo pela poiésis do rito que restaura o equilíbrio perdido, lidando direta e poeticamente com o ciclo das necessidades, sem as mediações que irão surgir paulatinamente com a formação das grandes cidades, que protegem o humano da "ira de deus".

A cidade é uma forma de se apartar e se diferenciar dos entes motivado pelo medo, pois constrói no limite de seus muros um mundo que se pretende totalmente humano. Segundo Kusch (1994), no mundo europeu, essa primeira cidade foi Roma, que adotou o cristianismo como religião, substituindo o politeísmo poético por um monoteísmo que impunha uma moral protetora capaz de homogeneizar os distintos modos de estar em prol de um mundo-da-vida, unificado e submisso. Não obstante, isso ocorreu mais ou menos na mesma época, em todo o território eurasiático, segundo Kusch (1999):

La religión y la ciudad se compensan porque aquélla, como administración de las almas, mantenida por iglesias y sacerdotes, expresa con un lenguaje antiguo un propósito completamente nuevo y antirreligioso. Buda, Cristo, Confucio, no fueron más que creadores de éticas ciudadanas sobre la base de miedos antiguos (p. 106).

Esse ambiente citadino substituíra paulatinamente a ira de deus pela ira dos homens, já que os últimos, travestidos de autoridade episcopal ou cidadã servem de sucedâneos das potencias naturais antes deificadas e temidas. O surgimento do protestantismo, que oferecia a salvação pela razão e da figura do mercader, comerciante burguês, são os golpes derradeiros para o início da pequena história e a consolidação do ser-alguém. Surge então a cidade, como pátio de objetos que servem para afastar de vez a natureza pura e simples do mero-estar. Segundo Chelini (2012), em sua interpretação do pensamento kuschiano:

(...) ló que hay detrás de ello es el miedo, que surge al pensar que todo es falso en el fondo. La técnica que agota la novedad y permite aplacar y estructurar el caos de la existencia nos educa para prever y para que ese miedo ante lo inesperado se oculte (p. 01).

Com isso o tempo linear, a ideia de previsibilidade e controle sobre os entes naturais agora transformados em objetos é concomitante ao desenvolvimento da ciência moderna e a colonização das Américas. A superação do medo à natureza, ira de deus, supostamente controlada pelos objetos da técnica, impulsionam o europeu a explorar um mundo que não é mais divino já que, segundo Kusch (1999) "el mercader pensante, es lo que piensa existe" (p. 108), de modo que o ser-alguém é quem, protegido pela cidade, pode objetivar o que está em sua volta, pois perdeu "(...) la prolongación umbilical con la piedra y el árbol" (p. 114). Sem medo e desapegado, o ser-alguém se desprende do espaço, perde sua gravidade territorial e se lança no tempo impondo-lhe um dinamismo inautêntico sob uma concepção linear. Inautêntico, no sentido de que agora é governado pelo medo e a insegurança impostos pela moral, está distante dos cosmos, falsamente abrigado pela cidade e protegido por uma ideia de história. Portanto a história, pequena história, é uma invenção do pequeno ser contada pelos que supõem dominar o cosmos, no contexto argentino, para Kusch, é a história de seus fundadores, libertadores, grandes políticos e intelectuais, mas essa operação histórica não elimina a condição de mero-estar da grande história, essa se dará nas periferias. A periferia que dita o ritmo da vida natural esquecida. Segundo Kusch (1999): "El verdadero ritmo de vida de la especie está dado por la masa, esse resíduo que va al margen de la elite y que los historiadores de oficio solo registran a través de alguna revuelta anódina y sórdida" (p. 120). O ritmo da vida é alheio ao tempo dinâmico, pois está mais próximo à relação vida e cosmos e seus ciclos essenciais, nos quais os humanos nascem, crescem, comem, defecam, copulam, vigem e morrem. O receio burguês ao natural é também medo a esse fato irremediável que engloba a todos, que é a vida bruta e sua inegável ligação com a morte e os atos naturais. Kusch denomina esse medo com o nome de hedor, em português, fedor. De todo modo na filosofia de nosso autor o mero-estar frente ao mundo é anterior ao ser alguém, pois é o âmbito ontológico onde se dá a vida em seu estado mais bruto.

Os europeus que aportaram na América se aventuraram com o sentido de ser-alguém e se depararam com os que se nutriam da pacha-mama (mãe terra) no modo do mero-estar, o ameríndio. Kusch (1999) denomina os europeus como profetas do medo:

(...) porque en esa lucha, que se entabla entre las dos experiencias, buscaban la parte del ser, un poco para ser alguien y otro poco porque les inquietaba el estar aquí en América y, por sobre todo, porque querían estar comprometidos con la dinámica europea, cueste lo que cueste. (p. 127).

O "selvagem" americano será o Outro do ser europeu enquanto representava para ele o irracional, a ausência de tempo, a vida crua, nua e despojada no espaço. O habitante originário das Américas é o mesmo humano pré-histórico, faz parte da grande história e não entende ou não compreende a pequena-história do ser, sua experiência é a de viver instalado no espaço obedecendo aos ciclos cósmicos que, quando se desarmoniza em relação às suas necessidades, restaura-se pelo rito. O mundo ameríndio projeta harmonia e equilíbrio na relação da vida com o cosmos. No entanto após a colonização o índio americano comporá, junto com o mestiço e onegro escravizado proveniente da África, as grandes massas de excluídos da América. Serão assim os representantes da grande história, no meio da pequena história, liderada pelos burgueses europeus, o que faz com que na América Latina coexistam uma cultura dinâmica européia junto com uma estática ancestral. Pensando nos tempos atuais, nota-se que uma burguesia herdeira do ser pôde aqui se apoderar de terras, tornando-se mais tarde industriais e mercadores, alguns com alguma importância no cenário mundial. A cultura higienista do início do século XX objetivava limpar das cidades burguesas todo o rasto de sujeira e fedor que restam do não-europeu, expulsando-os do centro para os subúrbios e vilas. Fora dos grandes centros, no entanto predomina uma Outra cultura que não participa da "pequena-história" e é invisibilizada pela narrativa oficial. Nesse sentido, Kusch ressalta que a história de seu país não é contada desde Jujuy, Salta ou Catamarca, províncias do norte, onde o elemento indígena é predominante, mas prioritariamente de Buenos Aires, onde estão os centros de poder de narrativa e escritura, mas apesar disso a grande história do mero-estar fagocita3 a pequena história gerando um mundo vivido onde se mesclam tentativas do ser e o mero-estar, esclarecemos isso a seguir.

A América convive então com a oposição entre o "fedor", hedor, popular e o "pudor", pulcritud, das classes médias e altas de origem europeia que habitam os centros urbanos. O cheiro, a cor, os hábitos não europeus são, no seu limite, expurgados do contato com a classe média que, por sua parte, sofre o ressentimento por tampouco aceder de fato ao ser-alguém. Segundo Kusch (2008):

Hay como un desgarramiento ontológico entre mi estar y el ser. Por eso descubrimos siempre que somos anteriores al ser de otros. Por eso creemos estar no más, y vemos al occidental que no está, sino que siempre es. Hay algo que nos impide ser totalmente un buen médico, o un matemático perfecto, o un profesor excelente, porque siempre hay la duda sobre la propia actividad. Y eso ocurre porque nos sentimos en el puro estar, y tenemos que optar por ser y convertir lo que es en un simple papel a asumir frente a la realidad, sin que seamos realmente. Por eso nuestro papel para ser aplasta nuestra posibilidad de vivir. De ahí el fondo de vida que yace debajo de las grandes afirmaciones en Sudamérica. De ahí la imposibilidad de concretar lo que se ha querido afirmar, porque siempre hay un papel que desempeñar. Pero por ahí también los dos papeles que desempeñamos siempre, por una parte, el que se nos impone, y, por otra, el que descubrimos en las chicerías. Por eso nuestro resentimiento y por eso nuestro mestizaje y por eso, también, la fascinación ante el peronismo como una propuesta que nos invierte el sentido (p. 99).

Portanto, tampouco as classes médias podem residir tranquilamente na morada do ser-alguém europeu. Paira sobre o latino americano uma certa insegurança mesclada por um ressentimento de não ser totalmente. Ressentimento que é suplantado pelos papéis que têm na América-latina uma grande importância, uma vez que por meio deles o citadino médio emula um ser alguém, que lhe provoca uma tensão constante, pois lhe afasta da vida do mero-estar presente na cultura popular das periferias.

O mero-estar é distendido enquanto o ser-alguém é tenso, o último nega a vida, enquanto ciclo de necessidades para ser, de modo que tensiona a vitalidade, enquanto o mero-estar é distensão, despojamento, sensibilidade e atenção às circunstancias, O primeiro compõe a América séria. Segundo Chelini (2012),

(...) con la economía del mercado que todo lo cosifica, guiándose por afirmaciones e instituciones, con la seriedad propia de la ciencia del "Esto es tal cosa" y, por otro, la América que ríe insegura, la del estar-siendo como juego y la que acepta que puede ser o no ser, o ser nada. (p.4).

Os marginalizados, na sua maioria de ascendência negra ou indígena estão dispostos a uma vida autêntica, pois se instalam na vida mesma, tem diante de si o nada, a morte e vivem de modo mais pleno seus afetos, as classes médias representadas pelos mestiços e imigrantes jogam, no melhor dos casos, o jogo dos papéis sabendo que tudo não passa de um jogo já que por detrás da seriedade do ser-alguém, feito papel, reside a vida mesma do mero-estar, portanto ri ironicamente da sua condição fingida de ser o que não é.4 Mas se no latinoamericano o ser não se pode afirmar como verdade, existiria algo como uma autenticidade do ser para o nosso autor?

Em uma nota de rodapé de América Profunda Kusch discute o conceito de Dasein de Heidegger. Segundo o autor, a tradução mais utilizada, ser-aí tem, na verdade, o mesmo sentido de mero-estar, pois no alemão, assim como no inglês, o sentido de ser e estar é dado pelo mesmo verbo, mas a língua castelhana e também o português, compreendem de antemão a espacialidade do ser expressa no verbo estar. Para Kusch, foi necessário uma acrobacia linguística para que Heidegger pudesse expressar em alemão esse sentido que para os falantes dos idiomas ibéricos é mais claro e isso explica um pouco a tendência à miscigenação nas colônias portuguesas e espanholas do que nas germânicas e inglesas já que para esses o ser se dava prioritariamente no tempo e não no espaço. Essas culturas reprimiram muito mais o mero-estar ao impor o sentido do seu ser histórico a outros espaços, enquanto os ibéricos demonstraram-se mais suscetíveis a estar nesses outros territórios.5 Isso não quer dizer que a colonização da América-latina não trouxesse também o ser histórico, mas esse competiu com o mero-estar que termina por fagocitar esse ser.

No caso de Heidegger, que empreende uma profunda crítica ao ser europeu, o termo Dasein surge a partir do Das Man, o um anônimo, o conceito de sein, ser, só irá aparecer quando o autor alemão tratará o conceito de autenticidade, conceito esse que se projeta para além do mero-estar já que afirma o ser verdadeiro como ser da propriedade, Eigentlichkeit, fazendo jus, segundo Kusch (1999d) ao fato de que: "El existencialismo es una filosofia de las clases medias y altas europeas, es evidente. Por eso no pueden dejar de insistir en el tema del ser." (p. 91). Sem embargo, Heidegger é quem mais aproxima a Filosofia ocidental do mero-estar que privilegia o ente em relação ao ser, recuperando-o no humano, mas o conceito de autenticidade enquanto propriedade ressalta a prioridade do ser europeu.

Os povos originários da América Latina, na condição de mero-estar são despojados de toda a posse tornando-se sujeito do acidental, os símbolos míticos têm a função poiética de harmonizá-los com o cosmos, como já dissemos. Nesse sentido, os mitos são o ser do mero-estar que, diferente do mito do ser histórico e dinâmico, não são regulados pelo medo e a repressão à vida, presentes na moral, como exemplo, para o povo aymara, estudado por Kusch, Jesus e o Diabo são como irmãos adversários, mas não dicotômicos. Daí que o princípio da não contradição e da complementaridade é inerente ao mero-estar. Kusch enfatiza que é na América que se pode dar a luta contra o apagamento do humano doador de sentido com a volta do ser original presente no mero-estar contra o extermínio da vida promovida pelo ser-alguém do ocidente.

Em síntese, Kusch (1973) entende que o símbolo harmoniza o humano frente ao desequilíbrio dos opostos cósmicos, é o ser do mero-estar, condição prévia a todo o ser. No entanto, a condição comum do latinoamericano, é a de estar-sendo, pois se dá como tentativa de afirmar um ser que é comprimido pelo mero-estar. Não custa reforçar que nessa condição o mero-estar traz as condições prévias de natureza sensível, vital e estética para que o ser possa emergir, de todo modo ele o fagocita, pois estabelece os limites para o ser, que tampouco se cumpre como alguém, já que se finda como papel6.

A condição do estar-sendo é própria ao latinoamericano, já que nesses solos o mero-estar é prévio e predominante sobre o ser. Entendemos que esse modo de compreender a ontologia da nossa cultura pós-colonial, que mescla elementos de pelo menos três outras culturas distintas, mesmo sob o domínio sócio-econômico europeu, é fundamental para se repensar a possibilidade de uma Psicologia Fenomenológico-Existencial e/ou humanista a partir da América-Latina. Essa nos aproxima do mundo popular do nosso continente e situa a ontologia do mundo-vivido latinoamericano em um ponto entre o fedor popular e o pudor das classes médias e altas, ou seja entre o ser e o mero-estar.

Segundo Espinosa (2016) Kusch propõe o popular latino-americano como um horizonte de interrogação que re-propõe o pensamento filosófico, em especial o fenomenológico, ao considerar a cultura como ponto de partida, entendendo-a como idêntica ao mundo-da-vida (lebenswelt), proposto pela fenomenologia de Husserl. O mesmo sugere também Estermann (2006), já citado nesse texto, que o entendimento da cultura deve se dar como mundo-da-vida o que justifica a necessidade de uma filosofia intercultural, ramo da filosofia da qual ele é expoente. Ora, voltando à Kusch, seguindo o argumento de Espinosa (2016), para o filósofo argentino, a fenomenologia enquanto método que visa o esclarecimento das vivências concretas deveria levar em conta a universalidade dessas vivencias em mundos da vida distintos ao europeu.

O valor de Heidegger, nesse sentido, para Kusch (2008), se dá quando esse introduz a hermenêutica na fenomenologia husserliana e eleva o apriori pré-reflexivo à ontologia. Para tanto o autor alemão teve que retornar aos pré-socráticos, ou seja a uma fase pré-civilizatória para resgatar o sentido do ser no mundo cotidiano. O eurocentrismo de Heidegger, para Kusch aparece quando esse distingue o ser próprio do impróprio, pressupondo assim, o ser-alguém burguês como mais verdadeiro. Para o filósofo argentino, o encontro com o ameríndio, deveria convocar o pensamento fenomenológico-hermenêutico europeu a repensar a ontologia incorporando o mero-estar, não mais como subalternidade do ser mas com prioridade ontológica sobre esse, como salientamos no conceito de fagocitação. Por isso se a distinção cultural não for problematizada como mundo-da-vida esse será subsumido nas concepções fenomenológicas que tendem à universalidade, mas que tomam como base apenas o solo cultural europeu. De todo modo, a filosofia kuschiana não se trata de mais um relativismo (Chelini, 2012), mas visa à mesma universalidade ontológica da fenomenologia, desde que essa incorpore o humano em sua totalidade, participante não apenas da pequena-história européia, mas da grande história que envolve as fases pré-civilizatórias, o oriente e o mundo ameríndio como um todo. O resgate do humano inteiro a partir de uma fenomenologia ampla é uma obsessão do pensamento kuschiano, que viu no homem popular americano essa possibilidade, pois nele convivem o ser-alguém europeu com o mero-estar indígena e ancestral.

Essa concepção nos convoca a pensar que, se há um mundo-da-vida próprio a cada cultura, e que se a colonização européia nas Américas inaugura uma distinção cultural importante entre o "velho" e o "novo" continente. A Psicologia como um todo e em especial a fundamentada no eixo fenomenológico-existencial e/ou humanista devem ser repensadas tendo como pano de fundo essa distinção e novidade do homem americano. Entendemos a extensão e magnitude dessa tarefa, esse texto visa tão somente assinalar um possível caminho, tomando o pensamento de Kusch como norte inspirador.

 

2. A Psicologia Fenomenológico-Existencial e/ou Humanista e o Pensamento de Kusch: reflexões sobre o estar-sendo latino-americano

Para começar a tecer essa relação vejamos como Kusch (1999) entende o papel da psicanálise em relação à neurose:

El psicoanalisis, especialmente, trata de adaptar al paciente a um âmbito opuesto al de sus intereses vitales, porque se trata de incorporarlo al plano intelectual de la ciudad. No advierte en esto el margen de salud que supone una neurosis sino que la convierte y suprime para sea útil a lo que llamábamos la dinámica y agresión del ser, que es el elemento constitutivo de la realidad occidental. La neurosis arranca por sobre todo de la imposibilidad de vivir en el plano del ser, con su dinámica y sus planteos teóricos. En ese sentido, supone una afirmación de lo opuesto, o sea, del estar como contemplación y estatismo, de tal modo que su aspecto como enfermedad sólo surge en tanto la ciudad quiere imponerse. (p. 152).

A neurose, para o nosso autor, é uma das for-mas do mero-estar fagocitar o ser-alguém, mas que só irá surgir como enfermidade quando a cidade e suas obrigações de papéis se imporem sobre ela. Dito de outra forma, a neurose é um protesto da vida contra um sistema social que exige um determinado ajuste ontológico em prol de um existir com base nos papéis, nesse sentido a psicanálise trata de adequar o neurótico ao ser-alguém da cidade.

De nossa parte, aproveitando essa análise do autor, propomos demonstrar a relação entre ser e estar nos dois grandes modelos terapêuticos que fazem parte do macro eixo epistemológico fenomenológico-existencial e/ou humanista. Entendemos que, discutido assim de forma mais ampla teremos melhores condições de visualizar as implicações da filosofia kuschiana para um (re)pensar esse eixo a partir da América Latina. Pois bem, o autor português José Carlos Teixeira (2006) distingue as abordagens terapêuticas desse eixo epistemológico de duas formas: as mais propriamente existenciais e as experienciais. Cabe ressaltar que as primeiras são de origem europeia e as segundas de origem estadunidense. Segundo Teixeira (2006) podemos distingui-las assim:

As diferenças essenciais entre psicoterapia experiencial (humanista) e psicoterapia existencial situam-se na forma como conceptualizam a capacidade do indivíduo para o processo de mudança, nos conceitos-chave que estão em jogo e, ainda, na finalidade da intervenção. A finalidade da intervenção define-se pela auto-descoberta (conhecer-se e compreender-se) na psicoterapia experiencial e pela construção mais autêntica e significativa da sua existência na psicoterapia existencial. (p. 289).

Em uma apreciação geral temos que as propostas de psicoterapia existencial de autores latinoamericanos, situam-se entre esses dois polos, salvo os casos em que há uma adesão a um modelo específico como os que abraçam somente a daseinsanalyse ou a logoterapia, por exemplo. A maioria, no entanto, conjuga os aspectos existenciais e os experienciais ao mesmo tempo, como esboçado na obra de Martínez e Signorelli (2011), Perspectivas en Psicoterapia Existencial. Outrossim as investigações teóricas e históricas mais recentes, principalmente no Brasil, tem mostrado uma investida maior de conjugar a Fenomenologia com as propostas existenciais e/ou humanistas, como se nota nos trabalhos de Moreira e Tatossian (2012) e Holanda (2014). Isso, no nosso entender, já expressa o caráter do mero-estar latino americano de que fala nosso autor. Porém, se lançarmos um olhar kuschiano sobre essa distinção, com base no critério que o autor se utilizou ao entender o trabalho da psicanálise, diríamos que a proposta experiencial, aparece como um modo de recuperar o mero-estar reprimido pela exigência de ser-alguém da cidade, focando na genuinidade na expressão das emoções, apostando no aqui-agora e na capacidade inata de autorealização do organismo quando este apura sua percepção (awareness). Por outro lado, as terapias existenciais tendem a se concentrar no ser-alguém, dando menos atenção ao mero-estar como patológico por isso aposta na liberdade como valor que junto com a importância da dimensão histórica deve impulsionar o indivíduo a um constructo pessoal, um projeto de sentido.7

Já dissemos que os modelos existenciais se desenvolveram prioritariamente na Europa, enquanto os modelos experienciais nos EUA, entendemos que, para além da diferença continental, cada um desses surgiram como resposta a momentos históricos distintos, o otimismo humanista dos tempos do New Deal nos EUA que se soma ao movimento hippie e o movimento da contra-cultura e o pessimismo da Europa nos períodos de guerra e holocausto. No caso europeu o mero-estar era o único modo de ser disponível a um indivíduo que tem o sentido de ser histórico destruído pela guerra, de modo que a restauração do ser-alguém se faz necessária, justamente para o indivíduo que o valorizava e o via se romper, a Logoterapia é o exemplo mais ilustrativo dessa necessidade. Já nos EUA a cultura expressava um sentimento de opressão em relação aos modelos tradicionais do ser ocidental, as terapias buscavam então a liberação do mero-estar se apropriando muitas vezes do pensamento oriental e ameríndio, nesse contexto surgem as comunidades alternativas, valorizam-se as experiências com psicodélicos e a apropriação de princípios do zen-budismo à psicoterapia como bem ilustra o desenvolvimento da psicologia humanista-transpessoal e da Gestalt-Terapia. Assim, no jogo entre o ser e o mero-estar o sofrimento foi interpretado de maneira diversa no grande eixo fenomenológico-existencial e/ou humanista, tendo em conta a distinta experiência das cidades europeias e estadunidenses.

Nesse sentido caberia perguntar em que sentido o pensamento de Kusch pode nos subsidiar a pensar uma psicologia desde a experiência latinoamericana, não apenas para a cidade, mas também para a sua periferia. Para isso, baseado no pensamento de Kusch, apresentaremos as possibilidades dessa construção desde uma reflexão que se propõe programática no sentido de discutir potencialidades teóricas para estudos empíricos ou teóricos posteriores.

A partir da polaridade fedor e pudor, proposta pelo autor destacamos dois aspectos que sintetizam de forma geral uma certa tipicidade dos sofrimentos dos que buscam a psicoterapia. No pólo do pudor, o ressentimento de nunca ser-alguém e ter de viver de acordo com um papel social não adequado à genuinidade do sentir e do viver e no caso do fedor, o sofrimento de estar na condição de mero-estar frente a um mundo comandado pelo ser dos papéis, somado à luta contínua e penosa para tentar ser-alguém ou ter um papel provisório, em geral pela via do trabalho ou do estudo.

Assim que do lado do pudor, o ressentimento é vivido como um apego desproporcional aos signos de identidades, sendo eles, em geral, relativos ao status sócio-econômico, que as profissões ou origem hereditária lhes conferem. Se não há recuo por detrás do papel na base da ironia, como apontava Kusch (1977) o humano se fecha à vida e seus sentidos acessíveis no modo de mero-estar restringindo assim sua sensibilidade ao outro e a si mesmo, pois na busca de ser-alguém resta uma insatisfação ansiosa que sempre busca e nunca se adéqua. Com efeito o sentimento de falta de ser, explicitado por Sartre em o Ser o Nada é um típico sofrimento de classe média. Junto a isso, outro sentimento comum do lado do pudor, segundo Kusch (2008) é o de perder o já frágil papel que traz a falsa sensação de se ser-alguém. As crises econômicas e a instabilidade política comum em nosso continente afeta a empregabilidade que é uma das formas onde o indivíduo tem a sensação de continuidade histórica, o clima competitivo incentivado por políticas neoliberais termina por formar uma classe média ansiosa ao tentar ser mais do que seu papel e ao mesmo tempo angustiada por perder o papel e não ser mais.

Nesse sentido a classe média, poderia se beneficiar com o retorno à sensibilidade típico do mero-estar, que é um retorno à vida em sua crueza. Esse trabalho já vem sendo feito pelas terapias experienciais, sem, no entanto, valer-se de uma mediação teórica que considere o intricado jogo entre o mero-estar e o ser, que em termos psicológicos se traduziria entre a vida e os papéis sociais. A ascensão de um si-mesmo autêntico, self, em geral defendido pelas terapias humanistas, não é suficiente, levando-se em conta que os papéis sociais no qual esse self se exerceria, são precários, instáveis e falsos em termos ontológicos. Tampouco os projetos existenciais, típicos das terapias existenciais que se dão na busca pela consolidação do ser-alguém são garantidos em um contexto sócio-cultural sujeito a instabilidades sócio-econômicas e culturais que extrapolam a liberdade individual. Cabe a nós, então, considerar a condição própria do latino americano que é o estar-sendo, que está entre o ser-alguém e o mero-estar, e suas dificuldades inerentes. Com isso entenderemos que as saídas não estão totalmente respondidas na base do ser-alguém, existencial, nem tampouco no mero-estar, experiencial, mas nesse ínterim, próprio à nossa condição. Cabe alertar que essas considerações teóricas são programáticas e não demonstrativas, a forma como isso pode se operacionalizar requererá estudos e práticas posteriores.

No lado do fedor, típico dos populares, na condição de mero-estar, temos uma questão que envolve a condição macro econômica e sócio-política de países que sofrem até hoje os efeitos da colonização. Maldonado-Torres (2007) um também estudioso de Heidegger propõe que o projeto moderno europeu faz surgir a categoria de raça e com ela a de sub-ontologias étnicas. A ideia de raças inferiores, embora superada nas teorias psicológicas, permanece como marca de exclusão social e econômica de forma que as pessoas originárias de estratos sociais não europeus tendem a viver na cidade ou no campo sem o acesso aos objetos que facilitam a vida na cidade. Com o predomínio quase exclusivo do mero-estar, mas destituídas dos saberes tradicionais que manejavam em prol da harmonia e do equilíbrio, essas populações negam o ser da razão europeia que de um lado as repudiam por serem desprovidas de razão e por outro as invisibilizam pois sua desrazão e fedor desvela de forma nua e crua, o Outro do ser racional europeu que não é o Nada, mas o mero-estar.

Desde nossa experiência clínica, como representante do estrato social médio, surpreende-nos como essas populações podem suportar as precariedades da vida citadina e mesmo assim, demonstrarem sensibilidade, alegria, ânimo e entusiasmo pelo que fazem. Isso demonstra o quão distante estamos do mero-estar e quão presos a nossos papéis a ponto de deixamos de fruir a vida. Segundo Kusch (1977), a habilidade de fruição da vida é típica tem das culturas não-europeias e algumas políticas com essa população tentam a todo o custo impô-las um papel como se esse já fosse condição natural do modo de habitar. É a velha e ingênua crença do progressismo de libertar a todos pela educação ou pelo trabalho. Sem, no momento, querer aprofundar essa querela, entendemos que a subjetividade, substratum popular deve ser o ponto de partida com o qual devemos trabalhar na relação com as políticas públicas que trazem implícito um projeto de ser ou sub-ser (empregos e sub-empregos) e o nascente sujeito de sua história que, ainda cidadão incipiente, mostra-se muitas vezes desamparado frente ao volume de objetos burocráticos e determinações sociais que permeiam o mundo citadino. Nosso empenho, nesse sentido, deve se concentrar em promover esse ser-alguém, sem, no entanto, destruir o mero-estar, mas aproveitar do movimento inevitável de fagocitar o sentido de valorizar e considerar as potências e saberes populares. Portanto nosso trabalho se en-contra em um lugar entre a estética, o terapêutico e a ética, o que nos remete ao projeto da filosofia da libertação de Dussel (2011) que inspirado por Levinas (2016) pela idéia de Rosto, propõe que o povo formado pelo Outro excluído no processo de colonização deve ter condição de apelar e reivindicar sua subjetividade no sistema sócio-econômico e cultural dominante, alterando-o e se incluindo como sujeito vivo, ou seja trazendo para o centro seu modo próprio de ser, seu Rosto.

Isso significa que as políticas laborais, educacionais e sociais devem levar em conta o mundo vivido do Outro excluído, caso contrário serão sempre excludentes. O rosto do Outro é sua identidade e dignidade que se reivindica em um sistema que o trata como objeto qualquer dentro do pátio de objetos que constituiu a cidade burguesa. Isso também ocorre, segundo Dussel (2011) nos grandes sistemas teóricos incluindo os políticos sejam eles com tendências mais à esquerda ou direita, que partem da mesmidade e não consideram a exterioridade do Outro. No nosso caso específico, quando trabalhamos no âmbito das políticas públicas, muitas vezes reduzimos o popular ao cidadão, usuário, paciente ou outros termos que falam de um lugar em um sistema e não de um Outro mundo-vivido.

Nesse sentido, deveríamos nos impulsionar mais a escutar o Outro das políticas públicas considerando que esse possa alterar a cidade como lugar não apenas do ser-alguém, mas também do mero-estar o que implica maior acesso ao lazer, cultura e espaços de convivência. A cidade prática que prioriza o trabalho e os objetos e que constrói de forma serializada e desumana, precisa ser enfrentada em prol do mundo-vivido popular do povo latino-americano que reivindica sua inserção como sujeito. Já a Psicologia Fenomenológico-Existencial e/ou Humanista quando se apoia numa ontologia popular como a proposta por kusch ganharia uma base teórica para corroborar com esse processo. Por isso é fundamental para nós psicólogos pensar para além da mera execução das políticas públicas e nos posicionarmos como quem pode escutar o Outro ignorado, seu mundo vivido, sua cultura e a partir dela captar os elementos potenciais para sua libertação como assinala Dussel (2011).

Igualmente para que possamos epistemologicamente nos encontrar no nosso continente, os modelos estadunidenses e europeus devem, para o bem do rigor e do bom trato com o conhecimento, serem revistos considerando essa distinção latinoamericana. O caso é que, sob os efeitos da colonialidade, não nos arriscamos teoricamente a criar, não por falta de competência técnica ou teórica, mas por não considerarmos nossa experiência como válida, cumprindo o primeiro nível da formulação teórica de que nos fala Estherman (2006). Entender qual a genuidade dessa nossa experiência é um passo importante para a construção de arcabouços teóricos e metodológicos que possam servir de referência para um adequado trabalho terapêutico, condizente com o nosso modo de ser e estar no mundo, nosso estar-sendo. Isso também implica que os setores médios devem estar dispostos a construir pontes entre seu mundo de papeis e o mundo do mero-estar das periferias e margens, afim de nesse interstício possibilitar um espaço de criação de novas compreensões e atendimentos que escapam ao hegemônico instituído sem, no entanto, perder o rigor teórico e metodológico.

 

Considerações Finais

Estamos todo o tempo reproduzindo conceitos de autores europeus e estadunidenses cujas propostas teóricas exprimem uma experiência de seu tempo-espaço específico, muitas vezes pouco relativizadas por nós que nos inspiramos nessas mesmas propostas. No contexto da América Latina propostas como a de Kusch ,quando conhecidas, ainda são pouco valorizadas, mas devem servir, no nosso entender, de conhecimento inspirador para uma psicologia que se construa referenciada na América-Latina.

O caso é que a psicologia existencial latino-americana ainda não se atentou aos filósofos de sua própria pátria de origem e que podem enriquecer seu arcabouço teórico e metodológico. Isso não quer dizer que devemos rechaçar o pensamento europeu, mas antes de professá-lo verificar sua experiência de fundo e seu alcance para o nosso contexto. Entendemos que o estudo dos filósofos que compõe o movimento do pensamento decolonial que estão reunidos na rede modernidade/colonialidade que, cada um a sua maneira, partem dos aportes fenomenológico-existenciais, como o próprio Kusch e os já aqui citados, Maldonado-Torres e Dussel mas também Quijano, Mignolo, Grosfoguel, Boaventura de Sousa Santos entre outros8, podem subsidiar revisões importantes no nosso arcabouço teórico e embasar novas práticas e intervenções. De igual maneira, esse estudo pode ajudar no esclarecimento e problematização de nossa prática que, em muitos casos, já é inovadora, mas carece de mediadores teóricos adequados para ser pensada e refletida.

A consideração da distinção da cultura popular latinoamericana e seus elementos não europeus tratadas por Kusch (1999) é um princípio importante para que possamos, em nossas terras, compreender, analisar, entender e sobretudo atender a população que nos procura com um maior rigor epistemológico e vivencial. Entender o estar-sendo, como próprio à nossa condição ontológica, possibilita aprofundar nas questões que nos são patentes e melhorar as ferramentas para as discussões dos problemas do momento histórico atual. Entendemos ademais que a produção encastelada de saber, como se esse não estivesse relacionado com o nosso entorno, além do perigo solipsista, também contribui para a naturalização da miséria, da guerra e da fome, típicos problemas latino-americanos.

 

Referências

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Recebido em 23.05.2017
Primeira Decisão Editorial em 01.02.2018
Aceito em 02.05.2018

 

 

1 O termo psicologia fenomenológico-existencial e/ou humanista será usado nesse texto, isso se deve a que, apesar das diferenças entre os distintos autores da Psicologia inspirados no movimento humanista, fenomenológico ou nas filosofias da existência, unindo-as ou não a seu modo, a proposta defendida nesse artigo serve à totalidade desse eixo como ficará demonstrado na segunda sessão.
2 Sua obra filosófica é composta pelos seguintes livros: La seducción de La barbárie: análisis herético de um continente mestizo (1953); América Profunda (1962); Indios, porteños y dioses (1966); De la Mala Vida Porteña (1966); El Pensamiento Indígena y Popular em América (1971); La Negación En El Pensamiento Popular (1975); Geocultura del Hombre Americano (1976); Esbozo de Una Antropologia Filosófica Americana (1978). Além das duas peças de teatro: La muerte Del Chacho (1960); La Leyenda de Juan Moreira (1960).
3 O termo fagocitar é o usado por Kusch para demonstrar o poder de absorção do mero-estar ao ser. O mero-estar envolve todo o ser, o encapsula. Todos nós, por mais distantes que estejamos do despojamento do mero-estar, estamos submetidos aos ciclos vitais, sensíveis e estéticos que ele impõe.
4 Em uma perspectiva política o peronismo é, para Kusch, uma tentativa de forjar o ser do povo, já que promete na imagem de Perón e Evita um ser-alguém que se origina do mero-estar popular. No entanto esse ser do povo não se concreta objetivamente, já que não se trata de um ser algúem ao modo europeu, mas pode ser melhor entendido como um estado subjetivo que nega esse mesmo ser e afirma o estar popular. Essa peculiaridade do peronismo demonstra o quão ele pode parecer irracional do ponto de vista da razão europeia, pois não se trata objetivamente de um projeto político ao modo ocidental, mas de várias tendências que se mesclam sob os símbolos erigidos por aqueles que se ergueram como ser do povo. Assim ele só pode ser entendido desde o mundo-vivido popular.
5 Isso explica, segundo o autor, porque as colônias inglesas se dão mais como imposição do modo inglês que a colonização portuguesa na qual os mundos ameríndios e europeus se mesclaram muito mais.
6 Nem mesmo os grandes personagens da nossa pequena história são representativos da liberdade e autonomia do ser europeu já que, na condição pós-colonial, a história é feita pelas grandes potencias que podem utilizar de personagens locais para cumprir um papel já pré-determinado desde o centro de poder.
7 Ao nosso ver e discordando da classificação de Teixeira (2006) a exceção se dá na Daseinsanalyse que trabalha a partir da abertura à-priori do Dasein. Entendemos que esse modelo, que é mais um modelo psicopatológico do que propriamente terapêutico, pode ser entendido como uma análise do mero estar kuschiniano, mas que sob a filosofia de Heidegger termina por resvalar na ideia de autenticidade que escapa à noção do simples mero-estar.

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