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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.25 no.1 Goiânia jan./abr. 2019

http://dx.doi.org/10.18065/RAG.2019v25.11 

TEXTOS CLÁSSICOS

 

Heidegger e o problema da filosofia: parte I*

 

 

Carlos Lopes de Mattos (1954)

 

 

Importância de Heidegger - Esclarecimentos Preliminares

O nome mais importante da história pós-kantiana ficará sendo, quiçá, o do "existencialista" alemão Martin Heidegger. Há 25 anos vem ele aprofundando suas intuições filosóficas, num labor tipicamente germânico, que faz lembrar o do pertinaz pensador de Koenigsberg.

Sua importância comprova-se já pelo complexo histórico em que ele se situa. Conhecedor dos gregos e da escolástica, devido à sua iniciação com os jesuítas; discípulo de Husserl, fundador da fenomenologia; versado no kantismo e no hegelianismo, graças a seu ensino nas cátedras universitárias da Alemanha; inspirado em Kierkegaard e Dilthey - poucos filósofos modernos terão tido um tão grande lastro de informação. Desautorado pelo mestre da fenomenologia; exaltado, mas logo malquisto pelos nazistas; ignorado, de propósito, pela filosofia oficial e acadêmica, Heidegger exercerá inevitavelmente uma influência decisiva no rumo futuro da filosofia ocidental.

Porque seu pensamento atinge uma profundeza e um rigor raros em qualquer época da história da inteligência humana. Não se limitou ele a reelaborar um sistema recebido de qualquer mestre ou a imprimir uma nova direção a uma corrente já em voga. De um só impulso, renovou todo o ambiente filosófico, superou os pressupostos que reinavam nos sistemas vigentes, recolocou a especulação metafísica diante de seus problemas fundamentais. É, nos dias de hoje, o que devem ter sido um Heráclito ou um Platão para os gregos do seu tempo. Pode alguém discordar de suas ideias e encontrar outros caminhos para a filosofia; não se pode, porém, pretender ignorá-lo ou negar-lhe o título de filósofo, dos maiores.

Mas, Heidegger, reconhecem-no todos os estudiosos de sua obra, é um escritor de difícil compreensão. Sua terminologia escapa à linguagem usual, apresentando-se repleta de expressões forjadas por ele e que mal se poderiam formular em outra língua que não a alemã.

Ademais, seu modo de expor é coleante e dilatório, o que mantém o leitor em suspenso até ao fim da exposição, para, quase sempre, remetê-lo a futuros aprofundamentos, que vão surgindo com intervalos de anos.

É, porém, sobretudo a própria natureza de seu labor especulativo que dificulta a compreensão, pois Heidegger, como legítimo filósofo que é, não dá (e não poderia dar) por terminado, seu pensamento. Apesar de metódico, no sentido de corrente, seu estudo não se esgotou ainda, e não deverá esgotar-se, em um sistema acabado. Aí reside a força de sua obra, a virtualidade de imprevisíveis influências na evolução porvindoura da filosofia.

É por isso que há tanta divergência na interpretação da sua filosofia existencial, e tanta incompreensão a respeito do sentido de sua obra, malgrado o crescente interesse do público por essa nova corrente filosófica. Heidegger, como veremos, desaprova o existencialismo de Sartre, negando-lhe a qualidade de continuador de suas ideias. E até mesmo um ótimo expositor como Bochénski1, parece-nos não ter apanhado o essencial do pensamento heideggeriano.

Eis porque tentaremos expor, da maneira mais clara possível, o ponto a que chegou o grande filósofo contemporâneo. E para isso vamos concentrar nosso estudo sobre um tema fundamental, o que mais vem preocupando Heidegger em seus últimos escritos, e que constitui, em si mesmo, o problema básico de toda e qualquer filosofia: oproblema da própria filosofia. É o que faremos nos dois próximos capítulos, sobre a "verdade do ser" e o que Heidegger pensa da metafísica, ou seja, da filosofia. Daí, acompanhando as explanações e indicações do filósofo, veremos sua atitude quanto ao humanismo e à ética, atitude que não passa de simples consequência e nova explicitação de seu pensamento fundamental. Por último, comentaremos o ajuste de contas de Heidegger com as correntes que dele pretendem se aproximar ou que o combatem.

Se a tanto nos aventuramos, é que há 12 anos temos acompanhado com interesse o desenvolvimento do pensador alemão, sendo que no Brasil talvez tenhamos sido o primeiro a expor, de uma cátedra universitária, as ideias de Heidegger (em 1941).

 

A Verdade do Ser

Em sua conferência intitulada "A Doutrina de Platão sobre a Verdade2", Heidegger reproduz e interpreta a célebre alegoria da caverna, para mostrar que Platão transformou a determinação da essência da verdade.

A alegoria é conhecida. Numa caverna acham-se presos, voltados para o fundo do recinto e sem poderem volver a cabeça, homens que jamais encararam a luz do dia. Por trás deles, à luz de uma fogueira, outros homens projetam na parede as sombras de vários objetos e figuras. Os prisioneiros, contemplando essas sombras, julgam-nas verdadeiras realidades. E se ouvirem as vozes de outros homens, ecoando no fundo da caverna, acreditarão que são as sombras que falam. Suponha-se que um desses prisioneiros seja desamarrado e obrigado a dirigir-se para junto do fogo; é óbvio que ficará deslumbrado com a claridade e preferirá voltar-se para as sombras, que são para ele mais visíveis. E se lhe mostrarem as coisas cujas sombras vira, achará esses objetos menos verdadeiros do que as sombras a que estava acostumado.

Se o coagirem a sair da caverna para a plena luz do dia, ele ficará completamente ofuscado, incapaz de ver qualquer coisa, até que seus olhos se habituem à luz do sol. Só então compreenderá que se acha agora diante da verdadeira realidade. E deplorará os que ficaram na caverna, sem nunca terem visto o mundo real.

E se ele retornasse para o seu lugar junto aos outros prisioneiros, custar-lhe-ia adaptar-se à obscuridade, não podendo, a princípio distinguir as sombras projetadas. Seus companheiros, então, rir-se-iam dele e achariam que não valia a pena sair da caverna para voltar diminuído da capacidade de discernir as figuras. Diante disso, eles resistiriam com toda a energia à tentativa de tirá-los dali, e, se preciso, matariam o ousado que quisesse forçá-los a sair (alusão à condenação de Sócrates).

A interpretação da alegoria é fácil para quem conhece o sistema platônico. A caverna é nossa habitação terrestre; o fogo é o sol. Para o homem vulgar, a realidade são as coisas que o cercam, o que eles percebem pelos sentidos. As coisas fora da caverna simbolizam a realidade propriamente dita. Esta é aquilo pelo que a realidade se apresenta, o que constitui a "aparência" das coisas, aparência não no sentido de aspecto, mas no de representação, que em grego se chama eidos ou ideia. São essas coisas do além, as "aparências" ou "ideias", cuja posse nos torna capazes de conhecer toda e qualquer coisa, mesmo as sombras da realidade, ou seja, os objetos sensíveis.

Mas Heidegger observa, e tem plena razão, que a alegoria não se esgota com essa correspondência entre os elementos que a compõem e o significado alegórico a ela atribuído. Há ainda a narrativa de sucessos, a passagem de uma situação à outra: o prisioneiro que sai da caverna para o mundo superior ou volta para a caverna.

Cada uma das transições exige uma adaptação, difícil e longa. O que significa que a passagem do homem da ignorância para o conhecimento da realidade, ou vice-versa, exige esforço e tempo, pois implica em uma transformação de toda a alma, da tendência fundamental do ser humano. Essa atitude nova tem que surgir de uma virtualidade já existente no homem, a qual se deve transformar num estado permanente. Platão dá a tal passagem o nome de paideía, educação, ou antes, formação, no duplo sentido de imprimir uma nova forma e de formar em vista de uma forma preformadora, ou modelo. Porque a educação não consiste em introduzir simplesmente conhecimentos na alma despreparada, como em um recipiente vazio. A verdadeira paideia é uma periagogé (reviravolta, transformação) de toda a alma, transpondo-a a um novo ambiente essencial e acostumando-se a ele.

Ora, pergunta Heidegger, se a alegoria da caverna nesta segunda consideração visa principalmente expor o que é a paideía, como é que sua primeira apresentação só chegava à verdade, parecendo querer levar à conceituação da alétheia?

Alétheia, que nós traduzimos por verdade, significa etimologicamente desocultação (de "a" primitivo e "letho", eu oculto). De fato, em cada um dos estádios alegóricos a que se refere, Platão alude a uma espécie de verdadeiro. No primeiro, há uma revelação da realidade pelo reflexo da luz da fogueira. No segundo, as coisas revelam-se, ainda à luz do mesmo fogo. No terceiro, as realidades se manifestam em si à claridade da luz natural. Na passagem de cada um desses estádios, para o outro, necessita-se, porém, de uma ambientação. Não é o simples libertar-se das amarras ou do recinto da caverna que torna o indivíduo capacitado para a manifestação da realidade, mas sim a adaptação, a persistência e o esforço, em vista de atingir as coisas reais em sua "aparência". E isso, como vimos, é que constitui a paideía. A verdade é, portanto, o fundamento da educação e da formação.

E tanto isso assim é, que se verifica uma exata correlação entre ambas, pois, enquanto a paideía é, essencialmente, uma passagem da apaideusía (a-formação) para a paideía, a verdade é necessariamente uma superação do oculto, um arrancamento para fora da ocultação, como o ilustra a quarta fase da alegoria, em que o ex-prisioneiro retorna à caverna para procurar convencer seus colegas de que as sombras não são a verdadeira realidade.

Aqui, porém, surge o ponto capital da indagação de Heidegger. O filósofo grego, muito embora continue falando de alétheia, passa a pensar numa outra essência da verdade, conquanto tal substituição se faça apenas implicitamente. Em sua alegoria, Platão, ao invés de salientar o simbolismo da ocultação da caverna e da desocultação do que se patenteia fora dela, dá ênfase ao papel do fogo, de seu clarão e da sombra, da claridade do dia, da luz solar e do próprio sol. Trata-se só do aparecer do aparente e da possibilitação de sua visibilidade. Cita-se ainda a desocultação em seus diversos graus, mas ela só é considerada enquanto torna acessível o aparente em seu aparecer (eidos) e visível este "se-revelante" (idéa). A consideração principal é a da ideia. Mas, a ideia platônica não consiste em uma coisa que faz aparecer outra coisa; ela própria é o brilho e a vidência. Essa essencializa toda e qualquer realidade. E a essência, a quididade, é, para Platão, o verdadeiro ser; não a existência. O que a ideia visibiliza é o "desoculto" (verdadeiro) daquilo que ela aparece como essência. O verdadeiro passa a ser o conteúdo da ideia.

A desocultação torna-se, agora, uma relaçãoao princípio que a possibilita. É esse princípio, que tanto dá ao objeto a capacidade de desocultar-se, como propicia ao cognoscente a faculdade de conhecer, é a ideia do bem, o qual acha-se simbolizado, na alegoria, pelo sol. Não se trata, para Platão, do bem moral ou como valor. O bem, em grego, agathón, quer dizer o que serve para alguma coisa e o que torna utilizável alguma coisa. Ora, toda ideia ou aparência de alguma coisa serve para fazer ver a realidade tal como é. A ideia serve enquanto possibilita a visão (serve para alguma coisa) e enquanto constitui visível a própria realidade (torna-a utilizável). Logo, o que constitui toda ideia como tal, o que possibilita o aparecer de toda aparência, o utilizável e útil por excelência, a ideia das ideias, é o bem. Nele se completa a essência da ideia; ele é o fundamento, a possibilidade de todas as ideias. Por isso, vemo-lo simbolizado pelo sol, que, na teoria platônica, é, não só a origem de toda claridade, mas também o que possibilita a gênese de todas as realidades.

Desse modo, a ideia do bem é a causa suprema, a que faz chegar ao ser dos objetos. Ela comunica ao homem o conhecimento por excelência, tanto na teoria como na prática. A paideía será, pois, orientada para a visão da ideia de bem.

Desde logo, a ideia predomina sobre a verdade. É ela que possibilita a verdade (desocultação) e sua apreensão (nõus). A desocultação deixa de ser o essencial na verdade, que passa a basear-se na essência de ideia. O mais importante será, a partir desse momento, conseguir ver (em grego, idein) a ideia, com o que se alcança o que se chamará mais tarde a assimilação do sujeito ao objeto, a homoíosis de Platão. Para tanto, é indispensável a retidão da vista.

Eis a verdade transmutada em retidão, ou seja, em uma característica da atitude do homem perante as realidades. Doravante, todo o pensamento ocidental adota o conceito de verdade como retidão, isto é, correspondência da inteligência com a realidade, oposta à falsidade no sentido de falta de retidão. Substitui-se o que os escolásticos denominam verdade ontológica pela verdade lógica. Daí a importância da educação, que tem por fim alcançar a verdade nesse sentido transposto. Por isso o homem ocidental pensará a verdade em subordinação a ideias, e apreciará todo o real conforme o padrão de valores. "O que é decisivo, diz Heidegger, não é saber quais as ideias e quais os valores que se estabelecem, mas sim o fato de se explicar a realidade por ideias e pesar o mundo por valores". Nessa perspectiva, a verdade se funda na razão, no espírito do pensamento, no logos, ou em qualquer outra espécie de subjetividade, sem jamais se atingir a essência da desocultação. Desoculta-se apenas um aspecto, uma consequência do que é essencialmente a verdade. Mas nesse andar, nunca se conseguirá apreender a ocultação, quer dizer, o que há de positivo na essência "privativa" da desocultação. E o positivo deve ser o constitutivo fundamental do próprio ser.

Dessa "revolução de Copérnico" no pensamento do ser, Heidegger considera-se precursor, convencido como está de que não é possível, por enquanto, uma reconstrução da filosofia, mas, apenas uma sondagem aproximativa da verdade em sua essência.

Até aqui, seguimos a exposição do filósofo em sua preleção sobre a doutrina de Platão. Seu pensamento, muito mais rico do que o que logramos captar neste apanhado, é, entretanto, ainda suficientemente compreensível.

Porém, vimos tão somente a parte crítica da reflexão heideggeriana sobre a verdade do ser. O lado positivo, ele o desenvolverá, logo após, em sua carta ao francês Jean Beaufret, "Sobre o Humanismo3". Aí, a exposição de Heidegger complica-se em extremo, sobrecarregada de neologismos sutis e desenvolvendo-se de um modo tateante, obscuro, num hermetismo próprio de um pensamento que tenta pela primeira vez explorar o mistério do ser em si mesmo.

Para bem compreender essa parte positiva, mister seria acompanharmos quase todo o trabalho filosófico de Heidegger. Isso ultrapassa os limites desse nosso livrinho, que não se destina somente aos especialistas. Muitos pontos encontrar-se-ão focalizados nos capítulos subsequentes, pois as ideias de Heidegger não são suscetíveis de uma exposição retilínea, forçando o leitor a uma volta contínua a certos temas fundamentais. Procuraremos apanhar o essencial do pensamento do autor acerca da verdade do ser, resumindo-o, às vezes, e, outras, interpretando-o.

Precisamos chegar à "dimensão" da verdade do ser. Não se trata de uma dimensão espacial, e sim de um plano a que devemos alçar, do dimensional que é o próprio ser e que funda toda dimensão espácio-temporal.

Que é o ser? É o ser, mesmo. Ser, em alemão Sein, não é o "sendo", o Seiend, o ente, os seres. Não são as coisas; é algo de mais próximo ao homem, o mais próximo. A essência do homem mora no ser, pois o ser é o essencial da essência. Enquanto o homem está no clarão do ser, isto é, na verdade do ser, ele é "ek-sistência" (posição a partir de). E só a ele, segundo verificamos pela experiência, compete a "ek-sistência", pois só ele se vê à luz do ser. O homem é, pois, essencialmente "ek-sistência", ou seja, ser-aí (Dasein), presença do ser, presença estática na verdade do ser. O "ser-aí" é surgir na verdade do ser, é ser "atirado" no "destino" do ser. O homem é o guarda desse destino, o pastor do ser, e essa guarda constitui a "preocupação" (Sorge). Na preocupação, o homem esquece o mais próximo, a verdade do ser, para cuidar do que vem depois - o "sendo". O esquecimento é um "decair", não no sentido moral, e sim do ser. Isso explica que a história da filosofia tenha começado, como vimos, em Platão, pelo esquecimento da verdade do ser. E o fundamento último do esquecimento encontramo-lo no nada que está contido na essência do ser. O ser mesmo, enquanto ser, "anula", retrai-se como mistério em sua verdade e oculta-se nesse retraimento.

Em conclusão, só pensando o nada pode o pensamento pensar a verdade do ser. Porque a verdade é, em sua essência, "inverdade", o que não significa falsidade, mas sim ocultação necessária. Pensar a desocultação é pensar o ser como essencialmente nada, o que lhe permite revelar-se, desocultar-se. Isso pressupõe que se pense realmente, e não apenas se raciocine, pois "a razão, enaltecida desde há séculos, é a mais tenaz contraditora do pensar". Para a razão, o nada é inconcebível. E Heidegger conclui: se quisermos morar na proximidade do ser, precisamos deixar que o próprio ser nos fale, mesmo que, com isso, pouco tenhamos a dizer.

 

Ontologia, Metafísica e Pré-Metafísica

Com o estudo fundamental da verdade do ser, Heidegger já fixou sua atitude perante os sistemas filosóficos e já nos forneceu o sentido profundo de suas especulações. Entretanto, como já dissemos, suas obras são muito mais ricas de ideias. De cada ângulo novo que ele aborda o problema do ser, outras perspectivas se abrem ao leitor, aprofundando-se o pensamento inicial e alargando-se o horizonte das virtualidades dessa nova atitude filosófica.

A filosofia existencial de Heidegger partiu da fenomenologia de Husserl. Porém, enquanto o mestre punha entre parênteses a existência, Heidegger pretendia começar precisamente pela fenomenologia do existente. Mas, a fenomenologia, estudo puramente descritivo, não é para Heidegger senão um auxiliar indispensável. Sua especulação não se limitará ao descritivo. Ela quer ser (e nisso Heidegger aproxima-se de Dilthey, até mesmo nos termos que adota) uma hermenêutica, uma interpretação da existência, posição, de resto, um tanto semelhante àquela a que Husserl chegou em suas últimas obras, se bem que contrariando suas tendências iniciais.

A hermenêutica existencial, também chamada compreensão existencial ou analítica da existencialidade, deve levar ao conhecimento do que Heidegger deu o nome de ontologia fundamental. Ontologia quer dizer estudo do ser. Tradicionalmente, porém, ela estuda apenas o "sendo", as realidades, sem nunca ter atingido a verdade do ser. Porque todos os sistemas filosóficos partiram do pressuposto de que o ser deve ser apreendido pela razão: todos se entregaram a uma construção concepcional. Com isso, faltou-lhes a base: o ser, o ser mesmo, que é anterior à razão e cuja verdade, portanto, lhes escapa. Eis porque há lugar ainda para essa nova ontologia fundamental, termo que Heidegger prefere agora retirar devido à confusão a que se presta por parte dos leitores comodistas. Essa ontologia fundamental representa o começo e o fim de todo esforço filosófico, pois é pelo ser e para o ser que se faz todo o pensamento.

A ontologia chama-se também metafísica, enquanto é busca do que está além do sensível e das realidades, as "ideias". Como busca, desejo, estima das ideias, é filosofia. Nem podiam deixar de ser sinônimas essas designações, pois não há outro problema filosófico senão o do ser e sua verdade, o qual, desde Platão, foi transferido para a esfera do inteligível ou supra-sensível.

A metafísica, em sua essência, é a verdade do "sendo", como tal, na totalidade. Isto é, a metafísica estuda sempre a realidade, os seres, em seu conjunto, procurando a explicação global das coisas, consoante a definição corrente: "conhecimento de todas as coisas pelas ultimas causas". Como tal, a metafísica não é a obra de cada um dos pensadores. Cada fase da metafísica representa, antes, um trecho do caminho que o destino do ser se abre.

A história da metafísica deve, pois, ser estudada metafisicamente, como o desenrolar da história do próprio ser. O pensamento ocidental nunca pensou o ser do "sendo", o ser como ser, a verdade do próprio ser. A metafísica partiu do estabelecimento da distinção entre o supra-sensível, e o sensível, explicando este por aquele, ou seja, a metafísica sempre foi visceralmente platônica.

A preocupação da metafísica sempre foi a busca das "ideias", do mundo supra-sensível ou inteligível, em cujo ápice está a ideia das ideias, causa de toda intelibilidade e, portanto, divina, como causa suprema. A metafísica foi, pois, sempre teológica, no sentido de explicação dos seres por uma causa divina, que seria a realidade das realidades.

Essa concepção incorporou-se no cristianismo (não a "cristianidade" como vida cristã, e sim a instituição político-mundana que é a Igreja). O Deus pessoal e a autoridade da Igreja ficou sendo o suporte do mundo ideal. Com o desaparecimento do predomínio eclesiástico, surge a autoridade da consciência e da razão. Contra esta, ergue-se o instinto social, o progresso histórico, a felicidade do maior número. A cultura, a civilização, a técnica, são divinizadas. Até que se chega à filosofia dos valores, onde as "ideias" tornam-se pontos de vista, apreciações.

Aparece, então, Nietzsche e proclama o fim da metafísica, com a tese da desvalorização dos valores, e, consequentemente, o niilismo. Mas, essa desvalorização é apenas a primeira fase de uma revalorização, do estabelecimento de novos valores (começando por fixar um novo estalão, é verdade, mas sempre na mesma linha de uma filosofia do valor), de um outro niilismo, agora no sentido positivo. Porque Nietzsche está preso na subjetividade inerente a toda a metafísica ocidental, e reduz a metafísica a um pensamento valorizador. Numa tal perspectiva, o "sendo" torna-se objeto, ou seja, é posto pela representação, assegurado por ela, dominado. O ser mesmo é posto de lado, não se funda mais em sua verdade. O ser decaiu: tornou-se um valor.

A metafísica é, pois, essencialmente niilista. "A história do ser começa, e isso necessariamente, pelo esquecimento do ser". Necessariamente, porque, como vimos no capítulo anterior, é o próprio ser que se oculta. Essa ocultação não é uma falha da metafísica: é o tesouro oculto de sua riqueza.

Ultrapassar esse niilismo é chegar ao verdadeiro pensamento do ser, deixar-se falar por ele, o que constitui a única base possível para compreender os problemas que se põem à humanidade e, mais tarde, pode chegar a uma solução. Em qualquer outro caminho repisa-se sempre o mesmo problema. Porque o niilismo produz necessariamente catástrofes mundiais.

É por vivermos em uma "era mesquinha", em uma "época necessitada", que podemos pressentir a próxima aurora da desocultação do ser.

Em sua preleção intitulada "Que é a Metafísica?", de 1929, Heidegger parece incluir na metafísica, toda essa especulação, ainda muito menos aprofundada. Aí ele compara a metafísica com a ciência, para mostrar que a própria ciência só é possível como derivação dessa metafísica. Mas, a razão profunda da designação de metafísica para suas considerações de 1929 é que nelas se trata da pergunta fundamental: que é a metafísica? Essa pergunta faz com que o pensamento se volte, ainda que no começo só metafisicamente, para o ser e a verdade do ser, pois só assim se compreenderá a essência da metafísica, que é o esquecimento do ser.

Eis porque o estudo do ser em sua verdade é anterior à metafísica, como também precede todas as distinções racionais, qual seja, por exemplo, a da teoria e da prática. A metafísica enquanto metafísica, jamais chegará a compreender sua essência, porque esta já preexiste em relação a ela. A metafísica da metafísica é impossível. Entretanto, o pensamento futuro ficará sendo sempre "amor da sabedoria" (filosofia), como busca da verdade do ser.

Dá-se com a metafísica o mesmo que com a ontologia. Além da ontologia há ainda lugar para uma ontologia fundamental. Heidegger pensa, pois, em aprofundar-se numa verdadeira pré-metafísica, um estudo do ser e não apenas dos entes.

 

 

Nota Biográfica: Carlos Lopes de Mattos nasceu em São Paulo, no dia 26 setembro de 1910, e faleceu em 1993, na cidade de Capivari (SP). Fez seu curso secundário em Sorocaba, entre 1923 e 1928. Cursou Filosofia na faculdade dos Beneditinos (posteriormente incorporada à PUC-SP), na capital do estado, entre 1930 a 1932. Estudou na Université Catholique de Louvain (Bélgica), entre 1936 a 1939, doutorando-se em 1940, com a tese Recherches sur la Théorie de la Connaissance dans le "Scriptum super Sententiis" de Saint Thomas d'Aquin. Posteriormente retorna ao Brasil, onde leciona Filosofia Social e História da Filosofia Moderna na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento, de maio de 1940 a junho de 1942. A partir daí, exerce funções de Professor Secundário, no Rio de Janeiro e - posteriormente - em São Paulo, onde dá aulas de francês, de 1948 a 1974, no Ginásio Estadual de Capivari (atual E.E.P.S.G. Padre Fabiano José Moreira de Camargo), no interior do estado. Compôs o Instituto Brasileiro de Filosofia, colaborando com assiduidade com a Revista Brasileira de Filosofia. Foi o tradutor de Ockham e Spinoza para a coleção "Os Pensadores". Dentre suas obras, destacam-se: José do Egito (1937); Heidegger e o problema da filosofia (1954); Vocabulário filosófico (1957); Um capítulo da história do tomismo - a teoria do conhecimento de Tomás de Aquino e sua fonte imediata (1959); O pensamento de Farias Brito -sua evolução de 1895 a 1914 (1962); Filosofia da realidade e da projeção (1988), dentre outros.
* Publicação original de 1954, editado pela Edições "Letras da Província", Limeira, São Paulo. Os textos aqui transcritos, representam sua introdução, primeiro e segundo capítulos.
1 Refere-se, aqui, ao texto de I.M.Bochenski, Europäische Philosophie der Gegenwart (1947), Bern, Francke. (Nota do Editor)         [ Links ]
2 Platons Lehre der Wahrheit, obra datada de 1942 (N. do E.         [ Links ]).
3 Über den Humanismus, obra datada de 1947 (N.do E.         [ Links ]).

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