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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.25 no.2 Goiânia maio/ago. 2019

http://dx.doi.org/10.18065/RAG.2019v25n2.2 

RELATOS DE PESQUISA

 

O enigma da pertença ao que escapa: sobre o a priori da correlação fenomenológica em R. Barbaras1

 

The enigma of belonging to what escapes us: on the a priori of the phenomenological correlation according to R. Barbaras

 

El enigma de la pertenencia al que escapa: sobre el a priori de la correlación fenomenológica en R. Barbaras

 

 

Luís António Umbelino

Professor auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Investigador da Unidade I&D – Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos (FLUC – Portugal) e do projeto de investigação “Fenomenología del cuerpo y análisis del dolor II” (FFI 2017-82272-P – Espanha). Autor de Somatologia subjectiva, apercepção de si e corpo em Maine de Biran (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian / FCT, 2010); Coorganizador dos livros Hermeneutic rationality: la rationalité herméneutique (Munique: LIT Verlag, 2012) e Memória do corpo, tentação do espaço (Coimbra: CAPC, 2015). Em 1996, ele foi agraciado com o Prêmio Engº António de Almeida, Fundação Engº António de Almeida. Além disso, é autor de inúmeros outros trabalhos relacionados à fenomenologia. E-mail: lumbelino@fl.uc.pt

 

 


RESUMO

Há já algum tempo que o leitor competente de filosofia contemporânea procura nos textos de R. Barbaras os ensinamentos e possibilidades teóricas de um projeto filosófico inovador. A originalidade deste projeto, em nosso entender, encontra uma primeira grande sedimentação em Introduction à une philosophie de la vie. Nesta ocasião, gostaríamos de regressar àquele "primeiro" texto com o objetivo de meditar sobre a importância da proposta original, aí enfrentada de modo detalhado, de pensar o "a priori da correlação fenomenológica" como vida.

Palavras-chave: Vida; Corpo; A priori; Correlação.


ABSTRACT

The competent reader of contemporary philosophy has recognised in the works of R. Barbaras the teachings and theoretical possibilities of an original philosophical project. In our view, the first sedimentations of such a project are to be found in Introduction à une philosophie de la vie. In this paper we would like to came back to this major book in order to tackle the ingenious analysis of the "a priori of the phenomenological correlation" in terms of life.

Keywords: Life; Body; A priori; Correlation.


RESUMEN

Hace algún tiempo que el lector competente de filosofía contemporánea busca en los textos de R. Barbaras las enseñanzas y posibilidades teóricas de un proyecto filosófico innovador. La originalidad de este proyecto, a nuestro entender, encuentra una primera gran sedimentación en Introduction à une philosophie de la vie. En esta ocasión, quisiéramos regresar aquel "primer" texto con el objetivo de meditar sobre la importancia de la propuesta original, allí enfrentada de modo detallado, de pensar el "a priori de la correlación fenomenológica" como vida.

Palabras-clave: Vida; Cuerpo; A priori; Correlación.


 

 

Introdução

Há já algum tempo que o leitor competente de filosófica contemporânea procura nos textos de Renaud Barbaras os ensinamentos e possibilidades teóricas de um projeto filosófico inovador. A originalidade deste projeto, em nosso entender, encontra uma primeira grande sedimentação em Introduction à une philosophie de la vie, texto que permite medir a importância preparatória de, por exemplo, Le désir et la distance (Barbaras, 1999) ou de Vie et intentionnalité (Barbaras 2003), meditar de modo produtivo, nomeadamente, L'ouverture du monde (Barbaras, 2011c), La vie lacunaire (Barbaras, 2011a), ou la Dynamique de la manifestation (Barbaras, 2013) e ainda aquilatar da importância dos mais recentes Métaphasique du sentiment (Barbaras, 2016a), ou Le désir et le monde (Barbaras, 2016b).

Nesta ocasião, gostaríamos de regressar àquele "primeiro" texto com o objetivo de meditar sobre a importância da proposta original, aí enfrentada de modo detalhado, de pensar o "sujeito da correlação fenomenológica" como viver.

 

Entre Husserl e Bergson

É um mérito - e não seguramente um dos menores - do projeto filosófico barbarasiano o de tornar claro a que ponto o tema da vida permanece, ao mesmo tempo, uma das tarefas mais próprias e um dos maiores impensados da empresa fenomenológica. De facto, a fenomenologia sempre atribuiu à questão da vida "um lugar singular": omnipresente (porque de algum modo no centro das grandes análises fenomenológicas) e ausente (porque nunca enfrentada diretamente), inevitável (porque subjacente aos temas centrais da fenomenologia) e impossível de assumir (porque suspendida), necessária (porque radical) e obscura (porque nunca verdadeiramente descrita enquanto tal). Que o tema seja propriamente fenomenológico, é demonstrado pelas insuficiências de uma abordagem estritamente científica (biológica) da vida que, com toda a evidência, sempre ignora, sem conseguir apagar, o problema fundamental do reconhecimento (fenomênico) da vida, ou seja, do aparecer da vida como tal a alguém que a reconheça. Um plano de consideração fenomenológico permanece, portanto, irredutível e impossível de integrar pela análise científica; na verdade, antecede-a e, de algum modo, funda-a ao por em jogo o problema fenomenológico do a priori universal da correlação entre o ente transcendente e os seus modos subjetivos de doação - problema central e definidor do projeto constitutivo da fenomenologia, tal como Husserl o anota no §48 da Krisis.

Neste contexto, como é sabido, o que rasga o campo propriamente fenomenológico de análise é a necessidade eidética ligada à correlação, que permite suspender a nossa crença ingênua num mundo "em si" e ultrapassar uma abordagem estritamente objetivista. Neste contexto, de acordo com Barbaras, o mais difícil de pensar é o estatuto do sujeito da correlação (logo, da própria intencionalidade), desse sujeito para o qual qualquer coisa transcendente que permanece essencialmente ligada à respectiva manifestação e, portanto, a uma capacidade fenomenalizante. A dificuldade advém do fato de tal sujeito, para ser essa capacidade intencional, ter de estar-no-mundo e furtar-se à pura interioridade sem, por outro lado, se poder definir de modo análogo aos outros entes do mundo.

O horizonte estrito da fenomenologia husserlina não garante, de acordo com Barbaras, que nos preservemos sempre do perigo de recuo para os traços idealistas de um ego constituinte e, consequentemente, para uma certa separação entre a consciência como esfera de ser absoluta, por um lado, e a realidade do aparecer do mundo que lhe é relativa, por outro. O risco de sobrevoo de um tal posicionamento, diria Merleau-Ponty, é demasiado elevado. Assim, o caminho deve ser outro: segundo Barbaras, o sujeito da correlação não poderia contribuir para o aparecer do mundo se fosse exterior ou radicalmente estranho ao mundo, se o seu modo de "ir até ao mundo" não fosse, desde sempre, um "ir no mundo", se o seu modo de pertença significante ao mundo não contribuísse, pelo seu dinamismo próprio já sempre operante do lado do mundo, para o aparecer do mundo.

Esta via de investigação obriga que nos situemos, de algum modo, para lá de Husserl. Para lá de Husserl mas, acrescente-se desde já, para aquém de Bergson, interlocutor incontornável nesta matéria por definir, de modo prometedor, o sujeito perceptivo como intramundano e, nessa medida, como atualizador de uma perceptibilidade intrínseca que leva "do aparecer à aparição efetiva" (Barbaras, 1999, p. 129).

Passemos rapidamente pela original teoria da perceção esboçada por Bergson nas primeiras páginas de Matière et mémoire, para tentar compreender melhor em que medida Barbaras assim parece situar o seu projeto "entre Husserl e Bergson" (Barbaras, 1999, p. 129; 131). Como é sabido, nessas páginas célebres de Matière et mémoire a questão é, para Bergson, a de tentar enfrentar os limites do dualismo que tende a "opor de modo absoluto a realidade da matéria e a realidade do espírito" (Montebello, 2007, p. 67). O interesse filosófico da tese bergsoniana sobre a percepção será, nesse contexto, a de propor como via de superação daqueles estrabismos dualistas uma relação muito precisa e muito sugestiva entre corpo vivo e universo. O ponto é crucial: o rasgo de Bergson será, para começar, o de enfrentar a percepção como "contradição realizada", ou seja, como sendo sempre "objetiva e subjetiva", sempre acontecendo literalmente em nós e fora de nós (Bergson, 1968, p. 229). O termo "imagem" traduz esta ambiguidade pela qual é simultaneamente verdadeiro que, ao perceber, sabemos que o percebido existe fora de nós e que o percebido tem qualidades que a consciência encontra em si mesma. Dito de outro modo, no contexto da teoria bergsoniana das imagens, a imagem "é um dado de consciência que não se apreende nem como pura coisa, nem como puro estado de consciência" (Montebello, 2007, p. 69); mas, antes, como um "misto" que "existe em si" e permanece mais do que representação e menos do que coisa (Bergson, 1968, p. 106). O conjunto das imagens que, assim, aparece em si é o universo e este será, então, um Todo que, embora exista para uma percepção, não é por esta constituído, mas apenas percebido. Dito de outro modo, a percepção não produz o conjunto das imagens que, para existirem enquanto tal, não deixam, no entanto, de carecer da vocação perceptiva para enquadrar ou delimitar.

Note-se agora mais um detalhe decisivo da análise bergsoniana: se a percepção nos coloca no meio do mundo das imagens, então ela deve ser uma possibilidade corporal; e sendo corporal, deve corresponder a uma vocação de conivência mundana que, ao mesmo tempo que enquadra (em vista da sua ação), se alarga e é de algum modo convocada, arrastada, descentrada pelo todo das imagens (pelo Universo). Tal totalidade, portanto, excede e transborda (Bergson, 1968; Montebello, 2007) os poderes perceptivos que, em contrapartida, não deixam de estar ligados de algum modo a esse excesso que permanece, note-se, lacunar em cada enquadramento. Neste sentido, a proposta bergsoniana - que nos leitores de Bergson aviva a concomitante denúncia da "tese do nada prévio" e a crítica do "princípio de razão suficiente" - parece abrir a teoria da perceção a uma espécie de ontofenomenologia do aparecer de um Todo não totalizável: um Todo que dura continuamente e do qual participamos sem o poder subsumir.

No entanto, por prometedor que este gesto possa ser, a perspectiva de Bergson (por se manter presa ao único ponto de vista da separação metafísica entre espírito e matéria, duração e espaço), de acordo com Barbaras, permanece incapaz (ao reproduzir os dualismos de uma ontologia da morte) de pensar realmente o modo de ser da vida; mais precisamente, o bergsonismo não consegue "dar conta do surgimento da consciência" (Barbaras, 2008, p. 156), antes dissolvendo a vida numa espécie de consciência espiritual que seria o seu culminar. Dito de outro modo, a equivocidade pela qual a diferença do sujeito em relação ao universo parece ser a contrapartida do modo como o aparecer, sempre em ausência porque nunca dado na sua totalidade, é relativo ao sujeito que participa desse aparecer, não é realmente enfrentada. "Entre Husserl e Bergson" (Barbaras, 1999), num simétrico posicionamento crítico (Barbaras, 2008), algo, portanto, resiste e chama ainda a pensar.

 

Do movimento

O ponto crucial de referida equivocidade é, para Barbaras, o das relações tecidas entre corpo vivo, subjetividade e universo pelas quais se deve repensar exatamente de que modo "o sujeito para o qual há um mundo faz ele próprio parte do mundo" (Barbaras, 1990, p. 90). Essa participação "não pode implicar qualquer interiorização ou constituição" (Barbaras, 1990, p. 90), antes devendo ser procurada interrogando a experiência incarnada que é já sempre vida que vive. É a dimensão incarnada que faz, de facto, com que a subjetividade "não escape à lei da aparição que impõe a inscrição no mundo" (Barbaras, 1990, p. 90) e, assim, obrigue a considerar que é enquanto corpo que "o sujeito não contém o mundo, mas é contido nele" (Barbaras, 1990, p. 90). Neste sentido, acrescentaríamos, fica claro que a redução fenomenológica não mais pode ser entendida como "negação do mundo", ou sequer como "neutralização em relação à existência do mundo" (Merleau-Ponty, 1964, p. 225); outrossim, a redução apenas se pode autorizar a suspensão de um mundo em-si, encarado como transcendência de uma coisa determinada, mas deve preservar o fenómeno dessa exterioridade, dessa distância, dessa transcendência, sob a forma da aparição do aparecer em ausência. A questão de fundo será aqui, então, a de saber como se poderá realmente conceber a incarnação nessas condições.

É nesta via, julgamos, que de acordo com Barbaras o projeto fenomenológico de J. Patočka representa um esforço consistente para pensar o sujeito da correlação. Ao investigar a respectiva condição corporal, Patočka, longe de reconduzir o sujeito da correlação à ordem da imanência, desvenda-o do lado do aparecer - de um aparecer que, então, se deverá desvendar como o a priori de qualquer aparição do sujeito a si próprio, isto é, da consciência (Patočka, 1995; Barbaras, 1999).Colocada a questão nestes termos, é a própria natureza da subjetividade do sujeito que, enquanto corpo, importa redefinir como "relação" (Barbaras, 2008, p. 111), "como codeterminante", e não como constitutiva do aparecer (Barbaras, 2011b, p. 117): "codeterminante", porque seria contraditório supor que o aparecer não o fosse para alguém, ou seja, que dispensasse o sujeito intramundano para o qual há algo (Barbaras, 1999, p. 104); mas "não constituinte" porque, no limite, a própria relação a si singular que apelidamos de consciência tem por condição a relação ao mundo para cujo respectivo aparecer contribui (Barbaras, 1999). Dito de outro modo, Patočka sugere, de acordo com a leitura de Barbaras, que a subjetividade não "nasce" senão sobre um fundo de mundo; em outras palavras, "a relação a si que chamamos consciência tem como condição a própria relação à aparição do mundo. Trata-se, portanto, de inverter a relação de constituição (Montebello, 2007, p. 77): a correlação não começa na consciência para ir daí até ao mundo; outrossim, é o aparecer do mundo à consciência que a faz consciência de alguma coisa. A natureza da subjetividade compreender-se-á finalmente de modo novo: tal natureza, por força da pertença referida ao movimento do aparecer, não pode ser concebida como um ego fechado sobre a sua própria interioridade constitutiva; mas também não pode ser dissolvida completamente no aparecer, formando um amálgama indiferenciado. Para Patočka, tal quer dizer que o modo de ser do sujeito é o de ser vivo, corpóreo e dinâmico. Apenas enquanto tal permanece mediador do mundo.

A constituição corpórea do sujeito da correlação torna-o modo de comprometimento concreto no mundo. Uma tal especificidade deve, no entanto, ser bem entendida já que não pode representar nem uma qualquer polémica em relação à consciência, nem uma cedência a qualquer forma de biologismo. A prevalência das tradições dualistas torna a discussão ainda difícil. Tais tradições tenderam a conceber o sujeito a partir de uma qualquer forma de interioridade ou cristalina presença a si, por relação à qual o corpo figuraria como fragmento de extensão, de biologia, ou de exterioridade; apenas a partir de tais dados se avançava depois para a tentativa de esclarecer a respectiva articulação. Com toda a evidência, trata-se de uma estratégia funesta porque realmente incapaz de esclarecer como uma tal imanência pode ser incarnada e como uma tal matéria estritamente objetiva pode ser subjetividade. Há, portanto, que investigar um sentido originário, genético, da incarnação, um sentido "mais profundo do que a diferença entre a presença a si mesmo e o corporeamente material" (Barbaras, 2011b, p. 118). Mais precisamente, há que seguir Patočka na tentativa de "descobrir uma modalidade da existência corporal que não seja a negação da subjetividade, mas, antes, a condição da sua emergência" (Barbaras, 2011b, p. 118) e o eixo da sua especificidade mundana.

Neste ponto, não é um detalhe despiciendo que Patočka encontre indicações profícuas e rigorosas na filosofia de Maine de Biran (Patočka, 1995, p. 60). Não nos será possível debater aqui (e muito menos desenvolver) a importância desta linhagem biraniana. Mas importa anotar, pelo menos, que a elegante e revolucionária teoria biraniana do esforço aperceptivo guarda, de fato, um aspecto decisivo que Patočka intuiu bem: ela mostra - por força da sua dualidade (que não dualismo) constitutiva - que o eu, a consciência, não é uma representação que acompanha todas as minhas outras representações, mas antes uma relação fundadora que evita o regresso abstrato e cristalino da subjetividade a si mesma, ao mesmo tempo que afasta a ideia de uma auto-produção do pensamento sem concurso do corpo. O ponto fulcral e inultrapassável para Biran (Cf. por exemplo, Biran, 2001, p. 4 ss) é essa "certa antítese" de uma "diferença não separada" que faz a relação de esforço apercetivo (a força hiperorgânica da vontade e o corpo interiormente resistente ou docilmente consistente), esse dinamismo que funda o esforço primitivo para lá da imanência desencarnada e para aquém de qualquer âmbito de conhecimento absoluto do corpo - seja aquele que reduz o corpo a simples objeto físico observável, seja aquele que se propõe considerar o corpo como anterior à relação primitiva e fazendo parte de uma esfera transcendental absoluta de auto-doação (Barbaras, 1998, p. 105-106; Montebello, 2003, p. 129) originária. Esta não diz, de modo algum, o esforço biraniano que se constitui no dinamismo de uma relação corporalizada perseverante, no movimento de um ato que implica o corpo muscularmente resistente e próprio. Aqui chegados, faltaria apenas dar conta da forma como tal sujeito corporalizado participa do modo de doação das coisas.

A resposta de Patočka será a seguinte: "A nossa existência é de tal espécie que não só o movimento lhe pertence, por essência, como ela é, por toda a sua natureza, movimento." (Patočka, 1995, p. 107). O ponto é crucial: que a natureza da subjetividade seja movimento significa sustentar que o sujeito não é uma interioridade que tem poder sobre o corpo, nem é um corpo cujas condições biológicas produzem misteriosamente a consciência; outrossim, implica defender que a subjetividade é o que é como corpo e o corpo é o que é como subjetividade: ambos são faces de um mesmo dinamismo de pertença - que, seria escusado dizê-lo, em nada se confunde com relações objetivas, ou com determinações de um corpo-coisa. O corpo não é uma coisa no espaço objetivo, mas "uma vida que, por ela própria, é espacialmente [...], se torna espacial" (Patočka, 1995, p. 59). O ponto é crucial e ganha um significado suplementar se o confrontarmos com a importante tese barbarasiana segundo a qual a vida, devendo ser reconhecida na minha própria vida, deve igualmente poder aflorar na exterioridade, sem o que permaneceria sem sentido (Barbaras, 2008, p. 37).

De fato, o que interessa a Barbaras - e falta ainda a Patočka - é, justamente, investigar até ao fim o a priori da correlação como vida, único modo de conceber o próprio sujeito, ao mesmo tempo, como distinguindo-se do mundo ao qual se reporta enquanto relação (e assim o faz aparecer) e como pertencendo ou partilhando o modo de ser (no respectivo aparecer) do mundo. Dito de outro modo, há que colocar o ponto de apoio da investigação do lado do modo de ser da vida, enquanto tal modo é suscetível de se fazer consciência (Barbaras, 2008, p. 128). Mas como se procederá a tal tarefa?

 

A vida da Fenomenologia

Recordem-se os grandes eixos de investigação ao longo dos quais Barbaras chega laboriosamente às suas teses mais originais de uma fenomenologia da vida: a investigação do dinamismo da intencionalidade perceptiva, que desvenda a experiência de mundo como modo de pertença apenas caracterizável em termos de "recuo, indeterminação, fluidez dos contornos, insatisfação" (Barbaras, 1994, p. 38-39); a crítica necessária à "ontologia do objeto" (e do seu claustrofóbico autoritarismo da presença integral) e respectiva tendência para traduzir o ser em termos de positividade - tendência esta que permanece incapaz de ponderar o fundo de invisibilidade, a dobra de negatividade que parece sustentar, do lado do mundo, a nossa própria abertura, ligação ou pertença ao que (Barbaras, 1999); a remeditação do ato de filosofar como crítica a qualquer posição ou atitude de sobrevoo, de "ausência de pertença", de "ignorância da vida" e, no mesmo gesto, o ensejo de refundação implícita da filosofia como ato capaz de pensar o modo de ser vivo e o modo de ser da vida que o sustenta (Umbelino, 2009, p. 135-160). Em Introduction à une phénoménologie de la vie, texto que nos ocupa no presente trabalho, a radicalização de tais eixos de investigação é um dos aspectos que permite avaliar a originalidade do projeto. Na via de tal radicalização, avultará, desde logo, o ensejo corajoso de neutralização da ontologia da morte, ou melhor, da époché - que não a negação (Barbaras, 2008) - da morte.

A tese é importante: de acordo com Barbaras (2008), não é possível pensar a vida sem se superar o equívoco dualista de tal ontologia, que vê sempre a humanidade como vida mais qualquer coisa (que seria o seu ponto culminante); a époché da morte, ao deixar-nos a possibilidade de interrogar apenas a vida a partir dela mesma, orienta-nos, ao contrário, para a consideração da vida como algo mais do que o humano - e o humano (a existência, a experiência, a consciência), portanto, como vida menos qualquer coisa. Tal via de análise poderá finalmente interrogar como pode a consciência ser entendida como diferença no meio da vida que não implica diferença em relação à vida. Segundo Barbaras, tal interrogação reclamará os instrumentos teóricos de uma "antropologia privativa". Note-se que a questão do sujeito da correlação se precisa aqui como interrogação do modo como o ser humano - a consciência - difere da vida sendo vida. Sob o pano de fundo de uma époché da morte (a salvo, portanto, da raiz de todos os dualismos) tal "diferença" antropológica não pode ser entendida como diferença de natureza, ou de grau em relação à vida, nem a vida pode ser entendida como algo aquém da consciência, ou idêntica à consciência.

A solução, argumentará Barbaras, só pode ser a seguinte: o alcance da vida deve exceder o da consciência, e a diferença humana deve ter o estatuto de uma negação, limitação ou privação da própria vida sobre si mesma. Este caminho de reflexão (que destrói o preconceito humanista segundo o qual há mais na humanidade do que na vida e, consequentemente, de que o próprio do humano só "em nós" se encontra) surge a Barbaras, no contexto de Introduction à une philosophie de la vie, bem ilustrado na Oitava Elegia do Duíno de Rilke. Seguindo a interpretação de Munier, a oposição aí desvendada entre homem e animal, enquanto desdobrada sobre a oposição entre Aberto e mundo, merece a Barbaras toda a atenção. Toda a vida é vocação de um Aberto, na medida em que este é a fluidez que tudo comporta, a dimensão originária - e não simples receptáculo - da presença, o ser de iminência onde tudo pode advir. Ora, se esta ausência de si é a contrapartida de uma aspiração do Aberto, a consciência, que é uma forma de presença a si, só pode ser entendida como relação ao Aberto em termos de recuo, ou defeito, em termos de afastamento mantido. Ou seja, a consciência é como que uma repressão, involução, ou auto-limitação da vida em relação à convocatória do Aberto. Ela nasce de uma negatividade por relação à qual o Aberto permanece o que falta e é o que faz falta. Assim, a consciência não pode continuar a ser definida como simples cogitatio transparente a si mesma; no seu fundo, ela é uma interrupção ou suspensão do avanço da vida em relação à totalidade intotalizável do Aberto; dito de outro modo: é abertura em recuo, aproximação na distância que redobra a presença em ausência do Aberto (Barbaras, 2008). Por isso, o seu dinamismo não encontra senão o mundo. De facto, também não há mundo senão pelo Aberto, isto é, senão como esboço -no sentido husserliano da "doação por abschattung" -desse fundo obscuro, invisível, intotalizável. Mas o Aberto, deve notar-se, não pode, por seu turno, começar verdadeiramente a existir senão no que o delimita: o mundo. Isto significa que o Aberto não repousa em si mesmo como fundo obscuro, mas desdobra-se no mundo como o que de si já foi negado, ocultado - sendo que esta ocultação não é contrária ao desocultamento: o mundo, enquanto nega o aberto, é também o que nessa negação o anuncia em ausência. Assim, deve dizer-se, segundo Barbaras, que a correlação essencial da consciência e do mundo revelam ocultando a correlação originária do viver e do Aberto (Barbaras, 2008). Acrescente-se um ponto decisivo: será, enfim, enquanto movimento da própria vida que o sujeito da correlação pode, portanto, introduzir uma dimensão de negatividade suficiente para dar conta da relação entre a posição de um aparecer impresentável no seu fundo de invisibilidade e a sua aparição subjetiva.

Será, então, uma experiência negativa que suscita a insatisfação e dá lugar a uma "livre ultrapassagem" do dado (Barbaras, 2008, p. 271) que, de acordo com Barbaras, deve ser entendida como a verdadeira motivação da époché. Esta, portanto, ao mesmo tempo que nos preserva da crença num mundo em si, ao mesmo tempo que nos distancia do plano objetivo, conduz ao reconhecimento de uma dimensão do sujeito que - a partir da experiência que nós somos de uma negatividade - deve ser descrita como ato de transcendência e insatisfação, como aspiração e inibição. Dito de outro modo, a époché suspende a nossa crença num mundo em si e num sujeito dado apoditicamente como transparente a si próprio, conduzindo-nos para uma noção de sujeito que, longe se ser "dado como eminentemente dado", se caracteriza pela insatisfação frente ao dado, ou dito de outro modo, pela prática do dado por defeito ou limitação. Só por essa dimensão de negatividade qualquer coisa do mundo pode aparecer, nessa posição de um ente como limitação de uma dimensão que o excede - dimensão que de modo algum corresponde à posição de algo transcendente, porque não é senão essa distância por relação ao dado.

A lacuna, insatisfação, negatividade ante o dado, marca a enigmática capacidade do sujeito da correlação para pertencer ao movimento de ultrapassagem, de abertura de uma lacuna que se anuncia na própria correlação. Não que nesta se trate de constatar um defeito; o que está aqui em questão é a própria pertença à dimensão de negatividade pela qual pode haver qualquer coisa do processo do mundo, do arqui-movimento proto-fenomenalizante, para um sujeito fenomenalizante(Barbaras, 2016a). É essa dimensão de negatividade que - se quisermos introduzir na discussão, seguindo Barbaras, uma dialética do finito e do infinito - mantém a finitude e a infinitude de uma presença em ausência (que sustenta aquele finito) relativos um ao outro: ou talvez melhor, que constitui finito e infinito "pela sua negação mútua" (Barbaras, 2008, p. 300). Deste modo, portanto, a subjetividade deve ser entendida privativamente como negação de uma vida que a excede e, nesse excesso, a liga à profundidade do mundo. Mas dizê-lo assim é ainda algo de abstrato. Há ainda que interrogar qual o modo de ser de tal viver que em nós permanece profusão e lacuna.

A resposta de Barbaras resumirá o núcleo mais original da sua abordagem: "a essência do viver, ou seja, da vida enquanto comporta a possibilidade da consciência, deve ser caracterizada como Desejo" (Barbaras, 2008, p. 304). O Desejo - nisto se distinguindo da necessidade - nomeia, do lado do aparecer, essa insatisfação do sujeito da correlação que nenhuma presença vem preencher, essa vocação de uma ausência procurada, mas nunca encontrada em qualquer positividade que a viria preencher, essa enigmática disposição para o que faz defeito, para o que faz falta. Nesta medida, será porventura em termos de Desejo, que se poderá concretizar uma investigação transcendental sobre a "origem comum" dos termos da correlação: do mundo relativo ao Aberto (no sentido em que o Aberto não se dá senão como reverso do mundo, como fundo ou reserva de invisível que o mundo permite entrever como ausência em cada visível) e do sujeito incarnado da correlação relativo à carência ou defeito de si. Mas exatamente que tipo de incarnação será esta? Estará sobre ela já tudo dito? Eis a questão a partir da qual se vislumbrarão seguramente os futuros desenvolvimentos deste projeto filosófico maior.

 

Referências

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Recebido em 26.03.2018
Aceito em 25.01.2019

 

 

1 Retomamos neste trabalho, em determinados pontos da análise, nomeadamente no derradeiro ponto, algumas das teses que ensaiamos pela primeira vez em Luís António Umbelino, "Presentación", in Renaud Barbaras, Introducción a una Fenomenología de la Vida (trad. esp.) Encuentro, Madrid, 2013, pp.11-24.

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