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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.25 no.2 Goiânia maio/ago. 2019

http://dx.doi.org/10.18065/RAG.2019v25n2.5 

RELATOS DE PESQUISA

 

Intencionalidade: Merleau-Ponty e Barbaras

 

Intentionality: Merleau-Ponty and Barbaras

 

Intencionalidad: Merleau-Ponty y Barbaras

 

 

Mariana Cabral Tomzhinsky Scarpa

Graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e Graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná; com Mestrado e Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná, como bolsista da CAPES/CNPq. Realizou Estágio de Doutorado na Universidade Paris 1 - Panthéon Sorbonne sob à supervisão do Professor Doutor Renaud Barbaras. Atualmente está cursando o pós-doutorado pela Universidade Federal de São Carlos e é bolsista do CNPq

 

 


RESUMO

Neste artigo pretendemos abordar as filosofias de Merleau-Ponty e Barbaras explorando alguns elementos básicos da noção de intencionalidade e suas implicações no pensamento de ambos os filósofos. Retomando, brevemente, a noção de intencionalidade em Husserl passaremos a apropriação feita por Merleau-Ponty em seus textos inicias, a fim de trazer o modo como a intencionalidade aparece ligada ao movimento do corpo próprio no mundo. Depois abordaremos alguns textos de Barbaras que ampliam os sentidos do a priori correlacional apontando para os limites abertos por uma fenomenologia da vida.

Palavras-chave: Fenomenologia; Intencionalidade; A priori correlacional.


ABSTRACT

In this article, we intent to approach Merleau-Ponty and Barbaras's philosophies, exploring some of the basic elements about intentionality and their implications in the thoughts of both philosophers. Retaking, briefly, Husserl's notion of intentionality, and moving forwards on Merleau-Ponty's perspective in his initials texts, in order to bring along the way that intentionality appears connected to the movement of "own body"-in-the-world. Afterwards we'll aproach some of Barbaras's texts that increase the a priori correlational's sense and indicate opening boundaries by phenomenology of life.

Keywords: Phenomenology; Intentionality; Correlational a priori.


RESUMEN

En este artículo pretendemos abordar las filosofías de Merleau-Ponty y Barbaras explorando algunos elementos básicos de la noción de intencionalidad y sus implicaciones en el pensamiento de ambos filósofos. Retomando brevemente la noción de intencionalidad en Husserl pasaremos la apropiación hecha por Merleau-Ponty en sus textos iniciales, a fin de traer el modo como la intencionalidad aparece ligada al movimiento del cuerpo propio en el mundo. Después abordaremos algunos textos de Barbaras que amplían los sentidos del a priori correlacional apuntando hacia los límites abiertos por una fenomenología de la vida.

Palabras clave: Fenomenología; intencionalidad; A priori correlacional.


 

 

Introdução: Husserl, Merleau-Ponty, Barbaras e o movimento intencional

A fenomenologia erigida por Husserl busca investigar o campo dos fenômenos tal como eles se apresentam para à consciência, de maneira que afirmação da aparição de algo é concomitantemente a atestação de acesso, de seu modo de doação subjetiva, à consciência. Circunscrevendo, assim, o alcance das investigações fenomenológicas à capacidade da consciência transcendental de constituir o sentido advindo do campo das experiências. Para tanto, uma noção crucial para abordar esta relação entre a consciência e os fenômenos é a de intencionalidade. O conceito de intencionalidade empregado por Husserl se baseia nos ganhos da descoberta brentaniana acerca da "essência dos fenômenos psíquicos" (Husserl, 2007, p. 402) por contraposição aos fenômenos físicos, reatualizando um debate contra as teorias da representação, as quais compreendiam o objeto como sendo fruto de uma imagem ou cópia mental feita de um real exterior. Embora Brentano tenha utilizado o termo "fenômeno psíquico" para delimitar o domínio do estudo psicológico, Husserl irá reformulá-lo em sua investigação, encontrando no campo dos fenômenos elementos que se referem à consciência enquanto "vivência intencional ou ato" (Husserl, 2007, p.404) e elementos que não fazem parte da sua natureza intencional, mas que participam dela enquanto sensações e materialidades tomadas pelo sensível. Ao se ocupar dos fenômenos tais como eles aparecem para à consciência, Husserl enfrenta um problema epistemológico da tradição filosófica que pensava a relação entre ser e aparecer como exterioridades em que se subsumia um termo a outro, conferindo a primazia ora aos objetos, ora a consciência (como pura representação de um real exterior). No entanto, através da noção de intencionalidade entendida pela fórmula "toda consciência é consciência de" alguma coisa, o fundador da fenomenologia aponta para a correlação entre o ser e o modo de doação deste ser, buscando, com isso, superar o problema tantas vezes reificado pela tradição.

No movimento intencional, a consciência se orienta no interior do campo fenomenal que se oferece à significação. Ora, ela não constitui os fenômenos por uma espécie de interioridade encerrada em si mesma, ao contrário, se a consciência se relaciona com o objeto ele mesmo é justamente porque o aparecer das coisas em um campo fenomenal é simultâneo e necessariamente acessível (como modo de doação subjetiva) à consciência. Neste sentido, a percepção de algo não é um exame do espírito e nem percepção de si mesma visando algo exterior no mundo; ela é já percepção da coisa ela mesma, mediante de seus sentidos ou modos doados pela consciência. O movimento da consciência é sempre de tender aos fenômenos, possibilitando que eles apareçam por meio de atos intencionais. Cabe frisar aqui que a apreensão dos fenômenos feita pela consciência se estabelece de modo parcial, uma vez que não é a consciência que ordena arbitrariamente os fenômenos do mundo. A consciência se volta aos objetos fenomênicos por meio de atos intencionais de apreensão dos conteúdos sensíveis - estes dão suporte material para que os atos constituam os objetos intencionais -, de maneira que, a relação da consciência com um objeto é um interminável processo de apreensão por perfis. Assim, quando a fenomenologia se coloca como uma investigação que descreveria a constituição do sentido das coisas, ela confere à consciência a fonte última de toda constituição. Isso, contudo, não pretende conferir à consciência um poder arbitrário de constituição total da experiência, mas antes, pretende garantir uma relação entre a consciência e o objeto em seu processo de fenomenalização do ser por meio da noção de intencionalidade.

Em Merleau-Ponty, a noção de intencionalidade se configura numa nova forma e encontra outros limites. Diferentemente do funcionamento husserliano da estrutura intencional que remete o objeto à consciência transcendental, Merleau-Ponty vai tratar de uma intencionalidade que opera já no nível do corpo - numa dimensão anterior a da consciência reflexiva - em relação ao mundo. Transpondo, pois, o idealismo transcendental husserliano para o terreno fático da experiência perceptiva, Merleau-Ponty descreverá a atuação da intencionalidade operando desde o movimento anônimo do corpo no mundo, que se estabelece antes de uma consciência reflexiva. Assim, na Fenomenologia da percepção (1945), Merleau-Ponty pretende abordar o movimento intencional a partir da camada mais mundana, que é a do corpo próprio. O desafio da fenomenologia merleau-pontyana consiste em equilibrar a inerência da percepção do corpo no mundo sensível com a pretensão de alcançar o mundo tal como ele mesmo aparece, conciliando, assim, a inerência do corpo ao mundo e a destreza de fazê-lo aparecer enquanto transcendência. Dito de outra forma, a tarefa consiste em se ocupar da correlação, entre o sujeito de percepção e o mundo percebido como produto de uma atividade intencional, sem deixar que a percepção caia num subjetivismo, ficando ilhada em sua perspectiva particular. Da mesma forma, tampouco que o mundo não tenha seus horizontes de transbordamentos da percepção e seja apenas um objeto que nada excede em sua presença para um sujeito. É preciso, então, que a percepção feita pelo corpo próprio alcance as coisas mesmas, bem como que o mundo tenha seu caráter de transcendência, que ele seja simultaneamente aparecer sensível para um sujeito que o percebe (ou seja, mundo percebido) e que ele se furte de uma plena posse pela subjetividade.

Já Barbaras, ao retomar a questão herdada pela tradição fenomenológica, desatando-a de alguns pressupostos já solidificados para reconfigurar o pensamento fenomenológico vigente, propõe um horizonte potencialmente mais amplo de problemas. De modo que, no entendimento do filósofo "a fenomenologia deve ser identificada duas vezes: no plano do a priori correlacional e no plano do a priori deste a priori; no nível da correlação e disto que a sustenta" (Barbaras, 2013, p. 8). É como se o movimento de questionamento do sentido da fenomenologia, da possibilidade do seu a priori correlacional, propusesse um retorno à pergunta sobre o sentido do próprio a priori. Desta forma, a significação que se abre deste segundo a priori não deve ser identificada diretamente a do primeiro; no entanto, ela deve ser acessível indiretamente pelo primeiro, uma vez que ela deve conter a condição mesma da fenomenologia. Neste sentido, a fenomenologia barbarasiana excederia a si mesma na medida em que ela se encontraria na diferença entre estes dois a priori, numa dimensão mais profunda (dimensão da vida) do que a que é imposta pela estrita correlação (do movimento vital do sujeito no mundo) e, sobretudo, sem se tornar outra, sem deixar de ser fenomenologia. Vejamos como estas noções de fenomenologia, a priori correlacional e intencionalidade se desenrolam ao longo do texto.

 

A ressignificação da intencionalidade: Merleau-Ponty

Em entrevista a Maurice Fleurent, Merleau-Ponty afirma que seu trabalho é norteado por uma tentativa de responder a seguinte pergunta: "como sair do idealismo sem recair na ingenuidade do realismo?" (Merleau-Ponty, 1997, p. 66). O filósofo encontra na fenomenologia uma forma bem sucedida de enfrentar esta questão, balizando-a entre um "ser posto" tal como o idealismo preconiza e um "ser puro" tal como o realismo quer retratar. Assim, a fenomenologia através da noção de intencionalidade pretende abordar um sujeito que é inerente ao mundo e a sua situação histórica, bem como tocar o mundo em seu excesso com relação ao sujeito, alcançando as coisas mesmas em sua transcendência. Para isto, a fenomenologia enquanto método deve ser capaz de "descrever, e não de explicar nem de analisar" (Merleau-Ponty, 1957, p. ii) a experiência do mundo. A dificuldade desta tarefa se encontra em conseguir descrever o ser, os fenômenos em sua correlação do sujeito ao mundo. Isso tudo sem tender apenas para o lado subjetivo e tampouco para o objetivo, ponderando a relação entre o particular e o universal, de modo que se possa descrever os fenômenos em sua inerência a um sujeito e em sua transcendência, ou melhor, em seu excesso por relação ao sujeito.

Se o pensamento idealista não dá conta de manter o fio da correlação é justamente porque ele confere ao sujeito de conhecimento o poder de constituir - por meio de síntese da consciência reflexiva - a unidade (dos múltiplos perfis) da experiência. Já o realismo rompe com os fios da correlação na medida em que vê no objeto a única razão da percepção e de sua aparição sensível. A unilateralidade de ambas as correntes impede de descrever a experiência perceptiva tal como ela aparece, tal como "paradoxalmente há, para nós, e o em si" (Merleau-Ponty, 1957, p. 86), uma vez que o idealismo tende a absorver e isolar a experiência pelo polo subjetivo e o realismo pelo polo objetivo.

A filosofia merleau-pontyana, ao pautar seus estudos numa descrição da experiência tal como ela aparece, circunscreve suas investigações ao campo fenomenal sem que esta operação recaia sob os polos do idealismo de uma filosofia reflexiva e tampouco do realismo das ciências. Merleau-Ponty se propõe a "segurar as duas pontas da corrente" (Merleau-Ponty, 2001, p. 23): enraizar a subjetividade ao mundo e fazer o mundo aparecer enquanto transcendência à subjetividade. Um ponto importante para se manter a tensão entre os polos sem romper com a ambiguidade é compreender o a priori da correlação como um movimento de inerência e distanciamento que não para no sujeito e nem se encerra no objeto. Deste modo, a correlação entre sujeito e mundo é descrita por Merleau-Ponty da seguinte forma: "o mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é senão projeto do mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta" (Merleau-Ponty, 1957, p. 491). Há um movimento que reenvia um polo ao outro, tencionando a relação sem que ela se rompa. Assim, o mundo não se difere das aparições pelas quais ele vem a ser para um sujeito, e no entanto, ele cria uma distância mínima capaz de exceder a plena posse de si por esta subjetividade. A subjetividade não está fechada em si mesma, ao contrário, ela é puro movimento em direção ao mundo vindo a se manifestar através destas mesmas aparições. Entretanto, há uma brecha nestas aparições pela qual o mundo se transborda da sua doação para uma subjetividade. O reconhecimento desta brecha ou excesso do mundo em relação à subjetividade não implode a correlação, mas, sim instaura uma abertura para que o movimento de reenvio de um polo a outro se efetive sem cessar.

A compreensão do a priori da correlação é um ponto central na Fenomenologia da percepção (1945) de Merleau-Ponty, pois através dele se estabelece a inerência do subjetivo ao objetivo, o enraizamento da subjetividade no mundo por meio da noção de corpo próprio, bem como se reconhece uma distância mínima pela qual o mundo não se reduz aos poderes da subjetividade e sim a transcende, permanecendo aberto a outras visões possíveis. Com isso, a noção de a priori da correlação diz respeito a uma estrutura que realiza um movimento de encarnação do sujeito ao mundo, não reduzindo o mundo a meras representações de uma consciência absoluta, introduzindo, assim, um germe de negatividade para que a dimensão de transcendência (dos "poderes" de uma subjetividade) seja minimamente possível. Esta abertura originária é o que permite o filósofo tratar da questão da subjetividade de maneira intramundana, sem cair nos prejuízos do mundo enquanto mera representação de um sujeito (ou consciência). Na verdade, o mundo é definido por Merleau-Ponty como:

[...] a unidade primordial de todas as nossas experiências no horizonte de nossa vida e termo único de todos os nossos projetos, não é mais o desdobramento visível de um Pensamento constituinte, nem uma reunião fortuita de partes, nem bem entendido, a operação de um pensamento diretriz sobre uma matéria indiferente, mas a pátria de toda racionalidade (Merleau-Ponty, 1957, p. 492).

O mundo, compreendido como o lugar em que a racionalidade se faz, é um horizonte através do qual a multiplicidade de sentidos emerge e ao mesmo tempo ganha uma unidade pela vivência do sujeito. Desse modo, a relação do mundo não se opõe por completo ao sujeito que o percebe, pois é justamente nesta comunicação sensível do corpo-sujeito com o mundo que devemos entender a gênese das capacidades perceptivas. Na fenomenologia merleau-pontyana, sujeito e mundo se estabelecem numa correlação de forma tal que não há uma cisão completa entre o mundo percebido e os poderes do corpo perceptivo. O mundo e o sujeito não são exterioridades absolutas, como se fossem substâncias originariamente apartadas ou objetos em si mesmos. Assim como não se pode pensar o mundo como uma "coisa" inerte, como um objeto acabado, o corpo não deve ser entendido como "coisa/objeto", como exterioridade pura.

No corpo tomado como objeto só existem "relações de exterioridade e mecânicas" (Merleau-Ponty, 1957, p. 87) entre as partes deste corpo e entre este corpo e os outros objetos. Com isso, o corpo-objeto tem o modo de ser de uma "coisa", que é analisável segundo as leis da mecânica e decomposta em elementos independentes e isoláveis, como se cada via sensorial do corpo (tato, audição, paladar, etc.) fosse autônoma e portasse certas qualidades sensíveis estanques, no sentido de que para cada dado captado por uma destas vias existisse apenas um órgão correspondente para sua captação. Já a experiência do corpo próprio opõe-se ao movimento reflexivo que destaca o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que nos dá apenas o pensamento do corpo ou o corpo em ideia, e não a experiência do corpo ou o corpo em realidade" (Merleau-Ponty, 1957, p. 231). O que interessa ao filósofo é ultrapassar o pensamento do corpo como objeto, como se ele fosse mero utensílio ou um instrumento sempre disponível, para pensá-lo enquanto fenômeno, que não se abarca por completo e que possui um movimento próprio que o arrebata para fora de si mesmo, exercendo uma função exploradora no mundo sensível.

A relação do corpo no mundo deve ser compreendida por meio de uma certa passividade e atividade do corpo. Na medida em que não há uma simples sujeição corporal e nem mesmo uma ativi-dade pura, o corpo é uma "potência de apreensão", no sentido de que ele não traz tudo em si mesmo e nem é apenas o meio da alma configurar ou forma-tar o mundo. Assim, o corpo é uma abertura a determinado ponto de vista ou possíveis perspectivas. O campo perceptivo dispõe de diversos elementos de inumeráveis valores, por exemplo, o valor cromático, temporal, espacial, significativo, afetivo, etc; e o corpo ao perceber não concebe, de antemão, a configuração do conjunto; na verdade, ela é construída no momento da percepção. A unidade dos múltiplos sentidos ofertados no mundo se estabelece no momento da percepção corporal. Desta forma, as possibilidades de apreensões perceptivas do mundo se limitam às equivalências do sistema-corpo, sendo então determinadas pela configuração dos órgãos dos sentidos entre si e com o mundo. Apontando para uma atividade perceptivo-motora do corpo em relação às solicitações do mundo sensível, o corpo, enquanto fundo de toda apreensão ou "sistema de equivalências" é sempre aberto a uma perspectiva no qual toda a percepção deve se realizar, precisa manter um "comércio" com o mundo.

Este corpo não se limita às necessidades biológicas mais imediatas. Ele tem a capacidade de ir além das suas reações fisico-químicas impulsivas de sua natureza e habitar também a dimensão cultural. Dissolvendo as barreiras que sedimentariam uma cisão rígida entre natureza e cultura, Merleau-Ponty vai afirmar que no corpo "tudo é natural e tudo é fabricado" (Merleau-Ponty, 1957, p. 221). Assim, a capacidade que o corpo possui de transcender sua situação biológica faz com que seu sistema perceptivo e motor atribua sentidos (formas significativas) aos estímulos manifestados no mundo sensível. Conforme Merleau-Ponty (1957, p. 136), "a presença e a ausência dos objetos exteriores são apenas variações no interior de um campo de presença primordial, de um domínio perceptivo sobre os quais meu corpo tem potência". Elas, portanto, fazem com que este sistema de equivalências que é o corpo dite a medida daquilo que pode ser experienciado ou vivenciado. Frisar este caráter dinâmico do corpo é considerar a contingência que o permeia, apontando para um movimento que ultrapassa a sua situação biológica e natural para se constituir também em uma situação cultural e histórica.

A noção de corpo próprio, encarnado no mundo, permite a Merleau-Ponty, num primeiro momento, ultrapassar os prejuízos dualistas da consciência pensada como apartada do mundo externo, pois antes de uma consciência constituinte e de um cogito reflexivo, há um corpo anônimo, pré-reflexivo operando no mundo. O enraizamento do sujeito no mundo, tal como aborda Merleau-Ponty através da noção de corpo próprio, permite tratar de um sujeito que não constitui e tampouco sobrevoa os entes mundanos. Contudo, num segundo momento, essa singularidade que o corpo próprio requer, apesar de acentuar sua capacidade transcendental e assim pretender transbordar sua inerência sensível, ela termina por prender o corpo aos processos de sua atividade perceptivo-motora em relação às coisas, não permitindo que ele seja também objeto, verdadeiramente passivo, como uma coisa sensível entre coisas sensíveis1. Desta forma, o fenomenólogo, em um curso posterior intitulado A natureza (1956/57) vai aprofundar a camada de passividade do corpo, abordando uma verdadeira duplicidade inerente ao corpo que não é uma relação excludente entre os polos, mas sim uma relação ambivalente. Tratando-se de uma função ativa e passiva do corpo que se implica mutuamente, Merleau-Ponty ilustra o exemplo das mãos que se tocam a fim de descrever esta operação dinâmica, de reversibilidade, inerente ao corpo. No aperto de mãos, há um momento em que a mão tocada passa a ser a mão tocante sem que a experiência de uma mão exclua a da outra; ela é sim integrada, num mesmo movimento, de maneira que a mão é ora percebida como coisa ou como um membro passivo e ora é percebida como membro em atividade.

Vimos que, na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty restringe a sua pesquisa aos limites rígidos do a priori da correlação, no sentido de que sua análise fenomenológica ainda se encontraria circunscrita àquilo que se manifesta a um corpo/ sujeito, ou melhor, as capacidades sensório motoras do corpo próprio. Como se os poderes corporais (percepto-motores) de apreensão do mundo restringissem, numa certa medida, o que poderia ser a experiência, como se as propriedades determináveis pela percepção corporal delimitassem o campo de manifestação dos fenômenos sensíveis. Este cenário muda a partir da década de 1950. O mundo (a natureza) ganha mais profundidade, e ao invés de ser a "pátria de toda racionalidade", ele passa a ser compreendido como pátria do "ser de latência" ou "ser bruto" ou "mundo selvagem" (Merleau-Ponty, 1991, p. 21, 22 e 200), anterior a atividade constitutiva de uma subjetividade e portador de uma organização interna ao próprio ser.

Com esta reformulação, Merleau-Ponty amplia os horizontes da sua descrição do ser do mundo sensível, não se comprometendo somente com o mundo percebido produto de uma atividade intencional do corpo, mas sim alargado para um mundo bruto, cuja experiência silenciosa é expressa indiretamente pelo contato perceptivo, anterior à reflexão. Fazendo com que a própria estrutura do mundo se encontre sempre incluída ao corpo por meio de um elo sensível comum, o qual possibilita ao corpo se dirigir (ativamente) à essas coisas sensíveis e se entregar ao seu caráter sensível (passivo) enquanto coisa. Neste sentido, o corpo deixa de ter o peso da propriedade, sua absoluta singularidade como corpo próprio, e passa a ser carne do mundo, ou seja, uma coisa sensível dentre outras sensíveis. Pelo fato da carne ser um "si dilacerado", ou seja, por não se estabelecer como uma propriedade ou como uma "massa individual", isto faz com que ela seja perpassada por diversas camadas que a constituem ativa ou passivamente, fazendo com que as coisas, as quais o corpo se dirige e se submete, se abram a uma relação com o corpo e o excedam. Assim, retomando o exemplo do aperto de mãos, compreendemos que até mesmo o apelo ao movimento das mãos tocante e tocada se realiza graças à localização mundana que embasa a manifestação dessa experiência e possibilita seu caráter de reversibilidade. Desta forma, a relação do corpo com o mundo, entendida por meio da partilha de uma dimensão sensível (de carnalidade) comum a ambos, é condição necessária para que esse corpo possa experienciar-se como reversibilidade: como tocante e tocado, como ativo e passivo e como interior e exterior.

 

Intencionalidade: Barbaras

Embora a leitura cuidadosa que Barbaras faz da obra de Merleau-Ponty tenha promovido uma abertura às discussões dos conceitos deste filósofo no pensamento contemporâneo, possibilitando muitos ganhos quanto às investigações merleau-pontyanas, Barbaras percebe as limitações da fenomenologia da percepção. Isso o leva a propor uma nova perspectiva para as questões fenomenológicas. Esta nova perspectiva ultrapassa o comentário estrutural dos textos merleau-pontyanos vindo a se dedicar a um pensamento próprio que proponha soluções a alguns impasses encontrados na fenomenologia de modo a ampliar os horizontes desta. Algumas noções extraídas da tensão com as fenomenologias de Merleau-Ponty e Husserl são cruciais no desenvolvimento da fenomenologia de Barbaras para se pensar a experiência, para se refletir sobre o alcance e a relevância da problemática que envolve a noção de vida tal como elaborada por Barbaras.

O privilégio proporcionado pela noção de vida consiste justamente em escapar das amarras do empirismo e de uma filosofia transcendental para abordar a experiência de maneira efetiva e fidedigna, pois a vida é "o lugar onde se torna presente algo para alguém" (Barbaras, 2011, p. 238). Este lugar não é o espaço em que o objeto surge em sua pureza, tal como no pensamento empirista, e tampouco se refere à capacidade do sujeito para projetar um campo exterior, como faz o pensamento idealista. A vida é o locus onde o ser vivo se relaciona com seu ambiente. Desta forma, "reconhecer a vida como dimensão ou nível ontológico irredutível leva a reconhecer uma articulação essencial entre o movimento corporal e a percepção" (Barbaras, 2011, p. 156). A comunicação entre percepção e movimento aponta para uma relação interna em que a percepção não se reduz à mera representação de objetos e nem mesmo o movimento se compreende apenas como sendo espacial. Quando se pensa o sujeito da percepção não mais nos moldes de uma teoria idealista que destaca apenas as capacidades de apreensão do mundo por representação deste, tem-se uma nova abordagem do ser vivo por intermédio do movimento de intencionalidade que se opera na dimensão perceptiva.

O movimento da percepção expressa um caráter aparentemente contraditório da experiência, a saber, o de colocar o sujeito em contato com as coisas mesmas através da sua visada, ao mesmo tempo que as coisas não se esgotam pela sua apresentação a um sujeito. Pelo fato do sujeito aprender o objeto por perfis que não o exaurem numa só visada, isto não significa que o sujeito não atingiu o objeto tal como ele é. Na verdade, essa forma da percepção se manifestar, por meio de perfis e mesmo assim atingir o objeto ele mesmo, pode parecer logicamente impossível; no entanto, o campo da experiência mostra que esta operação paradoxal é a sua estrutura. Com isso, nos deparamos com o mistério da percepção: ela "apresenta ou, pelo menos, desvenda a coisa, mas, por outro lado, sendo parcial, encobre ou mascara a coisa tal como ela é" (Barbaras, 2011, p. 150). Assim, mediante a percepção, o sujeito alcança o objeto, de maneira que essa visada permite que o objeto escape da mera representação feita pela atividade de uma subjetividade. A percepção toca efetivamente o mundo e o sujeito da percepção é um "sujeito vivo" que se relaciona com seu entorno. Deste modo, a percepção não se resume apenas ao ato de perceber feito por um só sujeito. Ela é, sim, "uma modalidade de viver" (Barbaras, 2011, p. 153) a qual está enraizada na vida, fazendo com que as coisas no mundo se relacionem e se apresentem para os seres vivos2. O sujeito vivo experiencia os objetos no mundo e os vivencia como realidade, a partir de uma relação vital que o ser vivo estabelece com o seu meio ambiente.

A relação do sujeito vivo com o seu ambiente se manifesta através da operação da intencionalidade. A intencionalidade dada pela percepção não define o sujeito vivente pelas suas necessidades estritamente biológicas ou por algo que o preencha de modo a proporcionar uma espécie de satisfação em relação ao objeto buscado. Neste sentido, Barbaras reconhece uma "inquietude, uma tensão própria ao ser vivo, que resulta numa mobilidade contínua e independente do preenchimento das necessidades" (Barbaras, 2011, p. 158). Trata-se de assegurar, deste modo, uma dimensão que caracteriza a vida não como busca pela sobrevivência e sim como manifestação de um movimento que transcende seu sentido imediato/empírico. Para além da mera sobrevivência, o ser vivo anseia por um objeto que ao mesmo tempo aviva a sua busca e não encontra equivalente que preencha a sua satisfação. Esta operação expõe um movimento constante do ser vivo que supera a sua identificação por uma individualidade encerrada em si. Não havendo uma finitude do movimento ou uma essência em direção a qual o sujeito deveria perseguir, o movimento que caracteriza o ser vivo realça seu modo próprio de existir sem retornar aos prejuízos que se encontram nas filosofias identitárias.

Visando ultrapassar os prejuízos desta relação identitária, que fornecem apenas "representações objetivantes", Barbaras vai discorrer sobre uma camada mais profunda da experiência, a vida, enquanto lugar paradoxal no pensamento fenomenológico. O paradoxo pensado do ponto de vista do sujeito, se exprime por uma diferença face ao mundo e de pertencimento a este. Para Barbaras (2011, p. 163) "o sujeito da correlação (ao qual o ente transcendente é relativo por essência) ao mesmo tempo faz parte do mundo e é condição da aparição dele, intramundano e fenomenalizante. Essa dupla condição, que remete a um só modo de ser, é reunida no verbo 'viver'". O fenomenólogo compreende estes dois modos de ser do sujeito como dois sentidos da vida, um primeiro ligado à vida transitiva em que o sujeito é compreendido como distinto do mundo, em uma relação com o mundo, e um segundo, apreendido como vida intransitiva, na qual o sujeito se encontra plenamente no mundo.

Para Barbaras, a correlação tal como Husserl aborda impõe uma limitação ao escopo da investigação fenomenológica, acarretando num "desnível ontológico entre a consciência transcendental como absoluta e o mundo [...]. Minha proposta é de fazer aparecer um sentido de ser original: aquele da vida enquanto ela implica ao mesmo tempo pertencimento ao mundo e uma diferença com este-aí" (Gress, 2008). Com isso, Barbaras aponta para um problema no a priori correlacional husserliano que impede o movimento de fenomenalização do ser em toda sua fecundidade. A correlação não pode ser compreendida nos modos de uma mera ligação entre os termos cujo sentido foi estabelecido previamente, cuja determinação impediria que um novo sentido surgisse da própria relação. A correlação em seu modo incisivo de relação intrínseca é "constitutiva dos termos que ela religa e os confere sentido" (Barbaras, 2013, p. 16). Assim, a vida do sujeito ao possuir um duplo sentido de ser estabelece também um duplo modo de se relacionar: um primeiro que diz respeito a sua forma de experienciar, usufruir e dispor o mundo garantindo uma certa distância; e um segundo que compreende o seu modo de estar no mundo, de viver nele. Esta dupla função do sujeito revela o sentido da estrutura da vida, já que uma investigação acerca do modo de ser do sujeito, ser-no-mundo e condição de seu aparecimento, repercute, de acordo com o pensamento barbarasiano, em uma interrogação acerca da vida. Mas qual questionamento seria esse que a vida portaria?

A interpelação que a dinâmica da vida instaura compreende a partilha entre o vivo e o viver, entre o sujeito (ser-vivo) e o modo como ele se move (a experiência do seu viver) no mundo, como advinda de uma camada mais originária, a da vida, a qual o pensamento fenomenológico tem por dever abordar. Contudo, as investigações fenomenológicas anteriores a Barbaras, não possuíam esta preocupação, não interpelaram a vida de maneira adequada, encarando esta pergunta de modo insuficiente. Para tanto, a tarefa de uma fenomenologia da vida deve, segundo Barbaras:

[...] mostrar como a consciência que enraíza-se na vida é plenamente uma consciência. É enquanto consciência essencialmente transitiva, consciência perceptiva ou desveladora, que a consciência deve ser referida à vida e, portanto, a dificuldade é a de trazer à luz um sentido de ser da vida que seja adequado à essa exigência, uma vida cuja atividade (o "viver") tenha um alcance suficiente para dar conta da dimensão gnoseológica da consciência (Barbaras, 2011, p. 164).

Neste sentido, a vida como fundamento ontológico do movimento (vital) do sujeito que percebe no mundo expõe uma dualidade inerente da relação intencional, a saber, uma dimensão de pertencimento e de afastamento do sujeito vivo no mundo. Neste movimento vital, o sujeito não busca se conservar, no sentido biológico de satisfazer suas necessidades. Pois se assim fosse o vivente já seria farto disto que ele é, e todavia, a dinâmica da vida mostra um movimento incessante de uma busca, expressa por uma falta que nunca se completa, que não é a de preencher uma simples vontade, mas uma "falta de si". É importante pensar "o dinamismo vital como autorrealização ao invés de autoconservação" (Barbaras, 2003, p. 196). Assumir a falta como motor da estrutura da vida é deslocar a tematização da vida sob um viés estritamente biologizante e abri-la para uma reflexão fenomenológica em que não se busca a realização desta falta e sim a assume como negatividade insuplantável. Assumir esta dimensão da vida como fundamento da relação intencional do vivente no mundo possibilita que a dualidade manifesta na análise do vivente em seu meio seja incorporada à vida como camada mais originária. A reflexão acerca do modo de ser da dimensão dual que a vida abre e sustenta foge das amarras de um pensamento identitário que transforma o mundo em objeto; em objeto em si mesmo como faz o realismo ou em objeto como representação de uma consciência tal como assume o idealismo.

No percurso assumido por Merleau-Ponty, as filosofias clássicas (tais como o realismo e o idealismo) se comprometeriam com um pensamento identitário, na medida em que elas promoveriam um discurso dualista que fragmenta a experiência do corpo no mundo, tomando como absoluta e verdadeira apenas uma perspectiva sobre o corpo, a qual o isola de sua imbricação numa estrutura mais ampla. Todavia, vimos como a fenomenologia merleau-pontyana aponta para a importância de se retornar ao corpo próprio, que se encontra além das definições mecânicas do corpo, mas também aquém de uma consciência transcendental. Nem puro biologismo, nem redução aos domínios de uma consciência, para Merleau-Ponty, "o corpo, retirando-se do mundo objetivo, arrastará os fios intencionais que o religam ao seu ambiente e finalmente nos revelará o sujeito que percebe assim como o mundo percebido" (Merleau-Ponty, 1957, p. 86). Da mesma maneira como Merleau-Ponty aborda a estrutura intencional do sujeito no mundo como alternativa às complicações incorridas pelos clássicos, Barbaras também adotará a estrutura intencional como chave para ultrapassar os prejuízos das filosofias idealistas e realistas. No movimento intencional, segundo Barbaras (1999, p. 92), "toda aparição implica a coaparição do mundo, de modo que o mundo por si mesmo se manifesta em todo aparecimento". O sujeito vivo que percebe e, por isso, se orienta e se move no mundo, está situado no mundo empírico. Todavia, seu movimento expressa ao mesmo tempo seu enraizamento ou a sua situação (parcial pois recorta ou apreende o mundo segundo perfis) e também seu ultrapassamento, quer dizer, sua diferença com relação ao mundo, ou nos termos de Barbaras, sua condição de "intramundaneidade. A ideia é, portanto, de ver nesta dupla situação ontológica, pertencimento ao mundo e sentido de ser diferente deste e dos outros entes, o indício de um sentido de ser original, que se chama vida" (Gress, 2008). É no seio da própria vida que o caráter intencional, expresso pela relação do sujeito vivo no mundo, se manifesta como existência intencional e intramundana. Esta dualidade aparente expressa pela dinâmica da vida reenvia a necessidade de se refletir sobre o seu princípio último: a vida entendida como desejo.

A dinâmica do desejo, opera tanto no movimento intencional do vivente quanto no seu corpo e, no entanto, não se reduz a nenhum deles. Para Barbaras, esta operação se apresenta sempre num movimento inesgotável de vir a ser, pois seu motor é uma "falta originária". Tendo esta falta como fundamento, é que o vivente procura incessantemente se fundir com seu meio, buscando uma totalização que nunca se realiza já que esta fusão é impossível. Conforme Barbaras (2003, p. 196), "o desejo é desejo de Ser", é um movimento incessante em direção a algo que não pode ser definido previamente, é desejo de uma totalidade que nunca se exaure. A totalidade entendida como um horizonte faz com que o desejo não tenha um objeto definido para o qual ele se realizaria por completo. Em seu movimento de devir, o desejo tende a operar sempre na borda, na distância de si e do mundo, no sentido de nunca se deixar preencher por um objeto específico (seja ele uma identidade/Sujeito ou algo externo no mundo) e, no entanto, se reiterar a cada experiência de aproximação ou tendência em direção a si e ao mundo. Esta operação do desejo manifesta um movimento sempre malogrado no que diz respeito a uma determinação do objeto (por apreensão, completude, preenchimento, identidade, etc.), apontando também para uma experiência que se constitui na distância, e que por isso, não pode nunca aparecer por completo, remetendo a um horizonte de invisibilidade ou a uma "fraqueza" necessária ao aparecimento. Deste modo, o paradoxo da operação do desejo consiste em habitar um movimento de distanciamento sem parâmetros, uma vez que ao se constituir como movimento na distância da experiência, por mais que haja uma tendência a querer se completar, tal anseio nunca se efetiva, pois realizá-lo seria extingui-lo em sua dinâmica.

O movimento do desejo expõe sempre a sua fraqueza, já que sua dinâmica, que tende em direção a si e ao mundo, o coloca em contato com aquilo que poderia dissipá-lo, visto que preencheria sua ausência constitutiva, caso a sua falta fosse determinável por um objeto exterior. Ora, contudo, esta fusão é malograda. Neste sentido, a operação do desejo manifesta uma tarefa interminável ilustrada pelo esforço sisifista, o qual apontando para uma negatividade inerente ao movimento vital, o instala numa atmosfera cuja experiência é vivida como permanente inacabamento. O desejo entendido como motor da vida apresenta não uma necessidade ou uma simples vontade de conservação do vivente diante da vida, mas sim explicita uma dinâmica mais ampla cuja noção de indeterminação é o horizonte inscrito em toda experiência, ou seja, é a condição do transcender-se constante. É a negatividade infindável que o movimento do desejo evidencia como característica fundamental da experiência do vivente no mundo.

 

Conclusão

Vimos, neste artigo, que a noção de intencionalidade tem implicações e limites diferentes em cada filósofo, o que poderia nos levar a questionar o sentido deles afirmarem seus discursos como sendo partilháveis de uma mesma linha filosófica: a fenomenologia. Se, em Husserl, o a priori correlacional diz respeito à capacidade da consciência intencional de doar sentido e ser aos objetos; em Merleau-Ponty, o a priori da correlação desce do nível da consciência transcendental e se enraíza no corpo. É o movimento intencional do corpo próprio no mundo que sela a correlação. Já, em Barbaras, é preciso buscar pelo a priori do a priori da correlação, uma vez que este deve abarcar o sentido de ser da vida. Deste modo, se as diferenças de pensamentos destes filósofos levam a desenvolvimentos diversos de seus discursos, isto não implica que eles não possam partilhar de algo. Se é possível construir um "diálogo" entre eles é justamente na medida em que suas divergências teóricas se convergem na retomada de uma mesma questão: o que é a intencionalidade?

 

Referências

Barbaras, R. (1999). Le désir et la distance: introduction à une phénoménologie de la perception. Paris: Vrin.         [ Links ]

Barbaras, R. (2003). Vie et intentionnalité: recherches phénoménologiques. Paris: Vrin.         [ Links ]

Barbaras, R. (2011). Investigações fenomenológicas: em direção a uma fenomenologia da vida. Curitiba, UFPR.         [ Links ]

Barbaras, R. (2013). Dynamique de la manifestation. Paris: Vrin.         [ Links ]

Gress, T. (2008). Entretien avec Renaud Barbaras: autour de l'Introduction à une phénoménologie de la vie. Disponível em: http://www.actu-philosophia.com/spip.php?article69. Acesso em: 02/02/2018.         [ Links ]

Husserl, E. (2007). Investigações Lógicas. Segundo Volume, Parte I: Investigações para a fenomenologia e a teoria do conhecimento. Lisboa, Phainomenon, 573p.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (1997). Parcours: 1935-1951. Lagrasse: Verdier.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (1957). Phénoménologie de la perception. 2. ed. Paris: Gallimard.         [ Links ]

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Merleau-Ponty, M. (1994). La nature: notes cours du Collège de France. Paris: Seuil.

Merleau-Ponty, M. (2001). Le visible et l'invisible. Paris: Gallimard.         [ Links ]

 

 

Recebido em 26.03.2018
Aceito em 12.11.2018

 

 

1 Tal mudança com relação a compreensão do papel do corpo é nítida no curso A Natureza, no qual MerleauPonty irá definir o corpo como uma natureza dupla: "enigma do corpo, coisa e medida de todas as coisas" (Merleau-Ponty, 1994, p. 273). O corpo ativo não exclui o corpo como coisa sensível e tampouco Merleau-Ponty defende uma identidade plena entre estas funções, mas sim aborda uma zona de ambivalência inerente ao corpo, capaz de ser objeto sensível e medida da relação do sujeito com o mundo sensível.
2 Há uma restrição dos seres vivos que tem a percepção como modalidade do viver. Barbaras irá afirmar que "pelo menos certos seres vivos, se relacionam vitalmente com o seu meio" (Barbaras, 2011, p. 153). Contudo, esta afirmação de uma diferença entre os seres não deve ser pensada por acréscimo de um atributo ou negação dele. Barbaras critica tanto a caracterização aristotélica do homem como animal racional, no sentido de compreender a razão como atributo acrescido ao especismo humano, e tampouco infla mais a humanidade do que a própria vida, como faz Heidegger através da sua "zoologia privativa". Para Barbaras (2011, p. 165) "a diferença humana não é uma diferença de natureza nem de grau; ela não acrescenta nada nem intensifica nada, pois ela não remete à algo positivo mas apenas a uma privação, uma diminuição que vem no nível da vida pura". Deste modo, a privação que Barbaras sinaliza não é a da consciência retirada do humano, como se o que diferenciasse a humanidade de sua animalidade fosse uma consciência própria ao humano que o animal carece, é sim uma limitação da própria vida, uma circunscrição no nível da vida em seu caráter mais originário.

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