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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.25 no.2 Goiânia maio/ago. 2019

http://dx.doi.org/10.18065/RAG.2019v25n2.10 

RELATOS DE PESQUISA

 

As experiências poético-filosóficas de Fernando Pessoa e a não-filosofia de Alberto Caeiro*

 

The poetic-philosophical experiences of Fernando Pessoa and the non-philosophy of Alberto Caeiro

 

Las experiencias poético-filosóficas de Fernando Pessoa y la no-filosofía de Alberto Caeiro

 

 

Gisele Batista Candido

Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP, Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná - UFPR e Graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Atualmente cursa estágio de pós-doutorado na USP. E-mail: giselebc@gmail.com

 

 


RESUMO

À medida que prioriza a existência, as experiências expressas nos poemas de Caeiro encontram eco na filosofia fenomenológica. Nesse contexto, Renaud Barbaras apresenta uma leitura profunda e original da obra caeriana, ao pensá-la a partir de problemas frequentados sobretudo pela fenomenologia de Merleau-Ponty. Com efeito, no ensaio Fenomenologia e Literatura: a não filosofia de Fernando Pessoa, Barbaras revela como as experiências cultivadas nos poemas que integram a obra de Caeiro vão além de determinadas soluções ensaiadas pelo filósofo francês, e configuram uma perspectiva radical sobre o pensamento e a existência, que pode e deve ser considerada pela filosofia. Ao abordar o pensamento poético-filosófico de Pessoa, e a leitura que Barbaras faz da poesia de Caeiro, este ensaio tratará do diálogo entre os discursos poético e filosófico, buscando mostrar como o poético pode ser um espaço privilegiado para o desenvolvimento de experiências de teor filosófico que excedem e, todavia, compõem a filosofia.

Palavras chave: Fenomenologia; Poética; Não-filosofia; Pessoa; Merleau-Ponty; Barbaras.


ABSTRACT

By centering on existence, the experiences expressed in Caeiro's poems reverberate in phenomenological philosophy. In this context, Renaud Barbaras presents a deep and original reading of the Caerian corpus by approaching it from problems that had been explored by Merleau-Ponty's phenomenology. In his essay Fenomenologia e Literatura: a não filosofia de Fernando Pessoa, Barbaras shows how the experiences in the poems of Caeiro transcend certain solutions that had been developed by the French philosopher, leading to a radical perspective on thought and existence, which can and should be explored by philosophy. By approaching the poetic-philosophical thought of Pessoa and Barbaras's reading of Caeiro's poetry, this essay explores the dialogue between the poetic and philosophical discourses, showing how the poetic can also be a privileged setting for the development of philosophical experiences that exceed, while also make, philosophy.

Keywords: Phenomenology; Poetics; Non-philosophy; Pessoa; Merleau-Ponty; Barbaras.


RESUMEN

A medida que prioriza la existencia, las experiencias expresadas en los poemas de Caeiro encuentran eco en la filosofía fenomenológica. En ese contexto, Renaud Barbaras presenta una lectura profunda y original de la obra caeriana, al pensarla a partir de problemas frecuentados sobre todo por la fenomenología de Merleau-Ponty. En efecto, en el ensayo Fenomenología y Literatura: la no filosofía de Fernando Pessoa, Barbaras revela cómo las experiencias cultivadas en los poemas que integran la obra de Caeiro van más allá de determinadas soluciones ensayadas por el filósofo francés, y configuran una perspectiva radical sobre el pensamiento y la existencia, que puede y debe ser considerada por la filosofía. Al tratar el pensamiento poético-filosófico de Pessoa, y la lectura que Barbaras hace de la poesía de Caeiro, este ensayo tratará del diálogo entre los discursos poético y filosófico, buscando mostrar cómo el poético puede ser un espacio privilegiado para el desarrollo de experiencias de contenido filosófico que exceden y, sin embargo, componen la filosofía.

Palabras clave: Fenomenología; Poética; No-filosofía; Pessoa; Merleau-Ponty; Barbaras.


 

 

E tudo é o que é, segundo a segundo, iluminado
de vida. Desvio de repente os olhos para não
ver cada coisa se fixar na sua aparência e morrer. Só
assim consigo me manter vivo, renascendo a cada
segundo e impedindo que o pensamento se ponha
de novo a trabalhar, reabrindo por dentro o vazio de
suas vãs construções.
Pirandello. Um, nenhum e cem mil

 

Introdução

Lemos no poema XXVII de O Guardador de Rebanhos os seguintes versos de Alberto Caeiro: "Bendito seja eu por tudo quanto não sei. / É isso tudo que verdadeiramente sou" (Pessoa, 2005, p. 52). Sabemos que Caeiro é um dos três heterônimos1 que compõe o universo pessoano; não é o mais novo, tampouco o mais velho, mas teve a vida mais sucinta; nasceu em 1889 e morreu de tuberculose em 1915. Caeiro viveu boa parte de sua breve vida no campo, sua condição sócioeconômica era limitada, conheceu poucos lugares e teve acesso a pouca instrução. Em vida ele nunca alcançou publicamente qualquer destaque e, ainda assim, era reconhecido como mestre não só pelos heterônimos Álvaro de Campos e Ricardo Reis, e pela personalidade heteronímica Antonio Mora, mas também pelo próprio demiurgo, Fernando Pessoa. Atualmente, além dos estudos sobre as implicações de sua existência no universo pessoano e sua repercussão no reduto literário, a obra caeriana é cada vez mais estudada no circuito filosófico. Entretanto, conforme os versos que inauguram este ensaio sugere, essas informações pouco acrescentam à configuração do verdadeiro ser de Caeiro, posto que sua condição mais própria, sua existência mais autêntica é expressa justamente por meio da negação dos artifícios do saber (ou pelo menos de um certo saber). Mas, afinal, o que a experiência expressa nesses dois versos, que dissocia tão radicalmente o ser do saber, pode nos dizer sobre Caeiro, sobre o universo pessoano e sobre o mote principal deste artigo: o diálogo entre o poético e o filosófico?

 

Existência e consciência

Abordada de formas distintas por cada habitante do universo pessoano, a temática relativa às tensões entre a existência e a consciência, o ser e o saber, permeia toda a extensão de seu território. Por um lado, em Fausto, tragédia subjetiva, por exemplo, podemos acompanhar um exercício radical do pensar, que levará o protagonista dessa tragédia a explorar vertiginosamente as possibilidades da consciência, frequentando até os seus recônditos mais abissais: "A Consciência de existir, tormento / Primeiro e último do raciocínio / Que, porém, filho dela, a não atinge. / A Consciência de existir me esmaga / Com todo o seu mistério e a sua força / De compreendida incompreensão profunda" (Pessoa, 1991, p. 53). Embora tenha ciência da incognoscibilidade original da existência, a hipertrofia da consciência de Fausto não o permite simplesmente aceitar a inevitabilidade da existência. Ao privilegiar o plano do saber ante a existência, a sanha inquisitiva de seu intelecto não o abandona2: "Bebi a taça... do pensamento / Até ao fim; reconhecia-a pois/ Vazia e achei horror. Mas eu bebi-a / Raciocinei até achar verdade / Achei-a e não a entendo. / [...] Me vou do limitado e relativo / Mundo em que arrasto a cruz do meu pensar" (Pessoa, 1991, p. 166). Por outro lado, em face dessa tensão, Alberto Caeiro priorizará o plano da existência. Sua escolha, no entanto, não implicará em uma anulação do exercício da consciência ou do saber. Interessa-lhe antes reafirmar o lugar derivado ocupado por este último diante da existência: "Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos. / E o primeiro fato merece ao menos a precedência e o culto. / Sim, antes de sermos interior somos exterior. / Por isso somos exterior essencialmente" (Pessoa, 2005, p. 120). Cumpre ao mestre heterônimo a tarefa de despir a existência dos andrajos supérfluos com que sobretudo a consciência especulativa a encobriu:

Passar a limpo a Matéria / Repor no seu lugar as cousas que os homens desarrumaram / Por não perceberem para que serviam / Endireitar, como uma boa dona de casa da Realidade, / As cortinas nas janelas da Sensação / E os capachos às portas da Percepção / Varrer os quartos da observação / E limpar o pó das idéias simples... / Eis a minha vida, verso a verso (Pessoa, 2005, p. 86).

À medida que prioriza a existência, as experiências expressas nos poemas de Caeiro encontram eco na filosofia fenomenológica. Mais do que eco, como veremos adiante, o horizonte poético se mostrará como espaço privilegiado para o desenvolvimento dessa temática. Nesse contexto, Renaud Barbaras apresenta uma leitura profunda e original da obra caeriana, ao pensá-la a partir de problemas frequentados sobretudo pela fenomenologia de Merleau-Ponty. Com efeito, no ensaio Fenomenologia e Literatura: a não filosofia de Fernando Pessoa que compõe o livro Investigações Fenomenológicas, Barbaras revela como as experiências cultivadas nos poemas que integram a obra de Caeiro vão além de determinadas soluções ensaiadas pelo filósofo francês, e configuram uma perspectiva radical sobre o pensamento e a existência, que pode e deve ser considerada pela filosofia.

Ao ressaltar como, desde a primeira frase de O Visível e o Invisível3, Merleau-Ponty toca no ponto nevrálgico da filosofia fenomenológica - a saber: a existência enquanto aparição -, Renaud Barbaras expõe os percalços enfrentados pelo filósofo francês em suas reflexões. Diante da questão central da fenomenologia, a experiência da existência, Merleau-Ponty se depara com a dificuldade de expressar o sentido de ser dessa experiência que precede a linguagem (uma experiência, por conseguinte, muda) por meio da própria linguagem.

A dificuldade é, portanto, a de achar uma linguagem que não traia o sentido da presença, uma linguagem das coisas mesmas adequadas ao seu silêncio. Assim, cabe notar que o projeto fenomenológico, como tentativa de dar conta da presença do mundo, ou seja, da nossa percepção, defronta-se de saída com o problema da expressão e, paradoxalmente, conduz a uma reflexão sobre o estatuto da linguagem (Barbaras, 2011, p. 214).

Às voltas com o arcabouço terminológico herdado da tradição filosófica, como, por exemplo, as noções de sujeito/objeto ou corpo/espírito, Merleau-Ponty se encontra na dupla dificuldade de falar sobre experiências que evadem os conceitos e as categorias tradicionais da filosofia, dispondo justamente desses termos, e, ao mesmo tempo, tecer uma crítica ao uso que a tradição fez dessa terminologia: "Ele encontra-se numa situação desconfortável uma vez que, longe de poder apoiar-se na linguagem, ele deve, por assim dizer, lutar contra ela o tempo todo, tentar fluidificar a estrutura rígida da linguagem filosófica, criticar sem parar conceitos que, por outro lado, ele não pode deixar de usar" (Barbaras, 2011, p. 215). Barbaras observa que as mudanças que levaram Merleau-Ponty a optar pela abordagem ontológica derivam também da necessidade de encontrar uma linguagem capaz de contornar os impasses gerados pelo uso filosófico da linguagem, cristalizado pela tradição metafísica4.

Na esteira desses impasses concernentes à expressão, presenciamos ainda um crescente questionamento filosófico do próprio exercício da filosofia. Tal perquirição assinala a necessidade da radicalização do filosofar, disposição que nos lançaria em um mergulho naquilo que ultrapassa os limites da filosofia, mas que a compõe: uma estância originária, pré-reflexiva, que precede até mesmo a linguagem, o fundo obscuro em que a filosofia se enraíza. Além de uma certa crise na filosofia, que se desdobra concomitantemente às reflexões críticas sobre seu próprio exercício, vemos emergir a partir desses impasses a urgência de se buscar uma outra maneira de filosofar, que mantenha a afinidade com esse mundo originário, pré-filosófico e mudo. Nas palavras de Barbaras (2011, p. 217):

Segundo Merleau-Ponty, esse pensamento que aflora no campo da filosofia, mas também fora dele, não é filosofia explícita e até recusa esse estatuto: é uma não-filosofia. Tal é a maneira pela qual Merleau-Ponty caracteriza a unidade do pensamento voltado para aquilo que escapa das categorias metafísicas e as antecede. A expressão "não filosofia" deve ser entendida ao mesmo tempo como negação da filosofia no sentido tradicional ou oficial, ou seja, como uma crítica às categorias da metafísica, mas também como uma certa filosofia (como o indica a referência mantida, ainda que negativamente, à filosofia) cujo intuito é abranger aquilo que não é "filosófico", a saber, o fundo obscuro na qual ele se enraíza, pensar a camada originária da existência que precede qualquer pensamento. Assim a não-filosofia não é uma negação ativa militante da filosofia em nome de uma reivindicação positivista, mas sim uma radicalização da filosofia que a conduz até a sua própria fronteira.

No intuito de compor uma espécie de ontologia da totalidade, capaz de abordar todos os aspectos do Ser, além de se ocupar com investigações filosóficas tradicionais, Merleau-Ponty vislumbrará no exercício dessa não-filosofia uma ontologia interrogativa capaz de frequentar esse espaço não filosófico, o solo de experiências brutas que precede todo pensamento. Nesse esforço, ciente de que "O ser é aquilo que exige de nós criação para que [dele] tenhamos experiência" (Merleau-Ponty, 2000, p. 187), sua atenção se volta sobremaneira para o fazer artístico e para as obras de arte, uma vez que o filósofo vê aflorar aí desdobramentos do Ser, bem como a expressão de um encontro com essa camada pré-reflexiva de sentido bruto: "Ora, a arte, e especialmente a pintura, abeberam-se nesse lençol de sentido bruto do qual o ativismo nada quer saber. São mesmo as únicas a fazê-lo com toda inocência" (Merleau-Ponty, 2004, p. 15).

Conforme a interpretação assumida por Renaud Barbaras, a relação mantida pela obra merleau-pontyana com a arte conserva, todavia, resquícios da forma como a tradição metafísica considerou a arte ao logo do tempo: como um objeto de especulação e exemplificação. Embora reconheça a radicalidade da expressão artística, Merleau-Ponty não admitiria plenamente a possibilidade de autonomia filosófica das obras arte; caberia ainda ao filósofo iluminar ou articular a expressão artística, de modo a atingir um certo patamar filosófico. A expressão artística não traria consigo a sua própria explicação. "A arte fica um objeto de reflexão para o filósofo, e a filosofia uma estética" (Barbaras, 2011, p. 219). É verdade que Merleau-Ponty reconhecia que "a metafísica nunca deixou de 'levar uma vida ilegal' na literatura sob a forma de 'uma metafísica em ato'" (Barbaras, 2011, p. 219). Entretanto, o filósofo ainda "mantém uma diferença entre literatura e pensamento" (Barbaras, 2011, p. 219). Barbaras dirá que a culpa não é apenas de Merleau-Ponty, porquanto os próprios escritores se prenderam demasiadamente às divisões entre o discurso filosófico e o uso mais poético da linguagem.

 

Poesia e filosofia

Longe de contentar-se com delimitações dessa natureza, que distanciam o poético do filosófico, Fernando Pessoa considerava-se "um poeta inspirado pela filosofia" (Pessoa, 2006a, p. 19). Com efeito, por meio de sua obra ele superou essa distância, refletiu sobre o mundo, a filosofia e também sobre as experiências cultivadas em seus escritos; conduzindo o diálogo entre os discursos poético e filosófico por uma via original. Tal aventura permitiu-lhe a criação de um universo próprio, com habitantes singulares e até mesmo a recriação da compreensão de si, apartir da convivência com essas presenças. É preciso, no entanto, salientar que esse universo original, capaz de expressar, refletir e sustentar perspectivas plurais e contundentes de mundo, não nasceu como mero resultado de elucubrações filosóficas, como se a consciência filosófica precedesse a criação poética e essa fosse apenas um objeto de exemplificação daquela. Conquanto admita ser um poeta inspirado pela filosofia, Pessoa imediatamente reitera: "não [ser] um filósofo com faculdades poéticas" (Pessoa, 2006a, p. 19). O teor filosófico da obra pessoana está intimamente imbricado à dimensão poética de seu universo. Em outras palavras, a arquitetura do pensamento poético-filosófico de Pessoa só é possível graças ao solo poético que o sustenta.

Nesse horizonte, entre as experiências poético-filosóficas desenvolvidas pelo poeta português, destaca-se aquela que, ao meu ver5, é o coração pulsante de sua obra: o desassossego. Ainda que a obra de Pessoa seja caracterizada em sua forma e substância por uma pluralidade de sentidos capaz de gerar múltiplas interpretações6, o desassossego é o elemento que não apenas está no cerne das principais experiências de seus escritos, como também justifica o caráter filosófico original de seu pensamento poético, na medida em que a abertura de horizonte própria do desassossego envolve uma perquirição radical no âmbito da existência e da consciência, plenamente exequível somente através das possibilidades suscitadas pela experimentação poética. Observa José Gil (1994, p. 29):

O desassossego está para aquém do pensamento [...] antes de um nome, antes de uma ideia. Mas abre para além das antinomias, das ideias, dos deuses, do ser e do nada. A insatisfação do desassossego desvela a impossibilidade de pensar um fundamento último da existência, porque quando se julga chegar a um último termo, ele faz-nos descobrir um outro, mais longe, e tão pensável e, portanto, tão justificável como o primeiro. Nem Deus, nem os deuses, nem o ser nem o não ser, nem a existência, nem a morte são pontos de apoio últimos do espírito que, animado pelo movimento da vida, do desassossego, faz rebentar todas as categorias. O desassossego abre para o "Mistério", mistério da vida, incompreensível, impensável, apenas exprimível pela arte.

Como uma espécie de potência vital desestabilizadora, o desassossego revela-se na incipiente contingência que impulsiona o homem em sua existência e especulações, em um movimento sempre inacabado e insatisfeito que, indefinido, não determina qualquer direção. Sensível a sua incidência, porquanto presencia o "desassossego no fundo de todos os cálices" (Pessoa, 2002, p. 187), Pessoa admite a impossibilidade do conhecimento conclusivo, entrevê o mistério enquanto horizonte e estabelece a suspensão como conduta, todavia, tal suspensão não se reduz à constante negação ou à ataraxia, mas aponta para uma existência plural pautada pela possibilidade de criação. Conjuntura propícia ao nascimento da heteronímia, cujo texto de sua gênese e justificação é arrematado pela palavra de ordem: "Sê plural como o universo!" (Pessoa, 1990a, p. 41). Além de ser tematizado por Pessoa ortônimo, por boa parte de seus heterônimos, e marcar o ponto culminante de suas investigações, o desassossego é antes o elemento que move o autor e a heteronímia, impulsionando suas especulações e criações. Lemos no comentário de J. Gil:

O desassossego é, portanto, o que move a heteronímia. É aquele movimento de desapego de tudo, e de inconstância que dissolve o 'eu' nos devir-outros heteronímicos. [...]. Enquanto movimento de vida, o desassossego não possui direção, mas toma todas as direções possíveis, sem outra finalidade senão ele próprio, na sua livre 'expressão', como diz Pessoa. Se o pensamento nele se enxerta, se tenta imprimir-lhe um vector determinado, surgem outros vectores contrários que impedem o primeiro de se fixar. Assim, paradoxalmente o pensamento exacerba o próprio desassossego [...] [Portanto], segundo as estratégias desenvolvidas para ajustar o pensamento à vida, o desassossego toma destinos diferentes: trágico em Campos e Soares, estóico em Reis, melancólico em Pessoa ortónimo, sereno em Caeiro (Gil, 1994, p. 26; 29; 32).

Analisando a heteronímia como um desdobramento do desassossego, percebemos que, além de colocar em questão estruturas de mundo e da existência, a incidência do desassossego também colocará em questão o sujeito dessa experiência, fazendo com que a primeira característica da presença da heteronímia em Pessoa instaure uma dessubjetivação, seguida da polissemia heteronímica, onde o Eu passa por constantes deslocamentos, até que seja impossível determinar uma cisão entre suas experiências e aquilo que é experimentado através do Outro. Sobre tal processo de dessubjetivação, Agamben (2008, p. 121) escreve:

Na poesia do século XX, talvez o documento mais impressionante de uma dessubjetivação - da transformação do poeta em um 'puro terreno de experimentação' do Eu - e de suas possíveis implicações éticas, seja a carta de Pessoa sobre os heterônimos. [...]. Analisemos esta incomparável fenomenologia da despersonalização heteronímica. Cada nova subjetivação (o surgimento de Alberto Caeiro) não implica apenas uma dessubjetivação (a despersonalização de Fernando Pessoa, que se sujeita ao seu mestre), mas, de forma igualmente imediata, cada dessubjetivação comporta uma re-subjetivação - o retorno de Fernando Pessoa, que reage à sua inexistência, ou seja, à sua despersonalização em Alberto Caeiro. Tudo acontece como se a experiência poética constituísse um processo complexo, que põe em jogo pelo menos três sujeitos, ou melhor, três diferentes subjetivações - dessubjetivações, pois de um verdadeiro sujeito já não é possível falar. Há, antes de tudo, o indivíduo psicossomático Fernando Pessoa, que no dia 8 de março de 1914 se aproxima da cômoda para escrever. Com relação a esse sujeito, o ato poético não pode deixar de implicar uma dessubjetivação radical, que coincide com a subjetivação de Alberto Caeiro. No entanto, uma nova consciência poética, algo similar a um autêntico ethos da poesia, só aparece quando Fernando Pessoa - que sobreviveu à sua despersonalização e volta a um si mesmo, que é e, ao mesmo tempo, não é mais, o primeiro sujeito - compreende que deve reagir frente à sua inexistência como Alberto Caeiro, que deve responder por sua dessubjetivação.

Assim a heteronímia não pode ser vista como um mero artifício literário, mas sim como um autêntico exercício poético-filosófico, pois, enquanto processo poético, ela promove uma descentralização do sujeito da experiência, o qual passa a se apreender por meio da diferença, uma vez que vê aflorar em si um outro que será a condição para sua própria experiência. É possível entendê-la como que uma maneira de se conhecer sendo outro, ou de "desconhecer-se conscientemente" (Pessoa, 1999, p. 165), já que a descentralização do eu em prol do desdobramento do outro o coloca diante de vivências inesperadas e faz com que ele conheça em si aquilo que não era prontamente ele. Pessoa exprime essa experiência nas seguintes constatações:

Não sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros). Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um caráter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho. (Pessoa, 1990a, p. 41).

Colocando a existência egocêntrica em dúvida, como se o eu fosse apenas palco para o desdobrar da existência do mundo e de outros, o poeta continua: "Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço" (Pessoa, 1990a, p. 41).

Na obra de Pessoa o desassossego aparece, portanto, como elemento constitutivo e também desestabilizador, à medida que inviabiliza a permanência e instiga o desdobramento criativo da heteronímia. Dessa maneira, as experiências criativas de seus escritos comportam constantemente uma espécie de jogo entre o desassossego e a pluralidade, em que um sustenta e suspende o outro, de modo que o primeiro age enquanto falta, e o segundo enquanto excesso. É o encontro entre uma falta que não se deixa preencher e um excesso que não pode deixar de transbordar. Tal desconcertante situação exprime o pulsante coração do universo pessoano, onde além do seu caráter de suspensão, o sentido e a originalidade do desassossego parece estar em sua constante e infinita capacidade de alargar o horizonte do território de suas criações, de suas experiências, bem como de suas reflexões; em suma, possibilitar a abertura ilimitada para a reflexão e para a expressão dos plurais aspectos do Ser. Para o bem ou para o mal, na angústia diante da incompletude ou na euforia diante da multiplicidade, animados pelo desassossego, "nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos - um poço fitando o céu" (Pessoa, 1999, p. 54).

 

Experiência de pensamento

Considerando as experiências poético-filosóficas desenvolvidas por Fernando Pessoa, sabemos, por conseguinte, que sua obra não pode ser classificada de acordo com a divisão tradicional entre o uso filosófico e o uso poético da linguagem, como se a adesão a um desses discursos implicasse na renúncia ou no prejuízo do outro. Contudo, ele não é o único a extrapolar tal cisão, os escritos de seus heterônimos também extravasam essas delimitações. Entre eles, Alberto Caeiro se distingui pela plenitude de sua existência. Nas palavras de Octavio Paz (1976, p. 209):

Caeiro é o sol e em tôrno dêle giram Reis, Campos e o próprio Pessoa. Em todos êles há partículas de negação ou de irrealidade: Reis acredita na forma, Campos na sensação, Pessoa nos símbolos. Caeiro não acredita em nada: existe. [...]. Caeiro é tudo o que Pessoa não é e, além disso, tudo o que nenhum poeta moderno pode ser: o homem reconciliado com a natureza. Antes do cristianismo, sim, mas também antes do trabalho e da história. Caeiro nega, pelo mero fato de existir, não somente a estética simbolista de Pessoa como tôdas as estéticas, todos os valores, tôdas as idéias. Não fica nada? Fica tudo, limpo todos os fantasmas e teias de aranha da cultura.

Ao refletir sobre as metamorfoses que a influência caeiriana operou, como uma "vacina contra a estupidez dos intelligentes" (Pessoa, 2012, p. 103), em Ricardo Reis, em Fernando Pessoa ortônimo, em Antônio Mora e em si mesmo, o heterônimo, engenheiro e poeta Álvaro de Campos escreve sobre a centralidade de Caeiro no universo pessoano:

Em torno do meu mestre Caeiro havia, como se terá depreendido destas páginas, principa1mente três pessoas - o Ricardo Reis, o António Mora e eu. Não faço favor a ninguém, nem amim, dizendo que éramos, e somos, três indivíduos, absolutamente distintos [...]. E todos nós três devemos o melhor da alma que hoje temos ao nosso contacto com o meu mestre Caeiro. Todos nós somos outros - isto é, somos nós mesmos a valer - desde que fomos passados pelo passador daquela intervenção carnal dos Deuses. (Pessoa, 1990b, p. 369)

Sobre a reação de Pessoa ao seu mestre, Campos mostra-se sensível à desintegração característica da identidade pessoana: "Mais curioso é o caso de Fernando Pessoa, que não existe, propriamente falando". Segundo o poeta-engenheiro, Pessoa só conseguiu alcançar a própria individualidade - apenas provisória - através dos poemas escritos em reação ao surgimento de Caeiro. "Num momento, num único momento, conseguiu ter sua individualidade - a que não tivera antes nem poderá tornar a ter, porque a não tem" (Pessoa, 2012, p. 102).

Em uma carta destinada a Casais Monteiro, o próprio Pessoa reconhece:

E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro (Pessoa, 1990a, p. 52).

O mestre heterônimo foi, portanto, para os seus discípulos o que o mundo originário é para a filosofia; aquela coisa natural, pré-humana, ingênua, primordial, sobre a qual nos debruçamos em busca de algum conhecimento acerca dele e de nós mesmos. Mas, afinal, o que os escritos de Alberto Caeiro têm a nos ensinar e por que Renaud Barbaras reconhece em seus poemas a realização da não-filosofia preconizada por Merleau-Ponty?

Após refletir a respeito das dificuldades merleau-pontyanas com a linguagem na busca por explorar todos os aspectos do Ser, e considerar a necessidade da filosofia lançar-se além de seus limites para explorar o mundo que a precede e no qual ela se enraíza, Barbaras escreve sobre como a obra de Pessoa configura-se enquanto alternativa a essas limitações, e vê nos poemas caerianos a realização de uma não-filosofia em ato:

[...] a obra poética de Fernando Pessoa, sob o nome de Alberto Caeiro, é a mais eminente realização dessa ideia de literatura como expressão pura da existência total do mundo e que, portanto, ela é a própria não-filosofia realizada. Segue-se daí que ela deve ser situada para além da distinção entre arte e metafísica, de modo que a alternativa proposta por Merleau-Ponty perde todo sentido. A obra de Alberto Caeiro é indistinguivelmente poesia e pensamento e, por conseguinte, unidade absoluta da criação e da reflexão sobre o sentido da criação. Desse ponto de vista, precisaria abrir mão das categorias que estamos usando, já que, sendo ao mesmo tempo poesia e ontologia, ela não é filosofia, nem poesia: é provavelmente a primeira realização da literatura no sentido novo de uma "inscrição do Ser". (Barbaras, 2011, p. 219).

Ainda segundo Barbaras, ao apresentar o mundo como existência pura, a obra de Caeiro pode ser vista como uma forma de superação das dificuldades com a linguagem enfrentadas pela filosofia diante dessa mesma tarefa: "podemos distinguir três níveis nessa expressão da existência pura: uma tematização da impotência do pensamento em relação à coisa; uma determinação do Ser como exterioridade pura e, portanto, uma crítica à interioridade; enfim, uma tautologia desembocando numa redução radical de todas as categorias" (Barbaras, 2011, p. 221). Cientes dessas considerações de Barbaras, vejamos quem é Alberto Caeiro e o que nos diz sua obra.

Sabemos que o mestre heterônimo rejeita "ver mais nas coisas que as próprias coisas" (Pessoa, 2005, p. 211). Essa recusa estende-se inclusive a sua própria existência, como atestam os versos que abriram esse ensaio: "Bendito seja eu por tudo quanto não sei. / É isso tudo que verdadeiramente sou". Ao dissociar tão radicalmente o ser do saber, Caeiro busca eliminar justamente tudo aquilo que não corresponde a sua existência pura e atual, despir-se das projeções derivadas da consciência, para coincidir de forma íntegra com seu puro existir: "É essa a única missão no mundo, / Essa - existir claramente, / E saber fazê-lo sem pensar nisso" (Pessoa, 2005, p. 58). Por meio dessa espécie de caracterização às avessas, em que a negatividade é capaz de configurar uma fisionomia afirmativa, o mestre heterônimo nega aquilo que o exercício do saber pode formular sobre o seu ser, para afirmar com contundência a plenitude ímpar e imediata de sua existência. Caeiro é o que é! Com efeito, em um de seus poemas, ele diz: "É a minha descoberta de todos os dias. / Cada coisa é o que é, / E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, / E quanto isso me basta. / Basta existir para ser completo" (Pessoa, 2005, p. 91). Nesse sentido, Barbaras (2011, p. 223) escreve:

Há em Pessoa [Caeiro], uma tentativa única para dizer a coisa como pura presença/ excluindo a significação: "...ser uma coisa é não significar nada. / Ser uma coisa é não ser susceptível de interpretação'. Verso muito importante: ele não diz apenas que as coisas não significam nada, mas também que o próprio ser da coisa consiste em excluir a significação. Daí a segunda frase, que deve ser interpretada também positivamente: a coisa exclui a interpretação não somente por falta de significação, mas também por excesso de presença: há uma fascinação e uma saturação da presença que não deixa margem para interpretação".

Além de revelar a disposição de sua existência, tal postura reflete ainda sua posição crítica perante o saber cultivado pelo intelecto. Enquanto Argonauta das sensações verdadeiras, o mestre heterônimo se vê na incumbência de desnudar o mundo e, por meio de um processo de aprender a desaprender, ele empreende uma crítica às categorias abstratas da filosofia e ao exercício generalizador do pensamento, evidenciando sua existência afinada com o sentir e restituindo a autenticidade do Universo. Eis como ele expressa seu movimento:

Procuro despir-me do que aprendi, / Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, / E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, / Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, / Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, / Mas um animal humano que a natureza produziu. / E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem, / Mas como quem sente a Natureza e mais nada. / [...]. Sou o Argonauta das sensações verdadeiras. / Trago ao Universo um novo Universo / Porque trago ao Universo ele-próprio (Pessoa, 2005, p. 72).

Habituados como estamos com um mundo em que as habilidades do intelecto são veementemente valorizadas, a obra de Caeiro nos surpreende pela abordagem contrária às sofisticações abstratas do pensar, que em seus poemas são consideradas constantemente como formas indiretas e imperfeitas de contato com o mundo, uma doença deturpadora das sensações: "O mundo não se fez para pensarmos nele / (Pensar é estar doente dos olhos) / Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo" (Pessoa, 2005, p. 19).

Da mesma forma que "basta existir para ser completo", basta pensar para ser incompleto. "A mente transfigura e irrealiza em si o Mundo" (Coelho, 1971, p. 290). Ao arquitetar abstrações sobre a existência, o pensamento desrealiza o real e passa a tentar entendê-lo, compô-lo, realizá-lo com suas reflexões, porém, o que é pensado não é aquilo que é vivido, portanto, a tentativa de compensar a existência será sempre frustrada. Em outras palavras, para Caeiro o conhecimento age generalizando a pluralidade da existência, visto como ele reúne os perfis perceptivos em busca de um sentido e assim projeta nossa subjetividade na existência, enquanto que, por sua vez, as sensações diretas são acentuadamente sensíveis à singularidade da pluralidade da existência: "Olho e as coisas existem. / Penso e existo só eu" (Pessoa, 2005, p. 107). Deixar de corresponder ao que se é, corromper a existência real - tanto de si quanto das coisas - perder-se em abstrações, eis a doença propagada pelo intelecto, denunciada pelo Argonauta das sensações verdadeiras.

Sabemos que os sentidos ocupam um lugar privilegiado nos poemas de Caeiro. Enquanto as experiências sensoriais são consideradas a forma espontânea e direta de contato com os fenômenos, o pensar é visto como uma abstração destes, uma deturpação das sensações. Contudo, nem por isso o pensar é deixado de lado7, nem essa espontaneidade sensorial é alcançada de forma espontânea. "O que Caeiro tenta rejeitar repetidamente não é o pensamento in toto, mas sim o uso especulativo e transcendental do pensamento" (Silva, 1985, p. 19). Suas "sensações verdadeiras" não são meras sensações. Alcançá-las exige a depuração dos sentidos, tarefa que envolve a reflexão crítica sobre o conhecimento, sobre a própria reflexão e sobre as influências que podem marcar as sensações, a redefinição da subjetividade, ou melhor, do eu, a reconstrução da relação desse eu com os fenômenos e, por fim, uma nova compreensão do Universo. Essas transformações não excluem o exercício do pensar, porém, assim como as sensações não são meras sensações, no horizonte caeiriano, a forma de pensar não corresponde às formas habituais do pensamento. Trata-se de um pensamento capaz de suspender-se em prol das sensações, por isso o mestre pode dizer: "penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa" (Pessoa, 2005, p. 62).

Logo, a relação que nosso poeta da natureza estabelece com o pensamento não é apenas de indisposição ou de instrumentalização apropriado para a crítica. Como um pastor que conduz suas ovelhas, ele conduz e opera também uma espécie de recondução do pensar, movimento que confere ao pensamento contornos distintos de seu exercício de abstração. Com efeito lemos em seus versos: "Sou um guardador de rebanhos. / O rebanho é os meus pensamentos / E os meus pensamentos são todos sensações. / Penso com os olhos e com os ouvidos / Com as mãos e os pés / Com o nariz e a boca" (Pessoa, 2005, p. 34).

Além da função abstrato-cognitiva, que deturpa, e da função crítico-negativa, que visa pastorear e arrebanhar os pensamentos, podemos identificar ainda uma outra forma de incidência do pensar na obra caeiriana. Trata-se de uma espécie de materialização do pensamento. Através da reconciliação com o real, o poeta é capaz de exteriorizar sensações habitualmente pensadas como subjetivas e abstratas, mas que na verdade podem ter sua existência garantida e configurada pelo mundo material, como, por exemplo, a tranquilidade de um olhar: "Meu olhar azul como o céu / É calmo como a água ao sol" (Pessoa, 2005, p. 48). Ora, se podemos falar da experiência do olhar ou de sua calma, é porque experimentamos sua existência em seu contato com o mundo exterior. Nesse ínterim, o próprio incômodo nascido do pensar ganha contornos sensíveis para afigurar-se como um dado quiçá tangível: "Pensar incomoda como andar à chuva/ Quando o vento cresce e parece que chove mais" (Pessoa, 2005, p. 16). Ao invés de pensar nas sensações, Caeiro sente o pensamento. Processo que compõe sua tarefa de resgatar a existência direta das coisas, por meio da exteriorização radical.

Tal recurso explorado pelo poeta não corresponde ao uso de simbolismos e tampouco consiste no emprego de metáforas8, mas sim ao esforço de nos fazer sentir fisicamente aquilo que convencionalmente pensamos como abstrato. Por admitir a precedência da existência e, por conseguinte, privilegiar radicalmente o sensível, Caeiro é capaz de reencontrar o sentido concreto do que racionalmente considerávamos intangível. Esse aspecto de sua poesia é tão característico e significativo, que surge até mesmo na formulação da visão que ele tem de si enquanto poeta:

Quando me sento a escrever versos / Ou passeando pelos caminhos ou pelos atalhos, / Escrevo versos num papel que está no meu pensamento, / Sinto um cajado nas mãos / E vejo um recorte de mim / No cimo dum outeiro. / Olhando para o meu rebanho e vendo minhas ideias / Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho (Pessoa, 2005, p. 17).

Pensando não como quem pensa, mas sim com a naturalidade de quem sente, enquanto pastor das sensações, o interesse de nosso poeta concentra-se em reencontrar as sensações que se extraviaram em pensamentos abstratos para materializá-las, singularizá-las e exteriorizá-las novamente. Importa-lhe vivenciar o real, as abstrações são apenas deturpação da realidade.

Alberto Caeiro está ciente de que a realidade é indiferente às atividades de seu pensamento, pois "A Realidade é apenas real e não pensada" (Pessoa, 2005, p. 113), para ele vale mais a pena fruir dela do que perder tempo pensando-a. Tal posicionamento caeiriano pode ser interpretado como uma alusão ao mérito da ingenuidade de quem se deixa levar pelo sentir, e, sobretudo, como uma referência à autonomia do real, que não depende de nenhuma interferência humana para existir. Trata-se de um posicionamento avesso ao antropocentrismo, pois descentraliza o papel do homem reflexivo na manutenção da realidade, que doravante será vivenciada plenamente apenas através da relação espontânea estabelecida com nossos sentidos, a forma primordial do contato humano com a realidade. Conforme Jacinto do Prado Coelho (1977, p. 38), "Caeiro sai de si para as coisas; no seu modo de pensar a vida predomina o objeto". Em acordo com a existência caeriana, denunciando uma possível limitação das metafísicas dicotômicas, Pessoa escreve em um de seus textos filosóficos: "O sujeito ao ser pensado como sujeito é objecto" (Pessoa, 2006b, p. 46).

Caeiro sempre priorizará a existência direta, atual e real em detrimento dos produtos da consciência, que são indiretos e abstratos, uma generalização posterior da experiência sensorial. O exercício da consciência e o homem enquanto ser sapiente, estão longe de ocupar qualquer posição privilegiada em sua obra:

O quê? Valho mais que uma flor / Porque ela não sabe que tem cor e eu sei / Porque ela não sabe que tem perfume e eu sei, / Porque ela não tem consciência de mim e eu tenho consciência dela? / Mas o que tem uma coisa com a outra / Para que seja superior ou inferior a ela? / Sim, tenho consciência da planta e ela não tem de mim. / Mas se a forma da consciência é ter consciência, que há nisso? / A planta, se falasse, podia dizer-me: e o teu perfume! / Podia dizer-me: tu tens consciência porque ter consciência é uma qualidade humana / E eu não tenho consciência porque sou flor, não sou homem. / Tenho perfume e tu não tens, porque sou flor... (Pessoa, 2005, p. 130).

Se por um lado Caeiro não nega a existência da consciência como uma particularidade humana, por outro lado ele se nega a reconhecer qualquer tipo de supremacia na atividade ou nos frutos dela, abstendo-se inclusive de exercê-la como condiz ao tão consciente homem moderno: "Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre a cousas: / Só me obriga a ser consciente" (Pessoa, 2005, p. 153). Não que o poeta considere a experiência sensorial humana como algo inequívoco e universal, ele apenas reconhece que essa é a forma direta e primeira que nos é dada para experimentar a realidade em toda sua multiplicidade e diferença, ou seja, modo como ela está exposta originalmente para nós.

Ao contrário da consciência, a corporalidade na obra caeiriana pode ser vista em acordo íntimo com o real. Sem pensar no corpo como um mero conjunto de funções - em que caberia à consciência a decodificação das impressões captadas por esse aparato sensorial, administrado por uma alma independente, suprassensível e inexpiável - o corpo será considerado pelo poeta como o correlato, por excelência, de nossa existência. Só sabemos que existimos porque nosso corpo é coisa, matéria como todas as outras coisas, ele pode sentir e ser sentido entre as outras coisas que existem. Logo, lemos: "Creio mais no meu corpo do que na minha alma, / Porque o meu corpo apresenta-se no meio da realidade, / Podendo ser visto por outros, / Podendo tocar em outros" (Pessoa, 2005, p. 119).

A relação que o corpo mantém com a realidade será, dessa forma, mais precisa que aquela mantida pelo intelecto, porque é direta e suficiente em si. A partir dessa compreensão, o mestre reforça sua crítica à fugacidade das reflexões filosóficas e reafirma a contundência do corpo diante da realidade: "Brinca! Pegando numa pedra que te cabe na mão, / Sabes que te cabe na mão. / Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior? / Nenhuma, e nenhuma pode vir brincar nunca à minha porta" (Pessoa, 2005, p. 131).

A exterioridade de Caeiro é tal, que ele deseja, por vezes, saber de sua existência apenas por meio do reflexo do olhar alheio - a manifestação completamente material da presença de sua alteridade - e assim excluir qualquer referência a alguma interioridade pensada como impalpável e insondável: "Eu queria ter o tempo e o sossego suficientes / Para não pensar em cousa nenhuma, / Para nem me sentir viver, / Para só saber de mim nos olhos dos outros, reflectido" (Pessoa, 2005, p. 108).

A radicalidade da experiência caeriana permite ao poeta pastor reconfigurar várias noções familiares à filosofia tradicional, imbuindo-lhes de uma fisionomia afinada com sua prática de exteriorização para explicitar a existência direta das coisas. Pensada, por exemplo, nos moldes tradicionais - como algo abstrato, suprassensível, que habita nosso interior e de lá comanda nosso corpo - a alma é desprezada ou até mesmo alvo de achaques para o poeta. Contudo, o tema da alma não é só motivo de discordância em seus poemas, ele também tentará compor uma fisionomia para alma, distinta da convencional e em sintonia com a sua vivência explícita: "A alma mais perfeita é aquela que não aparece nunca - / A alma que está feita com o corpo / O absoluto corpo das cousas, / A existência absolutamente real sem sombras nem erros, / A coincidência exacta e inteira de uma coisa consigo mesma" (Pessoa, 2005, p. 137). Em outras palavras, a alma (não convencional) é vista por ele em acordo total com o corpo, sem qualquer dissensão entre um e outro. No limite, ela não seria outra coisa que não o próprio corpo.

A noção dos domínios referentes ao interior e ao exterior serão igualmente reconfigurados. Que o pensar remete a um processo interior, não é novidade. Por não ser sensível, tudo que é incerto, indireto e abstrato tem, para o poeta pastor, relação com alguma interioridade. No limite, entretanto, a existência da interioridade é duvidosa, pois, quiçá, aquilo que está confinado no interior, bem como a própria ideia de interioridade, correspondem apenas a alguma deturpação da realidade exterior.

Ser real quer dizer não estar dentro de mim. / Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade. / Sei que o mundo existe, mas não sei se existo. / Estou mais certo da existência da minha casa branca/ Do que da existência interior do dono da casa branca. / Creio mais no meu corpo do que na minha alma, / Porque o meu corpo apresenta-se no meio da realidade, / [...]. Mas a minha alma só pode ser definida por termos de fora. / Existe para mim - nos momentos em que julgo que efectivamente existe - / Por um empréstimo da realidade exterior do Mundo (Pessoa, 2005, p. 119).

Operando uma espécie de inversão do cogito cartesiano, cuja célebre máxima, "Cogito, ergo sum", sugere que a interioridade é o correlato mais confiável de nossa existência real, Caeiro não apenas coloca em dúvida seu teor interno, como também diz que a noção de existência da interioridade - se é que ela existe - só é possível graças a termos exteriores. Tanto que, em uma das definições que o poeta faz de si, sua relação com a casa branca que habita é reveladora: "Vivo no cimo dum outeiro / Numa casa caiada e sozinha, / E essa é a minha definição" (Pessoa, 2005, p. 55). Barbaras também pensa a exterioridade caeiriana como uma inversão do cogito cartesiano:

Pessoa consegue aqui uma inversão radical do cogito cartesiano: tenho certeza absoluta da existência externa, não tenho certeza da minha existência e do mesmo modo que, em Descartes, o pensamento ou reflexão era o modelo de toda evidência, em Pessoa a percepção da exterioridade é o modelo de qualquer evidência. Ora, se "ser real quer dizer não estar dentro de mim", é por terem uma dimensão interna que a significação e a interpretação devem ser rejeitadas. Por conseguinte, é através de uma redução ou negação da minha interioridade que posso atingir a presença das coisas. [...]. Mas isso não significa apenas que a interioridade e, portanto, a interpretação seja um obstáculo para o acesso às coisas: Pessoa quer dizer que não há interioridade, que ela possui só a realidade de uma ilusão, que, portanto, o sentido do ser é unívoco (Barbaras, 2011, p. 224).

Como uma afronta ao oráculo de Delfos - que, com suas palavras de ordem "conhece-te a ti mesmo", propõe ao homem o conhecimento interior como algo preponderante - sua recusa em definir-se pelo conhecimento de si, por termos internos, é justificada nos seguintes versos: "Não sei o que é conhecer-me. Não vejo para dentro. / Não acredito que eu exista por detrás de mim" (Pessoa, 2005, p. 147).

A experiência sempre precede a consciência, a exterioridade sempre precede a interioridade. "A posição Radical de Pessoa [Caeiro] a respeito da presença enraíza-se na descoberta do primado absoluto da exterioridade" (Barbaras, 2011, p. 223). Além do empenho de subtrair e desentulhar os sentidos do acúmulo de conhecimentos supérfluos, em busca da vivência direta do real, o mestre pastor também opera uma espécie de exteriorização de sua existência por meio de seus poemas, processo proeminente que caracteriza parte da propedêutica proposta por sua obra. Sobre esse movimento retrata Barbaras (2011, p. 225):

Não se trata apenas da exterioridade como determinação do que existe fora de mim (definição superficial de qualquer maneira já que não há, em rigor, interioridade), nem do espaço, oposto à consciência, mas sim da exterioridade como modo de ser, como excluindo qualquer forma de intimidade. [...] Assim, se ser uma coisa é não ser suscetível de interpretação, não é apenas porque nossa interioridade, necessariamente envolvida na interpretação, constitui um obstáculo ao reconhecimento da exterioridade enquanto tal, é também porque as coisas não tem nenhum sentido oculto ou íntimo que possa justificar uma interpretação. A crítica à filosofia e ao pensamento é uma consequência da determinação do Ser como exterioridade absoluta.

Se, por um lado, para Caeiro a realidade é o que é, assim, questioná-la é um equívoco e uma perda de tempo. Por outro lado, questionar quem questiona a realidade é um exercício constante em sua missão de desnudar a experimentação do real. Logo, ele questiona: "Se a alma é mais real / Que o mundo exterior, como tu, filósofo, dizes, / Para que é que o mundo exterior me foi dado como tipo da realidade? / Se é mais certo eu sentir / Do que existir a cousa que sinto - / Para que sinto (?)" (Pessoa, 2005, p. 119).

Nesse poema, suas interrogações podem ser voltadas não apenas às teorias do "filósofo", mas também ao próprio poeta (que, ao seu modo, também é filósofo, ou melhor, filosófico). Ao se dar conta dessa possibilidade, porém, ele logo diz: "Mas por que me interrogo, se não porque estou doente?" (Pessoa, 2005, p. 120). Para então concluir:

Nos dias certos, nos dias exteriores da minha vida, / Nos meus dias de perfeita lucidez natural, / Sinto sem sentir que sinto, / Vejo sem saber que vejo, / E nunca o Universo é tão real como então, / Nunca o Universo está (não é perto ou longe de mim, / Mas) tão sublimemente não-meu. (Pessoa, 2005, p. 120).

Embora tenha como meta o desnudar da existência, Caeiro sabe que sua tematização dos sentidos e da realidade ainda pode flertar, em alguns momentos, com resquícios de consciência, pois derivam de reflexões. Em sintonia direta e plena com a realidade, por exemplo, ele nem mesmo mencionaria os sentidos: "Ah, os nossos sentidos, os doentes que veem e ouvem! / Fossemos nós como devíamos ser/ [...]. Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida/ E nem repararmos para que há sentidos" (Pessoa, 2005, p. 67). Os sentidos não existem de forma autônoma, como uma faculdade independente do corpo e das coisas, o sentir é um nome generalizante que damos para o instante, sempre ímpar, em que a realidade encontra o corpo. Por conseguinte, não podemos abstrair a noção de sentir, separando-a da experiência das coisas que despertam os sentidos.

O "reparar para que há sentidos" é posterior, muito posterior ao sentir. O "repararmos para que há sentidos" cria os chamados "órgãos dos sentidos" e estes são tardios, ou seja, considerados a partir do imediato sentir, eles se apresentam como elucubrações posteriores e abstratas interpretações ou objetivações do sentir, melhor, dos sentires. Por isso, por serem tardios e já simbolização do sentir, os sentidos - ouça-se "órgãos dos sentidos" na objetivação e tematização científica, p. ex., na fisiologia, na neurologia - são "os doentes que veem e ouvem" (Fogel, 2012, p. 126).

O heterônimo em questão não ignora que, em alguma medida, a dificuldade em ser plenamente direto em suas exposições sobre a existência advém daslimitações da linguagem dos homens: "É que para falar dela [da existência] preciso usar da linguagem dos homens / Que dá personalidade às cousas, / E impõe nome às cousas. / Mas as cousas não têm nome nem personalidade: / Existem" (Pessoa, 2005, p. 52). Como uma espécie de tradutor, ele transita pela forma como os homens falam sobre as coisas para, através de sua poesia, mostrar e tornar acessível as próprias coisas.

Portanto, seu envolvimento com a linguagem é oscilante, pois apesar de lançar mão do uso menos direto, mais acessível aos volteios intelectuais dos homens indiretos, essa incursão será regulada e transfigurada por um uso sensível ao real, mais direto, que nasce da maneira como o poeta repara nas coisas: "Isso é talvez ridículo aos ouvidos / De quem, por não saber o que é olhar para as cousas, / Não compreende quem fala delas / Com o modo de falar que reparar para elas ensina" (Pessoa, 2005, p. 24).

Na conclusão do seu ensaio O arco e o cesto, o antropólogo Pierre Clastres reflete sobre como a relação mantida pelos índios Guayakis / Aché com a linguagem se distingue do uso que o homem branco, dito "civilizado", dela faz:

[...] o discurso ingênuo dos selvagens nos obriga a considerar o que poetas e pensadores são os únicos a não esquecer: que a lingua-gem não é um simples instrumento, que o homem pode caminhar com ela, e que o Ocidente moderno perde o sentido de seu valor pelo excesso de uso a que a submete. A linguagem do homem civilizado tornou-se completamente exterior a ele, pois é para ele apenas um puro meio de comunicação e informação. (Clastres, 2003, p. 143).

Embora a intenção deste trabalho não seja comparar o pensamento caeriano com o pensamento ameríndio, é significativo notar que existe similaridade entre a forma de ver o mundo de alguns povos originários e Caeiro, heterônimo reconhecido justamente por seu vínculo originário com mundo. Em A queda do Céu, por exemplo, quando fala da existência do homem branco e da relação deste com o mundo, o xamã yanomami Kopenawa constantemente se refere a um pensamento que se perdeu, se obscureceu, porque se distanciou da existência concreta das coisas:

No começo, a terra dos antigos brancos era parecida com a nossa. Lá eram tão poucos quanto nós agora na floresta. Mas seu pensamento foi se perdendo cada vez mais numa trilha escura e emaranhada. [...]. Por quererem possuir todas as mercadorias, foram tomados de um desejo desmedido. Seu pensamento se esfumaçou e foi invadido pela noite. Fechou-se para todas as outras coisas. Foi com essas palavras da mercadoria que os brancos se puseram a cortar todas as árvores, a maltratar a terra e a sujar os rios (Kopenawa e Albert, 2015, p. 407).

Tanto Kopenawa quanto Caeiro se referem ao pensamento do homem civilizado como um pensamento que se afastou do mundo real e se perdeu em abstrações. E as coincidências não param por aí, pois a forma como Kopenawa expressa o exercício do pensamento, materializando-o como sensação de coisas reais (uma trilha escura e emaranhada), também nos remete à forma como Caeiro sente e materializa o pensamento; (pensar incomoda como andar à chuva).

Imersos nas informações e nos conhecimentos acumulados ao longo de milênios, o homem desaprendeu a olhar diretamente e desinteressadamente para as coisas. Com isso, sua linguagem se perdeu do real, tendendo a deter-se mais em pensamentos que atribuem significado às coisas do que nas próprias coisas. Conforme Caeiro, considerando a expressividade das coisas, não há distinção entre a maneira de existir delas e a linguagem que lhes é própria. Em outras palavras, se o existir é a linguagem direta das coisas, tal linguagem não é linguagem alguma, mas as coisas mesmas. Assim, não seria necessário apelar às alusões indiretas, reflexões, simbolismos ou significados para se aproximar do real, basta apenas reparar nele. É para desentulhar e limpar os sentidos dos homens que o poeta vale-se da linguagem deles (e por isso ele pode incidir, às vezes, em seus artifícios abstratos). Porém, esse desvio, que não passa despercebido por ele, tem como função comunicar a esses homens os seus equívocos e, ao ensiná-los a desaprender tudo aquilo que aprenderam, mostrar-lhes o mundo desnudo e verdadeiro:

Se às vezes digo que as flores sorriem / E se eu disser que os rios cantam, / Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores / E cantos no correr dos rios... / É porque assim faço mais sentir aos homens falsos / A existência real das flores e dos rios./ Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes / À estupidez de sentidos... / Não concordo comigo mas absolvo-me / Porque não me aceito a sério, / Porque só sou essa cousa odiosa, um intérprete da Natureza, / Porque há homens que não percebem sua linguagem, / Por ela não ser linguagem nenhuma... (Pessoa, 2005, p. 56)

A relação mantida por Caeiro com a linguagem revela outra dimensão do seu trabalho de pastoreio e de sua vocação para mestre: a recondução dos homens falsos ao caminho das sensações verdadeiras e na direção da realidade. O poeta pastor exemplifica o tipo de equívoco cometido por esses homens, que pretendem generalizar, abstrair ou idealizar a vivência do real:

Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas. / Renque e o plural árvores não são cousas, são nomes. / Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem, / Que traçam linhas de cousa a cousa, / Que põem letreiros nas árvores absolutamente reais, / E desenham paralelos de latitude e longitude / Sobre a própria terra inocente e mais verde e florida do que isso!9 (Pessoa, 2005, p. 71)

O envolvimento com a linguagem pode ser indireto, como a dos homens falsos, ou pode ser revelador, como a do mestre. Contudo, este jamais idealizaria para si uma linguagem perfeita, isso é coisa de quem padece demasiado do pensar. Ele aceita tanto as suas limitações, como as da linguagem humana, de forma natural, algo com que devemos aprender a lidar, sem se esquecer, no entanto, desses limites: "Penso e escrevo como as flores têm cor/ Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me/ Porque me falta a simplicidade divina/ De ser todo só o meu exterior" (Pessoa, 2005, p. 39). Na dimensão da linguagem, sua postura de naturalidade e aceitação, portanto, se repete, sem ignorar que a linguagem é um desdobrar natural do homem: "Se nasci para falar, tenho que falar uma língua" (Pessoa, 2005, p. 148). Ele aceita suas inflexões como decorrentes de tal condição.

Em vista de um uso mais direto da linguagem, frequentemente o poeta pastor também lança mão de tautologias e repetições temáticas. Ele explica:

O que ouviu os meus versos disse-me: que tem isso de novo? / Todos sabem que uma flor é uma flor e uma árvore é uma árvore. / Mas eu respondi: nem todos, ninguém. / Porque todos amam as flores por serem belas, e eu sou diferente. / E todos amam as árvores por serem verdes e darem sombra, mas eu não. / Eu amo as flores por serem flores, directamente. / Eu amo as árvores por serem árvores, sem o meu pensamento (Pessoa, 2005, p. 128).

É possível notar que o uso da repetição temática serve também para reforçar aquilo que o pastor das sensações vem reiterando insistentemente em seus poemas: os pensamentos interferem na visão dos homens, fazendo com que eles deixem de ver a realidade, para deterem-se em projeções que não correspondem ao real, mas sim à consciência humana. Nas palavras de Brandão (s/d, p. 271):

[Trata-se de] um trabalho lento de desconstrução do arcabouço ideológico responsável pela criação do ser. Daí repetir ele muitas vezes o mesmo motivo, em suas variações racional, metafísica, religiosa, mística: 'Eu não tenho filosofia'; 'Há metafísica bastante em não pensar em nada'; 'Pensar em Deus é desobedecer Deus'; 'Tu, místico, vês uma significação em todas as coisas'.

Além de servir como imperativo afirmativo da singularidade da existência, a tautologia é também a forma encontrada para preservar as particularidades de cada coisa, livrando-as do subterfúgio das significações. Para Renaud Barbaras (2011, p. 225),

[...] essa tautologia toma várias formas, por assim dizer negativas, porque a função dela não é apenas dizer a presença; é, ao dizer a identidade da coisa com ela mesma, conter a tentação da interpretação ou da evocação, ou seja, evitar o risco permanente de compreender a coisa como sendo mais do que ela é.

Considerando ainda a relação caeiriana com a linguagem, lemos: "Procuro dizer o que sinto/ Sem pensar que o sinto. / [...]. E assim escrevo, ora bem, ora mal, / Ora acertando com o que quero dizer, ora errando" (Pessoa, 2005, p. 72). Na tentativa de ser direto, ele procura ser espontâneo, dispensando seus pensamentos indiretos para exprimir diretamente suas sensações. Ciente de que, "assim como falham as palavras quando queremos exprimir qualquer pensamento, / Assim faltam os pensamentos quando queremos pensar qualquer realidade" (Pessoa, 2005, p. 114), Caeiro aceita suas limitações com a naturalidade de quem sabe que isso faz parte de sua forma de existir, sem perseguir a perfeição ou balizar sua existência a um ideal, ele se mantém no real.

Ainda que não seja possível, por uma questão de concisão, explorar todas as consequências da posição assumida pela poesia de Caeiro, podemos notar que suas experiências que privilegiam a existência imediata em sua exterioridade absoluta, sem o intermédio das projeções da consciência, expressam, como uma ontologia própria, uma visão viável e suficiente de mundo, capaz de dar conta de forma original de problemas frequentados pela filosofia.

 

Conclusão

Antes da singularização de seu exercício, sem incorrer na cisão que prevaleceu ao longo do tempo, o discurso filosófico se desenvolveu sobretudo através do discurso poético. Na Odisseia, por exemplo, diante de um universo dominado por forças incompreensíveis e inexoráveis, destaca-se a astúcia que faz Ulisses agir racionalmente, refletir acerca da sua condição de modo a contornar ou lidar com o inexorável, seja ele natural ou sobrenatural. É possível compreender Ulisses como o herói que representa o prenúncio da supremacia da razão sobre a dimensão elementar, pré-reflexiva, que a precede. Nas palavras de Franklin Leopoldo e Silva (2018):

A viagem de Ulisses e os perigos que ele enfrenta representariam, nesse caso, a constituição da racionalidade como o instrumento privilegiado pelo qual o homem vai triunfar sobre o mundo encantado. A astúcia de Ulisses seria a primeira figura da razão e do seu papel de dominar o irracional, ou aquilo que em princípio se lhe opõe. E as vitórias de Ulisses podem ser entendidas, alegoricamente, como a demonstração de que a razão é capaz de superar todos os obstáculos e impor-se como o único critério de relação com o mundo, critério que mostra ao mesmo tempo a supremacia da razão.

Kant inclusive considera que a estreita relação entre poesia e filosofia foi salutar, enquanto essa ainda não havia desenvolvido suficientemente seu vocabulário específico10: "os primeiros filósofos foram poetas. É que foi preciso tempo até descobrir palavras para os conceitos abstratos; por isso, no início, os pensamentos supra-sensíveis eram representados sob imagens sensíveis [...] Em virtude da pobreza da linguagem naquela época só se podia filosofar em poesia" (Kant apud Suzuki, 1998, p. 55).

A experiência da razão, que prevaleceu no horizonte da tradição filosófica, emergiu também por intermédio do exercício poético. Além de servir de solo para as reflexões filosóficas, o meio poético também ofereceu o aparato discursivo para o desenvolvimento das reflexões e até da própria terminologia filosófica. É verdade que Kant reconhece que isso ocorreu apenas no contexto primitivo da filosofia, porque, até então, essa ainda não sabia como se referir às experiências intelectuais e abstratas. No entanto, se depois de tanto tempo sob os auspícios da razão, tanta coisa ainda se conserva opaca à sua sanha esclarecedora (inclusive a própria natureza da razão) - e o aparato discursivo desenvolvido por meio de seu exercício se mostrar limitado diante das demandas filosóficas que ultrapassam os limites filosóficos tradicionais -, talvez seja o momento da filosofia, como reconheceu Merleau-Ponty, se voltar para outras formas de experiência. Contudo, ainda que Merleau-Ponty tenha reconhecido essa necessidade, por estar demasiadamente preso às amarras do discurso filosófico, ele foi incapaz de avançar nesse sentido, ou pelo menos não tanto quanto Fernando Pessoa. Logo, tal como foi outrora, por conta de sua flexibilidade e abertura perante o mundo, não seria de se estranhar que seja um poeta a apresentar um novo horizonte para o filosofar.

Como vimos, a forma como a poesia de Pessoa frequenta a filosofia não se resume apenas à poetização desinteressada de perquirições filosóficas. Desse envolvimento entre esses dois campos nascem questões, surgem experiências, chega-se a conclusões hibridas, que podem se voltar tanto para o universo poético quanto para os domínios filosóficos. Embora a problematização das experiências na obra pessoana seja de fundo filosófico, é no horizonte criativo da arte que ela se desenvolve. Nesse horizonte, o exercício filosófico não será mais limitado pelas categorias e compromissos tradicionais da filosofia. Tal recurso permite que o poeta português não apenas extrapole alguns domínios habituais da filosofia, mas também coloque a possibilidade dessa extrapolação e seu fruto como problema para a própria filosofia, problema que por sua vez poderá ser novamente retomado por sua poesia. Pessoa inaugura uma forma de pensar que demanda a tessitura de recursos próprios que são possíveis graças a essa fusão entre poesia e filosofia.

Em seu ensaio Uma tarefa filosófica: ser contemporâneo de Pessoa, Alain Badiou defende que: "a linha de pensamento singular desenvolvida por Fernando Pessoa é tal que nenhuma das figuras estabelecidas da modernidade filosófica está apta a sustentar sua tensão" (Badiou, 2002, p. 53 e 54). Enfim, se Badiou está certo e o pensamento-poema de Pessoa abre um campo pouco explorado que ajuda a inaugurar uma contemporaneidade que as categorias tradicionais da filosofia já não são mais capazes de suportar, é compreensível que essa novidade só seja possível através de um liame entre o poético e o filosófico. Com efeito, sobre o vínculo entre o trabalho do poeta e do filósofo, escreve Fernando Pessoa (2005, p. 250): "Não nos espantemos, que uma coisa é o poeta a outra o filósofo ainda que sejam a mesma". Segundo Barbaras (2011, p. 229), "Pessoa encarna uma das direções do nosso futuro filosófico e é por isso que, como Badiou o nota, quando lemos Pessoa, ficamos rapidamente convencidos de que é inútil ler outros livros, que tudo está ali".

 

Referências

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Recebido em 28.03.2018
Aceito em 15.10.2018

 

 

* Agradeço e dedico este artigo a Renaud Barbaras, o primeiro a me alertar sobre a necessidade de se estudar o teor filosófico da obra de Fernando Pessoa. Tanto seu estímulo como seu ensaio sobre Pessoa me inspiraram a estudar a originalidade filosófica da obra pessoana durante meu doutorado. Agradeço ao CNPQ pelo financiamento de meu pós-doutorado, no qual dou continuidade à mesma missão do doutorado. Agradeço também ao Leonardo Marques pela leitura e revisão deste ensaio.
1 Em sua Tábua Bibliográfica, anota Pessoa (1993, p. 250): "As obras heterónimas de Fernando Pessoa são feitas por, até agora, três nomes de gente — Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos. Estas individualidades devem ser consideradas como distintas da do autor delas. Forma cada uma uma espécie de drama; e todas elas juntas formam outro drama". Além dos três heterônimos, o universo pessoano é habitado por Pessoa ortônimo, a saber: a figura do próprio Pessoa dentro desse universo; pelas inúmeras personalidades heteronímicas (possivelmente mais de setenta), isto é, figuras singulares que, no entanto, não chegaram a se desenvolver plenamente como os heterônimos; e pelo semi-heterônimo Bernardo Soares, que não é um heterônimo, nem Pessoa ortônimo e tampouco uma personalidade heteronímica, mas ao mesmo tempo é um pouco de tudo isso.
2 Curiosamente, o furor especulativo de Fausto o conduzirá a uma experiência radical da consciência, ao tentar coincidi-la consigo mesmo. Análoga à redução transcendental de Husserl, também Fausto se depara com o vazio derivado dessa experiência radical do pensar que se dobra sobre si: "Hoje nenhuma imagem, nenhum vulto / Evoco em mim... Só um deserto aonde / Não a cor de um areal, nem um ar morto/ Posso sonhar... Mas tendo só a idéia, / Tendo da cor o pensamento apenas, / Vazio, oco, sem calor nem frio, / Sem posição, nem direcção [...] / Só o vazio lugar do pensamento" (Pessoa, 1991, p. 10). Nesse sentindo, Carlos Felipe Moisés escreve sobre tal experiência cultivada na obra pessoana: "[Ele] conduz o pensamento à suprema rarefação de seu objeto, projetando-o na atmosfera da 'reflexão transcendental', de que fala Husserl, em que o pensamento se converte em objeto de si mesmo, para aí encontrar o que aí sempre esteve: a originária patência do nada" (Moisés, 1999, p. 71). Kujawski também escreve sobre tal coincidência: "Vê-se, pois, como Fernando Pessoa, em sua febre de lucidez, andava próximo da consciência pura fenomenológica, pela mesma época em que a fenomenologia começa a ganhar terreno por obra de Husserl" (Kujawski, 1967, p. 53).
3 Eis o parágrafo inicial d'O Visível e o Invisível: "Vemos as coisas mesmas, o mundo é aquilo que vemos - fórmulas desse gênero exprimem uma fé comum ao homem natural e a filósofo desde que abre os olhos, remetem para uma camada profunda de opiniões mudas, implícitas em nossa vida. Essa fé tem isso de estranho: se procurarmos articulá-la numa tese ou num enunciado, se perguntarmos o que é este nós, o que é este ver e o que é esta coisa ou este mundo, penetramos num labirinto de dificuldades e contradições" (Merleau-Ponty, 2000, p. 15).
4 Conforme Barbaras (2011, p. 215): "De certa forma, a ontologia de Merleau-Ponty não é senão a tentativa de refazer uma fenomenologia da percepção levando em consideração os obstáculos da linguagem tradicional e, portanto, através da linguagem mais adequada e necessariamente nova. Ele escreve numa nota do Visível e o Invisível 'a ontologia seria a elaboração das noções que devem substituir a de subjetividade transcendental, as de sujeito, objeto, sentido - a definição da filosofia comportaria a elucidação da própria expressão filosófica'".
5 Tal experiência foi justamente o tema de minha tese de doutorado: "O desassossego e o pensamento poético-filosófico de Fernando Pessoa".
6 Considerando tal aspecto da obra pessoana, escreve Seabra (1991, p. 17): "estamos, com efeito, perante uma obra proteiforme, não apenas enquanto criação de uma pluralidade de linguagens, mas pelo seu apelo a uma pluralidade de leituras, tanto dos textos poéticos como dos textos críticos que os prolongam e repercutem". O desassossego não deve ser compreendido como um elemento de unidade na obra de Pessoa, ao contrário, sua incidência é justamente aquilo que está no cerne da característica dispersão, discrepâncias, instabilidade e pluralidade da produção pessoana. Elemento negativo, em sintonia com a compreensão que o poeta tem sobre o exercício da filosofia: "O caminho da Filosofia não é partir do conhecido para o desconhecido, mas do desconhecido no conhecido para o desconhecido em si mesmo" (Pessoa, 2006b, p. 20).
7 Ao comparar a experiência Zen à caeiriana, Leyla Perrone-Moisés também diz que o mestre heterônimo não nega absolutamente o pensar: "nem o Zen, nem Caeiro, ao recusarem o intelectualismo e ao promoverem o conhecimento sensorial, pretendem que o homem deva ser só instintos. O próprio do animal humano é ter essa mente-corpo capaz de um conhecimento que é ao mesmo tempo físico e "espiritual". O que se nega aí é o pensamento analítico e o que se exalta é um pensamento sintético, também exclusivo do homem" (Perrone-Moisés, 1982, p. 124).
8 Caeiro, inclusive, se mostra avesso ao ato de comparar ou construir metáforas, conforme podemos ler em um de seus poemas: "Mas para que me comparo com uma flor, se eu sou eu / E a flor é a flor? / Ah, não comparemos coisa nenhuma, olhemos. / Deixemos análises, metáforas, símiles" (Pessoa, 2005, p. 130). Nos versos sequentes, ele explica o porquê: "Comparar uma coisa com outra é esquecer essa coisa. / Nenhuma coisa lembra outra se repararmos para ela. / Cada coisa só lembra o que é / E só é o que nada mais é. / Separa-a de todas as outras o abismo de ser ela. / (E as outras não serem ela.) / Tudo é nada sem outra coisa que não é" (Pessoa, 2005, p. 130).
9 Como anteriormente dissemos, nossa intenção nesse momento não é comparar as experiências de Caeiro com a dos povos ameríndios, todavia, vale a pena mencionar sua assombrosa semelhança. Kopenawa também fala sobre o costume dos homens brancos em cobrir de traços sem sentido real a terra, reduzi-la a mapas: "Com nossas palavras, dizemos que os brancos desenharam sua terra para retalhá-la. Primeiro cobriram-na de traços entrecruzados, formando recortes, e, no meio deles, pintaram manchas redondas. [...]. Esse traçado de linhas e pontos, como manchas de onça, parece deixá-la muito mais bonita. Porém, esses desenhos são em seguida colados num livro e aqueles que querem plantar sua comida nesses pedaços têm de devolver seu valor" (Kopenawa e Albert, 2015, p. 327).
10 Embora reconhecesse a possibilidade e as vantagens da filosofia frequentar e refletir sobre as experiências da poesia, Kant considerava desnecessária e até prejudicial a aproximação excessiva entre elas, pois a filosofia poderia contaminar a sofisticação abstrata de seu arcabouço conceitual com outras formas mais sensíveis de linguagem, que não contribuem para a forma lógica de seu discurso.

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