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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.25 no.2 Goiânia maio/ago. 2019

http://dx.doi.org/10.18065/RAG.2019v25n2.11 

RELATOS DE PESQUISA

 

O Elogio do poético em Renaud Barbaras

 

The praise of the poetic in Renaud Barbaras

 

El elogio del poético en Renaud Barbaras

 

 

Claudinei Aparecido de Freitas da Silva

Professor dos cursos de Graduação e de Pós-Graduação (Stricto Sensu) em Filosofia da UNIOESTE - Campus Toledo, com Estágio Pós-Doutoral pela Université Paris 1 - Panthéon-Sorbonne (2011/2012). Escreveu "A carnalidade da reflexão: ipseidade e alteridade em Merleau-Ponty" (São Leopoldo, RS, Nova Harmonia, 2009) e "A natureza primordial: Merleau-Ponty e o 'logos do mundo estético'" (Cascavel, PR, Edunioeste, 2010). Organizou "Encarnação e transcendência: Gabriel Marcel, 40 anos depois" (Cascavel, PR, Edunioeste, 2013), "Merleau-Ponty em Florianópolis" (Porto Alegre, FI, 2015), "Kurt Goldstein: psiquiatria e fenomenologia" (Cascavel, PR, Edunioeste, 2015), Festschrift aos 20 anos do Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da UNIOESTE (Cascavel, PR, Edunioeste, 2016), em parceria com Franco Riva, Compêndio Gabriel Marcel (Cascavel, PR: Edunioeste, 2017) e "A fenomenologia no oeste do Paraná: retrato de uma comunidade" (Toledo, PR, Vivens, 2018). Traduziu Fragmentos filosóficos (1909-1914) de Gabriel Marcel (Cascavel, PR, Edunioeste, 2018). E-mail: cafsilva@uol.com.br

 

 


RESUMO

O artigo se propõe a um balanço fenomenológico acerca do estatuto do poético tal qual é instituído por Renaud Barbaras. Tomando como linha de frente, os trabalhos de Merleau-Ponty, Barbaras, no entanto, busca ultrapassá-la ao vislumbrar outro horizonte possível para além da habitual divisão entre filosofia e literatura. A superação desse limite parece encontrar na obra poética de Fernando Pessoa uma amostra viva de interlocução. O que se descobre nessa obra, como pano de fundo, é uma aliança entre poesia e metafísica de modo que a práxis literária, enquanto "não-filosofia", mantém, a bem da verdade, uma "vida clandestina" como experiência de pensamento. O artigo conclui ensejando outros recortes possíveis que dão vazão a essa mesma perspectiva de análise, como se encontra, por exemplo, na criação literária de Clarice Lispector ou, ainda, no ensaísmo poético-filosófico de Bento Prado Jr.

Palavras-chave: Renaud Barbaras; Poético; Merleau-Ponty; Fernando Pessoa; Clarice Lispector.


ABSTRACT

The article proposes to a phenomenological balance about the poetic statute as established by Renaud Barbaras. Taking Merleau-Ponty's works as the front line, Barbaras, however, seeks to overcome it by glimpsing another possible horizon beyond the usual division between philosophy and literature. The overcoming of this limit seems to find in Fernando Pessoa's poetic work a living example of interlocution. What is discovered in this work, as a backdrop, is an alliance between poetry and metaphysics so that literary praxis, as "non-philosophy", holds, for the truth, a "clandestine life" as an experience of thought. The article concludes with other possible clipping that gives rise to this same perspective of analysis, as found, for example, in the literary creation of Clarice Lispector or, still, in the poetic-philosophical essayism by Bento Prado Jr.

Keywords: Renaud Barbaras; Poetic; Merleau-Ponty; Fernando Pessoa; Clarice Lispector.


RESUMEN

El artículo se propone a un balance fenomenológico acerca del estatuto del poético tal cual es instituido por Renaud Barbaras. Tomando como línea de frente, los trabajos de Merleau-Ponty, Barbaras, sin embargo, busca superarla al vislumbrar otro horizonte posible más allá de la habitual división entre filosofía y literatura. La superación de ese límite parece encontrar en la obra poética de Fernando Pessoa una muestra viva de interlocución. Lo que se descubre en esta obra, como telón de fondo, es una alianza entre poesía y metafísica de modo que la praxis literaria, en cuanto "no filosofía", mantiene, a la verdad, una "vida clandestina" como experiencia de pensamiento. El artículo concluye con otros recortes posibles que dan flujo a esa misma perspectiva de análisis, como se encuentra, por ejemplo, en la creación literaria de Clarice Lispector o, aún, en el ensayismo poético-filosófico de Bento Prado Jr.

Palabras clave: Renaud Barbaras; Poético; Merleau-Ponty; Fernando Pessoa; Clarice Lispector.


 

 

Introdução

Frequentador e, portanto, herdeiro direto da tradição fenomenológico-existencial, Renaud Barbaras dispensa, no corpo de sua obra, uma atenção sui generis acerca do estatuto do poético. Esse trabalho se opera, prioritariamente, a partir de um recorte crítico da interface entre a própria literatura com a filosofia. O que o seu contributo busca resguardar é que ambos os discursos se confundem para além de qualquer paralelismo ou até mesmo sobreposição hierárquica. É, pois, operando esse agenciamento que a criação poética de Fernando Pessoa parece ocupar um lugar central como pano de fundo. Ora, é essa hipótese de trabalho que avaliaremos aqui ao tentar reconstituir alguns aspectos conjugados à luz desse colóquio sem perder de vista, ainda, outras produções literárias como a poesia de Clarice Lispector e a verve poético-filosófica de Bento Prado Jr.

 

Literatura e filosofia

Numa trilha aberta pela obra de Merleau-Ponty, Renaud Barbaras visa a aprofundar um importante insight fenomenológico quanto ao lugar do poético. A perspectiva em que se coloca ganha decisivos contornos num movimento que parte do autor da Phénoménologie de la Perception (1945) para, enfim, seprojetar além, bem além. É nessa direção que Barbaras é mais que um intérprete. Ele convida o seu leitor a refazer uma experiência de pensamento; experiência essa que retoma um lastro especulativo importante que, aliás, o próprio Merleau-Ponty teria avivado ao longo de suas reflexões, ao se reportar ao fenômeno da fé perceptiva, isto é, ao caráter enigmático do mundo, das coisas mesmas tais quais aparecem. Assim, quando Merleau-Ponty retoma a lição de fundo de Husserl (2001, p. 74): "é a experiência [...] ainda muda, que se trata de conduzir à expressão pura do seu próprio sentido"1, Barbaras, entretanto, identifica uma dificuldade de princípio:

[...] como passar da experiência dessa existência, que é uma coisa óbvia - que é o que há de mais óbvio - a uma determinação da significação, ou seja, do sentido de ser dessa experiência? O problema é um problema de expressão. Como dizer aquilo que precede a linguagem, que é obviamente de outra ordem, alheia à da linguagem? (Barbaras, 2011, p. 213-214).

Ao situar tal problema, de passagem, inevitavelmente embaraçoso aos próprios fenomenólogos, Barbaras bem observa que a única maneira de atingir a pura presença das coisas é ficar silencioso, de modo que uma "fenomenologia da percepção" sob esse aspecto se revela contraditória, vindo a se destruir, em si mesma, como filosofia. "A dificuldade"

- indica ele - "é, portanto, a de achar uma linguagem que não traía o sentido da presença, uma linguagem das coisas mesmas, adequada ao seu silêncio" (Barbaras, 2011, p. 214). Esse problema, por si só, já é o bastante no tocante a certo limite do projeto fenomenológico em sua tentativa de dar conta da presença do mundo via a percepção. Ora, se quisermos mesmo superar tal impasse não há outra saída senão o de nos confrontarmos com o problema da expressão o que, paradoxalmente, nos conduz a uma reflexão sobre o estatuto da linguagem.

Antes de tudo, diversamente dos animais, o homem é alguém que interroga e que, portanto, fala sempre em presença viva das coisas, do mundo. Dessa forma, não podemos dispensar de refletir sobre a nossa ideia da linguagem à luz dessa evidência prévia. Para isso, o fenomenólogo é justamente aquele que jamais ousa apartar-se da linguagem, dos meiosde expressão ou, se quiser, da arte em geral. É via a estética e, em particular, a literatura, que esse estado de questão pode ser melhor reposto noutra chave de leitura. O que Barbaras avista é o fato de que Merleau-Ponty não teria concluído que o fenomenólogo precisasse tematizar o estatuto da expressão filosófica em função mais precisamente de certo limite incontornável:

[...] essa limitação consiste na inadequação entre as categorias usadas na descrição, categorias inerentes à linguagem comum e filosófica, e, por outro lado, o modo de ser do mundo descrito. Na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty solicita o tempo todo os conceitos mais básicos da metafísica - sujeito/objeto, consciência/natureza, corpo/espírito - mesmo que seja para mostrar que a experiência escapa dessas dualidades e que o seu sentido deve ser procurado para além dessas categorias. Ele encontra-se numa situação desconfortável uma vez que, longe de poder apoiar-se na linguagem, ele deve, por assim dizer, lutar contra ela o tempo todo, tentar fluidificar a estrutura rígida da linguagem filosófica, criticar sem parar conceitos que, por outro lado, ele não pode deixar de usar (Barbaras, 2011, p. 215).

Pois bem, a fim de superar esse nível de dificuldade, será preciso interrogar a expressão mesma, o que, por si só, exige uma tomada de consciência quanto à natureza própria da filosofia, quer dizer, implica uma explicitação de uma camada originária, de um Ser, situado aquém das categorias clássicas, em sua rigidez absoluta. Não resta outra saída senão a de o filósofo interrogar a própria condição de possibilidade de sua tarefa:

A redução da filosofia a uma interrogação pura, que envolve a própria filosofia e, por outro lado, a pergunta pelo estatuto da linguagem filosófica são duas consequências da descoberta de que a filosofia tem que pensar aquilo que lhe escapa, o mundo não-filosófico, ou seja, alheio à linguagem mundana da vida e da percepção no qual ela enraíza-se e do qual, afinal de contas, ela deriva a sua própria possibilidade (Barbaras, 2011, p. 216).

Esse mundo não filosófico já é um campo fundamental no que diz respeito a essa tarefa de um retorno às coisas mesmas, pela qual a ontologia "interrogativa", a todo tempo, se pergunta pelo sentido de ser da presença ou da experiência originária, do "há" (il y a). Em termos merleau-pontyanos, esse pensamento que aflora no campo da filosofia, mas também fora dele, não redunda na forma de uma filosofia explícita. Ele até recusa, por assim dizer, esse estatuto: é uma não-filosofia. Como lembra Barbaras (2011, p. 217):

A expressão "não-filosofia" deve ser entendida ao mesmo tempo como negação da filosofia no sentido tradicional ou oficial, ou seja, como uma crítica às categorias da metafísica, mas também como certa filosofia (como o indica a referência mantida, ainda que negativamente, à filosofia) cujo intuito é abranger aquilo que não é "filosófico", a saber, o fundo obscuro na qual ele se enraíza, pensar a camada originária de existência que precede qualquer pensamento. Assim, a não-filosofia não é uma negação ativa e militante da filosofia em nome de uma reivindicação positivista, mas sim uma radicalização da filosofia que a conduz até a sua própria fronteira: ela corresponde à tentativa de integrar na filosofia ou, antes, de pensar aquilo que resiste à filosofia (na acepção tradicional).

Tal é a perspectiva que se abre quando, enfim, se busca assumir e, ao mesmo tempo, superar o paradoxo antes posto, ou seja, de dizer o silêncio, desituar onde ele advém. É propriamente dentro desse quadro mais amplo que Merleau-Ponty teria dado vazão sobre a importância da arte como amostra viva ou privilegiada daquilo que ele chamara de "pensamento fundamental" na história recente. É o que atesta Barbaras (2011, p. 218):

A arte, que, com certeza, não é filosofia, pode ser, além disso, não-filosofia desde que ela se dê como finalidade a expressão de uma experiência originária, que não é senão a da mera presença do mundo. Na verdade, Merleau-Ponty trabalha de uma maneira privilegiada sobre a pintura porque, sendo ela uma expressão muda, sem linguagem, ela enseja definir o sentido em estado nascente, antes das categorias linguísticas.

De outra parte, volta a apreciar Barbaras (2011, p. 218):

[...] a força da pintura é também a sua limitação: como ela se situa fora da linguagem, é preciso da intervenção do filósofo (mesmo que seja o próprio pintor) para mostrar e tematizar esse sentido; ela não é a sua própria explicação. A pintura fica um objeto para o filósofo e a filosofia que trata de pintura é uma estética, mesmo que ela queira pôr em evidência um alcance ontológico na própria pintura. Assim, o privilégio da pintura reverte-se, pois ela fica dependente da interpretação do filósofo.

Em face desse limite, merleau-pontyanamente circunscrito2, Barbaras encontra noutra forma de arte ou experiência estética, o verdadeiro alcance pretendido. Na verdade, "a desvantagem da literatura é uma vantagem" - bem reconhece ele - "pois ela trabalha com palavras e pode, nesse sentido, proporcionar a sua própria interpretação" (Barbaras, 2011, p. 218). O saldo da experiência literária já se vê: ele se mantém isento das categorias filosóficas. Fato é que o próprio Merleau-Ponty já teria entrevisto, na literatura, uma não-filosofia já realizada, ou seja, uma expressão livre do que ele chama "existência total do mundo". Aliás, o apreço às obras literárias cada vez mais vai tomando corpo ao longo de sua produção (Merleau-Ponty, 1969; 1996; 2011; 2013). Já em Sens et Non-sens, por exemplo, ele observa sobre o quanto a metafísica nunca deixou de "levar uma vida ilegal" na literatura sob forma de "uma metafísica em ato". Quer dizer, "a tarefa da literatura e aquela da filosofia já não mais podem ser separadas" (Merleau-Ponty, 1996, p. 36), uma vez que a "obra de um grande romancista está sempre carregada de duas ou três ideias filosóficas" (Merleau-Ponty, 1996, p. 34).

É verdade também - ainda retrata ele - que "a função do romancista não seja tanto a de tematizar essas ideias, mas a de fazer existir diante de nós à maneira das coisas" (Merleau-Ponty, 1996, p. 34). Eis porque "na presença de um romance, de um poema, de uma pintura, de um filme, válidos, sabemos que houve contato com alguma coisa" (Merleau-Ponty, 1996, p. 7). Disso resulta a lapidar passagem de Le Visible et L'Invisible: "O ser é o que exige de nós criação para que dele - enquanto criação - tenhamos experiência. Fazer a análise da literatura neste sentido: como inscrição do Ser" (Merleau-Ponty, 1964, p. 251). Ora, é o sentido último dessa "inscrição", por definição, "ontológica", que permite instituir um novo estatuto da obra literária. Quer dizer, há, nessa obra, um sentido mais profundo jamais redutível a uma mera diferença entre filosofia e literatura tal qual historicamente constituída; algo que, segundo Barbaras, Merleau-Ponty não teria sido suficientemente radical e, por isso mesmo, acaba por não ir mais longe.

Merleau-Ponty mantém uma diferença entre literatura e pensamento. [...] A arte fica um objeto de reflexão para o filósofo, e a filosofia uma estética. Mas não é apenas culpa de Merleau-Ponty; a maior parte dos escritores fica dependente dessa divisão entre o discurso filosófico e o uso literário da linguagem, entre metafísica e arte (Barbaras, 2011, p. 219).

Para além, pois, dessa "divisão", Barbaras, desde já, indica uma grande exceção: a obra de Fernando Pessoa.

 

O elogio do poético

Tal obra, sob o nome de Alberto Caeiro, observa Barbaras (2011, p. 220):

[...] é a mais eminente realização dessa ideia da literatura como expressão pura da existência total do mundo e que, portanto, ela é o melhor acesso que se possa imaginar ao mundo da experiência pura: em outras palavras, a obra de Pessoa é a própria não-filosofia realizada. Segue-se daí que ela deve ser situada para além da distinção entre arte e metafísica, de modo que a alternativa proposta por Merleau-Ponty perde todo o sentido.

A polarização discursiva carece de sentido porque uma obra como a de Alberto Caeiro é, indistintamente, "poesia e pensamento e, por conseguinte, unidade absoluta da criação e da reflexão sobre o sentido da criação" (Barbaras, 2011, p. 220). Nessa medida, avalia ainda Barbaras (2011, p. 220), a produção de Pessoa seja, provavelmente,

[...] a primeira realização da literatura no sentido novo de uma "inscrição do Ser" Talvez Merleau-Ponty não conhecesse F. Pessoa, uma vez que pouquíssimas pessoas falavam dele na França naquela época. Mas, talvez o conhecesse, mas não pudesse lhe reconhecer a importância.

Badiou, por exemplo, nota Barbaras (2011, p. 220), reconhecera esse mérito do escritor português compreendendo a singularidade do seu trabalho

[...] por uma nitidez quase seca do dizer poético e é por isso que ele conseguiu incluir no próprio charme poético uma dose excepcional de abstração. O poema de Pessoa não procura seduzir nem sugerir: ele é, a ele mesmo, a sua própria verdade.

Contra Platão, Badiou (1998, p. 68) até sustenta que "Pessoa parece nós dizer que a escrita não é uma obscura reminiscência, sempre imperfeita, de um alhures ideal. Que ela é, pelo contrário, o próprio pensamento, tal qual". Se for assim, como, então, Barbaras identifica essa comunhão de princípio que estaria presente na obra de Pessoa?

Ora, é num dos heterônimos, Alberto Caeiro, que essa identidade transparece em todo o seu fulgor. Dois textos, nesse sentido se mostram programáticos: O Guardador de Rebanhos (1911-1912) e Poemas Inconjuntos (1913-1915). Barbaras (2011, p. 221) distingue três níveis na expressão da existência pura:

[...] uma tematização da impotência do pensamento em relação à coisa; uma determinação do Ser como exterioridade pura e, portanto, uma crítica a interioridade; enfim, uma tautologia desembocando numa redução radical de todas as categorias.

Ocorre que Pessoa denuncia não apenas a impotência da razão em geral, mas, o fato mesmo de que ela "impede de ver, de modo que o sentir exige como mediação uma crítica ao pensamento e até uma luta contra o pensar: nesse sentido, o acesso ao imediato da presença não é imediato" (Barbaras, 2011, p. 221). A título de exemplo, recitemos esses breves versos:

Creio no mundo como num malmequer / Porque o vejo. Mas não penso nele/porque pensar é não compreender.../ O Mundo não se fez para pensarmos nele / (Pensar é estar doente dos olhos) / Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.../ Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... Há METAFÍSICA bastante em não pensar em nada. / O que penso eu do mundo? / Sei lá o que penso do mundo! / Se eu adoecesse pensaria nisso. / Que idéia tenho eu das cousas? / Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos? / Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma / E sobre a criação do Mundo? / Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos / E não pensar.É correr as cortinas / Da minha janela (mas ela não tem cortinas). (Pessoa, 1980a, p. 137; 139).

Nessas passagens, fica realmente claro que a crítica ao pensamento em geral põe em xeque não só o limite conceitual em que se encerra, mas também o modo como que, tradicionalmente, a metafísica formula suas questões. Para empregar a metáfora crítica de Gabriel Marcel (1935, p. 170), o pensamento se "degrada", isto é, há uma espécie de "corrupção do pensamento" como a forma mesma de uma doença do sentir e do viver. A oposição não é entre vida e metafísica, mas entre uma metafísica enferma, a que pensa em termos causais. A doença é só mais um sintoma dessa degeneração.

Pessoa (1980a, p. 137) prossegue: "Eu não tenho filosofia: tenho sentidos ... / Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é / Mas porque a amo, e amo-a por isso, / Porque quem ama nunca sabe o que ama / Nem sabe por que ama, nem o que é amar". Barbaras lê esses versos, com um tom muito peculiar:

[...] o escritor vê no amor uma relação com a presença, uma "consciência" desprovida de qualquer dimensão intelectual ou reflexiva; o amor e uma doação sem tematização, nem justificativa, nem reflexividade: é por isso que, nele, a coisa aparece tal como ela é. Segue-se daí que o amor no sentido da relação amorosa com alguém deve ser entendido como uma modalidade de uma relação mais profunda com o Ser, relação que lhe permite aparecer sem ficar encoberto por uma significação, como pura presença (Barbaras, 2011, p. 222).

Essa dimensão mais profunda pela qual Pessoa se vê imerso aponta, sem dúvida, os limites de uma teoria do conhecimento, em sentido clássico. Nem racionalismo, nem empirismo, mas reenvio a uma unidade originária do sentir que, portanto, é prévia a toda significação já que "... ser uma cousa é não significar nada. /Ser uma cousa é não ser susceptível de interpretação" (Pessoa, 1980a, p. 172). A importância de Pessoa dizer isso está em compreender que não se trata de as coisas não significarem nada, mas que o próprio ser da coisa consiste em excluir a significação. É que "a coisa exclui a interpretação não somente por falta de significação, mas também por excesso de presença: há uma fascinação e uma saturação da presença que não deixa margem para interpretação" (Barbaras, 2011, p. 223).

Pessoa ainda impressiona por conta desses singelos versos: "A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas / Age como um deus doente, mas como um deus / Porque embora afirme que existe o que não existe/Sabe como é que as coisas existem, que é existindo, / Sabe que existir existe e não se explica" (Pessoa, 1980a, p. 179). A maneira como o poeta qualifica esse nível de experiência salta os olhos. Ora, é essa evidência primeira que Alberto Caieiro dá vida a todo momento. Ele diz ou desvenda, conforme ilustra Barbaras (2011, p. 223) como

[...] algo que, por "essência", não tem nada a ver com a significação, e, portanto, com a linguagem. Daí a dificuldade central: como dizer aquilo que escapa à ordem do sentido? Como dizer sem encobrir ou trair a presença do que está sendo dito? A escrita de Pessoa pode ser descrita como procedendo totalmente dessa exigência.

O sentido da presença assume, nesse contexto, um papel significativo. Ele tem a ver com o nossoenraizamento no mundo, o sentido mesmo do ser no mundo. É o que, aliás, Pessoa aviva à luz de certa desconstrução da ideia de subjetividade:

SEJA O QUE FOR que esteja no centro do Mundo, / Deu-me o mundo exterior por exemplo de Realidade, / E quando digo "isto é real", mesmo de um sentimento, / Vejo-o sem querer em um espaço qualquer exterior, / Vejo-o com uma visão qualquer fora e alheio a mim. / Ser real quer dizer não estar dentro de mim. / Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade. / Sei que o mundo existe, mas não sei se existo. / Estou mais certo da existência da minha casa branca / Do que da existência interior do dono da casa branca (Pessoa, 1980a, p. 181).

Essa passagem deixa claro que o caráter de evidência do cogito cartesiano, da consciência translúcida que se basta a si mesma é, no fundo, dependente daquela evidência primeira antes aludida: a presença mesma do mundo, das coisas. Ora, é, em sentido próprio, essa evidência originária, fonte perceptiva do enigma do mundo que é anterior à filosofia: "Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos, / E o primeiro fato merece ao menos é precedência e o culto. / Sim, antes de sermos interior somos exterior. / Por isso somos exterior essencialmente" (Pessoa, 1980a, p. 182). Como comenta Barbaras (2011, p. 224): "A precedência cronológica transforma-se numa precedência ontológica (somos exterior antes de sermos interior) e essa é interpretada como uma determinação essencial (somos exterior essencialmente)". Como explicita Pessoa (1980b, p. 28):

A metafísica é a procura da verdade partindo do mais absoluto dos dados da experiência. Esse dado é a coexistência do sujeito e do objeto, de objetos do conhecimento e do sujeito cognoscente. Mas a metafísica é a procura da verdade, que só pode ser concebida como uma; por isso, a metafísica é a tentativa de reduzir a um monismo o dualismo do datum fundamental da experiência.

O que Barbaras capta, uma vez mais, no poeta lusitano, é esse sentido pré-humano, carnal (Silva, 2009) evocado por Merleau-Ponty. Não há busca metafísica radical impermeável à experiência, ou seja, indiferente a essa coexistência entre eu e outrem, espírito e natureza. A exterioridade de que fala Pessoa não é uma determinação de fora, meramente justaposta à interioridade. Ela implica, por assim dizer, que

[...] que nenhuma realidade pode envolver dimensões escondidas, qualquer forma de invisibilidade, que toda realidade desdobra-se no exterior e, portanto, consiste na sua aparência ou visibilidade. A exterioridade é uma negação de qualquer forma de interioridade e não apenas da interioridade psíquica (Barbaras, 2011, p. 225).

Barbaras retoma a questão fundamental: como dizer essa realidade última, externa, alheia, portanto, à linguagem? Observa ele que "o acesso à presença é possível mediante um trabalho de exteriorização, de redução do pensamento e da interpretação, o que Pessoa chama de 'aprendizagem de desaprender'" (Barbaras, 2011, p. 225). Ora, "a dimensão poética própria a Pessoa advém dessa tentativa de captar na linguagem aquilo que é totalmente desprovido de relação com o sentido e a linguagem. Assim se compreende o recurso à tautologia" (Ibidem). Acerca disso, ainda vislumbra Pessoa (1980a, p. 173): "AESPANTOSA realidade das cousas / É a minha descoberta de todos os dias. / Cada cousa é o que é, / E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, / E quanto isso me basta".

O que esse recurso tautológico revela jamais é um expediente redundante, um gênero de repetição vazia. Assim seria se o poeta permanecesse cativo da gramática, da lógica, enfim, de um discurso puramente apofântico. Não: a criação poética se reveste de outro estatuto diverso daquele. Tudo se passa como se a poesia se fizesse ontologia; ontologia, di-ga-se de passagem, fora ao menos dos padrões tradicionais. Como bem nota Barbaras (2011, p. 225-226):

Essa tautologia toma várias formas, por assim dizer negativas, porque a função dela não é apenas dizer a presença; é, ao dizer a identidade da coisa com ela mesma, conter a tentação da interpretação ou da evocação, ou seja, evitar o risco permanente de compreender a coisa como sendo mais do que ela é.

Ocorre que, "na tautologia acontece alguma coisa, há uma transformação e, até, uma aquisição e, nesse sentido a tautologia não é tautológica [...]; ora, eu entro em relação com a coisa, de modo que a redução do sentido resulta num enriquecimento da experiência" (Barbaras, 2011, p. 226). Barbaras ainda chama a atenção para o fato de que, além das ideias ou dos sentimentos evocados por uma coisa (uma palavra), existem categorias pelas quais torna-se possível descrever o real em sua constituição mais elementar. É nessa direção que se orienta o esforço de Pessoa quando busca reduzir todas as categorias justamente na medida em que não são a coisa mesma. Há aí uma fina crítica da adjetivação como desrealização ou negação. Como bem atesta Barbaras (2011, p. 226):

Desse ponto de vista, a atitude de Pessoa é próxima à de Parmênides: do mesmo modo que, para ele, tudo que não for o próprio Ser não é, para Pessoa, tudo que não for a coisa mesma não é nada, senão uma interpretação, ou seja, uma ilusão. Em outras palavras, a posição de Pessoa consiste em pensar toda categorização como uma interpretação.

Essa experiência eleática presente na criação poética de Pessoa é, sem dúvida, significativa. Sabe-se o quanto, no pensador grego, o poético e o filosófico são indissociáveis. Um poema como o Sobre a Natureza (1978) bem parece um prelúdio à poesia pessoana. A presença, em seu estatuto originariamente ontológico, se situa aquém de nossas categorias e, portanto, de todo um trabalho meramente exegético. Há também aí um elogio à diferença. Como escreve o poeta: "Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras; / Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento. / Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais" (Pessoa, 1980a, p. 176).

É nesse mesmo registro, que Barbaras ainda inscreve como a categoria de totalidade recebe, pelas mãos do escritor português, um tratamento refinado. Tais versos são esclarecedores a propósito:

Vi que não há Natureza, / Que Natureza não existe, / Que há montes, vales, planícies, / Que há árvores, flores, ervas, / Que há rios e pedras, / Mas que não há um todo a que isso pertença,/ Que um conjunto real e verdadeiro / É uma doença das nossas idéias / A Natureza é partes sem um todo (Pessoa, 1980a, p. 164).

Essa ideia de totalidade em que tudo se mescla com tudo de maneira que o homem é inseparável da physis acentua, sobremaneira, o estatuto de experiência de um mundo, como um "Todo indivisível", para falar com Schelling (2001, p. 89). Há aí, como alinha Pessoa (1980a, p. 178),

[...] um sentido do "conjunto" / Um sentido como ver e ouvir do "total" das cousas / E não, como temos, um pensamento do "conjunto"; / E não, como temos, uma idéia, do "total" das cousas. / E assim - veríamos - não teríamos noção do "conjunto" ou do "total", / Porque o sentido do "total" ou do "conjunto" não vem de um total ou de um conjunto / Mas da verdadeira Natureza talvez nem todo nem partes.

Essa concepção, digamos, holística em que se investe a poesia de Pessoa radica, sem dúvida, uma nova ontologia, como crítica mesma da individualidade que remete, em última instância, ao antropomorfismo do pensamento da filosofia:

Toda a filosofia é um antropomorfismo. O erro fundamental é admitir como real a alma do indivíduo, o erigir a consciência do indivíduo em consciência absoluta e a Realidade em individualidade. Individuar a Realidade - eis o primeiro grande erro. Individuar a Consciência - eis o segundo grande erro (Pessoa, 1980b, p. 33).

A bem da verdade, dois erros simétricos; erros, aqui, visados como expressão do mais sintomático psicologismo! A questão é que, para Barbaras, Pessoa é absolutamente consequente em sua arte poética! O juízo estético possui sentido à medida que reconhece a existência do belo sem, daí, extrair qualquer juízo de valor positivo ou negativo. As coisas não são bonitas, mais ou menos bonitas, elas, simplesmente, são. Assim, por exemplo, "UM DIA DE CHUVA é tão belo como um dia de sol. / Ambos existem; cada um como é" (Pessoa, 1980a, p. 177). Sob esse prisma, resume Barbaras (2011, p. 228):

[...] dizer que a beleza da coisa confunde-se com a própria existência dessa coisa, que a percepção estética confunde-se com a experiência dessa existência, equivale a dizer que a poesia, como aquilo que expressa a beleza, confunde-se com a ontologia, que, por sua vez, descreve o modo de existência daquilo que existe.

Isto posto, Barbaras ensaia uma amostra em que medida a produção poética de Pessoa realiza esse gesto acenado por Merleau-Ponty da literatura como "inscrição do Ser", para além da diferença entre poesia e ontologia. Quer dizer, "a obra poética dele é uma obra de não-filosofia no sentido positivoda negação" (Barbaras, 2011, p. 229). É que a escrita poética se inscreve, verdadeiramente, como um recurso privilegiado de explicitação ao modo de ser das coisas. Tudo se passa como se Pessoa assumisse, de fato, em sua poesia, um gesto fenomenológico de primeira grandeza! Nesse sentido, o seu trabalho já perspectiva outro alcance:

Mas, com essa distinção, ou seja, com a necessidade de esclarecer filosoficamente a ontologia implícita do escritor, não é a própria estética que desaparece? Estética deve ser compreendida aqui não apenas no sentido de uma reflexão sobre as obras e sobre aquilo que as qualifica como obras de arte, mas também no sentido de uma reflexão sobre a significação filosófica da arte, como ainda Merleau-Ponty o faz. Por ser a sua própria estética, a obra de Pessoa inauguraria o fim da era da estética. É nesse sentido que Badiou usa a palavra "inestética", que ele define como uma relação da filosofia com arte que, admitindo que a arte é, por ela mesma, produtora de verdades, não pretende, de maneira nenhuma, fazer da arte um objeto para a filosofia (Barbaras, 2011, p. 229).

Essa desconstrução da estética no sentido de uma "inestética" já é o prenúncio de um modus operandi de fazer filosofia mais radical que, à maneira de Pessoa, outros escritores parecem também terem pressentido.

Vejamos, a título sumário, o caso de Clarice Lispector.

 

Clarice, entre poesia e filosofia

Quando voltamos o nosso olhar para a experiência literária, em especial, à criação poética, somos, inevitavelmente, apanhados de sobressalto! Sobretudo, enquanto filósofos! Acabamos de ver, guiados por Barbaras, o caso de Pessoa. Outra situação que, ao que tudo indica, não destoa tanto, é o caso de Clarice Lispector, escritora brasileira que cada vez mais tem recebido uma atenção singular não só no âmbito de um interesse literário stricto sensu, mas, em sentido lato, junto à comunidade filosófica, tout court. Retratamos um pouco, num trabalho recente (Silva, 2015), alguns aspectos desse perfil literário em que as personagens estão, a todo tempo, confrontadas com o seu próprio eu, isto é, em sua mais íntima edesconcertante identidade. É, por exemplo, o que ocorre com Joana em Perto do Coração Selvagem:

É curioso como não sei dizer quem sou, pensa Joana. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo, tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto, como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto, mas o que eu digo (Lispector, 1994, p. 17).

Benedito Nunes explora justo esse aspecto paradoxal da linguagem na qual se encontra a personagem. Sem dúvida, "as tentativas de Joana para escavar, por baixo da muralha da expressão verbal, uma saída para a realidade pré-linguística, ainda são frágeis, inconsistentes e vagas. Apenas denunciam uma ambição romântica externada com vigor expressionista" (Nunes, 1969, p. 133). A questão é que "a romancista fracassa com a linguagem, isto é, com a experiência levada ao seu último limite, à sua extrema consequência, do confronto decisivo entre a realidade e expressão" (Nunes, 1969, p. 137). No entanto, esse malogro da expressão não é, propriamente, uma anomalia da linguagem. Mais que um vício, é uma virtude! Nesse contexto, verdade seja dita:

Wittgenstein escrevia, no fecho de seu Tractatus Lógico-Philosophicus, que devemos silenciar a respeito daquilo sobre o qual nada se pode dizer. Clarice Lispector rompe com esse dever de silêncio. O fracasso de sua linguagem, revertido em triunfo, redunda numa réplica espontânea ao filósofo. Podemos formular assim a réplicaque ela deu: "É preciso falar daquilo que nos obriga ao silêncio". Resume-se nessa resposta o sentido existencial de sua criação literária (Nunes, 1969, p. 139).

Ora, seria verdadeiro o sentido dessa tensão máxima da angústia vivida pela personagem e do silêncio se prevalecesse, para a literatura, o aforismo wittgensteiniano. Mesmo que a linguagem tenha lá os seus "trancos e barrancos", Clarice jamais enclausura suas personagens no recinto privado e rígido de um positivismo linguístico e, portanto, intransponível. A poesia clariciana é sempre movida por uma intuição ontológica existencialmente radical mesmo que, a duras penas, a expressão re-viva tamanha contingência. Mais que isso: tal como Pessoa, Clarice constrói suas personagens visando transcender um presumido nível psicológico. Seu drama assume um alcance metafísico: "O que estou te escrevendo" - advertia - "não é para se ler - é para se ser" (Lispector, 1980, p. 38; grifo nosso). Como nota Kon (1998, p. 26):

Clarice Lispector com suas palavras de víbora, como as de sua Joana e suas garras de lobo [...] nos empurra abismo abaixo, ou acima, fazendo-nos olhar no olho de nossas entranhas, a céu aberto, apontando a direção do vórtice do furacão de nós mesmos, na busca violenta da aprendizagem do ser. E Clarice Lispector parece mesmo habitar esses lugares titânicos; parece nos convocar, de lá, para os ínferos do ser, em nossa existência originária de temporalidade absoluta, para nossas emoções mais intestinas, colocando-nos em contato com o óbvio, que é a verdade mais difícil de ser enxergada.

Afinal,

A obra de Clarice Lispector dá forma para a filosofia, ou para a vida, que pede Merleau-Ponty. Sua obra, recheada de solidão, compartilha o que outros pensadores também afirmam, quando ocupam o mesmo lado da trincheira em que a escritora resiste em sua luta. Pois, o que é realizado na obra de Lispector, o que toma forma e enseja, é o estar no mundo - o que alguns críticos chamam de epifania, esta revelação imediata do mundo, um estar imerso e ser feito do mesmo tecido das coisas (Kon, 1998, p. 28-29).

Nesse sentido, a poesia clariciana busca dar voz às coisas mesmas! Como observa Nunes (1969, p. 123);

As coisas, que não se esgotam como símbolos, são o que há de mais vivo, de mais afirmativo. Uma a uma, cada qual com a sua individualidade, o seu peso, a sua consistência, a sua presença compacta, todas se apresentam ao homem com sua força alucinatória, que pressiona a consciência, fascinando-a de modo irresistível. Sofre a consciência, por um lado, o assédio das coisas; mas, por outro, a elas se encontra ligada. Quanto mais consegue vê-las, tanto mais o homem aprofunda o conhecimento que de si próprio tem. Defrontando-as é que ele se sente existir, como ser solitário, jogado no mundo.

Clarice revive a máxima pessoana de que o que em mim sente está pensando. Ela também se vê imersa, como retrata Nunes (1969, p. 219), na mesma "vaporosa atmosfera da poesia de Fernando Pessoa". Como a escritora, em certa ocasião, confessara: "As pessoas que falam de minha inteligência estão na verdade confundindo inteligência com o que chamarei agora de sensibilidade inteligente. Esta, sim, várias vezes tive ou tenho" (Lispector, 1984, p. 215).

Uma vez recortados tais registros, tendo como norte a sugestiva leitura barbarasiana, podemos agora nos encaminhar à uma breve, brevíssima conclusão. Essa será mediada a partir de certa perspectiva, em nosso ver, também convergente. Trata-se da instância do poético que Bento Prado Jr assegura um lugar de honra em seus ensaios3.

 

Conclusão

Tudo parece indicar que esse mesmo movimento "inestésico" tão bem circunscrito por Barbaras foraparticularmente pressentido por Bento. É o que não deixamos de acenar em outro trabalho (Silva, 2011), ao explorar o caráter heurístico de sua escavação poética. Se a "poesia" - confessara ele - "era a única ciência que mais praticara" (Prado Jr, 2000a, p. 216), isso se devia à necessidade de "dar conteúdo ou vida à própria reflexão filosófica" (Prado Jr, 2000a, p. 211). Portanto, à maneira de Barbaras, Bento Prado partilha de uma mesma posição de princípio: a supressão radical entre literatura e filosofia. Agora, não se trata mais, em sentido platônico, de expulsar os poetas da cidade, mas de garantir-lhes o devido assento, de direito, isto é, de assegurar-lhes cidadanianuma só experiência de pensamento. É assim que ao comentar a obra de Roberto Schwarz, escreve ainda Bento Prado (2000b, p. 215):

Toda linguagem remete à verdade [...]. Entre as formas diferentes de linguagem só há uma diferença de grau, aquela distância que separa formas diferentes de expressão de um mesmo conteúdo. Aquilo que dizemos (ou calamos) em casa e na rua, esse murmúrio entrecortado e fugidio, a voz da indignação e a voz da paixão, aquilo que o poeta escreve contra o silêncio, o discurso quase analítico do crítico [...]. Não há oposição entre uma e outra (crítica e literatura): entre escrever um poema e analisar um romance não há nenhum abismo. Tanto num caso como no outro, o escritor-crítico nada mais faz do que pensar uma situação concreta e singular e tentar retirar dela sua verdade universal.

O ponto central nisso tudo é que Barbaras jamais fica indiferente à mesma intuição. Como ele próprio confessa numa bela homenagem prestada ao amigo:

Como em qualquer encontro autêntico, assim que li e, depois, conheci o Bento, tive imediatamente um sentimento estranho de familiaridade, como se tudo que eu valorizava, sem saber muito bem até que ponto eu estava certo, tivesse se encarnado numa figura viva e radiante, como se tudo que eu vislumbrava, tanto no âmbito da filosofia quanto no da literatura, de repente se expressasse com um força e uma clareza sem par (Barbaras, 2011, p. 233).

Esse reconhecimento é muito significativo! Barbaras vê nos trabalhos de Bento que, aliás também dedicou-se em traduzir, a mesma abertura, o mesmo elogio ao poético. Nesse sentido não é por menos que Bento possuía uma verve poética admirável, ou como nota Barbaras, uma verdadeira "paixão pela poesia" ao escrever poemas:

Assim, a meu ver, esse apego à literatura e à poesia em particular não se explica apenas pela recusa de toda forma de tecnicidade inútil: ele revela uma certa visão do papel da filosofia como desvelamento da sua própria dimensão de não-filosofia. A paixão do Bento pela poesia era profundamente ligada ao seu modo de engajamento na filosofia: tratava-se, para ele, de fazer filosofia ao limite, ou seja, de se situar no lugar onde ela se enraíza ou na fonte de onde ela nasce, naquela fronteira onde silêncio e palavra passam um no outro e trocam os seus papéis (Barbaras, 2011, p. 236).

Se, enfim, Barbaras manifesta "o sentimento de que, de certa forma, é na própria literatura e, particularmente, na poesia, que se encontra a filosofia luso-brasileira" (Barbaras, 2011, p. 237), é porque, agora, Pessoa, Clarice, Bento, entre outros, orbitam, cada qual à sua maneira, um mesmo centro gravitacional em que o "elogio ao poético" se traduz num gênero de "elogio à filosofia". Eles retomam as "pegadas" de Merleau-Ponty rumo a um futuro possível de uma nova racionalidade não mais rígida e estreita, mas "alargada".

 

Referências

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Recebido em 20.08.2018
Aceito em 12.02.2019

 

 

1 Como nota Merleau-Ponty (1964, p. 159), "as ideias são a textura da experiência; seu estilo mudo primeiramente, em seguida proferido", pois o mundo "só se apresenta a quem não quer possuí-lo, mas apenas vê-lo [...] a quem está preparado para deixá-lo ser [...], pois na filosofia é proibido falar de solução [...] ela é interrogação sobre aquilo que não fala [...]. Ela põe essa questão à nossa vida emudecida, ela se dirige àquela mistura entre o mundo e nós, que precede a reflexão" (1964, p. 138).
2 Em outro trabalho, subsidiando-se em Valéry, Barbaras chama a atenção para outra forma de arte que, melhor que a pintura, expressaria a essência da estética: a dança. É, pois, "na dança que se lê para nós a essência da arte. Parece-nos, de fato, que é preciso conferir à dança o papel que Merleau-Ponty atribuía à pintura" (Barbaras, 2011, p. 210).
3 Para tanto, basta o leitor consultar, especialmente, Prado Jr (2000b; 2008; 2017). Nessa última referência, Ipseitas, trabalho póstumo e prospectivo, o autor inicia uma obra maior que se comporia, ao todo, de três volumes. Nesse primeiro, ele anuncia que os outros dois tomos seriam consagrados às formas de expressão da própria ipseidade, como na literatura, na poesia e na metafísica (2017, p. 17).

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