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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.26 no.2 Goiânia maio/ago. 2020

http://dx.doi.org/10.18065/2020v26n2.7 

ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

 

Pesquisa fenomenológica em psicologia: ainda a questão do método

 

Phenomenological research in psychology: yet on the matter of method

 

Investigación fenomenológica en psicología: sigue siendo la cuestión del método

 

 

Caio Monteiro SilvaI; Emanuel Meireles VieiraII; José Célio FreireIII

IMestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará; Gestalt-Terapeuta pelo Instituto Gestalt do Ceará; Bacharel em Psicologia pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Atualmente é Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará - UFC (Linha de Pesquisa: Sujeito e Cultura na Contemporaneidade), Pesquisador do Laboratório de Psicologia em Subjetividade e Sociedade - LAPSUS, Professor no curso de psicologia da faculdade Ari de Sá / (https://orcid.org/0000-0001-6079-4939)
IIGraduação em Psicologia e Mestrado em Psicologa pela Universidade Federal do Ceará, e Doutorado em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Clínica, atuando principalmente nos seguintes temas: abordagem centrada na pessoa, epistemologia, história da Psicologia, ética, psicologia humanista, psicologia clínica e psicologia comunitária. É Professor Adjunto III da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA), e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Federal da Bahia (Campus de Vitória da Conquista). Endereço institucional: Faculdade de Psicologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará. Rua Augusto Corrêa, 01, Guamá, Belém - Pará, CEP 66073-040 / (https://orcid.org/0000-0002-7346-4944) / e-mail: emanuel.meireles@gmail.com
IIIGraduação em Psicologia e Mestrado em Educação pela Universidade Federal do Ceará, Doutorado em Psicologia pela Universidade de São Paulo e Estágio Sênior (Pós-Doutoral) na Universidad Complutense de Madrid (2013/2014). Professor Titular da Universidade Federal do Ceará (UFC) - Departamento de Psicologia e Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Foi coordenador do Mestrado em Psicologia da UFC (2002/2004) e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFC - Mestrado e Doutorado (2014/2016). Foi o primeiro Tutor do Grupo PET/Psicologia do Programa Especial de Treinamento (PET/CAPES) no período 1992-1995, e do Programa de Educação Tutorial (PET-UFC-SESu) no período de 2007-2013 / (https://orcid.org/0000-0003-4651-7614)

 

 


RESUMO

Este texto tem por objetivo refletir sobre a pesquisa fenomenológica a partir da questão da ética. Parte-se da ideia de que, na investigação do humano, a ética antecede a epistemologia e que, portanto, caberia a qualquer conhecimento desse campo questionar-se a respeito do lugar daquilo que é expurgado pelo método científico. Aponta-se que tal problema se coloca, inclusive, para pesquisas fenomenologicamente orientadas, visto que muitas delas pensam muito a questão da unidade e refletem pouco a respeito do lugar da diferença que essa unidade pode conter. Entende-se que o conceito de intencionalidade, que reúne diversas perspectivas fenomenológicas, como as de Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty e Gadamer, traz em si questões que envolvem a relação entre universal e particular, bem como nuances éticas, porém não há uma descrição operacional de como essas questões se tornam concretas na investigação empírica. Como solução para esse problema, aponta-se o que se chamou de solução pragmático-ética, de modo que o pesquisador explique mais clara e operacionalmente como os princípios fenomenológicos incidem sobre a pesquisa (dimensão pragmática), bem como evidencie a dimensão histórico-relacional a partir da qual ele produz saber. Assim, acredita-se, restam preservadas a historicidade e a provisoriedade contidas na construção do conhecimento.

Palavras-chave: Alteridade; Pesquisa fenomenológica; hermenêutica.


ABSTRACT

This paper aims to make a reflection about phenomenological research from the matter of ethics. The start point is the idea of that, in the investigation of human, ethics comes before epistemology and that, therefore, it would concer to any knowledge of this field to make questions about the place of what is purged by scientific method. It is pointed that such problem happens even with phenomenologically oriented researches, once that often many of them think about the problem of unity, but seldom think about the place of the difference that this unity may contain. It is understood that the concept of intentionality, that put together several phenomenological perspectives, such as Husserl's, Heidegger's, Merleau-Ponty's and Gadamer's, brings on itself questions that wrap the relationship between universal and particular, as well as ethical nuances, but there is not an operational description of how these questions become concrete in empirical research. As a solution to this problem, it is suggested a pragmatic-ethical solution, so that researcher must explain more clearly and operationally how phenomenological principles affect the research (pragmatic dimension), as well as it is also suggested that he must evidence the historical-relational dimension from wich he produces knowledge. Therefore, it is believed, it keeps preserved historicity and temporariness contained in the construction of knowledge.

Keywords: alterity; phenomenological research; hermeneutics.


RESUMEN

Este artículo tiene por objetivo reflexionar sobre la investigación fenomenológica a partir de la cuestión de la ética. Se parte de la idea de que, en la investigación de lo humano, la ética antecede a la epistemología y que, por lo tanto, cabría a cualquier conocimiento de ese campo cuestionarse acerca del lugar de aquello que es expurgado por el método científico. Se apunta que tal problema se pone, incluso, para investigaciones fenomenológicamente manejadas, ya que muchas de ellas plantean en demasiado la cuestión de la unidad y reflejan poco acerca del lugar de la diferencia que esa unidad puede contener. Se entiende que el concepto de intencionalidad, que reúne diversas perspectivas fenomenológicas, como las de Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty y Gadamer, trae en sí cuestiones que involucran la relación entre universal y particular, así como matices éticos, sin embargo no hay una descripción operacional de cómo estas cuestiones se vuelven concretas en la investigación empírica. Como solución para este problema, se apunta lo que se llamó de solución pragmática y ética, de modo que el investigador pueda aclarar operacionalmente como los principios fenomenológicos inciden en la investigación (dimensión pragmática), así como evidencie la dimensión histórico-relacional a partir de la cual él produce saber. Así, se cree, quedan preservadas la historicidad y la provisoriedad contenidas en la construcción del conocimiento.

Palabras-clave: Alteridad; Investigación fenomenológica; hermenéutica


 

 

Introdução

Metodologia é tema-chave para qualquer tipo de conhecimento. Afinal, a relação do homem com a natureza instituída pela Modernidade pressupõe a ideia de que são necessárias ferramentas que permitam um conhecimento seguro a respeito do mundo. A lógica implicada neste tipo de perspectiva é a de um conhecimento universal, de modo que problemas similares possam ser desvelados pela mesma proposta metodológica. Conhecer o mundo exige, portanto, certa postura de apreensão da regularidade do que se dá a conhecer. Se tomarmos a realidade como um texto a ser interpretado, a perspectiva ora descrita exige a construção de teses sobre esse texto, uma procura pelos aspectos essenciais que o compõem. É a dimensão fundamental que se busca, de modo que o que há de comum num determinado fenômeno possa ser descrito da maneira mais fiel possível.

O que se percebe, porém, nesse tipo de perspectiva, é que há pouco espaço para o que foge de certa identidade do fenômeno estudado. Afinal, se é a regularidade o que se busca, o que fazer com o que fica à margem, ou aparece pouco, ou, ainda, que fica nas entrelinhas? Coelho Júnior (2007) nos oferece interessante reflexão a respeito da relação entre ética e técnica no campo da Psicologia e nos afirma que é preciso que haja espaço para uma dimensão de estranhamento na relação com o Outro no processo de conhecimento. Isso significa que, anteriormente à segurança de um conhecimento que sufoque a diferença do mundo, cabe estar disponível para ser surpreendido por ele. Isso coloca a ética (a questão do Outro) numa posição de questionamento em torno da técnica.

Tal reflexão ganha mais força ainda no campo da Psicologia quando compreendemos que as várias correntes psicológicas só se tornaram possíveis pela necessidade de se acolher aquilo que, de acordo com Figueiredo (1992), foi expurgado pelo método científico. De acordo com o aludido autor, o método científico, embora tenha proporcionado um conhecimento mais profundo da natureza, não deu conta das questões da existência, como a finitude e as paixões. É exatamente nesse vácuo que se torna possível falar de um conhecimento que tenta encontrar um lugar para aquilo que foi tomado como dejeto pelo método científico. Assim, o fenômeno psicológico, que, de acordo com Figueiredo (1992), seria uma invenção advinda da Modernidade, só se torna possível naquilo que escapa ao método científico das ciências naturais. Mesmo quando as teorias psicológicas adotam uma perspectiva mais naturalista em torno do que consideram "psicológico", é com a questão da diferença, do que não se adéqua, portanto da alteridade, que elas têm de se haver. Às Psicologias, ainda de acordo com Figueiredo, caberia construir moradas (ethos) para a experiência humana e suas vicissitudes, como a finitude, as paixões, a inadequação, etc. Por isso, a ética e, portanto, o Outro, é um desafio constante na construção do conhecimento em Psicologia.

Como, porém, construir um conhecimento rigoroso que não se ocupe de sufocar a diferença como elemento constitutivo de qualquer contexto em Psicologia? Que metodologias se apresentam como alternativas à compreensão da experiência humana no sentido ora discutido? É isso que debateremos nas linhas que se seguem.

 

Um método delicado - A fenomenologia entre sua herança e provisoriedade

A pesquisa hermenêutica de base fenomenológica apresenta uma questão na própria relação do conhecimento, especialmente no que tange às dimensões que classicamente se convencionou chamar de sujeito e de objeto. Estas dimensões, neste tipo de tradição do conhecimento, são o efeito de uma dinâmica dada a partir de uma espécie de gesto duplo em que a um só tempo produzam por um lado um conhecimento generalizável e amplo, o qual delimita e acompanha o objeto, e por outro uma relação de exposição a possíveis fraturas nos esquemas de percepção do sujeito investigador. Essas fraturas ocorreriam no encontro diante da estranheza do objeto.

Esse movimento duplicado apresenta-se pela incisão metodológica rigorosa que se destina a mapear o objeto e pela necessidade de que o sujeito se tenha exposto de fato diante do objeto de forma que não se utilize dos próprios crivos de inteligibilidade como armadura. O uso de uma rigidez de princípios poderia evitar toda uma gama de efeitos que seriam excluídos na produção do conhecimento, que não se dá na sobreposição de uma dimensão sobre a outra (Sujeito e Objeto), mas que emerge da própria relação.

A pesquisa de base fenomenológica encontra, então, pelo menos duas questões a serem enfrentadas. A primeira diz respeito à maneira pela qual se torna possível a articulação entre geral e particular, entre universal e singular. Nesse ponto, a própria atitude fenomenológica na produção do conhecimento já encontra de alguma forma sua dimensão ética, pois considera a revisão do geral, ou do universal, a partir do particular e do singular. Entretanto, um segundo problema pode ser desdobrado a partir dessa elaboração à medida que radicalizamos nossa postura ética. A necessidade de organizar a experiência da exterioridade apresenta na intenção da inteligibilidade, nos dirá Lévinas (1991/2009), uma adequação entre pensamento (ato intencional de pensar) e pensado (objeto intencionado do pensamento), uma dinâmica de um psiquismo de satisfação, o qual é satisfeito no encaixe ignorando o que escapa.

Assim, a relação entre geral e particular se dará na medida em que a presença do particular re-articule todo um campo de sentido do que é geral para humanidade. Ao reconhecer algo como existente para um, existente ainda que singularmente, aquilo que é singular torna-se, mesmo que virtualmente, uma possibilidade para o rol da humanidade.

Dizendo de outra forma, aquilo que foi possível a um singular amplia e expande o campo do possível para a humanidade como um todo, não necessariamente porque toda a humanidade possa replicar isto que foi possível a esse um, mas porque alguém enquanto partícipe dessa humanidade, sob determinadas circunstâncias, foi capaz desse acontecimento. Destarte, expande-se, ao menos como possibilidade de reconhecimento, como algo possível para a humanidade, para esse conjunto, para esse coletivo que é o da humanidade, este acontecimento singular. Esse espaço de reconhecimento, então, é, em certo sentido, de abertura ao novo, ao diferente, ao mesmo tempo em que também é espaço de integração.

Por outro lado, se radicalizarmos a posição ética - no sentido de respeito à diferença, à estranheza, a essa distância que de fato é constitutiva da relação com a alteridade - veremos que a atribuição de reconhecimento desse acontecimento singular se faz, embora com um aspecto de abertura, por um processo de re-articulação da diferença e da singularidade por um aspecto prévio que estaria vinculado às categorias do entendimento. Entende-se o diferente, ou diferença, a partir de sua integração nos crivos de inteligibilidade utilizados no seu próprio reconhecimento.

 

Pesquisa fenomenológica - da apreensão à compreensão

Tradicionalmente, a pesquisa qualitativa é o campo em que se tenta criar espaço para a singularidade na produção de conhecimento. Muitas vezes colocada em oposição aos métodos quantitativos, que buscam o universal e o frequente, a posição qualitativa em pesquisa tende a valorizar a compreensão da manifestação singular de um determinado fenômeno (Chizzotti, 2006).

Todavia, ainda que no modelo de pesquisa mencionado se valorize a dimensão singular do conhecimento, o modo como frequentemente se organizam os dados pode levar à mesma busca de regularidade apontada pelas pesquisas quantitativas. Se neste modelo isso ocorre por um critério de frequência no qual evidencia-se aquilo que mais aparece, naquele há um agrupamento por solidariedade, ou seja, elementos que se aproximam do ponto de vista temático são agrupados dentro de uma mesma categoria. É essa, por exemplo, a lógica do modelo de pesquisa fenomenológica empírica, um tipo de pesquisa qualitativa no qual, de acordo com Castelo Branco (2014), intenta-se "... identificar os desejos comuns, verificar suas interdependências e organizá-los conforme uma única descrição expressa em termos psicológicos" (p. 194). É, portanto, a unidade que, via de regra, interessa ao referido método.

O que ocorreria com o que se manifesta à margem? Qual o lugar para aquilo que não consegue ser agrupado em interdependência, como requer o método fenomenológico empírico? É possível organizar uma forma de construção do conhecimento que abrigue a dimensão atética, ou seja, aquilo que não é tese, da realidade?

No esteio da tradição fenomenológica, é possível situar o pensamento de Gadamer (1960/1997), que propõe a hermenêutica filosófica, um modo de abordar a realidade que admite que toda interpretação é uma criação da realidade. Nessa criação, em vez de abrir mão dos preconceitos, como preconiza o método científico, deve-se entender que eles fazem parte da produção da interpretação a ser adotada numa fusão de horizontes na qual aquele que se propõe a executar uma tarefa hermenêutica deve assumir seus preconceitos e pô-los em diálogo com a realidade a ser interpretada. Interpretar, nessa perspectiva, é necessariamente criar. Mais que um reflexo perfeito da realidade, admite-se que interpretar é sempre uma tarefa que não pode se propor neutra.

Vale dizer que o exercício hermenêutico não se dá apenas através de um texto propriamente dito, mas que qualquer realidade pode ser tomada como tal. Assim, a compreensão a respeito de qualquer fenômeno, seja ele um texto escrito ou não, obedece à mesma lógica de admissão dos pressupostos em um diálogo destes com a realidade a ser conhecida. Desta forma, todo contexto é tomado como texto, ou seja, uma realidade a ser compreendida através de um processo no qual o "intérprete" é figura ativa. Partir deste pressuposto significa admitir que um enunciado pode ter múltiplos significados e, inclusive, indicar o seu contraditório, ou, ainda, que aquilo que aparece como à margem pode conter uma nova possibilidade de compreensão sobre o mesmo fenômeno. Compreender, portanto, é produzir diferença em vez de buscar identidade ou unidade.

A discussão dos princípios gerais de uma hermenêutica filosófica não esclarece, porém, o modo de proceder do ponto de vista operacional. Se a filosofia nesse processo é clara e tem seus pressupostos bem definidos, quando se parte para a assim chamada pesquisa aplicada, a questão se torna um pouco mais complexa. Afinal, para além de admitir a fusão de horizontes como um momento da interpretação, como mostrar a maneira como essa fusão ocorre? Que procedimentos podem nos ajudar a dar materialidade a um procedimento empírico que se pauta por essa proposta sem cair num utilitarismo apressado e, portanto, irrefletido?

Fleming, Gaidys e Robb (2003) entendem, a nosso exemplo, que Gadamer não deixa claros os passos para realizar seu método - até porque isto estava fora do seu propósito. Os referidos autores propõem cinco passos para a pesquisa baseados nas ideias de Gadamer. O primeiro seria a escolha de uma questão que de fato se alinhave aos pressupostos metodológicos, de tal maneira que a pergunta possa de fato ser respondida pelo método proposto. O segundo passo é a identificação dos pré-conceitos, que se dá através do contato com pensamentos diferentes, de modo que "os preconceitos do pesquisador, que se tornam visíveis na discussão, devem... ser descritos e analisados no relatório de pesquisa" (p. 117). A terceira etapa diria respeito a desenvolver uma compreensão através do diálogo com participantes, abrindo-se ao modo como eles são afetados pela experiência investigada, de tal maneira que "a compreensão surgirá através da fusão dos horizontes de participante e pesquisador". Os autores, porém, advertem que o investigador não pode se colocar no lugar do outro, nem ver o mundo através de seus olhos, e que deve tentar alcançar uma compreensão compartilhada. O quarto passo é desenvolver a compreensão através do diálogo com o texto transcrito de entrevistas, por exemplo, inclusive com a participação de quem foi entrevistado, embora ao pesquisador caiba a responsabilidade pela interpretação final. Para tanto, os referidos autores propõem uma metodologia que passa por tentar entender o texto como um todo, depois a partir de cada frase, depois uma relação dessas frases com a totalidade do texto e, finalmente, a escolha de passagens que representem as compreensões compartilhadas entre pesquisador e participantes - um modo muito similar àquele do método fenomenológico empírico (Castelo Branco, 2014).

Por fim, como última etapa, os aludidos autores propõem o estabelecimento da confiabilidade e da veracidade da análise. A confiabilidade passa por uma representação fiel do contexto investigado, a despeito de esta não poder ser inteiramente alcançada, através, por exemplo, da citação direta de textos ou de falas de pessoas que participam da investigação. Já a veracidade é estabelecida não através de afirmações universalmente aceitas, mas da explicitação ao leitor das condições em que as conclusões são elaboradas.

Como se percebe, a investigação de base gadameriana abre mão da noção de verdade como algo fechado para dar visibilidade ao processo de construção de uma compreensão sobre o fenômeno. Isso significa que, diferentemente de uma tradição mais afeita à regularidade e a um conceito uno de verdade, a hermenêutica filosófica abre espaço para que a diferença do fenômeno se diga dentro de uma tradição fenomenológica.

A partir deste introito nos utilizaremos da forma como o trabalho de Fleming et al. (2003) nos provocou sendo uma importante plataforma de onde partimos para dar início a um conjunto de reflexões a respeito do tema da pesquisa fenomenológica. Diante da forma como fomos afetados, acreditamos que será necessário percorrer dois caminhos. O percorrer destes caminhos baseia-se na ideia de propor uma possibilidade de atuação na pesquisa fenomenológica que leve em conta as questões metodológicas que giram fundamentalmente em torno da necessidade de um rigor epistemológico que articula as dimensões do geral e do particular, bem como o diálogo com nuances éticas que se apresentam na relação da produção e construção do conhecimento.

O primeiro caminho, entendemos já ser amplamente desenvolvido nos desdobramentos dos pensadores aos quais atribuímos uma certa herança fenomenológica, os quais reconstruiremos e apontaremos alguns elementos que consideramos cruciais. O segundo caminho diz respeito às possíveis instabilidades do primeiro caminho e nosso posicionamento diante delas.

 

A herança intencional

Para Dartigues (2008), o elo entre as abordagens que convencionamos chamar de fenomenológicas se dá em torno da noção de intencionalidade da consciência. Trabalhos como os de Husserl, Marleau-Ponty, Heidegger, Scheller, e outros, são bons exemplos disso. O princípio de intencionalidade da consciência foi inicialmente desenvolvido por Franz Brentano e pode-se ver o uso dado por ele a este princípio na obra Psicologia do Ponto de Vista Empírico (1874/1935). Em seu uso, Brentano propunha, através da intencionalidade da consciência, uma solução para as relações entre empirismo e racionalismo, apontando um entrelaçamento entre mundo físico e psíquico.

Husserl (1901/1967) em suas Investigações Lógicas - obra considerada inaugural para os trabalhos fenomenológicos propriamente ditos - retoma a noção de intencionalidade, mas reorienta seu uso conectando mundo físico e psicológico. Entretanto, a forma de reconectar instâncias físicas e psicológicas em Husserl, ao contrário de Brentano, opera uma recusa ao psicologismo no âmbito da lógica. Husserl não reduz a conexão entre as dimensões físicas e psicológicas a um completo ato mental que poderia desembocar em um certo perspectivismo em relação aos fenômenos.

A redução fenomenológica permitiria ao fenomenólogo compreender o mundo a partir de uma consciência transcendental que esclareceria o fundamental a partir da relação com as coisas mesmas e não o fundaria através de outros esquemas baseados em preceitos psicológicos ou teorias e conceitos, os quais mais encobrem as coisas e nos distanciam delas do que nos aproximam. O destino da intencionalidade, segundo Husserl (1901/1967), é o direcionamento ao objetivo na forma como ele se apresenta sendo vivenciado subjetivamente, a partir da forma de apresentação objetiva do objeto.

A intencionalidade é uma tendência para o interior dos objetos. Tendência para o interior da relação entre a consciência e o objeto (Husserl, 1901/1967). É como se a essência da própria intencionalidade fosse esse movimento que conecta homem e mundo, essa dinâmica que já dirige a consciência para a interioridade da relação com o objeto do qual se conscientiza. A própria consciência em sua constituição é já uma conexão com o mundo.

Uma vez que a consciência são atos em direção aos objetos, ela não precisa mais de mediadores que sejam utilizados como pontes para a relação sujeito e objeto, sendo então fundamental uma rearticulação na forma de conhecer. Não se faz mais necessária uma construção sobre os elementos objetivos do mundo, não precisamos mais de um outro mediador entre geral e particular, entre sujeito e objeto, e sim torna-se de suma importância justamente o contrário, uma depuração até às relações mais originais desse destino da intencionalidade que é constitutivamente o movimento em direção às coisas do mundo. Essa depuração é o que vai possibilitar toda uma estratégia e um posicionamento fenomenológico diante do mundo. Este mundo que já é tomando, por princípio, como uma relação imbricada e de direcionamento entre o sujeito da consciência e o objeto revelado na consciência.

No desenvolvimento do pensamento de Husserl, na obra Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica (1913/2006), a fenomenologia aparece como ponto de partida para qualquer conhecimento, sobretudo o filosófico, já que em última instância essa obra parece discutir o próprio problema da epistemologia. Uma vez que a obra parece destinar-se a discutir as condições epistemológicas do mundo, suas elaborações encontram-se justamente com os elementos de como é possível uma validação objetiva a partir de conhecimentos subjetivos, ou seja, uma análise dos próprios atos intencionais. Assim, no caminho desta análise, as noções de noema e noesis, as quais dependem do movimento de intencionalidade da consciência, tomada por atos, por movimento, por endereçamento, ganham destaque apontando uma dinâmica onde a consciência se dirige para o mundo e o mundo para a consciência.

Sokolowski (2004) nos dirá que uma vez que a consciência é compreendida, agora não mais como um construto mental, sua constituição em atos torna possível o acesso e compreensão aos elementos da consciência devido a sua dinâmica de exposição para o mundo que traz em si mesma a própria relação do homem com o mundo.

Embora as criativas soluções de Husserl a muitos problemas do conhecimento sejam de certa forma inegáveis na construção de uma postura fenomenológica, ainda recai muitas vezes sobre os ombros daqueles que se articulam a partir das influências de uma forma fenomenológica de reflexão a crítica infundada de uma postura solipsista. Contudo, arriscamo-nos a dizer que talvez essas críticas estejam organizadas a partir de leituras prévias de curiosos que não consideram o caráter histórico da própria produção do conhecimento atribuindo juízos precipitados ao todo pela incursão curiosa por uma das partes.

Não é estranho ver nas análises de Husserl, ao longo de sua obra, sua recorrente referência a objetos em geral, inclusive geométricos. Este fato pode, em uma ilação não muito profunda, ser atribuído às marcas de uma vida pregressa por sua carreira como matemático. Entretanto, pelo menos desde suas conferências na Universidade de Sorbonne, posteriormente reunidas sob a unidade das chamadas "Meditações Cartesianas", vemos a inclinação de Husserl para pensar destacadamente as relações intersubjetivas. A quinta meditação nos aponta justamente o cerne desse movimento onde o encontro entre dois sujeitos aponta para um tipo de relação em que nem todas as vivências intencionais nos estão disponíveis, já que as experiências dos outros sujeitos no mundo só nos são acessíveis por eles mesmos. Todas as experiências no mundo me são acessíveis diretamente, menos a maneira como os outros experimentam as coisas do mundo, estas só me são acessíveis pela experiência que tenho sobre a forma como eles experimentaram esses fenômenos e me apresentam essa mesma experiência.

A questão do Outro, trazida desde as Meditações Cartesianas como elemento importante para o horizonte de reflexões orientadas pela análise intencional, permite e colabora com posteriores desenvolvimentos de trabalhos na forma de compreensão da relação homem-mundo. Heidegger (1927/1999), que havia sido aluno de Husserl, traz na obra Ser e Tempo, embora o termo intencionalidade seja diretamente poucas vezes citado, contribuições epistemológicas e metodológicas.

Enquanto para Husserl (1913/2006) a relação homem-mundo aparece através da intencionalidade, em Heidegger (1927/1999) vemos ao longo de Ser e Tempo um posicionamento em que somos a própria intencionalidade. Existir seria estar expulso de si, lançado no mundo em uma relação co-originária com ele. A própria ideia de Dasein, cara à obra heideggeriana, pode em certo sentido ser tomada como uma radicalização da postura husserliana da intencionalidade, a qual ainda prescindia das categorias clássicas da produção do conhecimento que separam sujeito e objeto. Ao utilizar o termo Dasein, Heidegger articula inseparavelmente estas duas dimensões.

Do ponto de vista metodológico, isso leva a um distanciamento entre Husserl (1913/2006) e Heidegger (1927/1999). Para o primeiro, através da Epoché se poderia chegar a um a priori de correlação entre homem e mundo em que um conjunto de instruções, conhecidas como uma atitude chamada de "anti-natural", permitiria o acesso aos atos intencionais que revelariam a relação do homem com as coisas mesmas através da descrição. Para Heidegger (1927/1999), o Dasein jamais poderia suspender completamente os juízos sobre o mundo de forma a chegar a uma consciência transcendental, já que a relação homem e mundo é completamente indissolúvel. Posição corroborada por Merleau-Ponty (1999) quando aponta que: "O maior ensinamento da redução é a impossibilidade da redução completa" (p. 8). Assim, a redução à consciência transcendental como queria Husserl, em uma postura radicalizada, poderia ser encarada como a perda da dimensão constitutiva entre homem e mundo.

Heidegger propõe, então, como diria Stein (1990), uma hermenêutica do estar-aí que permite um novo ponto de partida em relação a outras tradições de pensamento. Essa possibilidade de interpretação da relação homem-mundo trata-se de uma hermenêutica da facticidade que deve levar em conta a mundanidade do mundo que nos circunda articulando o Impessoal no mundo (Heidegger, 1927/1999). O impessoal seria a forma de ser absorvido no mundo através da convivência cotidiana, possibilitada pela própria forma de organização existencial do ser-no-mundo. O ser-no-mundo está sempre determinado por um mundo específico que funciona dentro de regularidades também específicas que nada mais são que este horizonte fático. O fático no mundo é, portanto, sempre historicamente determinado por um discurso sedimentado que se torna a articulação de compreensibilidade deste mesmo mundo histórico (Casanova, 2006).

Ainda na tradição fenomenológica, podemos situar Gadamer que, a partir das contribuições de Heidegger, no que toca o fatídico, o histórico e o discursivo, destaca o papel da linguagem em uma teoria da experiência hermenêutica de base fenomenológica. Para ele "a linguagem é o meio em que se realizam o acordo dos interlocutores e o entendimento sobre a coisa em questão" (Gadamer, 1960/1997, p. 497).

Neste sentido, a compreensão dos fenômenos como texto a ser interpretado é fundamental. Este texto pode começar a ser lido a partir dos hábitos de linguagem que são atravessados por uma época e por um autor que se relaciona com este espírito do tempo. O autor deve, então, reconhecer que o que é dito é falado por alguém que não ele e que expõe suas próprias opiniões das quais se é possível tomar conhecimento. A experiência da interpretação deve, então, relacionar-se às condições de facticidade que determinam, conjuntamente, a relação homem-mundo. Intérprete e texto são aqui explicitados em sua condição histórica constituída da relação homem-mundo, na transitoriedade que lhes perpassa. Texto e intérprete são feitos contingentes a uma historicidade (Gadamer, 1960/1997).

A condição histórica e fatídica de leitor e texto apresenta-se como um horizonte de compreensão prévia que se põe como condição de possibilidade para qualquer interpretação. A condição histórica e, portanto, transitória de toda compreensão permite que Gadamer (1960/1997) reconheça no preconceito o problema da hermenêutica. Para tanto, Gadamer (1960/1997) nos ensina que uma consciência formada hermeneuticamente deve ter uma destacada apropriação das opiniões prévias e preconceitos pessoais, uma vez que são as próprias condições de existência do autor e do texto.

Gadamer (1960/1997) nos aponta ainda o caráter circular de toda compreensão, para quem a tarefa hermenêutica se baseia na polaridade entre familiaridade e estranheza, ou seja, a experiência hermenêutica se passa, sucessivamente, do familiar ao estranho, num enriquecimento da experiência do mundo. As relações de compreensão partem de uma ideia de familiaridade (pré-compreensão) para uma de estranheza (contato com outras dimensões do mundo) promovendo confronto entre o familiar e o estranho - horizontes, tradições e hábitos - para em seguida permitir uma fusão de horizontes.

Para Gadamer (1960/1997) a fusão de horizontes se dá no jogo de antecipação (pré-compreensões) e contradição (confronto com outros horizontes) de sentidos. O trabalho interpretativo é, portanto, um campo da intersubjetividade em que o mundo comportará o intérprete e a obra fundidos em seus horizontes históricos de significação que eram originalmente distintos. A tarefa hermenêutica está em desvelar o tensionamento existente entre a tradição do texto e a dimensão presentificada da interpretação. Com isso, temos que o resultado estabelece uma modificação simultânea da obra e do próprio intérprete.

Desta forma, vemos que a herança fenomenológica apresenta como condição a tomada de um posicionamento específico na relação entre homem-mundo, que por princípio já apresenta um elemento constitutivamente ético. Esse elemento pode ser observado pela questão com que os autores dessa tradição inevitavelmente se deparam. Há sempre um elemento de estranheza, de diferença e em alguma medida de enfrentamento que se coloca diante dos sujeitos de forma a atravessá-los e constituí-los a partir daquilo que lhes é, ou poderia ser em princípio exterior. Em Husserl, esse elemento pode ser destacado como a interlocução com as experiências dos Outros. Em Heidegger, essa dimensão pode ser vista através do entendimento de que a existência é constitutivamente as relações que temos com e no mundo. Em Gadamer, a questão ética pode ser observada na relação entre intérprete e texto, portanto no tensionamento entre as tradições historicamente determinadas do polo intérprete e do polo texto.

O que pretendemos deixar claro com essa breve exposição é como o princípio da intencionalidade da consciência traz uma nova lida nas relações de conhecimento com o mundo. Este tipo de compreensão soluciona os problemas do geral e do particular, do perspectivismo e do internalismo que podem ser direcionados tanto para uma ideia de conhecimento independente dos sujeitos como a de que todo e qualquer conhecimento sobre o mundo tem validade e rigor. A própria dinâmica constitutiva da consciência correlaciona sujeito e objeto, geral e particular, apresentando que há um caráter de generalidade do conhecimento, mas que este é produzido, nomeado, construído na relação entre homem e mundo. Além disso, a própria dinâmica intencional na rearticulação da relação homem-mundo traz em si certa dimensão de exposição dos sujeitos em relação ao mundo em que um Outro, seja como pessoa, coisa, ou texto é constitutivamente partícipe da experiência de entendimento sobre o mundo.

 

Uma dimensão epistemológica e uma pragmático-ética

Ao refletirmos sobre o método fenomenológico a partir da tradição fundamentada na intencionalidade, e partindo de nossas experiências e leituras, nos demos conta de uma questão que nos chamou atenção a respeito da produção de conhecimento vinculado a este horizonte. Existe evidentemente um campo múltiplo de articulação possível se levarmos em conta as ramificações, focos e destaques dados por cada autor na forma de lidar com o mundo e produzir conhecimento sobre ele. Entretanto, as instruções apresentadas ao longo das obras de cada um desses grandes expoentes são, em alguns casos, retomadas pelos pesquisadores de uma forma que chamaremos aqui de desencarnada.

Em uma breve pesquisa em bases de dados digitais, seja de forma sistemática ou fortuita, encontraremos um conjunto de artigos dedicados ao método, ou mesmo a pesquisas em bases fenomenológicas que retomam, em geral, boa parte da construção filosófico-epistemológica do campo. No entanto, alguns deles, parecem não atribuir a estas instruções, ou reflexões, ou orientações e atitudes presentes nas obras eleitas como horizontes de sustentação de seus trabalhos, os próprios passos, etapas, momentos da pesquisa em que essas influências fenomenológicas foram importantes e como foram feitas, tomadas, interpretadas, etc.

A essa lacuna entre as instruções gerais constituídas por um domínio epistemológico que assegura a este conhecimento as bases fenomenológicas e as ações concretas que caminham nesse sentido é que nos parece haver um certo 'desencarne' entre o espírito fenomenológico, se assim podemos dizer, e o corpo da pesquisa. Apontamos que, em nosso posicionamento, isto nada tem a ver com a própria epistemologia do campo, assim como demonstrado no item anterior.

Em Husserl (1913/2006), a consciência seria um resíduo fenomenológico encontrado através da Epoché. Como foram, nas investigações, operadas as suspensões de juízo? Em que momento foram colocados entre parênteses a atitude natural que nos coloca conhecimentos e crenças prévias sobre o mundo?

As orientações de Husserl presentes em suas Investigações Lógicas (1901/1967) - redução fenomenológica pela suspensão dos juízos assumindo uma atitude antinatural; descrição dos fenômenos na relação originária da consciência-mundo; explicitação da essência intencional - como estão encarnadas no corpo da pesquisa?

Com Heidegger, em seu trabalho em Ser e Tempo (1927/1999), torna-se necessário pensar a constituição fundamental da pre-sença do ser-no-mundo, como a dimensão da impessoalidade se constitui no ser-aí que não pode ser jamais tomada como abstrata pois a própria constituição do Dasein é sua condição como ser-no-mundo. Como se operou, então, esta analítica do Dasein? Quais são as condições possíveis de pre-sença do Dasein em um determinado mundo histórico? Em que situações foi absorvido em sua convivência mediana? Qual é a dimensão contingencial e histórica do próprio impessoal? Qual é a significância deste mundo histórico?

A partir de Gadamer e suas exposições em Verdade e Método (1960/1997), temos que a linguagem ganha aspecto central, sendo o lugar de toda compreensão possível. Ela, a linguagem, se dá em um mundo que orienta historicamente seus usos e sentidos e, portanto, é preciso dar-se conta da característica circular do processo hermenêutico. Esta característica de circularidade apresenta-se na constituição homem-mundo, já que o homem se constitui nesse horizonte fático tendo este mesmo horizonte como o próprio fundamento da leitura sobre o mundo. Assim, a confrontação e tensão entre as tradições e hábitos são as possibilidades de negociação sobre a realidade do texto e de constituição do mesmo.

Neste sentido, é preciso pensar como se dão os acordos entre os interlocutores e o fato. Quais são os hábitos de linguagem que foram estruturados de acordo com um horizonte histórico vivido pelos interlocutores e como isso afeta sua leitura do mundo? Quais são as condições de compreensão prévias? Como são delineadas? Como se dá a fusão dos horizontes? Aonde estão os elementos de familiaridade e estranheza?

Diante disso, imaginamos que uma alternativa à situação colocada seria uma via pragmático-ética. Pragmática no sentido mais estrito de seu uso, em que a necessidade da pesquisa teria sua validade em seu êxito prático. Este "bom uso da pesquisa" seria nada mais que dar carne e sangue ao espírito fenomenológico. Espírito este que, em alguns trabalhos, parece passar de sobrevoo. O sobrevoo aparece aqui como o distanciamento dos processos construídos na relação homem e mundo. A relação homem-mundo encarnada seria justamente a tentativa de articulação esquemática que possa de alguma forma ilustrar que as instruções atribuídas a uma herança fenomenológica tiverem de fato repercussão sobre a investigação.

Outro desdobramento que entendemos como necessário aponta para o sentido ético em duas ramificações, o primeiro de via epistemológica e o segundo de via histórico-metodológica. Uma vez que a intencionalidade que correlaciona homem e mundo se torna necessária, então é necessário que as dimensões relacionadas sejam delineadas a partir de seus processos e dinâmicas relacionais. Isto quer dizer que os efeitos do mundo na relação com os sujeitos e dos sujeitos com o mundo precisam ser evidenciados. Essas evidências são da ordem das experiências possibilitadas neste contato constitutivo, sejam elas apresentadas por um Outro sujeito, ou pela demarcação histórica das significâncias do mundo, ou pelos diferentes hábitos de linguagem sedimentados que se encontram na interação homem e mundo possibilitando a leitura do próprio mundo.

Entretanto, destacamos por outra via que a experiência do pesquisador é já constitutivamente atravessada pela dinâmica relacional, ela é, então, contingente às próprias dinâmicas da relação que, na proposição da investigação, encontra em si mesma os rastros desse mundo do qual também é parte. Desta forma, torna-se importante que os elementos utilizados na compreensão do mundo, este mesmo mundo que lhe dá as condições de compreensão de si próprio, sejam não só explicitados, mas encarados também como um produto de um horizonte histórico que encarna provisoriamente um espírito fenomenológico.

Assim, a relação entre os esquemas evidenciados, ou seja, entre os processos e passos da pesquisa e as instruções fenomenológicas podem ser esclarecedores da própria dinâmica do investigador com o mundo de maneira que possamos ver os processos da produção do conhecimento e as repercussões da herança fenomenológicas na dinâmica constitutiva homem-mundo, sem desconsiderar aspectos éticos que incluem na mesma medida a posição onde está endereçado o pesquisador diante do conhecimento produzido. Dito isto, o investigador resguarda-se em uma posição de abertura e provisoriedade para aquilo que escapa às limitações da dinâmica estabelecida na própria investigação.

 

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Recebido em 07.02.2018
Primeira Decisão Editorial em 18.01.2019
Aceito em 23.04.2019

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