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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.26 no.2 Goiânia maio/ago. 2020

http://dx.doi.org/10.18065/2020v26n2.9 

ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

 

Angústia como constitutiva da existência: ressonâncias para a clínica psicológica

 

Anguish as constitutive of existence: resonances for the psychological clinic

 

Angustia como constitutiva de la existencia: resonancia para la clínica psicológica

 

 

Ellen Fernanda Gomes da SilvaI; Carmem BarretoII

IDoutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da UNICAP, na linha de pesquisa Práticas Psicológicas Clínicas em Instituições, Mestra em Psicologia Clínica pelo mesmo Programa, com Graduação em Psicologia pela Faculdade do Vale do Ipojuca-PE. Coordenadora do curso de Especialização Prática Psicológica Clínica na Perspectiva Fenomenológica Existencial da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). É membro participante do Laboratório de Clínica Fenomenológica Existencial (LACLIFE) / (Orcid 0000-0002-6279-4067) / Email: ellenfernanda1@hotmail.com
IIPsicóloga formada pela Universidade Católica de Pernambuco, com mestrado em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco, doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo, Pós-doutorado em Filosofia pela Universidade de Évora. Professora Adjunta IV da Universidade Católica de Pernambuco, atuando na Graduação em Psicologia e no Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica. Atualmente é Coordenadora Geral de Pesquisa - CGPq da Universidade Católica de Pernambuco, Coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Psicologia Clínica Fenomenológica Existencial e Psicossocial - LACLIFE / (Orcid 0000-0002-5532-039X) / Email: carmemluciabarreto@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo compreender a angústia enquanto constitutiva da existência humana, a partir da fenomenologia hermenêutica. Nessa perspectiva, pretende-se tecer possibilidades compreensivas que possam apresentar ressonâncias para pensar a clínica psicológica como lugar possível de acolhimento da angústia. Para tanto, dialogaremos com algumas dimensões do pensamento de Kierkegaard, Heidegger e Boss, na busca de subsídios que, por apresentarem outra possibilidade de compreensão de angústia, não atrelada a premissas teorético-explicativas, possibilitem pensar a ação clínica vinculada ao modo original como os fenômenos existenciais acontecem.

Palavras-chave: Angústia; Fenomenologia hermenêutica; Psicologia.


ABSTRACT

This article aims to present the understanding of the anguish as constitutive of human existence, from the hermeneutic phenomenology. In this perspective, we intend to weave comprehensive possibilities that may present resonances to think the psychological clinic as a possible place of reception of the anguish. For this, we will talk with some dimensions of the thinking of Kierkegaard, Heidegger and Boss, in the search for subsidies that, because they present another possibility of understanding of anguish, not tied to theoretical-explanatory premises, make it possible to think of the clinical action linked to the original mode as the existential phenomena happen.

Keywords:Anguish; HermeneuticalPhenomenology; Psychology.


RESUMEN

Este artículo tiene por objetivo presentar la comprensión de la angustia como constitutiva de la existencia humana, a partir de la fenomenología hermenéutica. En esa perspectiva, se pretende tejer posibilidades comprensivas que puedan presentar resonancias para pensar la clínica psicológica como lugar posible de acogida de la angustia. Para ello, dialogaremos con algunas dimensiones del pensamiento de Kierkegaard, Heidegger y Boss, en la búsqueda de subsidios que, por presentar otra posibilidad de comprensión de angustia, no ligada a premisas teorético-explicativas, posibiliten pensar la acción clínica vinculada al modo original como los los fenómenos existenciales ocurren.

Palavras-clave: Angustia; Fenomenología hermenéutica; Psicología.


 

 

“Que seria o homem sem a angústia? A arte, sem a angústia?
O pensamento, sem a angústia? [...] Não se trata de evitar, e sim de aceitar.
Não se trata de curar, e sim de atravessar”
(Comte-Sponville)

 

Introdução

Para iniciarmos essa discussão, recorremos à etimologia1 na tentativa de buscar um sentido originário para a angústia e encontramos no vocábulo grego "angor" e no latim "angere", que significa estreitamento, aperto, diminuição. Tal significado parece indicar que, na presença da angústia, vivenciamos sensações de sufocamento acompanhado de desconforto e desolamento. Agonia (Agon) também se encontra na raiz etimológica da angústia, referindo-se a uma luta, combate, intensa dor da mente e do corpo.

Na Psicopatologia, a angústia é tida como sintoma para critério diagnóstico (American Psychiatry Association, 2013). Se considerarmos o referencial psicanalítico, a angústia pode ser compreendida enquanto "elemento estruturante do existir humano, atribuindo-lhe uma função defensiva diante dos perigos que ameaçam a existência" (Rocha, 2000, p.13). Visitando a perspectiva humanista e escolhendo entre diversos posicionamentos a teoria da personalidade apresentada por Rogers, a angústia é derivada da incongruência entre o self e a experiência, podendo ser resolvida com ampliação da imagem de si mesmo (self). Já as neurociências concebem a angústia enquanto tensão psíquica, relacionada a distorções cognitivas frente às situações.

Diante de tais possibilidades de definir a angústia, perguntamo-nos: compreender a angústia não seria compreender a própria existência humana? Não é existindo no mundo que muitas vezes nos sentimos desalojados, sem abrigo, sufocados e não conseguimos uma "explicação precisa e direta" para tal experiência? Mas, ainda é pertinente perguntar: existiria um esclarecimento teorético sobre como abordar a angústia sem destruí-la? Ou, a compreensão da angústia, enquanto fenômeno originário da existência humana, não exigiria uma apropriação (fenomenológica) com a proximidade existencial da vida fática, a qual possibilitaria a apropriação das mostrações mesmas da existência humana?

Frente a tais inquietações escolhemos trilhar um caminho na companhia de alguns filósofos, na busca de outra compreensão da angústia que possibilite trazer ressonâncias para pensar uma clínica como ação de acompanhar o outro/paciente de modo a aguardar o "despertar" (deixar o que dorme vir a despertar) de modos de existir que possam encaminhar um cuidar de si, apropriando-se de sua história e reinterpretando-a.

Iniciamos nosso percurso com Comte-Sponville (1997), já que traz questionamentos que sinalizam um possível caminho a ser perseguido, principalmente quando ressalta que, não obstante às tentativas de escamotear a angústia, ela nos acompanha na caminhada pela vida. Nessa direção, provoca-nos ao questionar: "O que é mais angustiante que nascer? O que é mais angustiante que viver? O que é mais angustiante que morrer? Que é a angústia, senão esse sentimento em nós?" (p.11). Tais interrogações abrem um caminho para apresentar a angústia como condição de existir, nascemos e morremos nela.

Sobre o caráter inexorável da angústia, Comte-Sponville (1997, p.12) comenta: "o que é mais natural que a angústia? O que é mais humano que a angústia?" Apesar da sua presença que nos acompanha, algumas pessoas vivem "como se" a angústia fosse algo alheio. Comungando com a tentativa de encobrir a angústia, métodos e estratégias clínicas almejam nos proteger dela, outros querem curar-nos. A angústia, por sua vez, dolorosamente, lembra-nos que não há vida sem crises, que as situações cotidianas nos afetam, machucam-nos, ameaçam-nos. Mas, também, a angústia nos conclama para viver a vida em suas diversas possibilidades, correndo os riscos que a caminhada traz.

Importa lembrar que em Ser e tempo, Heidegger (1927/2012) aponta a angústia como uma das possibilidades de abertura mais originárias ao revelar que o homem tende a uma imersão impessoal no "mundo", revelando que foge de si mesmo como de seu poder-ser propriamente. No modo do impessoal, o domínio dos outros é assumido sem que o ser-aí, enquanto ser-com, se dê conta. Assim, "o impessoal pertence aos outros e consolida seu poder". (Heidegger, 1927/2012, p. 179). Partindo de tal contexto, é possível considerar que o desvio na decadência ou queda aponta a retirada do homem de si mesmo ameaçado pela angústia do próprio ser-no-mundo como tal.

Essa é a vida mesma! Diante do "esvaziamento" de sentido do mundo o homem tende a impessoalidade ao mergulhar na publicidade, no impessoal. Somos vulneráveis no mundo e mortais na vida. Expostos a todos os riscos, medos e ventanias. Dizer sim à vida denota aceitar também o que ela demanda para nós, necessariamente, fracassos e frustrações ao lado de alegrias e afetos que nos tomam e dão colorido à vida. Tal angústia nos paralisa, mas também pode tornar-se salto frente aos abismos de nossa existência, permitindo-nos alçar outros voos e/ou quedas menos doloridas. No entanto, também, pode apresentar-se como "parteira", ajudando o nascer de outros dias, indicando novos caminhos a trilhar, ao remeter o homem a sua singularidade, ao seu próprio poder-ser-no-mundo.

Seguindo nessa direção, reafirmamos nossa escolha de caminhar por uma trilha outra, na busca de questionar a essencialização da angústia e sua consequente determinação biológica. Nessa direção, escolhemos dialogar com Kierkegaard e Heidegger, "filósofos da existência", e, posteriormente, com Medard Boss, cujo foco era a clínica psicoterápica. Consideramos relevante esta discussão pois, a partir das possibilidades compreensivas abertas pela Fenomenologia Hermenêutica de tal diálogo, podemos, na clínica psicológica, compreender, intervir e acolher o fenômeno da angústia como condição própria da existência humana.

Para iniciar o percurso de tal caminho, importa trazer algumas reflexões do pensamento de Kierkegaard acerca da angústia, como possibilidade de iluminar um modo outro de pensar a clínica psicológica. Diante da complexa e vasta obra desse filósofo, escolhemos a voz do pseudônimo Vigilius Haufniensis, na qual a angústia é realçada como atmosfera de possibilidades.

Em seguida consideraremos algumas dimensões do pensamento de Heidegger, quando tematiza a angústia como disposição afetiva fundamental. Veremos que, além do caráter de singularização da existência, a angústia pode abrir para o homem a possibilidade de romper com a familiaridade cotidiana, apresentando-se como esvaziamento radical de sentido - o "nada" e o "em lugar nenhum".

Por fim, aproximando-nos da clínica psicológica, traremos contribuições a partir de Merdad Boss que, ao criticar uma perspectiva mais tradicional de psicoterapia, ressalta a dimensão constitutiva da angústia e indica a possibilidade de acolhê-la como "dote" do nosso estar-aí, do qual não podemos nos livrar.

 

"A escola da angústia" - considerações a partir do pensamento de Kierkegaard

Em sua obra "O conceito de angústia", Kierkegaard (1844/2015), na voz do pseudônimo Vigilius Haufniensis, indica-nos possibilidades compreensivas para o fenômeno da angústia e nos possibilita diálogos entre a angústia e a Psicologia. O filósofo inicia suas reflexões no capítulo V fazendo uma rápida referência a um conto dos irmãos Grimm denominado "João sem medo". Feijoo (2017) descreve que a narrativa é sobre um jovem que nada temia, mas que queria aprender a ter medo. O pai, o irmão e os amigos, com base em suas experiências, procuravam auxiliar João nessa tarefa. Em tal trajetória, o personagem se depara com fantasmas, animais ameaçadores, cadáveres, mas nada teme. Nem o querer de João, tampouco as instruções dadas a ele, mostraram-se suficientes para que aprendesse a temer. O término da narrativa sinaliza João se assustando com algo aparentemente inofensivo: peixes pulando em sua barriga enquanto dormia. Tais peixes foram postos sobre o seu corpo por sua esposa. Nesse momento João despertou e gritou que agora sabia o que era estar assustado. Foi a vida mesma, de súbito, que revelou a João seu caráter de vulnerabilidade.

Kierkegaard (1844/2015) realça que, tal como o personagem João, todos passamos pela aventura de angustiar-se, "para que não se venham a perder, nem por jamais terem estado angustiados nem por afundarem na angústia" (p.168). Tal narrativa nos encaminha a pensar a angústia como constitutiva da existência: viver é angustiar-se; viver é habitar na "escola da angústia". Aprender a conviver com a angústia é aprender acerca si mesmo, sobre o que há de mais singular e plural na nossa existência, assumindo a responsabilidade de ser quem nós mesmos somos.

O ponto de partida de Kierkegaard é a própria existência, debruçando-se diretamente sobre o humano. Tentar explicar a existência é negá-la. Sob essa perspectiva, o filósofo dinamarquês criticava os psicólogos de sua época, pois almejavam compreender o humano de forma abstrata: consultando compêndios, descrevendo e experimentando alterações no comportamento a partir de estímulos diversos. Sugere, então, como caminho possível para um distanciamento da tradição naturalista da ciência, a aproximação com a existência, a observação do homem em seu viver cotidiano, tendo como disparador a angústia.

Nessa direção, destaca Protasio (2017, p. 95):

Sua crítica se dá no sentido da ilusão de abarcar toda a existência nestes sistemas explicativos e na distância guardada entre o sistema e a existência concreta. Propõe, então, que à Psicologia não cabe o real em si, ou seja, a ação do homem, que é algo movediço, mas sua possibilidade. [...] O lugar da Psicologia é o lugar da angústia, da indecisão, onde o homem em liberdade opta por determinado modo de existir em detrimento de outro.

Segundo Kierkegaard (1844/2015), a angústia é a realidade da possibilidade, se revelando diante da compreensão de que o futuro é indeterminado, que há possibilidades de escolha e liberdade. Utilizando-se dos relatos bíblicos do Éden, Kierkegaard sugere que Adão, antes do pecado, estava na ignorância, em uma espécie de inocência, caracterizada por paz e repouso. Frente à possibilidade de escolher, foi tomado pela angústia ao dar-se conta de sua indeterminação. Em tal condição, outra possibilidade de compreender o mundo e a vida se apresenta, já que com a liberdade, o homem experimenta a si mesmo como possibilidade. "O que aparece para Adão é ele mesmo, a partir de uma diferenciação entre ele e ele mesmo. É, ainda, Adão, mas não o mesmo Adão" (Protasio, 2014, p.149). Cabe indicar que o elemento dessa diferenciação não pode ser determinado, nem tido como necessidade, mas enquanto possibilidade/liberdade.

Essa "angustiante possibilidade de ser-capaz-de" (Kierkegaard, 1844/2015, p.48) causou vertigem. Adão sentiu, no dizer de Kierkegaard, uma estranha ambiguidade que se mostra como antipatia simpatizante uma simpatia antipatizante. A possibilidade de escolha pode configurar uma experiência de angústia, visto que a escolha é um "passo no escuro" sem muitas ou nenhuma garantia. Nessa direção, o pecado surgiu como decorrência da angústia da escolha.

Angústia pode-se comparar à vertigem. Aquele, cujos olhos se debruçam a mirar uma profundeza escancarada, sente tontura. Mas qual a razão? Está tanto no olho quanto no abismo. Não estivesse ele encarado a fundura!... Deste modo, a angústia é a vertigem da liberdade, que surge quando o espírito quer estabelecer a síntese, e a liberdade olha para baixo, para a sua própria possibilidade, e então agarra a finitude para nela firmar-se. (Kierkegaard,1844/2015, p.67)

O autor nos apresenta a angústia como vertigem, o que nos fala de uma tontura, falta de lugar para se firmar. Mas por que razão? Na citação acima ele nos responde de maneira enigmática: "está tanto no olho quanto no abismo. Não tivesse encarado a fundura". A fundura encarada no olhar desperta o abismo angustiante da liberdade e a vertigem faz com que o espírito queira "estabilizar a síntese". Ao se deparar com o abismo de possibilidades não consegue aguentar, o peso opressor de não ser o acomete quase em um reflexo instantâneo a agarrar a finitude para nela se firmar (Gill, 2014). A finitude se refere ao limite das possibilidades. Se tudo se apresenta como possibilidade na atmosfera da angústia, é a finitude das mesmas que dá medida, que dá fundo, que dá chão.

Nesse sentido, e trazendo tal reflexão para a clínica psicológica, abre-se a possibilidade de pensar o espaço clínico como possibilidade de refletir como cada um está vivendo o seu tempo e como pode assumir a função libertadora da angústia - como ser livre para a propriedade de seu ser enquanto possibilidade de ser-si-mesmo.

Na clínica, é comum a procura por se sentir seguro, por encontrar a medida da existência, o caminho da superação daquilo que traz dor. De acordo com Feijoo (2017), diferentemente dos gregos antigos, o homem moderno em busca de um querer infinito, passou a desconhecer os limites, com total esquecimento do cuidado de si e, consequentemente, da medida existencial. Frente a tal contexto, no âmbito da clínica, é-nos solicitado que posicionemos a norma, indiquemos referências normativas ao paciente e aos acontecimentos da vida. A medida da existência é dada pelas teorias ou manuais que descrevem e caracterizam o humano, estabelecendo a medida normal/patológico dos comportamentos. O "homem da ciência" antecipa (prognóstico), controla (diagnóstico) e guia (prescrição) o caminho correto.

E, aos poucos, vamos entendendo que tal estratégia de conhecer/prescrever a medida não resolve, não nos livra da estranheza, não abarca a complexidade dos sofrimentos. Mas cabe enfatizar que nem sempre o paciente se sente em condições de se apropriar da sua medida - no caso aqui enfatizado, da angústia como vertigem da liberdade. Tal condição pode ser conquistada ou não na situação clínica, ou até pode surgir em certas "situações terapêuticas" espontâneas promovidas por acontecimentos na vida cotidiana.

Retomando o pensamento de Kierkegaard, compreendemos que, devido à ausência de a priores deterministas, é dado ao homem uma liberdade que lhe suscita angústia. A angústia surge, então, como inerente ao existente diante do que se abre, frente às possibilidades históricas que se abrem para cada um em sua existência concreta. Nesse projeto de ter-que-ser, a angústia libertadora ou a liberdade angustiada aparece como constitutiva do modo próprio de ser humano. Por meio da angústia, o homem pode se apropriar da nulidade que ele mesmo carrega enquanto mera possibilidade de ser.

Nesse sentido, questiona Kierkegaard (1844/2015, p.45), "há algo de diferente que não é discórdia e luta; pois não há nada contra o que lutar. Mas o que há, então? Nada. Mas nada, que efeito tem? Faz nascer a angústia". É com esse nada que a existência se depara rotineiramente. É o nada que perturba a calmaria do paraíso.

Um nada que parece já estar ali, mas não está, pois ainda não foi despertado. Este despertar surge do nada um nada que desperta o próprio nada da angústia. Esta sentença nos parece estranha e ambígua, mas é justamente nesta ambiguidade que se encontra a angústia. (Gill, 2014, p.100)

A angústia surge em um contexto de nadidade, ou seja, da falta de qualquer determinação, de algo que justifique sua mostração. Há somente um chão sem fundo, a ausência de sustentações nos faz permanecer lançados a possíveis. Apesar dessa condição constitutiva da angústia, assistimos à tentativa, por meio de diversos subterfúgios, de encobrir a angústia. Essa situação reaparece constantemente no encontro clínico, à medida que a busca por segurança se apresenta como insuficiente e incerta. Constatando dolorosamente tal ilusão e não suportando viver sem esse conforto e controle, comumente o paciente tende a procurar uma ajuda eficaz, seja ela psicológica ou psiquiátrica, quando de algum modo percebe que o modelo de responder às demandas fracassou. Daí a situação clínica poder abrir um horizonte ao deixar "serenamente" que o paciente se confronte com a condição existencial de "estar lançado no jogo da vida", de modo a poder-se descobrir como herdeiro de uma história-mundo como horizonte prévio e, ao mesmo tempo, assumir-se enquanto vir-a-ser.

Ao tematizar a questão do bem e do mal, Kierkegaard fala de um modo de ser, de estar que se insere em um momento historicamente dado e que guarda a tensão que impulsiona para o momento seguinte. Assim, há sempre presente a possibilidade de, estando no mal, ser tentado pelo bem; e estando no bem, ser tentado pelo mal. De acordo com Protasio (2017), se estar no bem é ter uma atitude de seriedade para com suas escolhas, ocorre sempre a tentação por sair de tal condição, assumindo, por exemplo, uma atitude mais relaxada e despreocupada com as consequências, deixando-se levar pela preguiça ou pelo adiamento. Estando no mal - considerando-o como a condição de estar escravo dos apelos do mundo, na não-responsabilidade -, o homem é tentando por assumir-se na seriedade.

Independente de sermos acometidos pela angústia do bem ou do mal, não podemos esquecer, como lembra, Haufniensis que "a angústia é aquilo ao redor do que tudo gira" (1844/2015, p.47). Esta afirmação parece sugerir que não importa onde o homem se encontre, o abismo da angústia estará ao seu lado. Não há outro caminho a não ser enfrentar a angústia, experimentá-la. Por isso, a intervenção do psicólogo não deve buscar "abafar" o fenômeno da angústia, mas tentar coconstruir um "espaço" de acolhimento para tal disposição afetiva. Nessa abordagem, a angústia não tem um tom negativo:

A angústia torna-se para ele um espírito servidor que não pode deixar de conduzi-lo, mesmo a contragosto, aonde ele quiser. Quando ela anuncia, quando parece que vai dar um golpe, [...] ele não recua, nem ao menos procura mantê-la afastada com ruído e algaravia, antes lhe dá as boas-vindas, saúda-a festivamente. (Kierkegaard,1844/2015, p.173)

Kierkegaard ressalta que aqueles que se apropriam da angústia do bem dão um "salto qualitativo", o qual não pode ser explicado, descrito por etapas. Interessante mencionar que o salto surge como possibilidade e não oferece garantias específicas. Na clínica psicológica, a consideração dessa compreensão nos leva ao reconhecimento da imprevisibilidade do "salto"; o qual não depende da postura do clínico, da aplicação de técnicas, nem do esforço contínuo dos pacientes de alcançar seus objetivos. Reflete, muito mais, um aguardar que as coisas se mostrem, a clínica como um lugar de deixar aparecer as possibilidades.

A voz do pseudônimo Vigilius Haufniensis apela para a necessidade de arriscar, de manter a tensão do impalpável. Não seria próprio da situação clínica acolher a experiência singular do paciente com seus questionamentos, surpresas e angústias? Caberia ao clínico, junto ao paciente, deixar aparecer as possibilidades que se mostram na experiência de vida e os possíveis encaminhamentos?

Retomando a questão da angústia, para Kierkegaard, ela surge questionando as ilusões, nos apavorando diante do nada. E, de modo ambíguo, revela-se também como elemento que nos desperta para a tarefa de sermos nós mesmos, nos chama de volta quando estamos perdidos na imersão do impessoal, quando somos mais uma ovelha no rebanho. Tal como foi exposto no conto dos irmãos Grimm, João rompeu com as prescrições do seu mundo familiar/seguro para dar um passo no desconhecido, em busca de aprender a angustiar-se, de uma apropriação singular.

João percorreu seu caminho e na existência mesma foi o lugar onde encontrou a "escola da angústia". Apenas a angústia anuncia a existência em sua caracterização de precariedade, de indeterminação, de abertura e de liberdade. Além disso, podemos considerar a angústia como despertar, quando Kierkegaard se refere a Adão como espírito adormecido, que desperta pela e na condição de sua indeterminação - ser angústia.

Tendo como direção a compreensão de angústia como escola, o homem pode, aos poucos, ir se distanciando das ilusões e atentando para a realidade da escola dos possíveis, os horrores que guarda, a destruição, os perigos. "Prosseguindo em seu caminho, pode enfrentar sem desvios e de forma honesta com ele mesmo estes horrores, abstendo-se de esconder-se nas possibilidades de êxito, convivendo com a angústia, de forma a não ser abatido por ela". (Protasio, 2017, p. 101).

As pistas dadas por Kierkegaard nos levam a considerar a importância de refletir sobre as ressonâncias da angústia na clínica psicológica. De acordo com Gill (2014), tal necessidade fala de uma relação peculiar da angústia com a Psicologia, que não se pretende explicativa. Partindo de pressupostos fenomenológicos hermenêuticos, o psicólogo compreende a existência humana e se coloca na clínica de um modo diferenciado. A angústia ocupa um lugar importante nessa perspectiva clínica, à medida que compreendê-la possibilita encaminhar a vida de outros modos, muitas vezes esquecidos ou desconsiderados.

Nessa direção, Protasio (2014) realça que o psicólogo cuida para que a situação clínica se constitua como espaço de liberdade, no qual ao escutar a fala da angústia se resguarda o espaço no qual a angústia pode devolver "o homem a si mesmo e às suas possibilidades, espaço onde o homem pode formar a si mesmo, transformar a si mesmo, pois é da possibilidade que pode advir uma transformação" (p.163). E para que esse espaço de abertura ao novo se dê, é preciso não abafar as inquietações, mas deixar que apareçam com aquilo que anunciam, apresentando a vertigem diante do nada.

O psicólogo conserva-se na retaguarda e apresenta, ao paciente, um "auxílio negativo". Sua ação está interessada em acompanhar o encontro do paciente consigo mesmo, "em que o cliente reconheça-se em sua ilusão, que este veja a si mesmo e reflita, julgue a si mesmo, e opte por sua singularidade, por assumir uma posição, comprometendo-se consigo mesmo, com seus contemporâneos e com Deus" (Protasio, 2017, p.119-120).

A experiência cotidiana é a escola em que a atmosfera da angústia pode abrir a possibilidade de transformação. Nessa direção, o psicólogo vai lidar com as possibilidades e riscos que caracterizam o existir humano. Aquele que acredita estar seguro e ter as respostas para os enigmas da existência não compreendeu, ainda, o lugar da angústia na Psicologia. Já aquele que aprendeu a angustiar-se sabe que em todas as coisas há riscos e, justamente por isso, há possibilidade de transformação.

 

A dimensão existencial da angústia em Heidegger - o "não se sentir em casa"

Para iniciar as considerações a respeito da angústia, importa ressaltar a compreensão ontológica dos existenciais na Analítica Existencial de Heidegger - dimensões da abertura do Dasein à revelação do ser, no horizonte do tempo. Vê-se que a intenção de Heidegger caminha no sentido de superar a ontologia metafísica da coisa enquanto modelo de referência da interpretação ontológica do homem. Com isso, indica, logo no parágrafo 34 de Ser e tempo, que a compreensão, a linguagem e a disposição são os existenciais fundamentais, constituintes da abertura do ser-no-mundo.

Para fins didáticos, vamos nos deter ao existencial da disposição afetiva o qual, onticamente, se apresenta como o humor, revelando o modo como alguém se encontra no mundo com os outros e consigo mesmo. Assim, "ele não vem de 'fora' nem de 'dentro'. Assim, cresce a partir de si mesmo como modo de ser-no-mundo" (Heidegger 1927/2012, p. 137, aspas do autor). A abertura do Dasein implica sempre um estado de ânimo, uma disposição afetiva, de modo a poder ser tocado pelo que vem ao encontro. Mais que emoções ou estados de alma, a disposição afetiva é o oferece ao Dasein o tom de sua existência, sintonizando-o no mundo; é a voz que o afina em seus comportamentos, apontando maneiras de ser e estar.

Essa afinação constitutiva revela-se variada e impermanente. Heidegger (1927/2012) menciona que, pelo fato de as disposições afetivas não possuírem subsistência fixa, a metafísica as toma como se fosse o que há de mais inconsistente. Embora a tradição vigente tenha essa impermanência como descrédito, é ela que evidencia que o Dasein é fundamental e inevitavelmente liberdade, pois sua existência se dá sem pré-determinações.

Segundo Critelli (2007), para compreensão dos fenômenos, o procedimento convencional da metafísica requer o isolamento das emoções e das sensações em que aquelas são apanhadas; já a fenomenologia heideggeriana compreende que nosso entendimento é, sempre e de alguma maneira, "emocionado", atravessado por estados de ânimo - "através dos estados de ânimo, os significados das coisas fazem sentido. E, através deles, esses significados mudam" (p.103). Cabe salientar que as disposições afetivas não têm seu fundamento nas concepções lógico-formais, pois são ontologicamente constitutivas.

Muitas são as disposições afetivas descritas por Heidegger: o temor, o tédio, a angústia, a admiração, o êxtase. Entre estas, Heidegger realça as disposições afetivas fundamentais, as quais provocam uma espécie de colapso radical na existência. Isto é, suspendem os sentidos prescritos na cotidianidade mediana, confrontando o Dasein com seu modo de ser mais próprio. Dentre as disposições afetivas fundamentais encontra-se a angústia, pela possibilidade que ela abre ao Dasein no modo da propriedade. Importa situar que, como foco do presente estudo, a partir de agora, iremos nos ater à disposição da angústia.

De início, cabe esclarecer que a angústia não é tomada como emoção ou fenômeno psicológico. A angústia, em uma dimensão ontológica, se apresenta como constitutiva, nos acompanhando com a persistência de uma sombra. Ela está sempre aí, porém velada pelo predomínio da decadência e da interpretação pública. Publicidade que, como modo de ser do impessoal, obscurece tudo, "tomando o que assim se encobre por conhecido e acessível a todos" (Heidegger, 1927/2012, p. 180). O impessoal não é algo simplesmente dado nem uma propriedade permanente, é um existencial, fenômeno originário e constitutivo do ser-aí. Assim, o desvio na decadência se funda na angústia e o homem está ontologicamente disposto como angústia, que se mostra como indeterminação originária. Partindo de tal compreensão, não é possível assumir, na clínica, intervenções que busquem eliminá-la, como algo que atrapalha um suposto bem-estar.

A angústia, como as demais disposições afetivas, revela ao Dasein o seu próprio ser-no-mundo, indicando que o Dasein está entregue a liberdade para ter-que-ser e poder-ser. "Com que" a angústia se angustia é indeterminado, não é objeto algum e não possui lugar definido. Essa característica distingue a angústia do medo. O ameaçador do medo provém de algo existente no mundo - as pessoas ou os entes intramundanos. "Nós nos atemorizamos sempre diante deste ou daquele ente determinado que, sob um ou outro aspecto determinado, nos ameaça. O temor de... sempre teme por algo determinado" (Heidegger, 1929/1999 p. 56).

A angústia, diferentemente, possui em si o caráter de indeterminação. Sendo, pois, uma disposição afetiva difícil de tematizar, já que a nada se refere e não apresenta um objeto com o qual se angustia. Aquilo que expressa a ameaça da angústia não pode ser distinguido, objetivado; não se sabe de onde vem nem para onde vai. Desse modo, em Ser e tempo Heidegger (1927/2012, §40, p.252) ressalta: "Aquilo com o que a angústia se angustia é o ser-no-mundo como tal. [...] O com quê da angústia não é, de modo algum, um ente intramundano. Por isso, com ele não se pode estabelecer uma conjuntura essencial. [...] O com quê da angústia é inteiramente indeterminado".

Como consequência do ameaçador da angústia não se encontrar em lugar nenhum, ele dispõe da possibilidade de não se aproximar a partir de uma direção determinada, visto que está sempre aí, embora em lugar nenhum. "Está tão próximo que sufoca a respiração e, no entanto, encontra-se em lugar nenhum" (p. 253). E acrescenta, que a ameaça é ela mesma indeterminada. "A angústia se angustia pelo próprio ser-no-mundo [...]. O mundo não é mais capaz de oferecer alguma coisa nem sequer a co-presença dos outros. A angústia retira, pois, do ser-aí a possibilidade de, na decadência, compreender a si mesmo a partir do mundo e na interpretação pública" (p.254).

Na angústia se está desabrigado, estranho. Estranheza que significa "não se sentir em casa". Diante do fenômeno da angústia, os projetos se recolhem, suspendendo aquilo que chamaríamos de lógica das ocupações, confrontando o Dasein à nudez de seu mundo e ao seu próprio modo de ser. Duarte (2010, p. 366) enfatiza que "angustiar-se é tornar-se estranho e expatriado em sua própria casa, o mundo, solapando-se à falsa certeza cotidiana de nossa identidade pública". Nesse sentido, a angústia se mostra como estranheza, tudo perde o tom, o reconhecimento. "Todas as coisas e nós mesmos afundamo-nos numa indiferença [...] Não resta nenhum apoio. Só resta e nos sobrevém - na fuga do ente - este 'nenhum'. A angústia manifesta o nada" (Heidegger, 1929/1999, pp. 56-57, aspas do autor).

Esse "nada" provém de um nada mais originário e fundamental que está na origem da angústia. Não sendo nenhum objeto determinado, o que angustia o homem é o próprio ser-no-mundo, que pode não-ser, isto é, a nulidade que ele mesmo carrega. Nesse sentido, a angústia é a experiência do nada. Por isso, diz Heidegger, o nada é um bom nome para o ser. O nada não pode ser confundido com a simples negação lógica, mas é posto como condição de possibilidade de toda negação.

Seguindo essa perspectiva, Heidegger (1929/1999, p.58) utiliza a expressão: "o nada nadifica", com o intuito de dizer que o modo de o nada se mostrar somente ocorre por meio do nada mesmo, sua essência é a nadificação. O nada não nos é dado como representação conceitual; é, pois, o próprio véu do ser que se revela em nossa existência através da angústia.

A linguagem poética de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, nos oferece a possibilidade de aproximação com o que Heidegger expõe acerca do nada:

Os outros nunca sentem.
Quem sente somos nós,
Sim, todos nós,
Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.
Nada? Não sei...
Um nada que dói...
(Campos, 2002, p. 452)

O nada enunciado pelo poeta não tem o sentido valorativo de negatividade. O nada que dói revela o estranhamento diante do nada mesmo, da "noite em branco" (Haar, 1990, p.80) da angústia. Tal angústia não apresenta motivo aparente, mas volta-se à inquietante estranheza do aí-lançado. É um vazio, um nada que dói, à medida que corresponde a ausência do ser que é nada.

Na clínica psicológica, esse nada não se apresenta no âmbito do entendimento, da representação conceitual, embora, de fato, se mostra como um vazio de entes, uma dor. Ouvir o chamado silencioso do nada, da estranheza originária, abre a possibilidade de interromper, mesmo que momentaneamente, o ruído contínuo "das muitas interpretações públicas que nos dizem, insistentemente, 'o que' somos; é também nessa escuta à voz que diz o nada da existência, que diz de sua indeterminação fundamental, que o ser-aí é arrancado do conforto tranquilo da familiaridade com os sentidos mundanos já estabilizados" (Duarte, 2010, p.424, aspas do autor).

No poema Bicarbonato de soda, Álvaro de Campos expressa uma dor tamanha diante da experiência com a angústia, de sorte que questiona se deveria pôr fim à vida para aliviar seu sofrimento. Apesar da estranheza que provoca náusea, atormenta seu corpo e mente, realça que vai existir, existir na angústia.

Súbita, uma angústia...
Ah, que angústia, que náusea do estômago à
alma!
(...)
Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
(...)
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?
Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir..
E--xis--tir...
(Campos, 2002, p. 366)

A angústia pode possibilitar ao Dasein a compreensão mais própria de sua finitude, mediante a perspectiva de que se é ser-para-a-morte, de que a morte é uma possibilidade a cada instante. Diante do fenômeno da angústia, o Dasein pode compreender-se na sua finitude, reconhece que o fim da sua existência é um evento iminente, uma possibilidade irremissível e insuperável. Tal compreensão não acontece de um modo teórico/racional, mas fáctico e existencialmente quando se dá conta de que o seu poder-ser próprio está em jogo.

É na disposição da angústia que o estar-lançado na morte se desvela para a presença de modo mais originário e penetrante. [...] Não se deve confundir a angústia com a morte e o medo de deixar viver. Enquanto disposição fundamental da presença, a angústia não é um humor "fraco", arbitrário e casual de um indivíduo singular e sim uma abertura de que, como ser-lançado, a presença existe para seu fim. Assim, esclarece-se o conceito existencial da morte como ser-lançado para o poder-ser mais próprio, irremissível e insuperável. (Heidegger,1927/2012, p. 326-327, aspas do autor)

Retomando o poema, parece que o poeta apropriou-se da condição de que viver é angustiar-se. Contudo, "não pode prever a ocasião do surgimento [ôntico] da angústia, sempre inesperado" (Haar, 1990, p.85). Esta indeterminação provoca perplexidade, estranheza; há umnada e em lugar algum, o homem em nenhuma parte encontra sua morada. A angústia nos deixa suspensos, sem apoio nem defesas, desabrigados, propícios a sermos tomados subitamente pelo nada. "O ente no seu conjunto afasta-se, desliza, para um abismo de não sentido, tornando-se radicalmente estranho" (Haar, 1990, p. 81). Tal compreensão, aponta para o fato de que não há um fundamento fixo para a existência, senão o próprio fundamento sem fundo da finitude. É o fundo abismal (Abgrund) da existência que revela-se pela angústia.

Como é que neste vazio poderíamos encontrar o poder-ser mais próprio, a liberdade? "Mas se o mundo é nesta altura vazio de sentido, como é que o sentido do mundo como mundo, do mundo enquanto tal, poderá sobreviver ao naufrágio de todas as significações?" (Haar, 1990, p. 82). De acordo com o autor, é preciso que a pura possibilidade de ser-no-mundo não seja tocada, mas reforçada pela angústia. Nesse sentido, a nulidade, esse vazio que constitui o ser, difícil de assumir, pode abrir a possibilidade para que possamos lidar com a angústia e apropriar-se de nossa existência.

Em Puseram-me uma tampa, Álvaro de Campos expõe como a angústia pode ser sufocada por uma tampa que abafa as possibilidades de outras aspirações, confinando o existente na segurança do familiar, apesar do "não se sentir em casa" apresentar-se, existencial e ontologicamente, como fenômeno originário.

Puseram-me uma tampa -
Todo o céu.
Puseram-me uma tampa.
Que grandes aspirações!
Que magnas plenitudes!
E algumas delas verdadeiras...
Mas sobre todas elas
Puseram-me uma tampa.
Como a um daqueles penicos antigos -
Lá nos longes tradicionais da província -
Uma tampa
(Campos, 2002, p. 447).

Na angústia a linguagem é emudecida, um grito interrompido! Um nada que dói, que pode nos salvar ou lançar-nos em um abismo. Ao sermos solicitados a tirar essa tampa, cada um ao seu modo e ao seu tempo, somos convocados à disponibilidade para a angústia. Nessa convocação, questionamos nossa existência, podendo dar-se o acontecimento de uma apropriação de si. Será que não é esse o motivo fundamental que leva o paciente a procurar, na clínica psicológica, um acolhimento para a "dor de existir"? Dor, mostração da angústia, companheira constante, que também pode agir enquanto "parteira" no movimento a caminho do seu ser mais próprio?

A esse respeito salienta Heidegger (1927/2012, §40, p.257) que somente na angústia há a possibilidade de uma abertura privilegiada. Tal singularização "retira o ser-aí de sua decadência, e lhe revela a autenticidade e inautenticidade como possibilidades de seu ser. Na angústia, essas possibilidades fundamentais do ser-aí que é sempre meu, mostram-se como elas são em si mesmas, sem se deixar desfigurar pelo ente intramundano a que, de início e na maioria das vezes, o ser-aí se atém".

A abertura que se faz presente na angústia não é algo ordinário; é uma abertura privilegiada, pois nela o nosso ser mais próprio se encontra. É diante da angústia, à medida que há a possibilidade de suspensão e silenciamento da tutela do mundo, que podemos realizar escolhas mais próprias e responsabilizar-se por elas. De acordo com Rodrigues (2017), como abertura privilegiada, a angústia tem uma feição iluminadora ao passo que realça quem somos. E, ao fazê-lo, nosso horizonte de verdades e referências é ameaçado; revelando uma dimensão de provisoriedade e de impermanência. As certezas, que outrora tornavam o mundo familiar, são perdidas e as afirmações sobre nós mesmos são passíveis de serem descontruídas. Interessante salientar que a angústia também apresenta uma feição disruptora, "pois aponta para outras possibilidades de ser, nos permitindo refazer os caminhos e as verdades que norteavam a nossa existência" (p.252).

Cabe mencionar que o sentido de singularidade própria que destacamos aqui se refere àquilo que se mostra apenas uma vez, propriedade única que escapa à objetificação. Em outros termos, singularização diz de um modo de compreender a vida e não um estágio a se alcançar por meio de técnicas.

A angústia singulariza e abre a presença como "solus ipse". Esse "solipsismo" existencial, porém, não dá lugar para uma coisa-sujeito isolada no vazio inofensivo de uma ocorrência desprovida de mundo. Ao contrário, confere à presença justamente um sentido extremo em que é trazida como mundo para o seu mundo e, assim, como ser-no-mundo para si mesma. (Heidegger, 1927/2012, p.255, aspas do autor)

A angústia retira a presença de seu empenho decadente no "mundo" e rompe-se a familiaridade cotidiana. Desse modo, a angústia abre a presença como ser-possível, como aquilo que somente a partir de si mesmo pode singularizar-se como singularidade. Para Duarte (2010, p.423, aspas do autor), a angústia revela a singularidade ao passo que:

desaloja a certeza de nossa identidade cotidiana e nos entrega ao mistério de existir sem ter um porquê. Nesse sentido preciso, por mais aterrorizante que essa disposição afetiva se mostre àquele que a experimenta, a angústia, longe de ser um infeliz acidente psíquico ou psiquiátrico, a ser prontamente erradicado pela parafernália farmacológica, deve ser pensada como o "júbilo que assinala a presença de um homem". Ela é uma disposição de ânimo liberadora na medida em que dissolve a camisa de força dos conceitos e interpretações já tramados a respeito de tudo o que é, liberando o questionamento das certezas pré-adquiridas e desencobrindo o "ser para o poder-ser mais próprio, ou seja, o ser-livre para a liberdade de assumir e escolher a si mesmo".

Como vimos, na experiência singular da angústia emerge a possibilidade de apropriação da existência. No confronto consigo mesmo, na estranheza que surge, o homem pode apropriar-se de novas/outras possibilidades existenciais e estar em contato com o seu poder-ser mais próprio. No entanto, não escapa da possibilidade de voltar a perder-se na cotidianidade e na familiaridade do mundo.

Temos aqui a angústia, tal qual se apresenta nos atendimentos clínicos ou pode ser constatada, cotidianamente, na existência. Muitos pacientes chegam em busca de controle do que está por vir, temerosos com um futuro que não se assemelhe às expectativas previamente elaboradas, não estando "disponíveis" a mudanças, desfechos e outras rotas e atalhos. Tal contexto "traduz estreiteza e limitação de liberdade, evidencia a não aceitação de uma relação com o mundo que se dá sempre em abertura" (Rodrigues, 2017, p.252).

No horizonte histórico atual, no início e na maioria das vezes, não ouvimos aquilo que a angústia nos clama, nos refugiando na "tranquilidade" do impessoal, do já conhecido. Não toleramos o aberto, o indefinido, a falta de previsibilidade e o controle. "Criamos barreiras, obstruções, buscamos a contenção do que não pode ser contido, nos apegamos aos nossos modos de ser, e, dessa forma, sofremos" (Rodrigues, 2017, p.254). Se nos mantivermos no encobrimento, se não ouvirmos a mensagem da angústia, ela será "psicologizada", desse modo pode ser diagnosticada e medicalizada, perdendo, assim, o seu papel sinalizador e disruptor e se converterá em sofrimento psíquico e, muitas vezes, em patologia.

Por fim, é preciso destacar que a angústia realça a nossa condição de pura possibilidade, ameaçada pelo destinamento técnico moderno. Na familiaridade cotidiana, o homem faz da terra seu lar. Todavia a angústia, apesar de diversas tentativas de obscurecimento, irrompe o sentir-se em casa, revelando que ser é tarefa interminável e que qualquer familiaridade é tão somente transitória. A angústia carrega em si um apelo para lembrar-nos que a existência é finita e mortal, está entregue à responsabilidade de ser, que a existência está sempre em jogo em uma abertura temporal.

 

Angústia como "dote existencial": aproximações de Boss com a clínica psicológica

No intuito de ampliar a discussão das ressonâncias da Analítica Existencial para a clínica psicológica, recorremos a Medard Boss, psiquiatra suíço, reconhecido por avizinhar as contribuições fundamentais do pensamento filosófico de Heidegger ao âmbito da clínica médica e psicológica. Distanciando-se da metapsicologia de Freud, Boss aproximou-se da Daseinsanalyse - ciência voltada para a compreensão do homem e de modos de intervenção e cuidado "iluminados" pela perspectiva heideggeriana de homem e de mundo, principalmente àquela desenvolvida na obra Ser e tempo.

O interesse de Boss (1977) para com a angústia é, antes de tudo, clínico. A tematização desse fenômeno parte da dimensão ôntica-existenciária, na qual a angústia se mostra de modo mais imediato, "no âmbito dos psiquicamente doentes" (p.18), "sendo intimamente corroídos, declarada ou veladamente" (p.15).Logo no início de sua obra, Boss (1977) indica a compreensão da angústia como dimensão originária, sendo considerada em diversos lugares e de acordo com velhos provérbios, como aquilo que "apreende o mundo no íntimo" (p. 15).

Partindo de sua experiência clínica, Boss salienta que, nas últimas décadas, se verificou uma significativa modificação do fenômeno da angústia. No início do século XX o clínico percebia as expressões da angústia nas histéricas, nos homens que retornaram da Primeira Guerra Mundial e também naquelas situações de fobia como agorafobia e como claustrofobia. Todavia, com o passar do tempo, as mostrações da angústia ficaram cada vez mais incompreensíveis: ameaçam se esconder nos distúrbios cardíacos, nos gástricos, ou sob as queixas de um tédio vazio e na insensatez da vida; e encobrem seu próprio sentido recorrendo à ininterruptas atividades ou ao embotamento de drogas e de tranquilizantes.

Interessante notar que Boss vincula o encobrimento da angústia à supremacia técnica, pois ela "nos leva a compreender e a nos considerar como sendo apenas uma rodinha no aparelho de uma gigantesca organização social" (p. 17). A técnica põe em perigo o existir humano! Os fenômenos, inclusive a angústia, são reduzidos, a simples entidades físicomatemáticas, a um sistema de energia e forças que representa, desconsidera o caráter enigmático da experiência.

Será que nós, psicoterapeutas, não estamos totalmente impotentes diante do atual espírito violentador da tecnocracia, desde que este se apoderou dos nossos pacientes? Talvez só estejamos totalmente impotentes enquanto continuamos a permitir que esse espírito também aprisione nossos próprios pensamentos e ações médicas. (Boss, 1977, p.19)

Se atentarmos para os conceitos fundamentais da Psicologia, encontraremos, em grande medida, a perspectiva do saber técnico-científico e o obscurecimento da experiência humana. "Mesmo quando psicologias posteriores substituem a 'psiquê' de Freud pela ideia de uma 'alma', 'sujeito', ou 'pessoa', elas raramente rompem as dimensões de seu pensar tecnológico que objetiva o ser humano" (p. 19, aspas do autor). Nessa direção, Boss esclarece que o método de trabalho de Freud compreende a angústia como defeito de uma psiquê, o qual impede o bom funcionamento do humano - "por isso eles têm de ser eliminados quanto antes e com todos os recursos disponíveis" (p.20). E acrescenta que as teorias psicológicas vigentes na atualidade, utilizando a mesma lógica das chamadas ciências positivistas, ainda buscam a eliminação de distúrbios.

Cabe refletir o quanto a Psicologia se empenha em encontrar uma causa própria para as experiências humanas. Em tal perspectiva, vigora a ordem cronológica dos fenômenos, na qual, em uma sequência de acontecimentos, o fenômeno anterior causaria o posterior. Também, ao assumir a herança do pensamento moderno, a Psicologia, opera com modelos teorético-explicativos e propõe protocolos técnicos na tentativa de explicar e detectar as causas das experiências humanas.

Frente à tentativa de explicação dos fenômenos, Boss (1977, p.21) realça: "na prática psicoterápica, estas teorias psicológicas não cumpriram, de forma alguma, as esperanças nelas depositadas". E assume seu compromisso de, desde logo, abrir mão "de toda possibilidade de compreender as próprias coisas na sua realidade verdadeira e imediata" (p. 22). Nessa linha compreensiva, acena para a possibilidade de, mediante às expressões da angústia, nos resguardar de explicá-la a priori. "Para nós terapeutas, nada se apresenta mais urgente, do que desistir de uma vez por todas, e com toda sinceridade, de sempre decompor o ser humano com a ajuda de teorias psicológicas" (p. 25). Antes, trata-se de aproximar-se da singularidade do fenômeno com aquilo que ele mesmo revela.

Contrapondo a sua compreensão de angústia com as teorias psicológicas vigentes, Boss chama a atenção para a condição de que cada angústia tem um "do que" teme e um "pelo que" teme. Esse "do que" refere-se a um ataque lesivo à possibilidade do estar-aí - no fundo, cada angústia teme a possibilidade de um não estar aqui. E o "pelo que" sempre se preocupa e zela pela duração do estar-aí. As angústias "são sempre medo da destruição e do não-poder-mais-ser deles próprios" (p. 27-28). Na angústia nos vemos lançados em um abismo sem fundo, frente à ausência de qualquer representação, de segurança a nos apegar. Mas, na tentativa de escapar do nada, da fragilidade da existência, tendemos a buscar atalhos para evitar o sofrimento.

Aqui encontramos novamente Boss aproximando o fenômeno da angústia das ressonâncias da era técnica: "não é de se admirar que logo no início deste apocalipse científico-mental e desta realidade escavacada pela técnica, surgisse uma crescente necessidade de segurança" (p. 28). Em tempos de alienados e de anestesiados por uma aparente ausência de carências, a essência da "dor de existir" se retrai e se encontra ausente. Nessa direção, a angústia adquire uma conotação de mal-estar a ser evitado. Importa retomar que, enquanto condição originária, a angústia abre o Dasein como ser possível, mobilizando-o, imerso nas ocupações do cotidiano, a poder-ser propriamente. Poder-ser que abre a possibilidade de assumir a contingência e finitude da existência humana, lançando-o na sua condição de ser para-a-morte. "Portanto, não será a angústia necessariamente inerente à vida, como um dote do nosso estar-aí, do qual não é possível, nem psicoterapicamente, se livrar?" (p. 28). Nessa direção, seria mesmo a angústia o nosso "dote existencial", condição mais própria, que nos constitui como humanos? Esse dote intransferível aponta também para uma dívida iliquidável, que nos acompanha na jornada da vida? Mas será que existem caminhos que conduzem à libertação?

Interessante que Boss (1977) utiliza como metáfora o processo de troca de pele de uma cobra para nos aproximar de como muitos pacientes apropriam-se de suas angústias. Na época de muda, a pele da cobra se torna apertada e perece. Para nós, essa mudança talvez pareça um acontecimento catastrófico, todavia, para a cobra como tal, o trocar a pele é o oposto de um morrer - "é um criar espaço para seu crescer e amadurecer" (p.34).

Partindo da perspectiva de Boss, a experiência da angústia pode restringir e limitar o paciente de uma tal forma que, "ele compreende a si próprio apenas como uma gota d'água solitária, trêmula, suspensa no ar" (p.35). Tudo perde o sentido! Mas a angústia pode também dar passagem para outros começos, outros destinamentos: "se alguém se mantém realmente aberto à essência total e não disfarçada da angústia, é aí justamente que ela abre aos seres humanos aquela dimensão de liberdade" (p. 36).

Até aqui vimos a angústia enquanto dimensão constitutiva e seu encobrimento no horizonte técnico atual. Realçamos também a tendência de buscarmos "rotas de fuga" para amparar ou minimizar o sofrimento, visto o vazio e a insignificância que nos atravessa. Esta mesma angústia que contrai o nosso peito com mal-estar, pode dizer algo sobre nós, mobilizando a apropriação das possibilidades de vida, dispondo delas livremente e com responsabilidade.

Mas como nos aproximar da experiência da angústia? Será que a clínica pode escutar os apelos da angústia, já que tal atitude de escuta se tornou escassa na vida de um modo geral? Seguir nessa direção demanda coragem e esforço, carece de cuidados semelhantes a atitude do lavrador que sabe aguardar o despontar e o amadurecimento da semente. Tal direção requer também renúncia a uma visão subjetivista, técnico-científica que permite uma compreensão ofuscada e limitada e que, no início e na maior parte das vezes, detém-se ao que é mensurável e calculável - medidas, volumes, composição físico-química.

Questionando a tradição objetivista e nos auxiliando na tarefa de aproximação dos fenômenos em uma perspectiva fenomenológica, Boss (1977) retoma o exemplo da macieira em flor, já utilizado por Heidegger, indicando que a árvore se apresenta a nós como aquilo que ela é, consoante com os próprios significados que a constituem. "Ela mesma nos comunica estes significados. Nós homens, apenas nos colocamos em frente da árvore em flor. Mas com isto nós nos pomos à disposição dela como local de aparecimento" (p.59). Mas, o encontrar-se diante da árvore provoca outras possibilidades compreensivas que aproximam o homem da dimensão da existência, atravessada pelos sentidos que se desvelam na contemplação da árvore.

Essa compreensão assume, em uma perspectiva fenomenológica, um significado que ultrapassa o caráter objetificador como representação. Enquanto destinamento, a técnica nos solicita como seus realizadores, contudo, há a possibilidade sempre presente de um relacionamento mais livre. Nessa direção, ao pensar na clínica, "o método nunca deve dominar o paciente. Pelo contrário ele tem que se orientar pelo paciente" (p.62). A experiência da angústia, por exemplo, não será determinada a partir de um manual explicativo, mas resguardada na sua convocação de romper mundos, manter a estranheza e a indeterminação, cuidar e zelar pela condição de ser humano.

 

Considerações finais

No curso dessas considerações, a compreensão ontológica da angústia, apresentada pelo pensamento de Kierkegaard e de Heidegger, nos possibilitaram outro modo de compreender as mostrações ônticas, presentes na clínica psicológica. Vimos que, para Kierkegaard, a angústia é constitutiva frente às possibilidades que se mostram para cada um em sua existência concreta. É na angústia que nos mobilizamos no sentido de apropriação da condição de liberdade. Todavia, o que se apresenta é uma tensão, uma ambiguidade entre ansiar pela liberdade e viver na ilusão, seguindo os ditames do mundo e se posicionando como mais uma "ovelha no rebanho".

Ao buscarmos refúgio nas determinações do impessoal, almejamos encobrir a angústia a partir da ilusão de que somos uma síntese pronta e assim não há o que temer. É desse modo, no início e na maioria das vezes, que aquele que busca a situação clínica se encontra. A angústia desperta o homem do distanciamento de si mesmo! Experimentá-la e nela emergir são o possível da liberdade. Nessa perspectiva, a questão do psicólogo é acompanhar a atmosfera da angústia, espaço em que pode ocorrer "o salto qualitativo".

É relevante ainda apontar a compreensão da angústia enquanto escola que solicita o homem para ser educado por ela, aprendendo a conviver com os possíveis da liberdade e a reconhecer-se em sua finitude. Mobilizado pela angústia, o paciente pode encontrar-se consigo mesmo e, a seu modo e a seu tempo, despertar reconhecendo-se finito, considerando seus limites frente ao real estabelecido e ao futuro.

Seguindo as trilhas percorridas por nós neste artigo, cabe também mencionar as contribuições heideggerianas para compreensão da angústia enquanto constitutiva. Como foi discutido, para Heidegger a angústia é tida como disposição afetiva fundamental, disposição da estranheza por excelência, do não-sentir-se-em-casa. A angústia revela para o próprio ser-aí angustiado, que ele originariamente não tem abrigo - afundamo-nos em uma indiferença, somos suspensos, tudo perde o tom. Em tal desabrigo, a linguagem pode ser emudecida, questionando as prescrições sedimentadas do mundo e nos convocando à disponibilidade para a angústia. Nessa convocação, pode dar-se o acontecimento de uma apropriação de si.

A angústia surge, então, enquanto abertura privilegiada ao passo que ela singulariza. O que a angústia sinaliza é a nossa própria condição de sermos em aberto, o próprio vir a ser que é finalizado apenas com a morte. A angústia revela a possibilidade de apropriação da existência à medida que desaloja a certeza e a tranquilidade da tutela cotidiana, "libertando" o ser para o poder-ser mais próprio, para a liberdade de assumir e escolher a si mesmo.

Tal compreensão heideggeriana possibilita ressonâncias para a clínica psicológica ao contribuir para pensarmos uma prática que indica um empenho inquietante e, por vezes angustiante, de acompanhar o paciente. Nessa perspectiva, ressalta-se a importância de ouvir os apelos da angústia, acompanhando o paciente em sua saga, no desabrigo de existir, resguardando um espaço que salvaguarda a possibilidade de o paciente poder-ser, responsabilizando-se pela condição de destinar-se na vida.

As contribuições de Boss também se mostraram fecundas ao oferecer subsídios para a Psicologia e suas práticas, a fim de questionarmos os sentidos previamente dados acerca da angústia - como mero sofrimento ou sintoma que norteia os diagnósticos psicopalogizantes - e ampliar nossa liberdade de correspondência a outras possibilidades que se anunciam na situação clínica. Boss indica que, frente à supremacia da técnica, a qual põe em perigo o existir humano, a compreensão de angústia é reduzida a entidades fisio-matemáticas, encobrindo o sentido mesmo da experiência do paciente e recorrendo, na maioria das vezes, ao embotamento de drogas e tranquilizantes como alívio/cura possível para o mal-estar.

É oportuno considerar a compreensão de angústia como dote, condição mais própria que nos constitui como humanos e da qual não é possível se abster. Essa angústia pode abrir o paciente para a dimensão de liberdade, mobilizando-o a apropriação das suas possibilidades mais próprias. Nessa direção, Boss nos lembra que a prática clínica não seria mais uma atividade técnica que visa apenas a produzir uma pretensa sensação de bem-estar. Podemos pensar, então, na situação clínica como possibilidade de acolher ao que há de alheio na "era da técnica": a angústia, as diversas mostrações de sofrimento, o silêncio, os paradoxos de existir.

Por fim, após retomar as considerações de Kierkegaard, Heidegger e Boss, sinalizamos a necessidade de colocar em andamento questionamentos que podem manter desperta a reflexão na clínica psicológica: como os profissionais em Psicologia estão lidando com o fenômeno da angústia? Há espaço para acolher os apelos da angústia?

Tais inquietações abrem caminho para a indicação de uma clínica psicológica que acolhe as mostrações da angústia, a qual não pode ser generalizada, expressando-se em tons diversos na queixa/fala dos pacientes. A singularidade do fenômeno nos encaminha a questionar a tentativa de aplicar uma técnica psicológica determinada a priori, já que tal singularidade realça a possibilidade de acolher a angústia como se apresenta, sem tentar encaixá-la em uma determinada relação de causalidade e universalização.

Esse pôr em questão ao qual nos referimos assinala a dimensão de perplexidade na vida e na clínica. A angústia nos suspende! E nossas teorizações? "Nunca as teremos em número suficiente para expressar o infinito do real ou de nossos pavores" (Comte-Sponville, 1997, p.13). Frente ao predomínio do pensamento que calcula e representa conceitualmente, "a angústia nos corta a palavra [...] em sua presença emudece qualquer dicção do 'é'" (Heidegger, 1929/1999, p.57, aspas do autor). É o fundo abismal (Abgrund) da existência que aparece descoberto pela angústia, rompendo com a familiaridade cotidiana do clínico, do paciente e de todos os homens, sinalizando que não temos a vida sob controle.

 

Referências

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Recebido em 26.06.2018
Primeira Decisão Editorial em 04.10.2018
Aceito em 24.04.2019

 

 

1 Recuperado em outubro de 2017, em: https://www.gramatica.net.br/origem-das-palavras/etimologia-de-angustia / ; https://www.merriam-webster.com/dictionary/agony

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