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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.27 no.2 Goiânia maio/ago. 2021

http://dx.doi.org/10.18065/2021v27n2.10 

REVISÃO CRÍTICADE LITERATURA

 

Uma reflexão sobre a fenomenologia da experiência estética: o caso do teatro1

 

Reflecting on the phenomenology of aesthetic experience: the case of theater

 

Una reflexión sobre la fenomenología de la experiencia estética: el caso del teatro

 

 

Jenifer Cortes Demeterco Geromini

Universidade Federal do Paraná. E-mail: jeniferdemeterco@gmail.com

 

 


RESUMO

A arte, por se tratar de um tema fundamentalmente humano, mostra-se como campo de estudos importante à filosofia e à psicologia. Considera-se relevante pensá-la sob o viés da fenomenologia, que compreende a atividade artística não como representação, mas como expressão. Por meio deste estudo, objetiva-se refletir acerca da atividade do ator/da atriz de teatro a partir da obra Phénoménologie de l'experience esthétique, principal produção de Mikel Dufrenne, fenomenólogo que escreveu o mais extenso estudo a respeito da estética em fenomenologia. Essa tarefa se realiza em duas etapas: uma possível explanação a respeito da experiência estética tal como proposta por Dufrenne e, a partir dela, a construção de uma reflexão a respeito do trabalho do artista de teatro. Fica evidente o papel que a arte e, sobretudo, o artista tem na ressignificação do mundo, ao ser ele quem oferece ao espectador, por meio de uma intersubjetividade imanente, um mundo expresso como novidade. Entende-se que, para além do estudo de temas específicos, o estudo da experiência estética em fenomenologia, a partir da ótica dufrenniana, pode se mostrar relevante para a compreensão do fenômeno humano em sua generalidade.

Palavras-chave: Experiência estética; Fenomenologia; Arte; Teatro.


ABSTRACT

Art, a fundamentally human subject, has become an important field of study in both philosophy and psychology. It is deemed relevant to think of it from a phenomenological perspective, that regards artistic activities not as a representation, but as an expression. This study aims to consider the actor's/actress's activities based on the book Phénoménologie de l'experience esthétique, the main work by Mikel Dufrenne, a phenomenologist who wrote the most extensive study regarding aesthetics in phenomenology. This task has been accomplished in two stages: a possible explanation about the aesthetic experience as proposed by Dufrenne and, from it, the construction of a reflection about a theater artist's work. The role that art and, above all, the artist plays in the resignification of the world becomes evident, as he is the one who offers the viewer, through an immanent intersubjectivity, a world expressed as a novelty. It is understood that, in addition to the study of specific topics, the study of aesthetic experience in phenomenology, from the Dufrennian perspective, may prove relevant to the comprehension of the human phenomenon in general.

Keywords: Aesthetic experience; Phenomenology; Art; Theater.


RESUMEN

El arte, un tema fundamentalmente humano, se ha convertido en un importante campo de estudio tanto para la filosofía como para la psicología. Se considera relevante pensarlo desde una perspectiva fenomenológica, que considera las actividades artísticas no como representación, sino como expresión. Este estudio tiene como objetivo reflexionar sobre las actividades del actor/actriz, basado en la obra Phénoménologie de l'experience esthétique, el trabajo principal de Mikel Dufrenne, un fenomenólogo que escribió el estudio más extenso acerca de la estética en fenomenología. Esta tarea se realizó en dos etapas: una posible explicación sobre la experiencia estética propuesta por Dufrenne y, a partir de ella, la construcción de una reflexión sobre el trabajo de un artista teatral. El papel que desempeña el arte y, sobre todo, el artista en la resignificación del mundo se hace evidente, ya que él es que ofrece al espectador, a través de una intersubjetividad inmanente, un mundo expresado como novedad. Se entiende que, además del estudio de temas específicos, el estudio de la experiencia estética en fenomenología, desde la perspectiva dufreniana, puede resultar relevante para la comprensión del fenómeno humano en general.

Palabras-clave: Experiencia estética; Fenomenología; Arte; Teatro.


 

 

Introdução

Ao longo de toda a existência da humanidade, a arte esteve presente com um papel social muito importante. Diversos campos da arte, inclusive, concordam que são inseparáveis os conceitos de arte e sociedade, já que ambos tratam da relação intrínseca entre o homem e seu ambiente (Bay, 2006). Em períodos de guerra e conflito, por exemplo, a arte é atacada ou até mesmo suprimida da vida social. Em épocas de mudança e revolução, os artistas muitas vezes protagonizam episódios, compondo suas músicas de protesto, mantendo a subversão de seus textos teatrais e a ousadia de suas danças livres e provocativas. Em momentos de maior abertura, por sua vez, esses atores do palco social brilham, dividindo com os outros, mais livremente, a sua interpretação de mundo, o seu olhar, a sua criação.

A arte, portanto, emerge a partir de uma realidade provocante para o artista, lançado constantemente em confronto com o mundo, que experiencia por meio de seu corpo. É com o corpo, também, que esse artífice se expressa e nos oferece uma reinvenção do mundo. Acolhendo essa oferenda, o espectador tem a oportunidade de vislumbrar possibilidades divergentes das que já conhece e pode, até mesmo, chegar a apreciar o novo ou visualizar questões de uma forma como nunca havia imaginado. O artista expressa o que existe, recompondo-o à sua maneira. Sob esse ponto de vista, produzir arte é provocar o despertar de outras consciências e possibilitar a confrontação com a alteridade.

Fica evidente, assim, o fundamental papel do artista em oferecer o próprio corpo, transformado em arte, como possibilidade para que se ressignifique o mundo. Nesse corpo, expresso e expressão são intrínsecos, interconectados e mutuamente constituintes; "(...) o corpo não traduz uma significação, ele próprio a realiza (...)" (Reis, 2011b, p. 43). Nessa medida, o artista se constrói e se descobre no próprio fazer da sua arte; além disso, permite que quem com ela se relaciona usufrua do que ele ofereceu. Essa oferta é exemplificada pelas palavras da escritora, artista, Clarice Lispector (2010):

Nem tudo o que escrevo resulta numa realização, resulta numa tentativa. O que também é um prazer. Pois nem em tudo eu quero pegar. Às vezes eu quero apenas tocar. Depois o que eu toco às vezes floresce e os outros podem pegar com as duas mãos. (p. 23)

Dentre tantas modalidades artísticas presentes no mundo, as artes cênicas intrigam pelo exercício da atriz/do ator em oferecer o seu corpo - literalmente - para que a arte teatral se faça possível. Nessa empreitada, os artistas simulam situações cômicas, trágicas, cotidianas, reais e surreais, contemporâneas e antigas. É nessa atividade de transmutar-se que oferecem ao público a possibilidade de se emocionar, questionar, reconhecer-se ou refutar. A atriz/o ator vive algo no palco e revela ao espectador o que acontece na vida humana; nesse sentido, o teatro se torna um lugar de revelação da nossa humanidade e, por isso, um tema que se mostra relevante à filosofia, campo em que a arte suscita, há muito tempo, reflexões importantes. Vale destacar que o artista, situado no avesso da arte que se apresenta (entendendo, aqui, o avesso como a parte de trás de um bastidor que, ao revelar as formas harmônicas do bordado, sustenta, ele mesmo, aquilo que se mostra), atua convertendo a realidade que vivencia em um objeto apreciável.

Na vertente francesa da fenomenologia, Sartre e Merleau-Ponty abriram caminhos e escreveram relevantes reflexões com base na literatura e na pintura, respectivamente. Foi por meio de algumas incursões na temática da estética, além de outros tópicos importantes, que ambos aclimataram a fenomenologia na França. Compreende-se que - num rompimento com a tradição filosófica, que entendia que as obras de arte eram "(...) cópias imaginativas da percepção" (Chauí, 2002, p. 158) -, para Merleau-Ponty, a arte e a literatura se apresentam como campos importantes na sua busca por um novo modo de fazer filosofia, pois, neles, as reflexões relativas a questões e paradoxos da existência seguiram prementes, ao revés de um cientificismo já instalado (Furlan & Rozestraten, 2005, p. 91). Como se situam no movimento entre experiência e pensamento, as artes traduzem a sua inseparabilidade e o necessário reenvio constante entre um polo e outro. Nesse sentido, anunciam a impossibilidade de um olhar de sobrevoo que tudo revele ao mesmo tempo, como um olhar de um Deus onisciente e onipresente que pode ver e captar a completude, e isso a arte exemplifica à filosofia: "Merleau-Ponty insiste em que o artista ensina ao filósofo o que é existir como um humano" (Chauí, 2002, p. 165, grifo da autora).

Sob a influência da recepção francesa da obra husserliana, pela via de Merleau-Ponty e Sartre, Mikel Dufrenne escreveu o mais extenso estudo a respeito da estética em fenomenologia. Destaca-se que Dufrenne se propôs a seguir livremente a via aberta por esses dois autores, ainda que houvesse divergências entre os posicionamentos deles diante da fenomenologia (Henriques, 2008). Sob esse aspecto, é possível considerar que a obra dufrenniana é um contributo para repensar o percurso francês da fenomenologia (Figurelli, 2000, p. 198).

Dufrenne defendia que a reflexão acerca da estética poderia fundamentar toda a Filosofia. Desse modo, para ele, a experiência como um todo pode ser melhor compreendida por meio da especificidade da experiência estética (Henriques, 2008), sobre a qual se debruça em sua principal obra, Phénoménologie de l'experience esthétique. Em suas reflexões, o filósofo se referiu especialmente à experiência do espectador diante da obra de arte. Pontuou, entretanto, que essa experiência invariavelmente evoca a autoria que a obra revela, de modo que sempre há relação entre autor e espectador, e assinalou a possibilidade de quem cria ser, ao mesmo tempo, quem primeiro contempla sua própria obra (Dufrenne, 1953/1982a). Desse modo, ainda que o estudo de Dufrenne esteja centrado na experiência do espectador, a experiência do artista sempre está presente, já que há uma intercomunicação entre elas: "é na obra, portanto, que se realiza o encontro estre espectador e artista" (Figurelli, 2000, p. 198).

A partir dessas ponderações, pretende-se, por meio deste estudo, realizar uma reflexão sobre a atividade da atriz/do ator de teatro, a partir da descrição da experiência estética tal qual operada na obra Phénoménologie de l'experience esthétique, de Mikel Dufrenne. Destaca-se que, como não há tradução dessa obra para a língua portuguesa, utilizou-se a versão traduzida para o espanhol por Roman de Calle e publicada em 1982: Fenomenologia de la experiencia estética (1953/1982a, 1953/1982b). Neste trabalho, será considerada a primeira parte da obra, que trata da descrição do objeto estético; a segunda, em que se faz uma análise da estrutura da obra de arte, a partir da descrição proposta anteriormente; e, por fim, a terceira parte, em que Dufrenne se dedica à descrição da percepção e da experiência estética. Compreende-se que, ainda que não tenha sido um de seus principais objetivos, nem prioridades, o fenomenólogo sinalizou para o tema da atividade artística com algumas importantes reflexões. Para a realização dessa tarefa, julga-se necessário fazê-la em duas etapas: uma possível explanação a respeito da experiência estética tal como proposta por Dufrenne e, a partir dela, a construção de uma reflexão a respeito do trabalho da atriz/do ator de teatro.

 

1. A Experiência Estética em Mikel Dufrenne

A experiência estética, tal como abordada por Dufrenne (1953/1982a), diz respeito à experiência ocorrida quando um espectador, por meio de uma percepção estética, visa a obra de arte - objeto comum como outros objetos no mundo - como um objeto estético, isto é, a obra que, então contemplada, se apresenta remetendo a um outro mundo, aquele que ela expressa. Através dessa experiência, quem a contempla experimenta esse mundo como novidade e alteridade. Vale destacar que, embora reconheça que outros objetos, para além das obras de arte, também podem se mostrar como estéticos, Dufrenne (1953/1982a) opta por remeter-se a obras de arte consagradas pela tradição, as quais, para ele, são seguramente as que melhor nos conduziram a essa experiência específica.

Ainda que faça o recorte para a experiência de quem contempla a obra, para o filósofo, um estudo exaustivo da experiência estética deveria contemplar também a criação artística. Apontou, entretanto, o perigo de se debruçar sobre a criação, incorrendo no risco de associá-la à obra de uma genialidade, o que seria uma abordagem inadequada. Isso porque, nesse caso, recair-se-ia numa concepção reducionista, que entende o fenômeno estético como referente à atividade psicológica do autor. Uma outra abordagem imprópria seria compreender a criação sob um viés sociologista, no sentido de que o autor reproduz situações já existentes, por estar, de antemão, determinado por sua história e cultura. Ao contrário, Dufrenne defende que o que é criado artisticamente por alguém não é fruto de uma pura subjetividade, nem um mero produto determinado por seu tempo e sociedade (Dufrenne, 1953/1982a).

Esse posicionamento, aliás, está em consonância com a busca de equilíbrio entre o subjetivismo e o objetivismo, característica da estética fenomenológica desde suas primeiras incursões (Figurelli, 2000). Dufrenne, enfim, faz a escolha da experiência do espectador por uma questão metodológica, que também diz respeito ao fato de ser quem consagra a obra enquanto obra de arte, já que ela aguarda por alguém que a vise, legitimando-a como um objeto estético e lançando-lhe um modo de percepção que lhe faça justiça. O filósofo não deixa de considerar, entretanto, que quem cria é, também, frequentemente, primeiro espectador de sua própria obra (Dufrenne, 1953/1982a). Destaca-se a compreensão de que o fenômeno estético se dá na relação do humano com o mundo (Werle, 2015). O que faz com que uma obra de arte passe a objeto estético, portanto, é a atividade do espectador. Se não fosse por essa visada, a obra não se diferenciaria dos outros objetos do mundo. Faz-se necessário, então, esclarecer a compreensão dufrenniana de obra de arte e objeto estético, aspecto orientador de toda a sua reflexão.

Em princípio, a obra de arte se mostra como um objeto comum, lançado no mundo como todos os outros. Ela pode, inclusive, ter uma função meramente utilitária (Dufrenne,1953/1982a). É possível, por exemplo, que se pendure uma tela na sala de jantar apenas para compor o ambiente, de modo que combine com o mobiliário e sirva como objeto de decoração. Cumprindo esse objetivo, pode ocorrer que quem a observa não faça dela experiência, já que o que se preocupa em visar é aquele objeto real, concreto - a figura que se mostra, a tela, a moldura etc. Nesse sentido, trata-se de uma percepção vulgar, aquela que se relaciona com os objetos por meio da função utilitária que têm, que lhes lança um olhar indiferente, percepcionando-os de acordo com as condições mundanas em que ocorrem e integrando-os ao mundo dos outros objetos, alheios a ele mesmo (Pita, 1995) -é "(...) como se um espectador estivesse apenas supostamente a assistir a um espetáculo, o seu olhar vogaria pelas coisas em redor, distante ou indiferente aos movimentos da cena" (Pinho, 1994, p. 365).

Por outro lado, se diante dessa obra de arte quem a observa se abre ao sensível que nela se manifesta, ocorre um entrelaçamento entre o observador e o objeto visado, de modo que esse encontro promove uma conexão intensa e, como elucidou Dufrenne (1953/1982b), não haja cisão entre eles. Trata-se do que Dufrenne denominou co-substancialidade, que remete ao horizonte originário em que tanto o sujeito como o objeto se situam. Se o espectador se abre àquela obra, portanto, permitindo-se ser passivo para que ela possa provocá-lo, e também se ele ousa alienar-se nela, de forma que seja possível captar-lhe os sentidos, então sua percepção é estética e, no seu arremate como espectador, transforma aquilo que era um objeto comum em um objeto estético, o qual é, pois, "(...) o sensível que aparece em seu esplendor" (Dufrenne, 1953/1982b, p. 127). Trata-se de um modo da percepção que responde ao que o objeto apresenta de único, de singular (Pita, 1995). Pode-se afirmar, portanto, que a percepção comum leva à ação, apenas distinguindo um objeto de outro, sem lhe dar nenhum tratamento especial, enquanto a percepção estética leva à contemplação (Dufrenne, 1953/1982b).

A ideia de co-substancialidade está relacionada à concepção de intencionalidade, que ganha novos contornos com a experiência estética descrita por Dufrenne e supera o paradigma dicotômico sujeito e objeto. Isso porque assume haver uma transcendência mútua entre os dois: o sujeito se projeta no objeto, assim como o objeto se projeta no sujeito - um transcende e exige o outro (Henriques, 2008). Nesse sentido, não há nenhuma hierarquia presente, um elemento não se reduz ao outro. Trata-se de uma solidariedade existente sem que haja subordinação, de uma reciprocidade particular e constituinte: "(...) o sujeito se constitui como sujeito ao se voltar para o objeto" (Dufrenne, 1972, p. 80). Essa transcendência se revela a partir da percepção e, seguindo a via aberta por Husserl e Merleau-Ponty, Dufrenne assume a primazia do ato perceptivo, sob a compreensão de que é na percepção que se origina o sentido e que o sensível se oferece por essa via: "a percepção é o começo absoluto, a origem da consciência, a emergência do sentido" (Figurelli, 2000, p. 203).

Vale ressaltar, entretanto, que a passividade e a alienação diante da obra não dizem respeito a estar inerte diante dela. Trata-se de uma ativa passividade, já que o espectador também é atuante: sua contemplação, dotada de uma percepção estética, é imprescindível para transformar a obra em objeto estético (Pita, 1995). Ao levar em consideração a compreensão dufrenniana de intencionalidade, entende-se que os sentidos se abrem ao espectador a partir dos objetos e, do mesmo modo, as possibilidades de que ele esboce significações se abrem aos objetos e ao mundo, num movimento dialético e constante.

Já a alienação na obra se refere a uma entrega total ao objeto que se apresenta: a consciência se abre e se deixa ser possuída pelo que ela visa. O espectador fica comprometido com aquilo que se apresenta a ele, isto é, aliena-se, e assim a realidade dos elementos da obra pode ser irrealizada para que o que é real do objeto estético apareça (Pita, 1995). Nesse caso um quadro, por exemplo, deixa de ser um mero objeto real e utilitário e o olhar de quem observa vai para além de sua moldura e suas tonalidades coloridas com tinta a óleo; na irrealização desses elementos, quem contempla passa a visar o quadro como uma totalidade que remete a um outro mundo, aquele que é expresso pelo objeto estético: ""(...) o objeto representado pela arte não reenvia a nada do exterior: ele não está em um mundo, ele constitui um mundo, e este mundo lhe é interior - (Dufrenne, 1953/1982b, p. 449). É preciso, pois, haver uma percepção estética para que o objeto possa alcançar o estatuto de estético e, do mesmo modo, é necessário que haja um objeto estetizável para que se faça uma percepção estética. Nesse sentido, para que a experiência estética aconteça, o espectador precisa ver a obra como um objeto estético, a partir de sua percepção estética, não como um objeto real destacado do mundo, mas sim um objeto que expressa um mundo em si mesmo. Não é qualquer obra, entretanto, que desperta o corpo de quem observa e possibilita uma experiência estética, sendo transformada em objeto estético. Para que isso aconteça, ela precisa ter uma determinada estrutura, que diz respeito à sua profundidade.

A profundidade do objeto estético se refere à potência que ele é ao expressar uma subjetividade, aquela de seu autor enquanto ser, que está relacionada ao apelo que o próprio objeto dirige ao espectador, na intensidade da presença. Desse modo, o objeto leva em si mesmo um mundo, que é subjetivado, e possui uma finalidade interna que faz cumprir tal qual um vivente - seu ser e seu aparecer são correspondentes (Dufrenne, 1953/1982b).

O profundo, no ser humano, se refere à sua plenitude, o que se relaciona ao instante em que, em lugar de ser dominado pelo tempo e pelo espaço, ele os é: "(...) o profundo (...) configura a eternidade na medida em que o agora e o então tendem a ser confusos, o mesmo que o próximo e o distante, o aqui e outro lugar" (Dufrenne, 1953/1982b, p. 82). Nesse sentido, diz respeito a uma condição em que o passado e o futuro são imanentes ao presente; trata-se de o sujeito estar junto a si mesmo nessa duração, para além de um tempo que meramente revele uma causalidade (o que seria da ordem na análise, e não da experimentação); refere-se a que o existente se faça presença genuína. Desse modo, diz respeito a que se negue a ser coisa, confirmando-se em si mesmo ao deixar de se submeter a razões externas que governem a sua vida e, ao mesmo tempo, fazendo-se disponível e abrindo-se ao objeto: "ser profundo é estar disponível (...)" (Dufrenne, 1953/1982b, p. 86). É notável, portanto, que o encontro da profundidade do sujeito com a do objeto diz respeito a uma experiência necessariamente intersubjetiva, já que é assim que o mundo expresso pelo autor encontra a existência do espectador e isso é condição para que a experiência estética se complete.

A partir desses apontamentos, afirma-se que a totalidade que o objeto estético exprime é a verdade da obra, é o que ela postula e vem a ser por meio da execução, realizada pelo espectador. É importante ressaltar que a execução da obra por parte de quem a observa não lhe inventa uma verdade, pois que a verdade se dá no conjunto de elementos que fazem toda a obra, que a fazem ser o que é, que permitem que o ser e o aparecer se realizem conjuntamente (Pita, 1995). Dufrenne (1972) destaca:

(...) constituir o objeto, como a experiência estética no-lo mostra, é estar à disposição do objeto para reanimar a significação que nele está implícita, é conhecê-lo como o homem conhece a mulher, na intimidade de um ato comum onde se experimentam as fronteiras da individualidade. (p. 87)

Fica explícito que o objeto estético, para que assim o seja, passa pelo ser humano. Levando em consideração que há um elemento de subjetividade na obra, que diz respeito ao mundo tal qual retratado por quem a criou, e que a obra se exprime por si mesma, sem se referir a elementos exteriores, Dufrenne toma a obra como um quase-sujeito; consequentemente "(...) compreender esteticamente a obra é um analogon da compreensão da alteridade" (Henriques, 2008, p. 108). Nesse sentido se, por meio da percepção, é dado o estatuto de objeto estético à obra de arte, a experiência que se faz dela é equivalente à experiência diante de tudo o que é diferente.

A experiência estética, portanto, exige que se tenha um olhar de novidade e um engajamento numa forma de percepção que não é cotidiana, e sim criativa (Reis, 2011a). A arte enquanto objeto estético promove abertura ao mundo e à alteridade. A experiência estética seria exemplar, pois revela a co-substancialidade entre a existência e o mundo, remetendo a uma significação ontológica, já que ambos estariam pautados sobre um horizonte comum. Ao manifestar sua interioridade, o objeto aponta para o fundo de Natureza em que se situa. Ao visá-lo exteriorizado, o espectador é provocado por essa presença intensa; deixa-se, pois, ser tocado intensamente por essa interioridade, com profundidade e comprometimento, vislumbrando pertencer, também ele, ao mesmo fundo originário (Henriques, 2008). Por isso, Dufrenne afirma que a experiência estética nos indica a presença do ser por meio de uma nostalgia, que nos lembra de nossa condição de indivisibilidade com o mundo: revela-se a co-substancialidade (Henriques, 2008). Resta-nos, agora, compreender como se estrutura a percepção estética, possibilitadora da experiência, tal como descrita por Dufrenne.

 

1.1. O Caminho para a Experiência Estética: Presença, Representação e Sentimento

Mikel Dufrenne (1953/1982b) descreve a percepção estética em três planos: o plano da presença, o da representação e a culminância no plano do sentimento, os quais são correspondentes aos três aspectos do objeto estético, que seriam o sensível, o objeto tal qual representado e o mundo expresso por ele, respectivamente. Destaca-se, entretanto, que esses três planos não dizem respeito a uma experiência cindida, mas sim a momentos que se mostram solidários na percepção do espectador (Henriques, 2008) e que se referem a um aprofundamento que a percepção, enquanto estética, pode conhecer (Dufrenne, 1953/1982b).

Quando nos deparamos, pois, com uma obra de arte, ela se apresenta ao nosso corpo e este, sendo um sistema de equivalências intersensoriais, capta essa presença como uma unidade. Esse é o primeiro nível da percepção estética, a que Dufrenne (1953/1982b) se refere como presença e em que o objeto se apresenta como o sensível. Diz respeito ao encontro imediato do espectador com a obra num plano pré-reflexivo. Trata-se de uma percepção-corpo em que o sentido se assenta no nível do vivido, é um "sentido para o corpo" (Henriques, 2008, p. 96, grifos do autor). O espectador apreende uma significação por meio de uma experiência vivida, sendo uma presença no mundo que está diante de outra presença (Figurelli, 2000). O sentido, portanto, possui uma raiz corpórea e todo o saber posterior a ele, revelado nos outros planos da experiência estética, também se refere ao corpo (Pita, 1995).

No plano da presença, o corpo capta o sensível que se apresenta e não há cisão entre sujeito e objeto - há uma opacidade na imediatidade da presença que só será superada no plano do sentimento. É na presença que se dá a materialidade do vivido e em que a subjetividade do autor encontra a subjetividade do espectador, num movimento intercorporal: a obra que o artista fez nascer, iniciada pela sua percepção, germinou no seu corpo e foi ao corpo do espectador que ela se apresentou (Dufrenne, 1953/1982b). Nesse sentido, - a relação entre autor e espectador se manifesta então, em primeiro lugar, por mediação da obra como cumplicidade corporal" (Milhorim & Telles, 2018, p. 141).

O segundo plano é o da representação, quando o irrefletido vivido na presença passa ao refletido por meio da imaginação e em que o objeto se dá ao espectador como representado. É a imaginação que possibilita a cisão entre o sujeito e o objeto, de modo que exista um importante distanciamento entre eles. Essa distância faz com que o espectador veja o dado que se mostra na presença, movimento fundamental para que a percepção estética siga na direção do terceiro plano, o do sentimento (Henriques, 2008). Destaca-se que a proximidade que se deu no plano anterior não é excluída, pois os outros planos sempre remetem ao que o corpo viveu na presença; assim, sendo a imaginação a instância mediadora entre o vivido e o pensado, suas raízes também estão no corpo. Ela alimenta a representação com os saberes já constituídos na experiência vivida e mobiliza-os, convertendo-os em visíveis (Dufrenne, 1953/1982b). A imaginação, portanto, tem a capacidade de converter o adquirido em visível, mediando o caminho da presença à representação. Vale ressaltar que a imaginação não é da ordem da irrealidade, como muitas vezes se supõe, pois ela sempre se funda no real e a ele se refere; ela dá sentido ao real, como argumenta Dufrenne (1953/1982b).

A imaginação, de acordo com o fenomenólogo, se dá em dois âmbitos: transcendental e empírico (Dufrenne, 1953/1982b). É a imaginação transcendental que torna possível que algo seja representado. Ela funda o tempo e o espaço - a prioris do aparecer -, pois quando o sujeito deixa de compor uma unidade com a presença, separa-se do presente. Nesse caso, o espaço diz respeito à abertura criada por esse distanciamento; contemporâneo do tempo, é onde o outro pode aparecer e esse aparecimento ocorre sobre um fundo:

(...) contemplo desde o seio do passado o que está no espaço, e se a partir daí posso acompanhar o movimento do tempo, e vislumbrar o futuro e antecipá-lo, é porque o espaço contém de alguma maneira esse futuro (...) na dialética do espaço e do tempo se delineia a dialética do sujeito e do objeto. (Dufrenne, 1953/1982b, p. 25)

Já a imaginação empírica ocupa o campo da imaginação transcendental e enriquece o dado de possíveis, suscitando imagens que são quase-dados. Como traz à percepção elementos externos, o aspecto empírico deve ser evitado na percepção estética, a fim de que se mantenha o foco no sentido interior à própria obra, já que ela não pode ser reduzida a circunstâncias que lhe sejam exteriores. Não há necessidade de que a imaginação enriqueça a percepção nesse caso (Dufrenne, 1953/1982b). O objeto estético traz em si um mundo que se basta e o seu sentido é resultante da interconexão dos signos que ele mesmo apresenta. Ademais, ""(...) a obra de arte verdadeira evita os esforços de nossa imaginação porque é suficiente, para compreendê-la e segui-la, para tê-la presente no espírito e nos sentidos, sem que seja necessário completá-la como completamos uma percepção obscura ou ambígua"" (Dufrenne, 1953/1982b, p. 44-45). É necessário, portanto, que o espectador se submeta verdadeiramente à obra e permita que emerjam os sentidos que ela contém. Antes de tratar desse âmbito, porém, faz-se necessário abordar a passagem da representação à reflexão - é ela que prenuncia e possibilita acessar o plano do sentimento, já que questiona a respeito do sentido do objeto.

Segundo Dufrenne (1953/1982b), há dois tipos de reflexões possíveis: uma, pautada sobre a estrutura do objeto, se separa da obra; outra, buscando o sentido do objeto, adere a ele - esta é a que o filósofo denomina reflexão simpática. O modo como se dá a reflexão diz respeito à postura adotada pelo espectador diante do que é visado.

A reflexão que separa tem o intuito de explicar a obra e por isso submete-a a uma análise crítica; o espectador, sob essa postura, não se perde no objeto, mas permanece dele distanciado. Tratada como um objeto natural, a obra é decomposta como se fosse possível cindir uma unidade. Dufrenne afirma que essa reflexão é insuficiente para compreender o objeto, já que ele representa outra coisa que não ele mesmo (Dufrenne, 1953/1982b).

Já a reflexão simpática se deixa interrogar pelo objeto em vez de interrogá-lo. Nesse sentido, é fiel à obra e ao mundo que ela expressa, buscando descobrir nela mesma as razões que a fazem ser o que é. Sob esse modo de reflexão, quem contempla se abre aos sentidos da obra, submetendo-se a ela, podendo captar o que ela expressa - e essa apropriação diz respeito ao sentimento. Por meio dessa reflexão aderente, a obra mesma, a partir de seu interior, responde às perguntas que o espectador lhe faz; as respostas são dadas a ele, portanto, como expressão da própria necessidade existencial que a obra contempla em si mesma e que precisa ser reconhecida pelo sujeito e no sujeito, já que ela se apresenta quando ambos se conectam intensa e profundamente (Dufrenne, 1953/1982b).

É o sentimento que capta a expressão - referente ao mundo que o objeto estético manifesta - e é por meio dele que se torna possível acessar a significação ontológica da experiência estética (Henriques, 2008). Isso porque, nesse plano, sujeito e objeto se encontram e se correspondem em suas profundidades - é aqui que se trava a co-substancialidade. Desta feita, o objeto estético se abre em profundidade e exige que quem o visa se abra do mesmo modo para captá-lo. Essa profundidade diz respeito à relação com o que é originário e, por isso, "(...) o sentimento não é da ordem do subjetivo, mas do ontológico" (Pita, 1995, p. 152). Essa profundidade é relativa ao sentimento estético (Dufrenne, 1953/1982b).

O sentimento vem a ser, portanto, um novo imediato, um conhecimento que recupera a imediatidade dada na presença, mas que, tendo passado pelo plano da representação, comporta a reflexão que ali ocorreu (Dufrenne, 1953/1982b). Ao atingir a interioridade do dado, o sentimento revela um mundo a quem contemplou a obra.

Para atingir o sentimento, é necessário que o sujeito esteja totalmente presente ao objeto, pois disso depende que o objeto se apresente também ao sujeito em sua profundidade: "o sentimento, longe de constituir (...) um estado subjetivo, implica da parte do sujeito uma disponibilidade e abertura àquilo que do ser advém e que estilhaça e excede qualquer tentativa de previsão e domínio" (Pinho, 1994, p. 374). Sob a necessidade, pois, de haver uma abertura por parte de quem contempla para que possa captar a profundidade do objeto, o plano do sentimento compromete o espectador em uma nova atitude, exige que ele se transforme para poder alcançar o objeto. O existente está diante de um novo mundo, de um quase-sujeito; desse modo, é possível dizer que compreender a obra pela via da percepção estética é compreender uma alteridade (Dufrenne, 1953/1982b), afirmação que de pronto nos provoca a pensar as implicações desse tipo de experiência à vida humana, já que esta é fundamentalmente dada na intersubjetividade.

Contemplada essa breve elucidação a respeito da descrição da percepção estética feita por Mikel Dufrenne (1953/1982b), fundar-se-á uma reflexão a respeito do teatro e, mais especificamente, da atividade do artista das artes cênicas - a atriz ou o ator. Nesse campo das artes, é a peça teatral como um todo que se apresenta ao espectador como o sensível. Sentada diante de um palco, ou até mesmo no chão de uma praça, estando em frente a uma encenação, a pessoa que contempla os atores, cenários e figurinos, componentes de uma história, vivencia uma cumplicidade corporal com a obra. No plano da presença, é a seu corpo, como vivência, que a arte se oferece, e espectador e teatro formam uma unidade imediata e opaca. Desse primeiro impacto, o sujeito que contempla se distancia da presença e, desse modo, o outro - o teatro que se presentifica naquele momento - pode aparecer e ser visto como fenômeno que emerge a uma consciência intencional (Dufrenne, 1953/1982b). Por meio da imaginação, advém o objeto tal qual representado e isso permite que o espectador o veja e reflita sobre ele, fundado numa reflexão simpática, o que o encaminha ao plano do sentimento. A partir da peça que se dá como presença, portanto, e diante do objeto tal qual representado, que suscita, no espectador, o questionamento dos sentidos que se abrem, é possível alcançar o mundo expresso por aquela obra, acedendo, finalmente, ao plano do sentimento. Numa co-substancialidade com o teatro vivo e presente, quem o contempla descobre, então, novos sentidos, e experiencia uma abertura à alteridade que se revelou através da arte.

Destaca-se, aqui, um necessário esclarecimento a respeito do termo representação, tão usual quando se fala de teatro, já que geralmente remete à ideia de que há uma obra escrita a ser representada. Para evitar dubiedade em relação à ideia de representação como plano da percepção estética, optou-se por adotar a palavra concretização para se referir à encenação, tal como o faz Dufrenne ao esclarecer que algumas obras, para que possam ser oferecidas ao espectador como objetos estéticos, precisam ser concretizadas; para que aconteçam, portanto, necessitam da presença física de um artista (Dufrenne, 1953/1982a). É apenas depois de concretizado que o espetáculo teatral aparece ao público como sensível. Ademais, a ideia de que a arte é representação pode levar a uma compreensão equivocada de que existe algo antecipadamente concluído que precisa ser representado - apresentado novamente -, mas sob outra forma; contempla uma concepção de cópia do real, o que está em desacordo com o entendimento fenomenológico da arte como expressão. Cabe, aqui, a apreensão de Merleau-Ponty (1945/1980) de que as criações do artista são respostas às provocações que o mundo lhe faz; nesse sentido, a obra produzida é expressão viva do seu entrelaçamento com o mundo e diz respeito a um engendramento de significado que nasce com aquilo que é expresso. É no processo de construção da obra, e com a sua finalização, que seus significados se dão. Não se trata, portanto, de mera cópia de algo real pré-existente, e sim diz respeito a algo que se apresenta como novidade e que, de acordo com Dufrenne (1953/1982b), é acessível por meio da experiência estética no alcance do plano do sentimento.

Conforme já pontuado, a expressividade do teatro tem uma especificidade: ela só se dá por meio da presença concreta de uma atriz ou de um ator. Sob esse aspecto, é o próprio corpo que se apresenta como objeto estético, ou como parte desse objeto estético total que é o espetáculo teatral. Considerando, ainda, a compreensão dufrenniana de que cada parte do todo do objeto deve exprimir a sua totalidade (Dufrenne, 1953/1982a), deparamonos com o trabalho e a responsabilidade do artista nessa tarefa, e é a respeito desse aspecto que se tratará adiante.

 

2. Do Trabalho do Artista à Especificidade do Teatro

Embora Dufrenne não tivesse como objetivo, nem prioridade, tratar da experiência da atividade artística ou da criação da obra, entende-se que esse tema permeia suas discussões de diferentes modos, o que nos possibilita refletir a esse respeito a partir do seu constructo teórico. O fenomenólogo, no decorrer do escrito abordado neste artigo, não propõe nenhuma hierarquia entre as diferentes artes e, em diversos momentos, toma-as como base para discutir seus apontamentos e exemplificá-los. A reflexão que apresentamos a partir deste ponto do estudo, acerca da atividade da atriz/do ator de teatro, refere-se à obra dufrenniana, especialmente no capítulo II da primeira parte, intitulado A obra e sua execução. Dufrenne pontua, aqui, que para que a obra exista de fato, é preciso que seja executada; nesse caso, é o autor que dá a ela a possibilidade de que isso ocorra. Como já destacamos, algumas artes, em especial, vão além e para serem executadas precisam ser concretizadas, por isso necessitam da presença física de um artista para que aconteçam (Dufrenne, 1953/1982a) - esse é o caso do teatro.

Ainda que exista um texto teatral precedente e finalizado, ele é escrito para ser encenado, e não para viver no papel. Ingarden (1973) destaca que o texto dramático possui uma particularidade em relação a outras obras de arte literárias, já que é composto por um texto principal, "formado pelas palavras pronunciadas pelas personagens" (p. 413), e um texto secundário, "informações dadas pelo autor para orientação do encenador" (p. 413), as rubricas ou didascálias. Embora possa ser tomado como objeto estético quando visado como literatura - é muitas vezes o que fazem as atrizes e os atores durante o processo de criação -, o texto foi feito para ser dito e atuado e, quando passa a viver no palco, as orientações presentes são extintas e se transformam em ação. De acordo com Dufrenne (1953/1982b), é a execução que permite que a peça se apresente como um objeto estético a ser descoberto. Para que isso aconteça, o teatro exige uma presença sensível que, nesse caso, é o corpo mesmo do artista, já que é quem comunica a obra (Dufrenne, 1953/1982a). A atriz/o ator, assim, tem a tarefa de dar vida ao texto que recebe, fazê-lo existir e viver por si mesmo (Dufrenne, 1953/1982a). Dessa forma, apesar de ser elemento fundamental e indispensável para que o teatro exista, é a serviço do teatro que o artista está, submetido às exigências dessa arte. Dufrenne (1953/1982a) nos lembra que é a obra que é o fim do artista de teatro, e não ele mesmo. Nesse sentido, é preciso que seja um executante fiel, já que é quem vai portar e transmitir a verdade da obra, o que é imprescindível para que ela seja, de fato, um objeto estético. O filósofo enfatiza, ainda, que quando algo da obra nos soa falso, o encanto se quebra e exigimos que quem a executa nos preste contas ou, ainda, a própria obra se sente traída e faz suas reivindicações (Dufrenne, 1953/1982a). Isso demonstra a profunda responsabilidade da atriz/do ator na sua tarefa:

Ao se preparar para a execução, o artista se põe em estado de graça e a exigência que o toma é a expressão de uma certa lógica interna: lógica de um certo desenvolvimento técnico, de uma certa investigação propriamente estética, de uma maturidade espiritual. (Dufrenne, 1953/1982a, p. 70)

É possível compreender a execução realizada pela atriz/pelo ator também como criação, pois a cada papel que assume, é preciso que crie a sua personagem, o seu modo de aparecer, de se colocar, de dizer as palavras ou os silêncios. Assim, todo ator que participa de uma remontagem shakespeariana no papel de Hamlet, por exemplo, precisa, a partir daquele texto e dos seus próprios instrumentos, criar um espetáculo próprio que se dará em seu corpo, sua principal ferramenta, e que será um dos elementos para que a obra se faça total. Pode-se afirmar, então, que sendo o artista de teatro ao mesmo tempo essencial e intermediário entre a obra e o espectador, é quem primeiro precisa abrir sua profundidade à profundidade da obra que comporá, permitindo que ela lhe manifeste seu sentido, para captar o mundo que se apresenta e para, por conseguinte, apresentar esse mundo à plateia. É necessário, portanto, que a atriz/o ator se comprometa com a obra, alienando-se nela, de modo que se lhe mostre como verdade e que o artista possa, por sua vez, também expressá-la como verdade.

Para que possa fazê-lo, no entanto, o artista precisa recorrer à própria profundidade, confirmando-se em si mesmo, em sua autenticidade, para então fazer-se disponível. Dufrenne faz uma analogia interessante a respeito da atividade do ator e do bailarino, afirmando que o bom dançarino tem uma certeza de expressar ao público aquilo que seu movimento denota, e isso está para além da mera concretização, pois diz respeito à graciosidade e espontaneidade que lhe são próprias (Dufrenne, 1953/1982a). É imprescindível, portanto, que seja um corpo disponível para captar os objetos e sentidos e, além disso, para que seu corpo se apresente como obra e revele a sua profundidade, a fim de que possa provocar uma percepção estética no espectador. Ainda, para que assim se faça, a atriz/o ator necessita, durante o processo de feitura, perceber também esteticamente a obra que irá vivenciar diante do público; precisa dotarse de uma reflexão simpática ao objeto, deixando que este o interrogue e expresse a sua necessidade existencial de quase-sujeito, possibilitando, então, a emergência do sentimento estético sob a forma de um novo imediato, de um mundo que se abre como novidade. Comprometendo-se em uma nova atitude, o artista é transformado constantemente para poder, também, participar da obra e ser, com ela, agente de transformação.

Dufrenne pontua, em relação à atividade da atriz/do ator, que a sua tarefa é sustentada, pois, pela troca com o público. Embora tenha trabalhado muito, antecipadamente, para oferecer o espetáculo à plateia, no momento em que apresenta a obra, é nessa plateia que pensa, e não mais em si ou no seu papel. A voz do artista, nesse caso, se dirige ao público e a obra chega à plateia por meio dessa atenção que o artista lhe dá (Dufrenne, 1953/1982a). Nesse sentido, no teatro, o artista se faz completamente presente a outras pessoas, que lhe respondem. Depreende-se, dessa reflexão, a necessidade de que a atriz/o ator se abra à alteridade - trata-se de uma condição: que se deixe tocar pelo diferente, caso espere, genuinamente, atuar numa posição de mediação para que o invisível e o silêncio se mostrem a partir de sua arte.

Há, ainda, uma reflexão que se faz fundamental. Dufrenne (1953/1982a) defende que a obra atua primeiramente sobre o indivíduo, mas o convida a vincular-se a toda a humanidade. Isso porque o objeto estético faz com que o seu público se constitua como um grupo, já que há uma objetividade que os vincula e coloca em segundo plano suas diferenças individuais: a obra se mostra como algo que lhes é comum, e nesse sentido, assinala-se uma "significação humanista da experiência estética" (Dufrenne, 1953/1982a, p. 108). Ainda: as obras que perduram ao longo do tempo ganham, nesse decorrer, uma pluralidade de interpretações que as enriquecem. Nesse sentido, mostram-se, sempre, como testemunhas do passado e conectam-no com o presente e o prenúncio.

No caso do teatro, em que a atriz/o ator é essencial para que a obra seja presente, é possível pensar, portanto, no papel desses artistas como atores do tecido social, e não apenas dos palcos. Isso porque, fazendo parte das obras de arte que apresentam ao público, corporal e presencialmente, são eles, também, que possibilitam que aqueles diferentes espectadores constituam um grupo, para além de suas vidas individuais, e vinculem-se na sua humanidade. A experiência possibilitada pelo teatro enquanto objeto estético pode se apresentar, então, como uma experiência comum àquelas pessoas que o contemplam, ainda que tenham a respeito daquela vivência as mais diversas interpretações - o que, inclusive, é extremamente valoroso para a apreensão e construção de sentidos. Se é, ainda, uma obra que persiste no tempo, conectando passado, presente e porvir, pode-se afirmar que o artista é atuante na instituição de novas significações, no acontecimento da historicidade, porque atravessa esses campos por meio de sua presença ao mesmo tempo em que é pessoalmente atravessado por eles. Sua atividade, portanto, está para além do espaço em que atua, já que reverbera em campos muito mais amplos.

Frente a essa posição basilar e à exigência de entrega que a arte faz ao artista todo o tempo, entende-se, pois, a urgência de tratar da experiência de ser artista, de compreender como é estar nesse lugar de tanta profundidade, intensidade e responsabilidade, passos a serem dados em próximos estudos.

 

Considerações Finais

Pensar a arte e a atividade artística é fundamental para uma reflexão que queira tratar do fenômeno humano. Tratá-la, ainda, sob o viés da fenomenologia é um caminho profícuo, já que essa filosofia, assim como a própria arte, tem a preocupação de nos ensinar a olhar para o mundo de forma a redescobri-lo sempre, voltando-nos ao que ele mesmo nos mostra e aos fenômenos tal qual se apresentam a nós. A obra de Mikel Dufrenne, ainda pouco explorada no contexto brasileiro, pode se mostrar como um caminho interessante para tratar dessa temática pela fenomenologia. Dispomo-nos a refletir sobre as artes cênicas por entender que esse campo específico da arte se ocupa de discutir, expor e explorar justamente assuntos relativos à nossa humanidade e, ainda, por julgar sua particularidade em apenas ser realizada por meio de uma atriz/um ator, que oferece o próprio corpo como ferramenta. A partir dessa finalidade, compreendemos que fundamentar a discussão com Phénoménologie de l'experience esthétique seria um caminho apropriado, já que se trata do mais extenso estudo fenomenológico a respeito da estética.

Antes de adentrar o campo do artista, entretanto, julgou-se necessário elucidar o trajeto feito por Dufrenne em sua descrição do objeto estético e da experiência estética, por entender que essa compreensão possibilitaria pensar com mais propriedade o lugar da atriz/do ator nessa conjuntura. Fez-se importante reconhecer que a experiência estética diz respeito a uma vivência de abertura, fundada no sensível, capaz de possibilitar a qualquer vivente a ressignificação do mundo, desde que se disponibilize a ser interrogado pelo objeto que se mostra e a entrar em comunhão com ele, descobrindo novos campos de possíveis.

Posteriormente, ao ter como como ponto de partida essa compreensão de experiência estética e, além disso, reflexões pontuais que o próprio Dufrenne faz acerca da atividade teatral, foi possível elucidar aspectos do ofício do ator/da atriz que clarificam a responsabilidade e importância de sua tarefa. Ficou evidente o papel que a arte e, sobretudo, o artista tem na ressignificação do mundo, ao ser quem oferece ao espectador, por meio de uma intersubjetividade imanente, um mundo expresso como novidade, mas que nasceu, também, no terreno do sensível.

Cumprido esse objetivo, entendemos que, para além de embasar nossas reflexões acerca desse tema tão específico, o estudo da experiência estética em fenomenologia, a partir da ótica dufrenniana - que a compreende como experiência de alteridade, reveladora de nossa condição de indivisão com o mundo - pode se mostrar relevante para a compreensão do fenômeno humano em sua generalidade e, por isso, fundamental tanto à filosofia quanto à psicologia.

 

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Recebido em 26.08.2019
Aceito em 15.04.2020

 

 

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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