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Revista da Abordagem Gestáltica

Print version ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.27 no.3 Goiânia Sept./Dec. 2021

http://dx.doi.org/10.18065/2021v27n3.9 

REVISÃO CRÍTICA DE LITERATURA

 

A angústia existencial como disposição afetiva fundamental para a prática psicoterápica

 

Existential anguish as a fundamental affective disposition for psychotherapy practice

 

La angustia existencial como disposición afectiva fundamental para la práctica de la psicoterapia

 

 

Guilherme Mareca de OliveiraI; Juliana Nunes de BarrosII; Marcelo Rufino FerreiraIII; Mardem Leandro SilvaIV

IGraduado em psicologia pela Universidade do Estado de Minas Gerais/ Unidade Acadêmica de Divinópolis. Email: gmareca@gmail.com
IIMestra em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora de Psicologia da Universidade Estadual de Minas Gerais/Unidade Acadêmica de Divinópolis. Email: jnunesbarros@yahoo.com.br
IIIGraduado em Psicologia pela Universidade Estadual de Minas Gerais/Unidade Acadêmica de Divinópolis. E-mail: mrfpsi@hotmail.com
IVDoutor em Psicologia pela UFMG. Professor de Psicologia da Universidade Estadual de Minas Gerais/Unidade Acadêmica de Divinópolis. Email: mardemls@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

A angústia é um conceito fundamental na clínica fenomenológica-existencial. Essa disposição afetiva tem na obra de Martin Heidegger um privilégio em relação às outras disposições, uma vez que ela, em seu caráter ontológico, é o motor da existência humana. O presente artigo se propôs a compreender a angústia como reveladora da verdade do Ser-aí no processo psicoterapêutico, com base nas contribuições do filósofo Heidegger e seus comentadores, sobretudo expoentes da psicologia fenomenológica-existencial. Perguntas como "Qual a verdade do Ser-aí?" e "O que a angústia revela dessa verdade?", nortearam a construção desta obra. O estudo se caracteriza enquanto pesquisa qualitativa, cuja metodologia é a pesquisa bibliográfica. Os resultados apontaram que a angústia revela a verdade do Ser-aí. O que chamamos de verdade é a essência deste ente: ter de ser. Ela aponta para seu caráter ontológico de abertura, para suas possibilidades, seu poder-ser mais próprio, liberdade e ao desvelamento do sentido do Ser. Por fim, a angústia ontológica, não restrita ao processo psicoterápico, movimenta o Ser-aí e revela possibilidades que por meio do cuidado torna possível a sua singularização. Dessa maneira, é essencial que o psicoterapeuta compreenda a angústia, facilitando ao paciente a apropriação e a responsabilização daquilo que ela revela.

Palavras-chave: Angústia; Heidegger; Verdade; Ser-aí; Psicoterapia.


ABSTRACT

Anguish is a fundamental concept in the phenomenological-existential clinic. This affective disposition has in Martin Heidegger's work a privilege over other dispositions, since it, in its ontological character, is the engine of human existence. This paper aims to understand anguish as revealing the truth of Being-there in the psychotherapeutic process, based on the contributions of philosopher Heidegger and his commentators, especially exponents of phenomenological-existential psychology. Questions such as "What is the truth of Being-there?" And "What does anguish reveal about this truth?" Guided the construction of this work. The study is characterized as a qualitative research, whose methodology is bibliographic research. The results indicated that anguish reveals the truth of Being-there. What we call the truth is the essence of this being: having to be. It points to its ontological character of openness, its possibilities, its own power-being, freedom and the unveiling of the meaning of Being. Finally, the ontological anguish, not restricted to the psychotherapeutic process, moves Being-there and reveals possibilities that, by their very nature. through care makes its uniqueness possible. Thus, it is essential for the psychotherapist to understand distress, facilitating the patient's appropriation and accountability of what it reveals.

Keywords: Anguish; Heidegger; Truth; Being-there; Psycotherapy


RESUMEN

La angustia es un concepto fundamental en la clínica fenomenológica-existencial. Esta disposición afectiva tiene en el trabajo de Martin Heidegger un privilegio sobre otras disposiciones, ya que, en su carácter ontológico, es el motor de la existencia humana. Este artículo tiene como objetivo entender la angustia como la revelación de la verdad del Ser-ahí en el proceso psicoterapéutico, basado en las contribuciones del filósofo Heidegger y sus comentaristas, especialmente los exponentes de la psicología fenomenológica-existencial. Preguntas como "¿Cuál es la verdad del Ser-ahí?" Y "¿Qué revela la angustia acerca de esta verdad?" Orientaron la construcción de este trabajo. El estudio se caracteriza por ser una investigación cualitativa, cuya metodología es la investigación bibliográfica. Los resultados señalaron que la angustia revela la verdad del Ser-ahí. Lo que llamamos la verdad es la esencia de este sujeito: tener que ser. Apunta a su carácter ontológico de apertura, a sus posibilidades, a su poderser más proprio, la libertad y el desvelamineto del significado del Ser. Finalmente, la angustia ontológica, no restringida al proceso psicoterapéutico, mueve el Ser-ahí y revela posibilidades que, por su propia naturaleza. a través del cuidado hace posible su singularidad. Por lo tanto, es esencial que el psicoterapeuta entienda la angustia, facilitando la apropiación y la responsabilidad del paciente de lo que se revela.

Palabras-clave: Angustia; Heidegger; Verdad; Ser-ahí; Psicoterapia.


 

 

"Ler Heidegger adequadamente é pensar com Heidegger,
o que também significa perguntar com Heidegger -
o que implica, ao mesmo tempo, veneração e rebeldia,
pois para ele 'o questionar é a devoção do pensamento'"
(Oswaldo Giacoia Jr. Heidegger Urgente: introdução a um
novo pensar
)

 

Introdução

A angústia é um conceito fundamental na clínica fenomenológica-existencial. Muitos são os estudos realizados na busca por compreender seu papel na dinâmica da existência (Angerami-Camon, 2000; Dantas, 2011; Heidegger, 2005 e 2011; Santos, 2013). Anteriormente a sua abordagem clínica, já havia uma densa discussão a seu respeito com os filósofos Søren Aabye Kierkegaard e Martin Heidegger. De tal modo que os dois filósofos são, entre outros, alicerces teóricos da fenomenologia-existencial (Feijoo, 2011).

Como disposição afetiva, a angústia, assume na obra de Martin Heidegger (2005) um contorno fundamental em relação às outras disposições, tais como o medo e o tédio, uma vez que ela, em seu caráter ontológico, se apresenta como motor da própria existência humana. Diante do contemporâneo - do que se deu a conhecer como Era da técnica (Sá, Dantas e Carreteiro, 2009), e seu arsenal de supressão da angústia - investigar o conceito de angústia se propõe como tarefa basilar para manter no horizonte de reflexão a dinâmica do processo daquilo que Heidegger (2005) nomeia como cuidado e singularização do Ser-aí.

Segundo a perspectiva de Ser e tempo (2005), a angústia revela a verdade do humano que se revela como Ser-aí. Nos termos das teses que esta obra endossa, o que chamamos de verdade se verifica como a essência deste ente, e se objetiva pelo fato deste ente dispor de Ser. Em outras palavras: o humano é ente que dispõe de Ser, sendo um Ser que se percebe no tempo. A verdade do Ser-aí aponta para seu caráter ontológico de abertura, para suas possibilidades, seu Poder-ser mais próprio, sua liberdade, assim como ao desvelamento do sentido do Ser. Ao entender a verdade do Ser-aí dessa forma, é impossível abordar a noção de angústia de forma fragmentada, já que esse conceito coexiste apenas em relação com outros, e funcionaria como índice de desvelamento da verdade do que se apresenta. Assim, conforme veremos, a discussão desse tema se apresenta inteiramente pautada pelo pensamento complexo realizado, inicialmente, pela investigação ontológica e existencial heideggeriana.

Neste sentido, nos propomos apresentar os elementos fundantes da perspectiva fenomenológica-existencial para fornecer um contexto que, posteriormente, funcionará como condição de inteligibilidade para se discutir o alcance do conceito de angústia como disposição afetiva fundamental, avançando nas elaborações que compreendem a angústia e sua relação com o nada, o tempo, a contemporaneidade, o cuidado e a singularização. E na linha desta exposição lançar elementos que tematizem reflexões clínicas acerca do que a angústia determina.

Em conformidade com a perspectiva fenomenológico-existencial, o presente artigo se propôs a compreender a angústia como experiência vertebradora e reveladora da verdade do Seraí no processo psicoterapêutico, com base nas contribuições do filósofo M. Heidegger e seus comentadores, sobretudo expoentes da psicologia fenomenológica-existencial. Frente a este contexto, as perguntas de matriz decididamente heideggeriana, tais como: "qual a verdade do Ser-aí?" e "o que a angústia revela desta verdade?", nortearam a construção deste texto nos termos de alinhavar respostas possíveis em conformidade com uma perspectiva também psicoterápica.

O estudo se caracteriza enquanto pesquisa qualitativa, cuja metodologia é a pesquisa teórica de base bibliográfica, como exposta por Lima e Mioto (2007). Para a realização desta pesquisa foi feito um levantamento de textos da obra de Heidegger, de seus comentadores e expoentes da fenomenologiaexistencial enquanto abordagem da psicologia, a fim de compreender a angústia ontológica mediante uma leitura crítica.

Este trabalho se justifica por sua relevância teórica, reflexiva e clínica. Trata-se de uma abordagem crítica da dimensão ontológica da angústia enquanto disposição afetiva essencial, assim como de sua articulação na cena mais corriqueira de qualquer processo psicoterápico. Além disso, cumpre considerar que a contemporaneidade, por meio de seu processo de encobrimento deste fenômeno afetivo, atravessa a existência do indivíduo, requerendo por parte do psicoterapeuta propiciar condições favoráveis para não obstruir sua emergência, bem como conferir condições de seu devido manejo. Dessa forma, verifica-se a necessidade de um posicionamento hermenêutico da parte do psicólogo fenomenológico-existencial capaz de compreender as nuances de desterro ocasionadas pela emergência da angústia e o que ela representa em meio a este processo.

 

Da fenomenologia como método àontologia como interpretação do Ser

Ao pensarmos a angústia pelo olhar da fenomenologia, precisamos, primeiramente, contextualizar o que é a perspectiva fenomenológicaexistencial e qual seu método de investigação. Faremos, primeiramente, uma exposição panorâmica desta abordagem - na qual adiantaremos alguns de seus conceitos - para caracterizar o específico de nosso trabalho, para depois explicitar melhor algo de seus fundamentos, passando da fenomenologia, para o existencialismo até a proposta hermenêutica heideggeriana (Heidegger, 1991; 2005; 2006; 2011).

Por conseguinte, a psicoterapia de abordagem fenomenológico-existencial se propõe como uma aplicação do método fenomenológico que, por sua vez, compreende o existir em face as proposições da filosofia existencial, que determinam que as pessoas experimentam o mundo de forma singular, partindo da premissa de que a constituição do homem se dá como Ser-no-mundo. Esta abordagem cria uma via clínica de significação a partir da qual a pessoa vai entrar em contato com seus problemas e angústias, no ponto de dispor de condições mais amplas para significá-las. Neste enfoque, é a própria existência da pessoa que será abordada, na perspectiva de se relacionar o específico de suas vivências de sentido com os acontecimentos. Dentro desta visão, não competiria ao psicólogo qualquer forma de enquadre em categorizações preestabelecidas, posto que a vivência da pessoa funcionaria como o próprio esteio de significação. Se, segundo o princípio fenomenológico da intencionalidade, toda consciência é sempre consciência de alguma coisa, então seria por intermédio da intencionalidade que a experiência de significação pessoal vincularia o homem ao mundo e sua ordem de acontecimentos. É em função da intencionalidade da consciência que os significados de uma mesma experiência seriam diferentes, tanto para o psicólogo quanto para o paciente.

Neste ponto residiria a liberdade do homem: escolher sobre quais sentidos atribuir à ordem contingente dos acontecimentos. Se a fenomenologia - com suas reduções metodológicas e o apelo à intencionalidade - nos oferece uma descrição rigorosa dos fenômenos clínicos, que não se pretende universalizante, posto que compreende a singularidade da existência como incontornável, o existencialismo nos proporciona a reflexão de que não haveria uma natureza humana imutável e pré-determinada - o homem nasceria um nada de sentido, ao qual se iria sobrepondo significados a partir de suas escolhas, sendo este visceralmente responsável por cada escolha e gesto de significação. Por conseguinte, o que está em jogo é a abordagem do sentido do Ser do homem, sua verdade e o que ele admite em face à dinâmica de suas estruturas existenciais.

Mas o que seria a fenomenologia? Como o próprio nome assinala, a fenomenologia seria uma ciência dos fenômenos. Aqui o termo ciência se refere ao exercício de rigor desde o qual o filósofo e matemático Edmund Husserl pensou as condições de possibilidade de abordagem dos fenômenos. Segundo Inwood (p. 2002, p. 67), o termo fenomenologia advém do grego, da junção entre phainomena e logos. Enquanto logos faz referência à palavra, o dito, o discurso e a razão, o termo phainestai, faz referência ao aparecer, ao se mostrar e ao que vem à luz, "no sentido tanto de 'ser manifesto, evidente' quanto de 'parecer', assim "(Ta) phainomena, o neutro plural do seu particípio presente, significa, portanto, '(as) coisas que aparecem', 'aquilo que é aquilo que é manifestamente/aparentemente o caso". Neste sentido, a fenomenologia seria o estudo daquilo que apareceria para a consciência do sujeito. E Husserl considerava este estudo como uma resposta científica ao psicologismo reinante que imperava em sua época, posto que as leis lógicas em jogo no processo de redução eidética não poderiam ser equivalentes ao que a percepção individual julgava como fundamental.

Segundo Heidegger (1979a, p. 298) em seu texto Meu caminho para a fenomenologia, as Investigações lógicas de Husserl estabeleceriam "a refutação do psicologismo na lógica, procurando mostrar que a doutrina do pensamento e do conhecimento não pode fundar-se na psicologia". Em outras palavras, a lógica não poderia ser reduzida ao que se verificava em uso pelas proposições puramente psicológicas posto que a intencionalidade para ser universal deveria responder nos termos de uma lógica que não fosse afeita a termos puramente empíricos. Para Husserl (2014, p. 19), a lógica teria como objetivo

(...) pesquisar aquilo que pertence às verdadeiras ciências, às ciências válidas, ou seja, aquilo que constitui a ideia da ciência, de modo a que possamos avaliar se as ciências empiricamente existentes correspondem à sua ideia, em que medida dela se aproximam, e onde pecam contra ela. Assim, a lógica se mostra como ciência normativa e separa-se dos modos de consideração comparativos das ciências históricas, que procuram apreender as ciências como produtos culturais concretos de cada época, segundo as suas particularidades e generalidades típicas e explicá-las a partir das circunstâncias temporais.

A lógica se verifica como a pedra de toque da abordagem husserliana da fenomenologia, assim como um ponto de divergência com relação a importância que a fenomenologia de Heidegger lhe confere, já que para o filósofo de Ser e tempo a lógica não poderia se ver reduzida a seu expediente técnico e puramente matemático: "para Heidegger pensar a verdade do ser é mais fundamentalmente lógico do que a lógica proposta pelos fundadores da lógica" (Silva, 2019, p. 267). Não sem razão o filósofo (Heidegger, 1979c, p. 167) é categórico ao afirmar que

Pensar contra "a Lógica" não significa quebrar lanças em defesa do ilógico, mas significa apenas: meditar sobre o lógos, e sua essência nos primórdios do pensamento; significa: empenhar-se, primeiro, na preparação de um tal me-ditar. Que sentido possuem para nós todos os sistemas da Lógica, por mais amplos que sejam, quando se subtraem, e mesmo sem o saber, já de antemão, da tarefa de primeiro questionar, mesmo eu seja apenas isto, a essência do lógos?

Para Heidegger, a fenomenologia de Husserl demanda uma reinterpretação nos termos de uma hermenêutica: "dado que 'sentido' é a compreensibilidade de algo que o discurso [lógico] articula, toda proposição tem uma interpretação subjacente por base" (Nunes, 2002, p. 35). Assim, nos termos de uma "fenomenologia reinterpretada, a intencionalidade não é mais, como foi para Husserl, a propriedade fundamental da consciência, mas a direção para o ser compreendido, isto é, para o ser pré-descoberto, de que a consciência é o ponto de abertura" (Nunes, 2002, p. 11). E é neste sentido que a fenomenologia adquire um status ontológico, ou em outras palavras, ela se converte em ontologia: "a fenomenologia é ontologia, e, como ontologia, é uma hermenêutica, porque a descritividade fenomenológica tem o alcance de um trabalho de interpretação aplicado ao Dasein" (Nunes, 2002, p. 11-12). Deste modo, a investigação fenomenológica deixa de se orientar somente pelo eixo que vai do exterior para o interior - que vai do noema (percepção do objeto exterior) para a noesis (estrutura de percepção) - para se referir a um processo no qual a intencionalidade se desinterioriza, posto que "o voltar-se dela para os objetos está enraizada na compreensão do ser em cuja órbita se move" (Nunes, 2002, p. 13).

Na consecução da investigação heideggeriana a interpretação deixa de ser mera função metodológica ou cognitiva e passa a assumir um sentido puramente ontológico, posto que se apresenta como relativa ao Ser (Stein, 2005). Nesta perspectiva a interpretação se converte numa hermenêutica da facticidade, passando a se referir ao modo fundamental pelo qual o homem está no mundo, adquirindo sentido ontológico, não se referindo somente ao conhecimento do homem, mas, sobretudo, ao sentido de seu Ser.

É em face a estas condições que Heidegger parte de um sintagma central de sua obra, a saber, a diferença ontológica, que se estabelece nos termos que buscam diferenciar o Ser do ente, dispostos na esfera ontológica e ôntica, respectivamente. E o que se sobressai desta diferenciação? Ôntico se refere aos entes, à totalidade dos entes que estão no mundo, com suas características singulares que fazem cada entidade particular. Enquanto isso, a ontologia se refere ao Ser dos entes - tanto à dinâmica de suas particularidades que os difere de outros entes, como também a sua universalidade - o que nos permite pensar no Ser daquele tipo específico de ente. Por exemplo: o ente humano, o Dasein, existem aos milhões no mundo, no entanto, o Ser deste ente é compartilhado por todos eles.

E o que a ontologia propõe? O objetivo de Heidegger foi estabelecer uma ontologia fundamental, ou seja, pensar a questão do Ser, provocando uma transformação no modo como compreendemos o Ser do humano. Porém, é inviável definir o que é o Ser, pois ele sempre se manifesta nos entes, como modos diversos de ser. O Ser se distingue fundamentalmente de todos os demais entes, dispondo em relevo as possibilidades de existência e modos de ser que lhe são possíveis no tempo, marcados pela presença do que se dá a desvelar como fenômeno. O Ser libera o mundo como campo de manifestação dos entes em geral e apenas o ente que possui uma relação distinta com o Ser pode compreendê-lo: o humano, o Ser-aí. E essa compreensão se dá aos moldes do possível ao Ser-aí, isto é, por intermédio do sentido. Nesta perspectiva, o que importa, então, é compreender o sentido do Ser, posto que todo "enunciado predicativo seria uma forma derivada da interpretação", implicando uma passagem do "como apofântico" para o "como hermenêutico", (Nunes, 2002, p. 35) estabelecendo uma abordagem de significação que localizaria no processo de interpretação um processo imanente ao Ser do ente.

A hermenêutica de Heidegger é o esforço que busca compreender o sentido da mensagem, o sentido do fenômeno, o Ser daquilo que se apresenta, seu fundamento ontológico, no ponto em que se fundamenta uma correlação entre Ser e interpretar. Mas, aqui, cabe frisar que, para a psicologia fenomenológica-existencial, não é função do terapeuta interpretar o que se mostra, e sim compreender o sentido do que é dito, de modo que a significação será dada pelo próprio paciente e não pelo terapeuta. O método Hermenêutico se propõe a desvelar o sentido do Ser, levando em consideração sua estrutura ontológica, bem como sua tendência ao encobrimento (Feijoo, 2010). Por isso é importante que o terapeuta desenvolva sua habilidade analítica e tenha claro qual o seu método e objetivo neste processo terapêutico, para que seja possível esse desvelar e, consequentemente, a sua (re)significação.

Heidegger (2005) expõe que o Ser habita na linguagem, pois ela é universal e atravessa a todos. Para o autor, a possibilidade de compreender o Ser se verifica com base no Ser-aí em relação ao tempo, ou seja, o que seria possível se entender de um ente se daria mediante ao que se manifesta pela linguagem no tempo. Deste modo, somente o ente humano - como Ser-aí no mundo e no tempo, dotado de linguagem, capaz de falar de si - se proporia como um Ser capaz de se orientar no campo das possibilidades propostas pelas significações. Não sem razão, verifica-se que a clínica se propõe como um lugar privilegiado na sociedade, posto que se propõe como prática social de base dialógica, como o locus social de reconstrução do significado (Grandesso, 2011), condição que se verifica no âmbito da psicologia fenomenológica-existencial, e de modo geral na psicologia, que se materializa como sendo um instrumento de excelência de acessibilidade ao sentido do Ser, ou seja, de sua fala e de seus modos de expressão na linguagem.

O surgimento do horizonte de possibilidades - o mundo - possibilita a manifestação dos entes, que requisitam ao Ser, modos de comportamento, que o convidam a assumir e se reconhecer em determinadas contingências, donde podemos afirmar que o Ser-aí é um ser-no-mundo, que sempre se concretiza como o poder-ser. Assim, proporcionar seu caráter de abertura no mundo, significa um modo de estar lançado diante das possibilidades da existência, visto que "Existir é já sempre se ver jogado em modos fáticos de ser" (Casanova, 2009, p. 92).

O Ser-aí, além do seu caráter de poder-ser, é temporal, indeterminado e histórico, é um Ser-paraa-morte. Trata-se de uma constatação paradoxal, posto que a única determinação do Ser-aí é a sua indeterminação, que de início e na maioria das vezes surge pela inter-relação incessante com o mundo, provocando um entrelaçamento do Ser-aí e a facticidade de seu estar no mundo. A psicoterapia e a compreensão do Ser perpassam o tempo, o passado, o presente e o futuro, e a história. O fenômeno em si, a realidade factual, não é tão importante nesse processo, mas sim o que foi capturado e significado pelo paciente (Giovanetti, 2018).

Sendo assim, podemos pensar que na medida em que o paciente compreende sua história e torna consciente sua condição de abertura e finitude, é possível ressignificar seu sofrimento, lançando-se nesse "aí" repleto de possibilidades ao apropriar de seu modo próprio1 de Ser. No entanto, esse movimento não surge do nada, as tonalidades afetivas2 aparecem como meios de deslocar e produzir avanços. Portanto, é de fundamental importância o manejo da tonalidade afetiva da angústia; acolhendo-a enquanto potência curadora e contendo-a quando ela é experienciada pelo sujeito como destrutiva. Talvez, esse seja um dos grandes desafios da clínica fenomenológica-existencial.

 

Disposição afetiva fundamental: aangústia

No que tange aos estudos sobre os afetos, Heidegger se diferencia de outros autores na sua forma de abordá-los enquanto fenômenos. Na medida em que os demais estudiosos dos sentimentos3 se preocupavam com a origem e como manejá-los, Heidegger se propôs a compreendê-los, se ocupando de sua dimensão de linguagem daquilo que os afetos admitiam desvelar. Na ocasião da publicação de Ser e tempo em 1927, Heidegger rompe com as filosofias gnosiológicas, baseadas na relação sujeito-objeto para definir o conhecimento, cuja questão organizadora poderia ser expressa da seguinte maneira: porque o homem esquece o Ser? Este esquecimento implica em uma forma de surdez quanto ao sentido e verdade do Ser, daquilo que Heidegger denomina como escuta (hören), percepção que envolve a compreensão: "Dasein escuta [hört] porque compreende" (Heidegger in Inwood, 2002, p. 136), posto que "essa recepção, no entanto, só é existencialmente possível porque a presença, enquanto ser-com em compreendendo, pode escutar os outros" (Heidegger, 2009, p. 349).

Esta proposição heideggeriana se torna ainda mais evidente no dispositivo psicoterápico, haja vista que a angústia como afeto revelador do Ser se dá a compreender na medida em que seu sujeito é escutado. São diversas as disposições afetivas fundamentais existentes, entre elas encontramos o tédio, a angústia, o terror, a admiração, o êxtase, o horror, a retenção e o pudor (Feijoo, 2011). Entretanto, no curso da investigação do filósofo percebe-se a primazia do pathos da angústia em detrimento das demais.

Mas o que seria então estas disposições afetivas fundamentais? Além disso, por que são denominadas fundamentais? Para começar a entender a problemática que as envolvem, é preciso localizar as dimensões em que elas se encontram. A disposição afetiva se encontra no plano ontológico, uma vez que é por meio dela que ocorre a interpretação dos fenômenos da abertura dos sentimentos, estes, por sua vez, se situam no plano ôntico (Soares, 2010). Heidegger (2005, p. 194) define a disposição como:

Um modo existencial básico em que a presença4 é o seu pré. Ontologicamente, ela não apenas caracteriza a presença como também é de grande importância metodológica para a analítica existencial, devido à sua capacidade de abertura. Esta possibilita, ademais, como toda interpretação ontológica, a se escutar, por assim dizer, o Ser dos entes que já se abriram.

Para o autor, as disposições afetivas não apenas são um modo existencial do Dasein5, mas, em caráter ontológico de abertura, se apresentam como metodologia para a analítica existencial. Ou seja, parte-se das disposições para desvelar o Ser dos entes em sua condição de indeterminação.

Voltando à segunda pergunta citada acima e sua importância, a palavra fundamental pode ser compreendida como aquilo que funda e alicerça. Para além, é preciso tomá-la enquanto essencial, colocando-a no lugar de excepcionalidade, pois são as disposições afetivas que fundam a mais originária compreensão do Ser-aí, e inauguram novas ações ao se apropriar de suas possibilidades. Segundo Feijoo (2011, p. 44) "são as tonalidades, como situaçõeslimite que abrem mundos, horizontes, de modo a lançar a existência em um espaço de possibilidades [...] por conta da crise radical a que elas dão voz."

É com base na disposição afetiva que o Ser-aí verdadeiramente se situa na existência, no seu aí, e lançado no mundo, possui a oportunidade de se autointerpretar (Soares, 2010). Dessa forma, por revelar a dimensão do Ser dos entes, a disposição afetiva é responsável por fazer emergir a voz do Ser do próprio Ser-aí. As tonalidades afetivas "remontam mais originariamente à nossa essência, só nelas chegamos realmente a encontrar nós mesmos enquanto Ser-aí" (Heidegger, 2011, p. 89).

Soares (2010) nos apresenta três aspectos da condição ontológica da disposição afetiva, sendo eles: seu poder de desvelar; aquilo que é desvelado e o modo como é desvelado. O primeiro remete a ideia de disposição enquanto desencobridora do mundo. O segundo ao conteúdo que representa o sentido do fenômeno. E por último refere-se à maneira pela qual se concretiza o desvelamento.

A disposição afetiva é uma das três características ontológicas que fazem parte da constituição existencial da abertura, com a compreensão e o discurso. Toda disposição é compreensiva. Isso significa que é por meio da disposição que o Ser-aí é apresentado à sua abertura, e na compreensão é possível apreender o sentido do fenômeno, inaugurando, assim, novas ações. Entretanto, na maioria das vezes, o Ser-aí se esquiva da abertura propiciada pelas disposições afetivas (Dantas, 2011). Quanto a isso Dantas (2011, p. 17) afirma que:

A disposição, como se viu, aponta para um "já-ser-junto-ao-mundo". A compreensão, por sua vez, diz respeito ao "poder-ser" do Dasein. A compreensão estrutura-se como projeto. Projetando-se para possibilidades, o Dasein está, por assim dizer, sempre além de si. O que ele é de fato não esgota o seu Ser. No entanto, o poder-ser pertence essencialmente à facticidade do Dasein. Isto porque o estar lançado da disposição e o projeto da compreensão são constituintes cooriginários da abertura.

Toda disposição é anterior à possibilidade da reflexão. No caso, não são os pensamentos ou a capacidade reflexiva que produz a disposição afetiva, mas o contrário. Sempre se está disposto, pois sempre se está aberto. De acordo com Dantas (2011, p. 16) "A disposição põe o Dasein diante do fato de ser e ter de ser", ela apresenta ao Dasein a sua verdade. Por fim, percebemos a importância da disposição afetiva na obra de Heidegger e na busca pela compreensão do sentido do Ser. Adiante nos ateremos na eleição da angústia, enquanto disposição afetiva fundamental, para compreender o lugar de verdade que ela ocupa para o Ser-aí.

 

A angústia e o nada

Heidegger (1991, p. 39), em Que é Metafísica?, afirma que a disposição fundamental da angústia "manifesta o nada". Para compreender melhor o fenômeno da angústia, devemos então, colocar em questão o que seria esse nada.

Cotidianamente, quando nos perguntam o porquê de nossa angústia e rapidamente dizemos: não é nada, queremos fazer menção a sua importância, e não ao seu fundamento. Sendo que o nada ao qual iremos nos referir faz menção direta ao fundamental de nossa afetividade. Esse nada, que surge de maneira ainda oculta na medianidade, tem um lugar de destaque na ontologia. Se pensarmos na estrutura Ser-no-mundo, composta pelos seus três momentos constitutivos - Ser, mundo e Sercom - temos que o Ser-aí sempre está em relação com algum ente, menos quando se angustia. Dantas (2011, p. 26) argumenta que a angústia

não representa nenhum estado psicológico ou sentimento. É um acontecer no Ser-aí em que se realiza a experiência do ser como nada. O nada é exatamente a própria abertura do "Seraí", a sua incompletude, o espaço vazio que o "Ser-aí" é essencialmente.

O nada manifesto pela angústia não tem relação com qualquer tipo de niilismo ou pessimismo, e não se refere também a uma negação, mas sim à própria possibilidade de negação. Esse nada, que possui um parentesco ontológico com o Ser, é a plena negação da totalidade do ente (Dantas 2011). Quanto a isso, Heidegger (1991, p. 39) afirma que "... a angústia nos suspende porque ela põe em fuga o ente em sua totalidade...". Tal suspensão refere-se ao fato de o Ser-no-mundo, neste momento, não estar em relação com o mundo propriamente, mas, esse, pondo-se em fuga e dando lugar ao nada, faz com que "somente continue presente o puro Ser-aí no estremecimento deste estar suspenso onde nada há em que apoiar-se" (Heidegger, 1991, p. 39). Werle (2003, pp. 108109) ratifica que

Para Heidegger, o nada se coloca por si mesmo na angústia, não precisa ser criado, mas se revela na angústia e ao mesmo tempo a provoca, ele é a causa e o efeito ao mesmo tempo. Para isso Heidegger emprega a expressão: "o nada nadifica", para dizer que o modo de o nada se manifestar somente ocorre por meio do nada mesmo. O nada nos lança num constante nada, ele mesmo é o sujeito de si, não é um objeto que está ao nosso alcance, que pudesse porventura ser "definido" por meio de uma negação. Pelo contrário, é ele mesmo que nadifica. O nada, posto que está acima de um ente determinado, é assim o próprio véu do ser que se revela em nossa existência por meio da angústia.

A angústia nos suscita uma certa estranheza que vem da própria condição do Ser-no-mundo, isto é, existir de modo indeterminado, jogado, ou, de outro modo, uma estranheza que é ao mesmo tempo um não se sentir em casa (Werle, 2003). Cara a cara com o nada, espaçado das referências imediatas que tornam a existência familiar, o Ser-aí tem a possibilidade de apropriar-se de seu ser. Nesse movimento, o homem encontra-se em condições de singularizar o seu Ser-aí, decidindo por romper com o impessoal, antecipando-se diante a existência fática para o cuidado consigo mesmo.

Tocado pelo modo da preocupação com seu próprio ser, o Ser-aí se vê diante de seu poder-ser, incluindo a possibilidade de não-ser, isto é, a morte. A morte é o fim das possibilidades de realização do Ser-aí. Entretanto, a morte é um fenômeno que só podemos experimentar indiretamente, diante do outro que morre. "A morte tem este aspecto paradoxal de apenas surgir quando não pode mais constituir um problema para o Dasein, a não ser que ele a assuma como a sua mais própria essência na própria existência" (Werle, 2003, p. 111). Com isso, apropriar-se dela é compreender que a morte é um fenômeno da existência e não do fim dela. Dessa forma, o nada revelado pela angústia aponta para a existência finita do Ser-aí. E diante desta experiência de tomada de consciência de seu Ser-para-a-morte, angustiado, o existente é confrontado pelo próprio ser, levado a refletir sobre seu passado, presente e futuro, assumindo individualmente a existência.

 

Angústia na contemporaneidade

Ao contrário do esforço de alguns filósofos, como Kierkegaard, que reconheceu na angústia um sinal de abertura para a reflexão, na contemporaneidade a angústia ocupa um lugar que faz menção quase que exclusivamente ao patológico de nossa disposição subjetiva. Nomeada popularmente como um sentimento que aperta, sufoca e estreita, não é estranho que quase todos os empreendimentos de abordagem se esforcem por eliminá-la. Dantas (2011) nos apresenta as diversas formas de supressão da angústia no que se deu a reconhecer como a Era da técnica, podendo ser a medicalização, o uso excessivo da tecnologia, ou as variadas formas de entretenimento.

Heidegger, em 1953, proferiu uma conferência na Escola Técnica Superior (Techniche Hochschule), em Munique, sob o título A questão da técnica (Die Fragenach der Technik), ocasião em que o objetivo se pautava em refletir sobre a técnica no contemporâneo. Ao recolocar em jogo a questão da técnica, o filósofo nos convida a meditar e questionar sobre sua essência, para que se possa, então, estabelecer uma relação de maior liberdade com seu uso, de modo a experimentá-la, sem, com isso, aceitá-la incondicionalmente, o que não implica sua rejeição ou negação: "questionar a técnica significa, portanto, perguntar o que ela é" (Heidegger, 2006, p. 12).

Neste sentido, demarcaremos, então, a diferença do que seria a concepção de técnica para os gregos e a sua concepção moderna. A primeira, techné, referese a uma atividade humana de produção (poíesis) em face à transformação da natureza (phýsei) para fazer prevalecer a sua própria natureza (nómos). Em sua relação com a verdade (alétheia), implica na arte de desvelar a coisa em si, deixar as coisas virem por si só, trazer luz ao que haveria de belo. Já a segunda concepção, é compreendida como a tentativa de produzir, mensurar, controlar, prever e objetivar a realidade (Dantas, 2011). Entretanto, temos um problema, pois se o Dasein é, por essência, Ser-aí - ontologicamente posto em radical abertura, marcado pelo caráter de indeterminação e nadificado - seria possível controlar e prever nossa realidade? Presumir essa possibilidade perpassaria por conceber o Ser-aí como ente pronto e determinado em sua existência, fechado em suas possibilidades de significação. O que implicaria uma contradição para o Dasein que conserva o caráter de liberdade, possibilidade e projeto como horizonte de sua manifestação. Mas, conforme nosso argumento, ser livre - essencialmente indeterminado - neste contexto, implicaria a angústia enquanto índice efetivo de sua liberdade.

Assim, podemos pensar que, de modo contundente, ao estar, o Dasein, imerso no modo impessoal - propiciado pelo imperativo da técnica - produziria ilusões que convidariam o ente humano a parar de refletir e questionar sua própria existência de modo verdadeiro. É no impessoal, por exemplo, que o homem não considera a morte como a certa possibilidade humana e existe tentando se afastar dela à medida que ela inexoravelmente se aproxima. A angústia possibilita a oportunidade de questionar e se lançar na abertura, enquanto a impessoalidade impele o Ser-aí a extingui-la ao concebê-la como ameaçadora. Ao transformar a angústia de sua condição reveladora em sintoma, marcada por ilusões de determinação e de controle, a impessoalidade nega a dura verdade do Ser-aí.

O falatório, a curiosidade e os entretenimentos produzem a manutenção do Ser-aí em seu modo impessoal, já que, neste modo, as referências que estruturam as maneiras de ser e agir do Dasein e as suas produções de sentido, são dadas pelo outro. As referências já estão prontas e moldadas pelo impessoal. Porém, ao romper as estruturas de sentido desse modo, surge a angústia. Como exposto por Dantas, Sá e Carreteiro (2009, p. 4),

Na angústia, apertura existencial, estreitase a distância entre o homem e o seu ''Seraí''. Quando as referências que sustentam a experiência de um mundo simplesmente dado falham, aproxima-se a possibilidade de uma experiência mais própria do existir enquanto Ser-no-mundo. A pré-compreensão de si como mero poder-ser e do agora como instante de decisão é impropriamente experienciada como temor à destruição de uma vida segura e convenientemente adaptada, e de seu mundo estruturado. A fuga e o encobrimento sistemáticos da experiência de nossa condição de mortais determinam o modo como cotidianamente lidamos com nosso existir e com tudo o que, a partir dele, nos vem ao encontro.

Uma forma mais didática para se pensar a angústia, proposta por Dantas (2011), é pensá-la como "falha no sistema". O sistema constituído por diversas referências, organizadas e repletas de sentidos, dadas pelo Ser-aí e pelos outros entes que, ao falhar, fazem surgir a angústia. É neste momento que é propiciado reconstruir novas referências e a estrutura de sentido que organiza o Ser-aí em sua existência.

Poderíamos perguntar: por que quando as referências dadas pelo impessoal falham, surge a angústia? A angústia se depara com o nada, estreita-se a relação entre o Dasein e sua abertura. Angustia-se pelo fato de o Ser-aí ser indeterminado e necessitar, por si mesmo, escolher o que deve se tornar. A liberdade é por excelência o que possibilita o Ser-aí se angustiar, cobrando-o da responsabilidade de escolher e ter de ser. Embora o conceito de liberdade em Heidegger (Inwood, 2002) possua vários sentidos (Inwood nos fala de 7), aqui iremos frisar o sentido que compete ao nosso trabalho. Trata-se do sentido que se refere a própria essência do homem, no qual a liberdade emerge condicionada pela interpretação e sentidos de vida própria (eigentlich), trata-se de um viés cernido pelo Dasein enquanto possibilidade e projeto. Neste sentido, a liberdade faria menção a autonomia referente à escolha de uma vida pessoal (eigentlich), preservando o Ser do homem de uma vida banal, anônima e marcada pelo impessoal. A liberdade se refere à abertura em face da verdade de suas possibilidades, no ponto em que "a essência da verdade se desvelou como liberdade" (Heidegger, 1979b, p. 140)

Em conformidade à sua crítica da lógica impessoal, Heidegger (citado por Dantas, Sá e Carreteiro, 2009) apresenta duas formas de pensamento diante à realidade: o pensamento calculante e o pensamento meditante. O pensar pela via do cálculo significa buscar mensurar e controlar os fenômenos e os entes, sendo esse permeado pelo modo impessoal. Contudo, o pensamento meditante se opõe a qualquer forma de determinação, deixando que as coisas surjam como elas são. É um exercício de reflexão, resistindo às imposições da impessoalidade.

Ao conceber o modo impessoal como aquilo que não é pessoal, que está fora, que é impróprio (uneigentlich) ao Ser-aí, o pensamento lógico calculante se apresenta hegemônico, propalando a ilusão de que tudo podemos controlar. Ocorre que toda a busca por determinar a existência do Dasein produz efeitos danosos. Não sem razão, o adoecimento, segundo Dantas (2011), ocorre justamente pela restrição do horizonte de possibilidades, ou seja, quando o Ser-aí age de forma impessoal, não se apropriando de sua liberdade, isso porquê, segundo Heidegger (2009, p. 185), o impessoal permite "que se apoie impessoalmente nele. Pode assumir tudo com a maior facilidade e responder por tudo, já que não há ninguém que precise responsabilizar-se por alguma coisa".

Nesta perspectiva, o declínio do individualismo na contemporaneidade acenaria para o estreitamento da liberdade diante do imperativo da técnica e do consumo. A sociedade de consumo atual, caracterizada pelo excesso, torna saliente o círculo de consumo que se consome e torna patente influência do impessoal nos quadros psicopatológicos. O discurso heideggeriano nos leva a romper com as ilusões oferecidas pelo modo impessoal ditado pelas massas, o que significa se apropriar de seu processo de singularização. O caráter de poder-ser significa lançar-se nas possibilidades existentes para o Ser-aí.

Entretanto, o modo impessoal e todo seu discurso coloca o Ser-aí na contramão de encontrar meios de singularização. Entre outras razões, o lugar da impessoalidade produz um sentimento de familiaridade, previsibilidade e suposta segurança diante às adversidades da existência, logo a sensação de conforto. Não é difícil concluir pela facilidade e comodismo que há em se permanecer no impessoal. Frente a isso, Feijoo (2010) afirma que o Ser-aí tem a tendência ao encobrimento, a fugir de si próprio escondendo-se no falatório.

Nesta perspectiva, a angústia surge enquanto possibilidade do reencontro. Abdicar da singularidade, não se responsabilizar pelas suas escolhas, permanecer no conforto do impessoal sem buscar novas referências capazes de reestruturar os sentidos da própria existência, significa abrir mão de sua propriedade. Para Dantas (2011, p. 56),

A angústia é a estranha que vem lembrar de maneira inequívoca, que toda essa formulação é ilusória; ela vem trazer "estranheza" a esse homem contemporâneo; marca a temporalidade de todas as suas construções e a transitoriedade de seus projetos; e vem sinalizar que estamos irremediavelmente perdidos e abertos à indistinta possibilidade de tudo. Ela sinaliza, sobretudo, a dimensão trágica da vida que este nosso horizonte histórico nos convoca a esquecer.

Dessa forma, podemos pensar que há dois modos de lidar com a angústia, isto é, encobri-la ou apropriar-se dela enquanto possibilidade. Essa segunda visão nos interessa, ao passo que é por meio dela que se verifica a possibilidade do Ser-aí encontrar-se com sua verdade. Contudo, no horizonte contemporâneo pautado pelo notório alargamento dos sistemas tecnológicos de informação - no qual se verifica um acréscimo de distrações que propendem a desviar o homem de seu projeto essencial - a vida impessoal encontra consideráveis condições de sua realização, seja na decadência da presença, no empuxo à mera curiosidade informativa, ou na falação avessa a todo e qualquer tipo de reflexão qualificada. Os produtos criados pela era da técnica, em grande parte, cumprem o papel de desvio da reflexão, contribuindo com o encobrimento do sentido do Ser, afastando de si a verdade de suas possibilidades de uma vida própria.

Cumpre destacar que, apesar dessa tendência ao encobrimento, o Ser-aí é, por constituição, aberto e lançado às possibilidades. É um ente determinado a ser livre. "E aqui reside a única necessidade que a liberdade conhece: o homem não é livre para deixar de ser livre" (Angerami-Camon, 2000, p. 19). A responsabilidade de escolher e fazer seu projeto existencial singular é condição de cada Ser-aí. Em face a estas proposições, ressaltamos que não temos a intenção de abordar as produções da Era da técnica em um nível valorativo de sentido. Nos parece de grande importância reconhecer que, nesse caso, o modo como nos relacionamos com os objetos, tecnologias e entretenimentos produzidos por nossa época é a grande questão. Segundo Inwood (2002, p. 108) em sua análise do conceito heideggeriano de liberdade "é possível que a tecnologia possa acomodar-se em uma nova e radical 'fundamentação do Da-sein' e, portanto, da liberdade", posto que é esta a nossa época, com características peculiares e modos de funcionamento que nos diferenciam de outras épocas.

Afirmar que somos produtos puramente do meio, que a era da técnica é responsável por controlar e objetivar a existência, além de construir meios de encobrimento da nossa verdade, é inferir que somos passivos e determinados ao modo da impessoalidade. Seria então, por assim dizer, uma tentativa de se eximir de qualquer responsabilidade com sua existência, dado que somos seres indeterminados, livres e abertos. Assim, o que importa é o modo como nos relacionamos com o que nos é apresentado. Nesse caso, o segundo modo de se relacionar seria conceber o mundo, seus instrumentos, objetos e as relações interpessoais, enquanto apropriação das possibilidades.

Aqui, precisamos retomar um ponto importante do nosso trabalho. Se, de início, apresentamos uma concepção de sentido em que a contemporaneidade concebe todo e qualquer tipo de angústia como sendo algo patológico, então é preciso explicitar - mesmo que de modo sumário - algo do campo de sua definição psicopatológica, apresentando o que seria esta forma patológica de conceber esta disposição afetiva fundamental.

Henri Ey (1978) descreve a neurose de angústia a nível orgânico e psíquico. Nas alterações somáticas apresentam-se sintomas respiratórios, cardiovasculares, digestivos, urinários, neuromusculares, sensitivos, sensoriais e cutâneos. No psíquico, apresentam-se a depreciação imaginária da existência, a espera do perigo e a desorganização.

Mas Cipullo (2000) questiona a descrição acima, pois a neurose de angústia pode ser compreendida como um estado de ansiedade. Outra caracterização de angústia, visto a dificuldade de delimitar quais são as suas alterações psíquicas e fisiológicas, que determinariam a ideia de angústia patológica, pode ser apresentada por Giovanetti (2000), que afirma existir dois modos de diferenciar angústia de normal ou patológica pelo modo como a vivenciamos, considerada positiva ou negativa. A positiva diz respeito a angústia que nos move, enquanto a negativa, segundo ele, "(...) é quando um estado de ânimo (tonalidade afetiva) nos coloca "pra baixo", isto é, a angústia é vivida com tal intensidade que ela paralisa a existência e chega a ameaçar a integralidade de nossa personalidade" (Giovanetti, 2000, p. 128).

Diante destas definições é preciso frisar que o nosso trabalho se volta para a angústia ontológica - para além da diferença que tipifica a dinâmica entre o normal e o patológico - essa que nos move diante de nosso projeto existencial e nos apresenta as possibilidades. Ela se coloca enquanto possibilidade de movimento, sendo, assim, necessária sua presentificação em nossa existência. "A angústia, dessa forma, também seria algo que se passa em mim em uma abertura por meio da qual a minha própria consciência poderá apreendê-la e codificá-la de seu expressionismo" (Angerami-Camon, 2000, p. 28).

 

Angústia, cuidado6 e singularização

Nesta parte do artigo, nos pautaremos na relação entre angústia, cuidado e singularização, uma vez que esses dois últimos termos são de grande importância para a analítica existencial e para a psicoterapia, concebendoos como fundamentais à existência humana. Neste sentido, nos questionamos sobre qual seria o objetivo de pensar a angústia no processo psicoterápico, e o que significaria abordá-la do ponto de vista ontológico, levando em consideração que as tonalidades afetivas, ou disposições, são relevantes na medida em que revelam a verdade do Ser - e não só revelam, como também movimentam o Dasein para se apropriar do seu caráter de poder-ser cada vez mais próprio.

A angústia tem papel fundamental nesse processo, contudo, ontologicamente o Ser-aí é fundamentalmente cuidado. Esse conceito é amplo e abarca em si diversos outros conceitos. Nessa perspectiva, convém salientar que é impossível argumentar, no contexto da analítica existencial de Heidegger, sobre conceitos em seu sentido isolado. Posto que há uma interligação verdadeiramente lógica entre os conceitos, sua possível delimitação em uso isolado faria com que corrêssemos o risco de perder algo de seus sentidos.

Advertidos desta condição, destacamos que o Dasein é cuidado, mas na medida em que é Ser-nomundo e Ser-com-os-outros, este cuidado (Fürsorgen), implica, fundamentalmente, sua pré-ocupação com outros Daseins. Não sem razão, "o cuidado não se refere a um determinado modo de relação e, sim, à condição de ser aberto às possibilidades de relação nas suas diferentes modalidades" (Feijoo, 2010, p. 87). O cuidado perpassa pela apropriação da condição de ser lançado, aberto às possibilidades, assim como ao caráter de indeterminação.

E qual seria a relação estabelecida entre a angústia e o cuidado? Araújo (2000, p. 161) nos aponta sendo "(...) a angústia como a gênese do cuidado". Ou seja, o cuidado se origina por intermédio da angústia. É possível compreender o momento em que as referências estruturantes da existência se dissolvem, surge a angústia propiciando abertura ao Ser-aí para o cuidado. O cuidado foge à regra da determinação, pois ele é concebido pelo lançar-se às possibilidades. Na angústia é solicitado o cuidado.

Outro conceito relevante e necessário para se pensar o cuidado é o tempo, visto que não deve ser confundido com o que o senso comum pensa, numa lógica determinada, cujo passado é aquilo que já se foi, o presente o que vivemos nesse instante e o futuro como aquilo que está por vir. O tempo se funde em uma dialética entre os três tempos, ele não é fragmentado, mas sim uma totalidade. Diferente de outros animais, o Dasein tem a capacidade de projetar-se no tempo. Quando o Ser-aí se projeta no futuro, as possibilidades do futuro já são vivenciadas no presente. As escolhas presentes são influenciadas pela historicidade (passado) e possibilidades (futuro), a temporalidade é a vivência total dos três tempos. Sendo assim, o tempo não é externo, "[...] pois nós não vivemos o tempo, nós somos o tempo" (Araújo, 2000, p. 157).

O Ser-aí é um Ser-para-a-morte. O tempo escancara ao Dasein seu caráter de finitude. A morte reflete a possibilidade de extinção do projeto existencial e de suas possibilidades. A morte própria é negada, tendo como certeza que quem morre é o outro, e sempre teremos a possibilidade de realizar todos nossos projetos (Rotschild e Calazans, 1992). Entretanto, a condição de ser-para-a-morte deve ser pensada como possibilidade. Possibilidade de quê?

Heidegger (2005, p. 46) em "Ser e tempo" afirma que

O Ser-para-morte é antecipação do poder-ser de um ente cujo modo de ser é, em si mesmo, um antecipar. Ao desentranhar numa antecipação esse poder-ser, a pre-sença se abre para si mesma, no tocante à sua extrema possibilidade. Projetar-se para seu poder-ser mais próprio significa, contudo: poder de compreender no ser de um ente assim desentranhado: existir. A antecipação comprova-se como possibilidade de compreender seu poder-ser mais próprio e extremo, ou seja, enquanto possibilidade de existir em sentido próprio.

Heidegger (2005) percebe o Ser-para-a-morte como possibilidade de o Dasein apropriar-se daquilo que é mais próprio. A angústia revela a inexorável condição de finitude. Aberto às possibilidades, o Ser-aí é determinado a ser. A resposta "eu sou isso ou aquilo" nada mais do que revela o estar imerso na impropriedade. O Dasein não "é", ele existe no plano do "sendo", nesse constante vir-a-ser. Todos esses elementos trazidos acima, a angústia, temporalidade e Ser-para-a-morte, são constituintes do cuidado.

O cuidado nos revela a possibilidade do Seraí caminhar para a singularização. Não seria essa a proposta de toda e qualquer psicoterapia? No existir, apropriar-se do modo próprio de Ser é singularizar-se. A morte, nesse sentido, "(...) não apenas "pertence" de forma não diferente à própria pre-sença, como reinvindica a pre-sença enquanto singularidade. A irremissibilidade da morte, compreendida na antecipação, singulariza a pre-sença em si mesma." (Heidegger, 2005, p. 47). Ao antecipar e compreender a finitude, se jogando ao "aí", torna-se possível com base no cuidado singularizar-se.

Neste sentido, a angústia revela-se como motor da própria existência. Ao tomar consciência da sua condição de finitude e possível encerramento do seu projeto existencial, o Ser-aí se angustia. Contudo, ao pensar a morte e a angústia, o que nos importa é o modo como iremos caminhar, ou existir, diante dessa condição de finitude (Cipullo, 2000).

O caminho para uma existência mais própria perpassa pelo cuidado. A angústia frente ao nada depara-se com seu "ter de ser" e "(...) se mostra como uma dimensão reveladora (aquela que "singulariza" o Ser-aí), ao possibilitar que o Ser-aí retome o caminho próprio da sua existência, através de seus projetos de sentido" (Weyh, 2019, p. 106). Ela aponta o caminho do Ser-aí para se encontrar com sua verdade. O Ser-aí e sua temporalidade, unidade dos três tempos, atravessa a existência na busca de uma direção ou sentido. Assim "sendo", o Ser e o tempo, aos modos do cuidado, tornam possível que o Dasein se singularize. Isso ocorre não no tempo de Cronos, mas no tempo de Kairós, no oportuno das possibilidades.

 

Reflexões clínicas sobre a angústia

Até esta parte, discorreremos brevemente sobre algumas orientações da clínica fenomenológicoexistencial perante a angústia. Tendo em mente a negatividade7 da existência do Dasein, isto é, a sua condição de abertura e indeterminação, é primordial que a psicoterapia não tente sobrepor esse nada fundamental com algum tipo de positividade, pelo contrário, o objetivo do psicoterapeuta fenomenológico existencial é de desvelar a negatividade essencial da existência. E é justamente neste âmbito, de vazio, de indeterminação, de falta de respostas dadas sobre como viver que o Dasein se encontra livre para poder singularizar-se.

Dessa forma, as tonalidades afetivas fundamentais tornam-se protagonistas no processo psicoterapêutico, pois revelam algo da verdade do Ser-aí. Abrir espaço para que elas apareçam na clínica é atuar favorecendo que, por meio da fala, o paciente vá reconhecendo sua íntima relação com o Ser. A angústia se destaca neste momento por revelar, sem véu, o nada essencial constituinte da existência, precursor da liberdade. Roberto de Sá, na apresentação do texto de Feijoo (2011, p. 8), aponta:

Para a fenomenologia existencial, as experiências de sofrimento estão sempre articuladas com a restrição do poder-ser, e sua superação implica a desconstrução das identificações restritivas em que o Ser-aí se desvia de seu ser-próprio, da negatividade, enquanto liberdade essencial, à qual ele é desde sempre apropriado. Mas, essa desconstrução não é uma tarefa meramente intelectual, trata-se, antes, de um deslocamento existencial, de um desalojamento identitário sempre mobilizado por alguma disposição afetiva fundamental.

A clínica, portanto, se movimenta no sentido de liberar o Dasein adoecido para a realização de seu poder-ser mais próprio, mediante a quebra de identificações que restringem a sua fluidez. As tonalidades afetivas são como o motor desse processo, no qual o paciente é convidado a refletir sobre o cuidado com o seu próprio existir.

Diante a angústia, a possibilidade de liberdade se revela através do chamado do Entwurf, traduzido para o português como ter-que-ser-si-mesmo, que pode ser sentido como um 'peso' ou como um espaço de singularização (Santos, 2013). Ter-que-ser-si-mesmo é comumente ocultado pelo falatório do impessoal, mas que, durante um processo psicoterapêutico, deve ser desvelada pelo paciente como espaço para a construção de um projeto existencial próprio.

A tendência ao encobrimento do sentido do Ser, já citada anteriormente, trata-se do desafio do qual o psicoterapeuta e o paciente terão de enfrentar. Singularizar-se é um processo difícil, já que é um movimento que se dá no campo de abertura das disposições afetivas, naquilo que elas trazem de mais singular. Confrontam-se as saídas do impessoal e as possibilidades mais pessoais para o existir. Ambas possuem perdas e ganhos, porém, é apenas na trilha da apropriação da condição do Ser-aí que se pode percorrer de maneira mais singular o próprio caminho.

Em se tratando da angústia, como também explicitado acima, o horizonte existencial da nossa época possui um arsenal de maneiras para ocultála, afastá-la da experiência cotidiana do Dasein. Isso, inclusive, faz com que o fenômeno da angústia muitas vezes seja vivido de maneira patológica, por não se ter um espaço no qual ela e suas revelações possam ser sentidas e refletidas. Nesse sentido, é necessário reconhecer essa tonalidade afetiva como importante. A angústia aparece quando as referências dadas do mundo sobre o Ser se desconstroem, apontando um vazio, um nada fundamental que compõe o Ser-aí. E neste encontro, do homem com a sua negatividade, há novamente um chamado para que ele se singularize.

Por fim, podemos concluir que, durante um processo psicoterapêutico baseado na perspectiva da fenomenologia-existencial, o papel do psicólogo é fazer com que o sentido do Ser comece a ser desvelado, por meio de desconstruções de identificações impessoais que, somadas às revelações das tonalidades afetivas fundamentais, sobretudo a angústia, possibilitem que o paciente consiga se aproximar da questão do Ser e que novas possibilidades mais singulares de viver tomem formas.

 

Conclusão

Assim, é possível inferir que a angústia do ente humano revele a verdade do Ser-aí. A verdade apresenta a condição de abertura e indeterminação na qual o Ser-aí está lançado. Ela é a essência do Dasein que é finito e responsável pelo próprio existir: ter-de-ser no mundo. Apesar do Ser-aí na contemporaneidade dispor de um arsenal de ferramentas que afastam e ocultam a sua angústia e, consequentemente a sua verdade, ela, a verdade, continua a existir, por se tratar da condição do Ser do Ser-aí, mas que pode ser ou não apropriada por cada um. Não sem razão, Heidegger (1979b, p. 145) nos exorta a investigar pela verdade quando diz que "a questão da essência da verdade encontra sua resposta na proposição: a essência da verdade é a verdade da essência" - a verdade da angústia no processo psicoterápico é que ela revela a situação de presença autêntica do sujeito que sofre. Neste sentido a angústia revela a verdade do sofrimento que a impessoalidade das massas e do mundo busca escamotear, mas que a escuta analítica existencial cria condições de fazer emergir.

Por fim, a angústia ontológica, não restrita ao processo psicoterápico, movimenta o Ser-aí e revela possibilidades que mediante o cuidado, torna possível a sua singularização. Dessa forma, é essencial que o psicoterapeuta compreenda as condições de possibilidade do manejo da angústia, facilitando ao paciente a apropriação e responsabilização frente àquilo que a angústia ontológica admite desvelar.

 

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Recebido em 14.09.2020
Primeira Decisão Editorial em 12.01.2021
Aceito em 01.02.2021

 

 

1 Optamos por traduzir os termos eigentlich e uneigentlich ora por próprio e impróprio ora por pessoal e impessoal. Alguns autores os traduzem por autêntico e inautêntico, porém preferimos por não utilizar desses termos para que se reduza a possibilidade de compreendê-los com base em uma perspectiva moral. Além disso, trata-se de uma tradução mais verdadeira, pois a raiz das palavras alemãs: eigen significa próprio. Ver (Amaral, 2018, p. 3637).
2 Ler disposição e tonalidade afetiva como sinônimos.
3 Sentimento entende-se no mesmo sentido de afeto.
4 Na tradução de "Ser e o tempo" de 1996, o termo alemão Dasein foi traduzido como pre-sença. Porém, optamos pela tradução de "seraí" utilizada por outros autores, entre eles a Feijoo (2010).
5 O termo alemão Dasein, que será traduzido por Ser-aí, é composto pelas partículas "Da" e "Sein", que significam, além de outras coisas, respectivamente "aí" (ou "lá") e "ser".
6 Algumas traduções trazem o conceito alemão Sorge como cura, entretanto, optamos pelo cuidado, uma vez que cura está ligado a estado, podendo causar divergências no pensamento. Cuidado se aproxima de um processo, podemos assim pensar o projeto existencial enquanto cuidado. Seguindo as proposições de Heidegger, Inwood (2002, p. 26) nos faz considerar que o conceito de cuidado aparece atrelado aos conceitos de cura, ocupação e preocupação. Tendo as três distinções a seguir: 1) cura (Sorge), no sentido de cuidado se refere à ansiedade e a preocupação que nasceria de apreensões concernentes ao futuro, podendo se referir tanto a causas externas quanto internas; 2) ocupação (Besorgen) que se refere a tratar, se ocupar, ou cuidar de algo, ou ainda, "estar ansioso, perturbado, preocupado" com algo ou alguma coisa; 3) preocupação (Fürsorge) que se refere a "cuidar ativamente de alguém que precisa de ajuda".
7 Negatividade deve ser entendida não no sentido de uma negação, mas no sentido de um vazio, uma falta, um nada inerente a existência do Dasein. Assim, a positividade seria os saberes construídos sobre a negatividade que delimitam os modos de ser por meio de referências dadas pelo mundo.

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