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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.28 no.1 Goiânia jan./abr. 2022

http://dx.doi.org/10.18065/2022v28n1.4 

ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

 

O cristianismo e a conversão de paulo sob o olhar da psicologia analítica de Carl Gustav Jung

 

Christianity and Paul's conversion from the perspective of Carl Gustav Jung's analytical psychology

 

El cristianismo y la conversión de Paul desde la perspectiva de la psicología analítica de Carl Gustav Jung

 

 

Renato KirchnerI; Edilza Rodrigues Campelo da SilvaII

IProfessor e Pesquisador da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Diretor da Faculdade de Filosofia. Membro do Corpo Docente permanente da Faculdade de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. Doutor e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Graduado em Filosofia pela Universidade São Francisco (USF-São Paulo). Email: renatokirhner00@gmail.com
IIPsicóloga graduada pela Universidade Paulista, Mestra em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Email: edilza.rcampelo@gmail.com

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é apresentar uma leitura do cristianismo e da conversão do Apóstolo Paulo sob o olhar da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung (1875-1961). A religião, a experiência religiosa e a relação destas com os símbolos arquetípicos do inconsciente coletivo destacam-se na obra de Jung. A importância que o autor atribui às diversas formas de religião e aos seus símbolos está em estreita ligação com a apropriação do indivíduo a partir do tipo e a função psíquica envolvida. Em sua concepção, o ponto de vista religioso representa sempre a atitude psicológica e seus preconceitos específicos. Jung considera que o estilo predominante no homem ocidental é a extroversão e, no caso do cristão, também é extrovertido em sua atitude religiosa. Apesar disso, ele consegue lidar e conferir expressão à psique e suas exigências ao apropriar-se dos símbolos, ritos e dogmas encontrados nas instituições religiosas. Assim, apresentaremos uma compreensão do cristianismo e os seus principais símbolos: Cristo e a Cruz, e a relação destes com a experiência arquetípica do inconsciente coletivo, ou seja, a experiência do numinoso. Para tanto, nos apropriaremos da experiência religiosa ou experiência numinosa do Apóstolo Paulo. Tal experiência o conduziu à uma nova compreensão ou um novo estado de consciência que culminou no processo de individuação. Desse modo, esse artigo pretende mostrar que a Psicologia Analítica abre os olhos para a riqueza de sentido que se encontra nos símbolos, ritos, dogmas e na experiência religiosa.

Palavras-chave: Cristianismo. Apóstolo Paulo. Psicologia Analítica. Carl Jung.


ABSTRACT

The purpose of this article is to present a reading of Christianity and the conversion of the Apostle Paul under the perspective of Analytical Psychology by Carl Gustav Jung (1875-1961). Religion, religious experience and their relationship with the archetypal symbols of the collective unconscious stand out in Jung's work. The importance that the author attributes to the various forms of religion and their symbols is in close connection with the appropriation of the individual based on the type and the psychic function involved. In its conception, the religious point of view always represents the psychological attitude and its specific prejudices. Jung considers that the predominant style in western man is extroversion and, in the case of the Christian, he is also extroverted in his religious attitude. Despite this, he manages to deal with and give expression to the psyche and its demands by appropriating the symbols, rites and dogmas found in religious institutions. Thus, we will present an understanding of Christianity and its main symbols: Christ and the Cross, and their relationship with the archetypal experience of the collective unconscious, that is, the experience of the numinous. To this end, we will appropriate the Apostle Paul's religious experience or numinous experience. This experience led him to a new understanding or a new state of consciousness that culminated in the process of individuation. In this way, this article aims to show that Analytical Psychology opens the eyes to the wealth of meaning found in symbols, rites, dogmas, and religious experience.

Keywords: Christianity. Apostle Paul. Analytical Psychology. Carl Jung.


RESUMEN

El propósito de este artículo es presentar una lectura del cristianismo y la conversión del apóstol Pablo bajo la perspectiva de la Psicología Analítica por Carl Gustav Jung (1875-1961). La religión, la experiencia religiosa y su relación con los símbolos arquetípicos del inconsciente colectivo destacan en la obra de Jung. La importancia que el autor atribuye a las diversas formas de religión y sus símbolos está en estrecha relación con la apropiación del individuo en función del tipo y la función psíquica involucrada. En su concepción, el punto de vista religioso representa siempre la actitud psicológica y sus prejuicios específicos. Jung considera que el estilo predominante en el hombre occidental es la extraversión y, en el caso del cristiano, también es extrovertido en su actitud religiosa. Apesar de ello, consigue afrontar y dar expresión a la psique y sus exigencias apropiándose de los símbolos, ritos y dogmas que se encuentran en las instituciones religiosas. Así, presentaremos una comprensión del cristianismo y sus principales símbolos: Cristo y la Cruz, y su relación con la experiencia arquetípica del inconsciente colectivo, es decir, la experiencia de lo numinoso. Con este fin, nos apropiaremos de la experiencia religiosa o experiencia numinosa del apóstol Pablo. Esta experiencia lo llevó a una nueva comprensión o un nuevo estado de conciencia que culminó en el proceso de individuación. De esta forma, este artículo pretende mostrar que la Psicología Analítica abre los ojos a la riqueza de significados que se encuentran en los símbolos, ritos, dogmas y experiencias religiosas.

Palabras clave: Cristiandad. Apóstol Pablo. Psicología analítica. Carl Jung.


 

 

Introdução

A psicologia analítica de Carl Gustav Jung (1875-1961), sobretudo, a importância que sua obra atribui às questões religiosas do indivíduo, despertou em muitos de seus leitores o interesse pelo estudo e compreensão do fenômeno religioso. Ele ressalta a importância de todas as formas de religião e aponta que o fenômeno se apresenta de acordo com a função psíquica1 envolvida. Entretanto, uma parte significativa de suas pesquisas está vinculada ao cristianismo. Este fato se dá por tratar-se especialmente da religião recebida como herança familiar, também, por ser uma das principais manifestações da religiosidade na civilização ocidental.

Jung nasceu em 26 de julho de 1875 em Kesswil, na Suíça e foi batizado como "Karl". Na época era considerada uma ortografia moderna, porém, na faculdade começou a utilizar "Carl", nome bem popular em seus ancestrais (Machon, 2016, p. 20). De acordo com o relato de Jung em Memórias, Sonhos, Reflexões, nos anos anteriores a 1654, viveu em Mainz um erudito doutor em medicina e direito, e que foi reitor da Universidade da cidade chamado Carl Gustav Jung. No entanto, em 1688 a cidade foi sitiada e os arquivos municipais queimados, não ficando nada oficialmente registrado a seu respeito. Assim, sabe-se que a família é originária de Mainz, mas sua árvore genealógica só é conhecida a partir de arquivos do século XVIII (Jung, 1961/2006, p. 273).

Franz Ignaz Jung (1759-1831), bisavô de Jung, era médico e deixou Mainz para instalar-se em Mannheim onde administrou um hospital militar durante as campanhas napoleônicas. Posteriormente, seu avô que também se chamava Carl Gustav Jung (1794-1864), viveu em Berlim onde, além de exercer a medicina, era professor de química. No entanto, por motivos políticos, foi expulso da Alemanha e dirigiu-se a Paris em 1821 onde recebeu apoio do naturalista Alexander von Humboldt (1769-1859)2. Depois foi para a Basiléia e reorganizou os estudos de anatomia, contribuindo pela prosperidade da Faculdade de Medicina e para o desenvolvimento e ampliação do hospital da cidade. Tornou-se encarregado de curso e, assim, a família de Jung se estabeleceu na Suíça (Jaffé, 1961/2006, p.471-476).

Por volta de 1850, o avô de Jung tornou-se muito famoso sendo eleito grão-mestre das lojas maçônicas do país. Apesar de sua origem católica, foi fortemente influenciado por Frederich D.E. Schleiermacher (1768-1834)3. Por ele foi batizado e, desde então, tornou-se membro da igreja Reformada. Por isso, Jung considerava Schleiermacher um de seus antepassados espirituais, pois, o espírito amplo, esotérico e individual deste, fazia parte da atmosfera intelectual da sua família paterna (Jung citado por Machón, 2016, p. 21).

O pai de Jung, Johann Paul Achilles (1842-1896), era o último dos treze filhos de seu avô. Tinha muito interesse pela filologia e com entusiasmo estudou línguas semíticas na Universidade de Gottingem. Porém, por motivos financeiros, mudou para a teologia e, assim como dois de seus irmãos, se tornou pastor (Stein citado por Machon, 2016, p. 21).

O século XIX e o início do século XX, contemporâneo a Jung, representam um dos períodos mais notáveis na história da Igreja Cristã. A confluência de várias correntes resultara numa complexidade de ideias e numa fascinante, porém confusa, falta de uniformidade. Novas interpretações foram surgindo e, consequentemente surge um novo interesse no campo da teologia. Dentre os teólogos que trouxeram novas interpretações para o cristianismo, destaca-se a obra de Schleiermacher que inaugurou uma nova etapa na teologia (Mackintosh, 2002, p. 11-15).

Criado num contexto familiar em que, do lado paterno, o pai e dois tios eram pastores e, do lado materno, contava-se seis pastores inclusive o avô, Jung cresceu ouvindo inúmeras conversas religiosas, discussões teológicas e sermões. Tudo isso contribuiu para que despertasse em si o interesse por tais assuntos (JUNG, 1961/2006, p.72). Porém, a lembrança que guardava sobre a religiosidade do pai era a seguinte:

[...] um homem sofredor aflito pela ferida de Amfortas, um Rei-Pescador, cuja ferida não se curava... aflito também pelo sofrimento cristão contra o qual os alquimistas procuravam a panaceia4. Eu, como um ingênuo Parsifal, testemunhei essa doença durante os anos da minha juventude, e, como ele, as palavras haviam me faltado. Pressentira tudo isso apenas obscuramente (Jung, 1961/2006, p. 254).

Em outro momento, Jung relata que ao despertar seu interesse sobre o assunto da trindade, ficou extremamente decepcionado com a resposta que recebeu de seu pai na aula de catecismo:

[...] Certa vez, folheando o catecismo em busca de algo diferente das explanações sentimentais, incompreensíveis e desinteressantes acerca do "Senhor Jesus", deparei com o parágrafo referente à trindade de Deus. Fiquei vivamente interessado: uma unidade que, ao mesmo tempo é uma "trindade"! A contradição interna deste problema cativou-me. Esperei com impaciência o momento em que deveríamos abordar essa questão. Quando chegamos a ela, porém meu pai disse: "Chegamos então à trindade, mas vamos passar por alto este problema, pois, para dizer a verdade, não compreendo de modo algum". Por um lado, admirei sua sinceridade, mas por outro fiquei extremamente decepcionado e pensei: "Ah, então é assim! Eles nada sabem disso e não refletem! Como poderei abordar esses temas?" (Jung, 1961/2006, p. 83).

Jung percebeu que a postura do pai diante da religião, além de representar o trágico de sua profissão e de sua existência (Jung, 1961/2006, p. 86), se relacionava ao fato de nunca ter se ocupado com o simbolismo da forma humana de Cristo, desse modo, ele não tinha uma clara consciência da consequência da imitativo Christi (Jung, 1961/2006, p. 254). Porém, não se tratava apenas da postura de seu pai, e sim, de um comportamento coletiva em sua época. Muitas pessoas que se autodenominavam cristãs viviam mergulhadas na ignorância e no egoísmo. No lugar da fé baseada na experiência, vivenciavam uma fé direcionada somente pela autoridade e tradição e, apesar de esta ser considerada uma fé legítima, pois representa uma vivência que contribui para a continuidade da cultura, existe o perigo de tornar-se simplesmente hábito, comodismo infértil e preguiça mental, conforme observou Jung (1973/1995, p. 221). Desse modo, a vivência religiosa se tornou mecânica e o verdadeiro sentido dos conteúdos tradicionais perdeu o seu valor. A fé mantida apenas de maneira formal não exercia mais nenhuma influência sobre a vida daquelas pessoas. Para Jung, "Uma aceitação cega jamais conduz à solução; no melhor dos casos determina uma parada, uma estagnação e passa a carga à geração seguinte" (Jung,1961/2006, p. 254).

Vários caminhos conduziram o jovem Jung ao confronto com problemas religiosos. Apesar de relatar alguns fatos de sua vida exterior, buscava compensar as lacunas em suas experiências interiores e na profusão de seus pensamentos. Assim, foi tomado por uma fome insaciável de conhecimento a respeito da alma, seus conteúdos e manifestações. Essa busca o levou a reconhecer que a atitude religiosa desempenha um papel decisivo na terapêutica dos males da alma (Jung, 1961/2006, p. 26).

Ele reconheceu a importância não apenas da religião, mas também dos símbolos que a representam. Seus estudos foram direcionados a entender e relacionar o fenômeno religioso com as suas próprias experiências5. Assim, apresentou uma nova perspectiva que nos permite compreender mais profundamente os valores tradicionais e encontrar um novo sentido para as formas cristalizadas e enrijecidas. Por isso, ao apropriar-se do termo "religião", não se refere a uma determinada profissão de fé ou instituição religiosa e sim, à experiência de caráter numinoso e na mudança de consciência que daí resulta. Nesse sentido, faz menção à experiência de Paulo que, para ele, é um dos exemplos mais frisantes (Jung, 1971/2012a, p. 21).

Desse modo, nesse artigo apropriamo-nos da compreensão de Jung sobre a religião cristã ocidental e seus principais símbolos - Cristo e a Cruz. Também apontamos para a representação destes símbolos numa experiência arquetípica de caráter numinoso. Por fim, a conversão do apóstolo Paulo confere uma mudança de atitude em um indivíduo que passou por um processo de experiência profunda, ou processo de individuação e teve um encontro com o si-mesmo.

 

1. Cristianismo e Ocidente: desdobramento histórico e tendência psicológica

Ao longo da história da civilização ocidental, vários pensamentos religiosos moldaram o desenvolvimento cultural. Três foram consideradas mais fortes devido a tensão que gerava cada vez que um deles entrava na História: o espírito da civilização antiga (Grécia e Roma), o cristianismo moderno e o humanismo.

Na civilização grega clássica o poder dominante foi a polis, a cidade-Estado grega. Nos tempos da Roma clássica quem exercia o poder dominante era a res publica, a república romana. Posteriormente, o imperador representava a figura que personificava a ideia religiosa do imperium. Porém, a adaptação do cristianismo à ideia romana de imperium no final do do século III, representou uma crise nos fundamentos da cultura antiga. No período da Idade Média, o poder dominante foi assegurado pela Igreja Católica Romana que, ao estabelecer uma cultura unificada, tudo ficou sob seu domínio. Porém, no final desse período, houve uma decadência espiritual (Dooyeweerd, 2015, p. 23).

Jung considera que "o poder esmagador de Roma, encarnado no César divino, havia criado um mundo no qual, não somente inúmeros indivíduos, mas povos inteiros tinham sido despojados da sua independência cultural e espiritual" (Jung, 1961/2006, p. 251).

[Porém], quando se perde uma forma de concepção religiosa, ela é substituída primeiramente por uma formação de símbolos mais antiga ou arcaica, e esta substituição não é meramente "mecânica", mas também plena de sentido em relação aos acontecimentos da época (Jung, 1971/2003, p.111).

A decadência cultural e espiritual que acontece no final da Idade Média, se reveste de um novo sentido partir do século XV. Novos desdobramentos acontecem nas artes e na ciência, assim como várias mudanças no âmbito religioso. Surge então a Renascença que tem seu motivo básico transformado pela emergência do humanismo. Tais movimentos contribuíram para o declínio da Igreja e, como consequência, houve uma grande crise cultural. A partir de então, a cultura ocidental e seus componentes clássicos começam a separar-se da orientação da Igreja e, simultaneamente, o grande movimento da reforma desafia o poder eclesiástico da Igreja Católica Romana (Dooyeweerd, 2015, p. 23).

Grande divergência de pensamentos e ideias religiosas toma conta da Europa Ocidental e, a partir dos séculos subsequentes ao XVI, luteranos, calvinistas e católicos realizam movimentos paralelos e, no lugar de uma Igreja Universal, surge então várias outras denominações cristãs dissidentes.

Gradualmente, um novo direcionamento no desenvolvimento da civilização ocidental tornou-se aparente, assim, a cosmovisão humanista entra num processo de decadência (Dooyeweerd, 2015, p. 24). Desde então, um movimento intelectual e filosófico domina o mundo das ideias na Europa com a chegada do Iluminismo no século XVIII.

Apesar de existir alguns desacordos, certas crenças eram comuns no movimento iluminista, como por exemplo, a fé na razão. Acreditava-se que qualquer pergunta poderia ser respondida, porém, deveria ser formulada por mentes claras empenhadas em desvendar a verdade. Atraídos por esse movimento, alguns pensadores religiosos posicionaram-se favoráveis à aplicação desses métodos na metafísica e na teologia. Para eles, o novo racionalismo não era incompatível com as crenças cristãs (Berlin citado por Silva, 2018, p. 26). Porém, Jung critica esse pensamento puramente racional, e aponta que o dogma religioso, através da sua imagem exprime uma totalidade irracional.

Para certa camada intelectual medíocre, caracterizada por um racionalismo ilustrado, uma teoria científica que simplifica as coisas, constitui excelente recurso de defesa, graças à inabalável fé do homem moderno em tudo o que traz o rótulo de "científico". Um tal rótulo tranquiliza imediatamente o intelecto, tanto quanto o Roma locuta, causa finita (Roma falou, o assunto está encerrado). Em minha opinião e sob o ponto de vista da verdade psicológica, qualquer teoria científica, por mais sutil que seja, tem em si mesma, menos valor do que o dogma religioso, e isto pelo simples motivo de que uma teoria é forçosa e exclusivamente racional, ao passo que o dogma exprime, por meio de sua imagem, uma totalidade irracional. Este método garante-nos uma reprodução bem melhor de um fato tão irracional como o da existência psíquica (Jung, 1971/2012a, p. 63).

O Iluminismo demonstra de maneira radical a influência do racionalismo na cultura ocidental. De maneira predominante, algo só seria convincente quando constatado através de fatos externos. Acreditava-se, sobretudo, na observação e na pesquisa da natureza quando executadas da forma mais exata possível. A verdade precisaria estar de acordo com fatos objetivos, caso contrário, seria uma verdade meramente subjetiva. Pelo que parece, nesse período, a realidade exterior com sua corporeidade e seu peso passaram a exercer domínio sobre o espírito ocidental com força e intensidade (Jung, 1971/2013, p. 113).

Jung apresenta em Tipos Psicológicos (1920) as diferenças de tipos e função psíquica dos indivíduos. Os tipos que denominou de introvertidos e extrovertidos seria uma espécie ou generalidade que reproduz características semelhantes. Ou seja, um "modelo característico de uma atitude geral que se manifesta em muitas formas individuais" (Jung, 1971/1991, p. 450). As funções psíquicas são o pensamento, o sentimento, a sensação e a intuição. Elas representam os quatro tipos funcionais que correspondem às quatro formas evidentes em que a consciência se orienta em relação à experiência. São conceitos que possibilitam estimular a compreensão que o ser humano tem de si e de seus semelhantes. Além de sua relevância nas explanações científicas, culturais, cosmovisuais e nas relações humanas em geral, o antagonismo dos tipos desempenha papel importante nas dissensões religiosas.

No caso da cultura ocidental6, Jung considera que tanto no estilo, bem como na atitude religiosa a extroversão é predominante (Jung, 1971/2013, p. 17-18). [...] "Falamos de extroversão sempre que o indivíduo volta seu interesse todo para o mundo externo, para o objeto, e lhe confere importância e valor extraordinários" (Jung, 1971/1991, p. 462). A grande potência é o totalmente outro, absolutamente perfeito e exterior. Buscam alcançar seu favor mediante o temor, a penitência, as promessas, a submissão, a auto humilhação, as boas obras e os louvores (Jung, 1971/2013, p. 19). [...] "O Ocidente cristão considera o homem inteiramente dependente da graça de Deus ou da Igreja na sua qualidade de instrumento terreno exclusivo da obra da redenção sancionada por Deus" (Jung, 1971/2013, p. 18). Ou seja, a intensidade do processo psíquico no que tange a questões religiosas, volta-se para fora:

As minhas pesquisas psicológicas, provando a existência de certos tipos psíquicos, bem como a sua analogia com representações religiosas conhecidas, abrem uma possibilidade de acesso a conteúdos suscetíveis de serem experimentados, os quais constituem incontestavelmente e de modo manifesto o fundamento empírico e palpável da experiência religiosa (Jung, 2015, p. 127).

É possível observar que, grande parte da civilização ocidental, tem como direcionamento psíquico a função pensamento, ou seja, a intelectualidade e os fatos objetivos. Entretanto, no que tange ao aspecto religioso, ou à experiência religiosa, a função sentimento, entra em primazia. Através desta função, o cristão apropria-se dos símbolos e dogmas que correspondem aos arquétipos do inconsciente coletivo7. Desse modo, o que é expresso através do inconsciente, não é uma situação arbitrária, também não corresponde à mera opinião, mas são fatos que podem ser demonstrados empiricamente (Jung, 2015, p.130).

De acordo com Amaral (2009, p. 61-62), "o que dá configuração à experiência (reflexo das coisas temporais e atemporais, visíveis e invisíveis), são as funções psíquicas" e quem traduz essa experiência é o símbolo. Este, sendo de natureza complexa, sua estrutura tem conexão com a dinâmica arquetípica da psique inconsciente e as funções da consciência.

Conhecer e experienciar a presença de imagens interiores, proporciona à razão e ao sentimento uma via de acesso às imagens que a doutrina religiosa oferece ao homem. O intuito da psicologia analítica é proporcionar um entendimento mais amplo, apontando para a riqueza de sentido dos dogmas religiosos (Jung 2015, p. 127). Diante disso, Jung alerta que, a perda do caráter simbólico pode resultar em crise religiosa e psíquica, pois "é finalidade e função dos símbolos dar sentido à vida humana (Jung, 2015, p. 87).

 

2. O símbolo de Cristo: o arquétipo do si-mesmo

Em Símbolos da transformação podemos ler: "O mito religioso é uma das maiores e mais importantes aquisições que dão ao homem segurança e força para não ser esmagado pela imensidão do universo" (Jung, 1973/1995, p. 221). O símbolo faz parte da estrutura do mito e, se observado a partir do realismo, não é considerado uma verdade concreta, porém, do ponto de vista psicológico, é verdadeiro, pois foi e continua sendo a ponte para uma das maiores conquistas da humanidade. Os símbolos estão associados aos arquétipos que são elementos estruturais numinosos da psique. Os arquétipos possuem certa autonomia e energia específica, assim, são capazes de atrair os conteúdos conscientes que lhes são condizentes.

Os símbolos são imagem significativas porque surgem quando algo exterior associa-se a um conteúdo espiritual, a um significado ou um sentido. Eles trazem conteúdos psíquicos inconscientes à consciência causando um efeito integral sobre o pensar e o sentir, sobre a percepção, a fantasia e a intuição. Por isso, não se trata de signos visíveis de uma realidade não visível, pois são mais que simplesmente signos. São altamente carregados de energia e, geralmente, possui efeitos misteriosos. Ao envolver-se com os símbolos arquetípicos o indivíduo deixa o superficial e coloca-se a caminho das profundezas (Dorst, 2015, p. 22).

A imagem dogmática de Cristo, enquanto símbolo representativo da Igreja Cristã, pressupõe a ideia de transformação real e substancial. O acontecimento ritual da missa assume essa situação. A representação arquetípica é o momento em que acontece a consagração8. A partir deste momento, "Cristo está presente no tempo e no espaço" (Jung, 1971/2012b, p. 15). Porém, não se trata de um reaparecimento, pois a consagração não é a repetição de um ato histórico e único. Essa presença é a expressão simbólica, porém visível de algo que perdura eternamente.

[...] O "símbolo" não é um sinal arbitrário e intencional de um fato conhecido e compreensível, mas uma expressão de caráter reconhecidamente antropomórfico (por isso mesmo, limitada, válida apenas em certas condições) de um conteúdo sobrenatural e, por esta razão, só compreensível dentro de certas condições. O símbolo é, na verdade, a melhor expressão possível, mas está muito abaixo do nível do mistério que significa (Jung, 1971/2012b, p. 15-16).

Enquanto representação de uma realidade complexa, o símbolo ultrapassa a categoria da linguagem humana (Jung, 1971/2012b, p. 70). Para a psicologia analítica, o símbolo de Cristo é de grande importância, porque pode representar o símbolo mais desenvolvido e diferenciado do si-mesmo9. Esta estimativa é possível, pois, a amplitude e o conteúdo dos predicados atribuídos ao Cristo - uma personalidade humana e única, ligada à natureza divina indefinível - correspondem à fenomenologia psicológica do si-mesmo de maneira incomum, apesar de não abranger todos os aspectos deste arquétipo (Jung, 2015, p. 133).

O si-mesmo representa a união dos opostos e, se não há vivência dos opostos, não existe experiência de totalidade. Logo, não é possível ter acesso interior às formas sagradas. Se Cristo representa apenas o bem, e o demônio é a representação do mal, então a oposição entre o luminoso e o bom por um lado, e o escuro e mau, por outro, permanece em conflito aberto, tornando-se o verdadeiro problema do mundo. Assim, é evidente que ao insistir no homem pecaminoso e no pecado original, o cristianismo tem a intenção de abrir em cada indivíduo, o abismo da contradição do mundo. De qualquer maneira, o si-mesmo é o paradoxo absoluto, uma vez que representa a tese, a antítese e a síntese em todos os aspectos (Jung, 2015, p. 133-134).

[...] a religião empobrece interiormente quando perde ou reduz seus paradoxos; no entanto, a multiplicação destes últimos a enriquece, pois só o paradoxal é capaz de abranger aproximadamente a plenitude da vida. A univocidade e a não contradição são unilaterais e, portanto, não se prestam para exprimir o inalcançável (Jung, 2015, p. 129).

É na concepção simbólica da cruz ou da crucificação que se encontra a união dos opostos. A cruz é um dos símbolos mais arcaicos que passou por várias transformações ao longo da história. Antigamente, sua forma mais comum era a grega ou equilateral, com o passar do tempo, o centro deslocou-se para o alto até que tomou a forma latina, com a estaca e o travessão tornando-se o símbolo central na arte cristã. Em termos espirituais, essa transformação que culminou no advento do cristianismo, simboliza a tendência de deslocar da terra o centro do homem e sua fé, elevando-o a uma esfera superior ou espiritual. Essa tendência surgiu do desejo de traduzir em ação as palavras de Cristo: "Meu reino não é deste mundo" (João 18,36). A vida terrena, o mundo e o corpo eram, portanto, forças a serem vencidas (Jaffé, 1964/2008, p. 328-329).

Fazendo alusão à interpretação mística da cruz encontrada no texto de Atos de João10, Jung (1971/2012b, p. 104-105) aponta para a dicotomia do universo representada por este símbolo. O centro tem como definição, a limitação do universo, também a totalidade de algo definitivo. A divisão em direita e esquerda (luminoso e tenebroso), o alto e o baixo (o celeste e a raiz mais profunda), indica de maneira inequívoca, que no centro, tudo está contido. E consequentemente, Cristo, através da crucificação, reúne e compõe todas as coisas, atingindo assim a união dos opostos. Acompanhemos uma parte da visão de João descrita por Jung:

[...] Esta cruz [foi chamada de] Logos, Nous, Jesus, Cristo, Porta, Caminho, Pão, Semente, Ressurreição, Filho, Pai, Pneuma, Vida, Verdade, Fé, Graça. Isto em relação aos homens; mas, considerada em si mesma e segundo o vosso modo de falar, ela é a fixação dos limites do universo e a consolidação daquilo que é instável [...] a harmonia da sabedoria ou, mais precisamente, da sabedoria na harmonia. Mas à direita e à esquerda há (lugares), forças, violências, dominações, demônios, energias, ameaças, explosões de ira, diabo, satanás e a raiz mais profunda de onde brotou a natureza de tudo o que existe. Foi a cruz, portanto, que uniu a si todo o universo, por meio da palavra, e fixou os limites do reino criado e em seguida, como unidade que é, fez brotar tudo o que existe (Jung, 1971/2012b, p. 101-102).

A crucificação foi um acontecimento que representou a natureza incognoscível de Cristo, ou seja, sua personalidade superior, o homem perfeito. A contemplação da morte cósmica e sacrifical de Cristo reunia fatos psíquicos e análogos que deram margem a uma rica formação de símbolos. No âmbito dos fatos psíquicos, esse símbolo possui a função de um centro gerador de ordem, ou seja, simboliza a ordem em oposição ao caos. Numa divisão clara entre o fato histórico e perceptível aos sentidos que acontece na terra, e o acontecimento visionário e ideal que se passa no alto, têm-se, de um lado, a cruz de madeira enquanto instrumento de tortura e, de outro, a mesma cruz representando a iluminação (Jung, 1971/2012b, p. 103-105).

Quando chegaram ao lugar chamado Calvário, ali o crucificaram. [...] Já era quase a hora sexta, e, escurecendo-se o sol, houve trevas sobre toda terra até a hora nona. E rasgou-se pelo meio o véu do santuário11. Então Jesus clamou em alta voz: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito! E, dito isto, expirou (Evangelho de Lucas 23,33-46).

O véu do santuário se rasgou ao meio, simbolizando a cortina dos condicionamentos temporais e eternos, que separa o espírito humano da visão do eterno, sendo rasgada (Jung, 1971/2012b, p. 15). "O argumento ontológico não é um argumento e nem prova, mas a simples demonstração psicológica de que existe uma classe de pessoas para a qual uma ideia determinada tem eficácia e realidade" (Jung, 1971/1991, p. 54).

Ao agir de maneira sugestiva, convincente, exprimindo ao mesmo tempo o conteúdo da convicção, o símbolo representa a própria energia do arquétipo. Tal vivência que não é apenas impressionante, mas certamente comovente, pois, produz fé naturalmente. E uma fé legítima sempre retorna à experiência. Existe, entretanto, a fé que é baseada tão somente na autoridade e na tradição. Esta também pode ser considerada uma fé legítima porque representa uma vivência que contribui para a continuidade da cultura. Porém, nesta configuração de fé existe o perigo de tornar-se simplesmente hábito, comodismo infértil e preguiça mental. A vivência se torna mecânica e passível de regressão cultural e psíquica. Aos poucos o verdadeiro sentido dos conteúdos tradicionais perde o seu valor e, fé mantida apenas de maneira formal não exerce mais nenhuma influência sobre a vida (Jung, 1973/1995, p. 221).

 

3. A experiência do numinoso: transformação da consciência

A religião é uma relação voluntária ou involuntária com o valor supremo. Isto quer dizer que, uma pessoa, pode adotar conscientemente ou ser dominada inconscientemente por um fator psíquico repleto de energia. "O fator psicológico que, dentro do homem, possui um poder supremo, age como "Deus", porque é sempre ao valor psíquico avassalador que se dá o nome de Deus" (Jung, 1971/2012a, p. 102).

Jung apropriou-se do vocábulo latino religere, e do conceito de numinoso de Rudolf Otto para definir o termo religião, assim descreve: "Religião é - como diz o vocábulo latino religere - uma acurada e conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto acertadamente chamou de numinoso" (Jung, 1971/2012a, p. 19). Esta definição, na visão de Jung, é válida para todas as formas de religião, inclusive as mais arcaicas. Ele entende que toda confissão religiosa, se funda originalmente na experiência do numinoso, por um lado, e, por outro, na fidelidade, na fé e na confiança que estão relacionadas a uma determinada experiência de caráter numinoso e, esta experiência resulta na transformação da consciência. "Poderíamos, portanto, dizer que o termo "religião" designa a atitude particular de uma consciência transformada pela experiência do numinoso" (Jung, 1971/2012a, p. 21).

Jung considera que os fenômenos religiosos, que se apresentam de diversas maneiras, estão relacionados à numinosidade do arquétipo. Ou seja, a experiência numinosa, é uma força inconsciente com valor emocional tão intenso, que se impõe ao eu consciente e à sua vontade. Desse modo, apropria-se do conceito de numinoso a fim de relacionar a experiência arquetípica do inconsciente coletivo, e a experiência religiosa. Ele pressupõe que as imagens simbólicas do self possuem uma numinosidade que são representações arquetípicas significativas para a consciência, produzindo nesta, especial modificação.

O ponto de vista de Jung baseia-se em fatos e dados da experiência, ou seja, em acontecimentos concretos. Ele se ocupa da existência de determinada ideia, sem preocupar-se se é verdadeira ou falsa. Entretanto, considera que em qualquer sentido, a ideia é psicologicamente verdadeira na medida em que existe. Para ele, se a existência psicológica é subjetiva, a ideia só pode ocorrer no indivíduo. Mas torna-se objetiva, na medida em que é compartilhada com outros indivíduos. Neste sentido, faz alusão à experiência religiosa do Apóstolo Paulo, por considerar este fenômeno como um dos exemplos "mais frisantes" para se compreender a experiência de caráter numinoso (Jung, 1971/2012a, p. 21).

Lançaremos mão deste fenômeno religioso que se encontra registrado no livro de Atos dos Apóstolos capítulo 9, versículos de 1-11, a fim de trazer uma reflexão sobre a experiência religiosa e o processo de individuação. Vale ressaltar que ao nos apropriarmos da referida experiência, não temos a intenção de realizar uma compreensão teológica tampouco exegética de Paulo. O que pretendemos é apenas compreender o processo de individuação12 a partir de uma experiência religiosa, pois, este processo que culmina na transformação ou desenvolvimento psíquico é de ordem pessoal e profunda. Assim, pode ocorrer com qualquer indivíduo, de qualquer cultura ou segmento religioso.

 

4. Experiência religiosa e processo de individuação: o Apóstolo Paulo

"Transformai-vos pela renovação do vosso entendimento."

Romanos 12,2

O apóstolo Paulo, conhecido como Saulo de Tarso devido à região pelo qual cresceu, herdou de seu pai além da arte de fabricar tendas, a tradição da religião13. Estudou a Torá14 e se tornou um seguidor zeloso da lei judaica15. No entanto, parece que algo não estava bem com Saulo, pois desenvolveu certa aversão pelos seguidores de Jesus, a ponto de persegui-los cruelmente. Conforme suas palavras registradas em Atos dos Apóstolos 26,9-11:

[...] Na verdade, a mim me parecia que muitas coisas deviam eu praticar contra o nome de Jesus, o Nazareno, e assim procedi em Jerusalém. Havendo eu recebido autorização dos principais sacerdotes, encerrei muitos dos santos nas prisões e contra estes dava o meu voto, quando os matavam. Muitas vezes, os castiguei por todas as sinagogas, obrigando-os até a blasfemar. E demasiadamente enfurecido contra eles, mesmo por cidades estranhas, os perseguia.

Enquanto um judeu seguidor zeloso da lei, Saulo apropriou-se de seus cargos e títulos16 desenvolvendo uma personalidade hostil. Neste relado, é possível observar o ego totalmente identificado à persona17, tornando-a excessivamente valorizada, ao ponto de, psicologicamente, Saulo assumir uma posição exigente e inflexível. Talvez, sua consciência não conseguisse perceber as investidas do inconsciente, ou os elementos psíquicos inconscientes não estavam compatíveis com a forma de vida conscientemente escolhida. Então, se apresentavam de maneira impetuosa e descontrolada à consciência.

Neste caso, a tendência é projetar estes elementos inconscientes, ou as sombras18, em outras pessoas. Por isso, é provável que a perseguição de Saulo aos cristãos, esteja relacionada a estas projeções. Resistências ligadas às projeções, muitas vezes impedem que consciente e inconsciente sejam integrados à personalidade. Como não é o sujeito quem projeta, e sim o inconsciente, essas resistências incidem num esforço moral que vão além dos limites habituais do indivíduo. Conscientizar-se da sombra, é reconhecer os aspectos obscuros da personalidade, sendo que, este ato, é a base indispensável para qualquer tipo de autoconhecimento (Jung, 1976/1998, p. 6-7).

Saulo solicitou ao sumo sacerdote19 autorização para ir até as sinagogas da cidade de Damasco, a fim de perseguir e trazer para Jerusalém, como prisioneiros, todos os cristãos que ele encontrasse, tanto homens como mulheres. No entanto, no caminho foi tomado por uma súbita experiência: "[...] ao aproximar-se de Damasco, subitamente uma luz do céu brilhou ao seu redor, e, caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo, Saulo, por que me persegues? Ele perguntou: Quem és tu, Senhor? E a resposta foi: Eu sou Jesus, a quem tu persegues" (At 9,3-5).

Os homens que com ele estavam, ouviram a voz, mas não viram ninguém. Então pararam e ficaram emudecidos em êxtase. Saulo, que havia caído, levantou-se, mas não conseguia ver. Precisou então ser conduzido até Damasco, porque a voz lhe disse que deveria entrar na cidade e lá encontraria alguém que lhe diria o que fazer. Ficou então três dias sem comer e beber e, sem enxergar.

Para Otto, quando o indivíduo passa por uma experiência de caráter numinoso, é tomado por um sentimento confesso de dependência, que ele denomina de sentimento de criatura20 [...] "o sentimento da criatura que afunda e desvanece em sua nulidade perante o que está acima de toda criatura" (Otto, 1917/2017, p. 41). Gerardus van der Leeuw (1964, p. 651-652), aponta que, a atitude do homem diante dessa experiência é, em princípio, um estranhamento que Otto propôs identificá-lo como numinoso e, posteriormente, uma fé. Jung enfatiza que a fé implica, potencialmente, no sacrifício do intelecto, mas, nunca no sacrifício de sentimentos (Jung, 1971/2013, p. 13).

Após a experiência no caminho de Damasco, Saulo passou por momentos difíceis. No entanto, recebeu a visita de um discípulo chamado Ananias, que através de uma visão recebeu a incumbência de levar ajuda espiritual. Este discípulo, ainda que temeroso, pois conhecia a fama de Saulo como perseguidor dos cristãos, foi ao lugar em que estava, impôs sobre ele as mãos e disse: "Saulo, irmão, o Senhor me enviou, a saber, o próprio Jesus que te apareceu no caminho por onde vinhas, para que recuperes a vista e fiques cheio do Espírito Santo" (At 9,17). Imediatamente, caíram como que escamas de seus olhos, e recuperou a visão, depois se alimentou e sentiu-se fortalecido (At 9.17-19).

Quando conteúdos inconscientes começam a tornarem-se conscientes, a pessoa passa a reconhecer aspectos de sua personalidade que, por várias razões, seria preferível não olhar muito de perto. Assim, o indivíduo entra em um período de silêncio e afastamento, começando então o processo lento e doloroso de autoconhecimento ou individuação (Von Franz, 1964/2008, p. 222-223).

Após os acontecimentos narrados acima, Saulo não se aconselhou com mais ninguém, também não voltou para Jerusalém, onde estavam os que foram discípulos antes dele. Foi para a Arábia e depois retornou para Damasco onde permaneceu por três anos (Gl 1,17). De acordo com Schnelle (2010, p. 116-117), a experiência na estrada de Damasco, com a participação de Cristo no evento, marcou de maneira abrangente a vida de Paulo. Uma experiência de transcendência que o levou a um novo entendimento, e uma nova missão. Antes, ele entendia o anúncio de um messias crucificado apenas como uma provocação, mas esta experiência o conduziu a uma nova compreensão.

[...] a experiência de Damasco conduziu-o à compreensão de que havia na cruz um potencial de sentido inesperado. Agora, o pensamento biográfico une-se a perspectivas universalistas, pois Paulo encontrava-se diante da tarefa de construir, a partir da experiência e da interpretação de um acontecimento individual do passado, um edifício de sentido que oferecia orientação no presente e esperança para o futuro. Um mero fato histórico em si, como a cruz, ainda não abarca sentido, antes é necessária uma atuação construtiva para "revestir fatos de sentido e significado, para fazer do caos da facticidade absurda e sem sentido, o cosmos de uma história repleta de sentido e significado" (Schnelle, 2010, p. 117-118).

Paulo foi impulsionado a descer às profundezas da psique. Quando isto acontece, o absoluto se transforma na pessoa interior e o transcendente na imanência total (Hillman, 1984, p. 47). Experiências como esta, implicam em renovação e crescimento, tornando possível a existência de um sentido. A experiência se transforma em fato e a questão religiosa adquire uma conotação espontânea, pois a alma é reencontrada, oferecendo significação aos mitos, símbolos, formas e provas básicas (Hillman, 1984, p. 65-67).

Nota-se que a descrição de Paulo: "Eu vivo, mas já não sou eu, mas o Cristo que vive em mim" (Gl 2,20) demonstra um novo relacionamento entre o ego e o Self. É o ser que encontrou a unidade. E unidade quer dizer: voltar-se para si, ou seja, a orientação do sujeito é para dentro de si mesmo. É uma nova disposição da consciência em que permanece aberta a uma nova influência. Entretanto, essa nova influência não é sentida como uma atividade própria, e sim, como atuação de um não eu assumindo um caráter subjetivo. Trata-se de um novo estado de consciência após uma profunda transformação religiosa. Neste novo estado, a consciência não mudou, o que mudou foi apenas a consciência de alguma coisa. Nisto consiste uma experiência de transformação. É como virar a página de um livro, vê-se com os mesmos olhos, mas a figura é diferente (Jung, 1971/2013, p. 86).

Através da persona, a pessoa pode representar isto ou aquilo, ou se esconder através de uma muralha protetora. Porém, quando conteúdos inconscientes irrompem na consciência com força sugestiva, não é fácil descrever de maneira compreensiva. Talvez, conforme sugere Jung, uma das melhores maneiras para se compreender essas irrupções seria atentar para as conversões religiosas. Ainda que, em alguns casos, a mudança ou a predisposição a ela sejam produzidas por fatores externos, estes nem sempre explicam suficientemente a mudança de personalidade, porque tal mudança é proveniente de conteúdos internos e subjetivos (Jung, 1971/1990, p. 50-51).

Nesse sentido, Jung se apropria do conceito de enantiodromia. Este termo que tem sua raiz na filosofia de Heráclito21 significa: "correr em sentido contrário" (Jung, 1971/1991, p. 405). Designa a oposição inconsciente no decorrer do tempo. Trata-se de um fenômeno característico que, geralmente, ocorre quando uma direção extremamente unilateral domina a vida consciente de maneira que, com o tempo, se forma uma contraposição inconsciente. Essa contraposição inconsciente é forte tanto quanto à consciente. Ela se apresenta primeiramente na inibição do rendimento consciente e, posteriormente, na interrupção da direção consciente. Para Jung, a psicologia de Paulo e sua conversão ao cristianismo é um bom exemplo de enantiodromia (Jung 1971/1991, p. 405).

Enquanto compensação entre conflitos internos e externos, o si-mesmo é uma formulação cuja finalidade será atingida aos poucos e com muito esforço. Assim, ele representa a meta da vida e a expressão plena da combinação consciente e inconsciente, imanente e transcendente pelo qual damos o nome de indivíduo. Sobretudo, não se trata do indivíduo em sua singularidade, mas do indivíduo que no grupo completa o outro e compõe a imagem plena. Desse modo, o processo de individuação não busca a perfeição, mas a plenitude (Jung, 1971/1990, p. 114).

 

Considerações Finais

Jung criticava o pensamento puramente racional dominante em sua época. Ele entendia que a teoria científica, apenas racional, é unilateral e simplista. Por isso, apontava para a totalidade "irracional" encontrada nos símbolos arquetípicos do inconsciente coletivo e a influência destes na estrutura e desenvolvimento psíquico.

A imagem primordial que Jung (1971/1991, p. 419) também chamou de arquétipo, é "uma forma típica fundamental de certa experiência psíquica que sempre retorna". Sua origem mitológica apresenta uma expressão dinâmica que sempre ressurge, evocando a experiência psíquica em questão ou formulando-a de maneira apropriada.

Podemos observar que Cristo, o símbolo arquetípico e a imagem representativa da religião cristã, ocupa centralidade nos rituais cristãos. No momento da comunhão, a imagem de Cristo torna-se a expressão concreta do processo vivo. Proporciona sentido ordenado e coerente às percepções sensoriais interiores do espírito. E estas são atribuições típicas da imagem primordial (Jung,1971/1991, p. 420).

Tradicionalmente, a experiência arquetípica no âmbito religioso acontece nos rituais coletivos, porém, ela pode ocorrer de maneira individual e profunda. Conforme o exemplo apresentado da experiência de Paulo no caminho de Damasco. Ao envolver-se em uma experiência arquetípica de aspecto numinoso, o indivíduo entra num processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual, ou processo de individuação (Jung, 1971/1991, p. 426).

O processo de individuação direciona ao encontro com o si-mesmo. De acordo com Jung (Jung,1971/1991, p. 442) o si-mesmo expressa a totalidade da personalidade global e a união dos opostos. A psicologia analítica reconhece que Cristo pode representar o símbolo mais desenvolvido e diferenciado do si-mesmo (Jung, 2015, p. 133).

Mas é através da crucificação, que o Cristo reúne e compõe todas as coisas, atingindo assim a união dos opostos e a totalidade. O centro da cruz representa a limitação do universo e a totalidade de algo definitivo. A divisão em direita e esquerda (luminoso e tenebroso), o alto e o baixo (o celeste e a raiz mais profunda), indica de maneira inequívoca, que no centro, tudo está contido (Jung, 1971/2012b, p. 104-105).

Se Cristo representa a totalidade, logo o encontro de Paulo com o Cristo no caminho de Damasco representa o encontro com a totalidade. Pelas atitudes de Paulo, antes da experiência de Damasco, é possível observar a persona excessivamente valorizada e a sombra projetada nos outros. Ou seja, uma personalidade parcial e desintegrada. Porém, a experiência com a participação de Cristo no evento, marcou de maneira abrangente a vida de Paulo dando início a um novo entendimento e a um processo de integração. O ego, que estava identificado à persona, volta-se para o self, e as sombras que eram projetadas, começam a ser integradas, nisto consiste o encontro com o si-mesmo.

O desenvolvimento da civilização ocidental com seu desdobramento histórico que envolve religião, política e cultura é permeada por crises e decadências culturais e espirituais que ocorreram em diversos momentos. Tais crises que, geralmente, eram desencadeadas pela divergência de pensamentos religiosos e políticos, trouxeram significativas influências tanto no âmbito cultural quanto psíquico. Jung, contemporâneo aos séculos XIX e XX, vivenciou parte desses conflitos, pois a Primeira e a Segunda Guerra Mundial ocorreram no século XX.

Na concepção de Jung, a Primeira Guerra (1914-1918) desencadeou o poder oculto do mal. [...] "assim como a própria guerra foi liberada pelo acúmulo de massas inconscientes e por sua cupidez cega" (Jung, 1974/1993, p. 221). A Segunda Guerra (1939-1945), representou a repetição do mesmo processo psíquico, porém, numa proporção incomparavelmente maior.

Um inusitado estado mental predominava principalmente a Alemanha e, uma incursão de forças arcaicas representadas por arquétipos que exprimiam primitividade, violência e crueldade, ocorria de maneira quase Universal. Um movimento de massa, fortalecido pelo instinto individual que resultou numa calamidade social (Jung, 1974/1993, p. 208).

O movimento de massa com irrupção dos instintos representa o sintoma de um movimento compensatório do inconsciente. Este movimento compensatório é proveniente da alienação do estado de consciência das pessoas, em relação às leis naturais da existência humana. Assim, o caos e a desordem do mundo são refletidos de maneira análoga na mente do indivíduo, entretanto, são compensados no inconsciente pelos arquétipos da ordem. Se esses símbolos da ordem não forem absorvidos pela consciência, a força que eles expressam se acumulam de maneira perigosa. Por isso a necessidade em se integrar os conteúdos inconscientes numa atitude individual de realização, compreensão e valoração moral (Jung, 1974/1993, p. 210-211).

Jung observou que, desde a primeira guerra mundial, a consciência em massa revelou um "não progresso" e o resultado disso foi o totalitarismo e a escravidão do Estado. Por esse motivo, cada pessoa precisa conscientizar-se da sua própria sombra e encontrar-se com ela pois, o mundo nunca encontrará um estado de ordem se não reconhecer essa verdade. Para que a ordem realmente se estabeleça, se faz necessário que cada indivíduo volte sua agressividade para dentro da sua própria psique. A paz acontecerá quando a vitória e a derrota perderem sua importância (Jung, 1974/1993, p. 210-213).

A religião jamais deveria ser um instrumento de repressão social e nem ter o objetivo de ajustar as pessoas ao status quo. O pensamento das massas gera exclusão e, até mesmo, a tentativa de extinção daquele que tem um pensamento ou posicionamento diferente. Isso acontece pois, quando se perde a função simbólica, o ego fica à mercê dos impulsos primitivos e dos instintos de massa, daí as guerras e outros fenômenos. O indivíduo é o único sujeito da vida. A Sociedade e o Estado são instâncias compostos de indivíduos com sua organização psíquica. Então, os valores atribuídos à Sociedade e ao Estado dependem da saúde psíquica dos indivíduos (Jung, 1974/1993, p. 214).

 

Referências

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Recebido em 01.03.2021
Primeira Decisão Editorial em 16.04.2021
Aceito em 22.04.2021

 

 

1 As funções psíquicas são classificadas por: pensamento, sentimento, sensação e intuição. Elas são consideradas por Jung como funções da consciência, pois se relacionam ao desenvolvimento da personalidade consciente. Fazem parte da consistência do ego com sua forma peculiar de atuar, seus hábitos, sua unidade e memória. Constituem a intencionalidade da consciência, assim, revelam como acontece a relação do indivíduo consigo mesmo e com os outros, e de que maneira impõem suas intenções e expressam seu caráter. Podem ser concebidas como quatro maneiras distintas de organizar a vida (Hillman, 2016, p. 120-121). De acordo com Jung, "a sensação constata o que realmente está presente. O pensamento nos permite conhecer o que significa este presente; o sentimento, qual o seu valor; a intuição, finalmente, aponta as possibilidades "de onde" e "para onde" que estão contidas neste presente. E assim, a orientação com referência ao presente é tão completa quanto à localização geográfica pela latitude e longitude. As quatro funções são algo como os quatro pontos cardeais, tão arbitrárias e tão indispensáveis quanto estes. Não importa que os pontos cardeais sejam deslocados alguns graus para a esquerda ou para a direita, ou que recebem outros nomes. É apenas questão de convenção e compreensão" (Jung, 1971/1991, p. 497).
2 Friederich Wilhelm Heinrich Alexander von Humboldt (1769-1859) - o barão de Humboldt. Naturalista e explorador nascido na Prússia).
3 Friederich D. E. Schleiermacher (1768-1834) filósofo e teólogo alemão considerado um dos principais percursores da hermenêutica (Japiassu & Marcondes, 2006, p 247-248).
4 A alquimia filosófica na Idade Média deve ser compreendida, na perspectiva da história do espírito, como um movimento compensatório do inconsciente, em face do cristianismo; pois o objeto das mediações e da técnica alquimista - o domínio da natureza e da matéria - não encontrou lugar nem uma valorização adequada dentro do cristianismo; foi por ele considerado como algo a ser superado (Jung, 1961/2006, p. 482).
5 A questão relacionada à trindade tornou-se alvo de profunda reflexão nos estudos de Jung. Encontra-se registrada no volume X das obras completas, mais precisamente em Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade. Na nota preliminar desta obra (1971/1994), Jung ressalta que tal pesquisa é o resultado de uma conferência realizada por ele na assembleia de Eranos em 1940 publicada sob o título: A respeito da Psicologia da Ideia da Trindade. Na ocasião da conferência, fortes críticas foram levantadas no meio cristão, pois a abordagem de Jung foi considerada irreverente, ousada e equívoca. Devido este fato, o autor fez algumas ressalvas relacionadas às delimitações e intenções de sua investigação, declarando que não intencionava atacar ou desrespeitar a fé cristã, mas sua tentativa era analisar cientificamente os símbolos da Trindade, por meio de suas teorias psicológicas.
6 Em Psicologia e Religião Oriental (1971), o autor faz uma análise comparativa entre psicologia e religião oriental e ocidental apontando para os diferentes modos e formas de expressão entre o Oriente e o Ocidente. Enquanto no Ocidente, Jung considera que o estilo é a extroversão. Entre os orientais Jung classifica o tipo introvertido como uma atitude habitual e coletiva, pois estes, de um modo geral, tendem a buscar a introspecção e o autoconhecimento, fatores de relevância significativa em pessoas com personalidade do tipo introvertida (Jung, 1964/2008, p. 72).
7 O inconsciente coletivo configura-se por conteúdos inconscientes que não provêm das aquisições pessoais, mas da possibilidade hereditária do funcionamento psíquico em geral, ou seja, da estrutura cerebral herdada. São as conexões mitológicas, os motivos e imagens que podem nascer de novo, a qualquer tempo e lugar, sem tradição ou migração histórica (Jung, 1971/1991, p. 426).
8 Na missa romana a consagração constitui o ponto culminante, o momento em que se dá a transubstanciação ou transformação da substância do pão e do vinho no corpo e no sangue do Senhor. As fórmulas da consagração são a consagração do pão e a consagração do vinho (Jung, 1971/2012b, p. 24).
9 De acordo com Jung (1971/1991, p. 442-443), o si-mesmo enquanto conceito empírico refere-se ao âmbito total dos fenômenos psíquicos do indivíduo e se manifesta como unidade e totalidade da personalidade global. Entretanto, tal conceito é empírico somente em parte, pois a totalidade se compõe tanto de conteúdos conscientes quanto inconscientes e engloba tanto o experimentável, quanto o não experimentável. Assim, trata-se de um conceito transcendente e de uma essência que continua irreconhecível e indimensionável porque só é possível ser descrita em parte. O autor afirma que o si-mesmo em sua totalidade está para além dos limites pessoais. Por isso, quando se manifesta, acontece somente sob a forma de um mitologema religioso (Jung, 1976/1988, p. 28).
10 O Evangelho de Atos de João, também conhecido como Evangelho Gnóstico de João é reprovado pelas igrejas católicas e protestantes por não ser considerado canônico.
11 O véu do Santuário ou Santo dos Santos. Cortina que era utilizada no templo de Jerusalém para separar o local onde o sumo sacerdote entrava uma vez a cada ano, no dia da Expiação, para borrifar o sangue do sacrifício. De acordo com o texto bíblico, quando Cristo expirou, essa cortina rasgou-se de alto a baixo (Mc 15,37), simbolizando que a comunhão entre Deus e o homem foi restituída por meio de Cristo (Bíblia de Estudo da Reforma, 2017, p. 1665).
12 A individuação, em geral é o processo de formação e particularização do ser individual e, em especial é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. É, portanto o processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual (Jung, 1971/1991, p. 426). Quando conteúdos inconscientes são trazidos à consciência, está se realizando o processo de individuação. De acordo com Jung (1971/1990, p. 49), o termo individuação pode ser traduzido como tornar-se si mesmo ou o realizar do si mesmo.
13 O apóstolo Paulo cresceu como Saulo de Tarso, na Cilícia (At 9.11). Seu pai era um judeu da diáspora e um homem livre na sociedade romana (At 16,37-38; 22,25-29). Aprendeu a arte de fabricar tendas (At 18,3), mas também estudou as Escrituras como fariseu, em Jerusalém, aos pés do rabino Gamaliel, o Ancião (At 22,3). Gamaliel era neto do rabino Hillel, conhecido por ideias avançadas em relação aos prosélitos e por fundar uma importante escola de pensamento judaico, Beth Hillel (Bíblia de Estudo da Reforma, 2017, p. 1878).
14 Escritura sagrada dos judeus.
15 Paulo relata sobre seu passado judeu em Filipenses 3,5: "Circuncidado ao oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu, filho de hebreus, quanto à (compreensão da) lei, fariseu, quanto ao zelo, perseguidor da Igreja, quanto à justiça que há na lei, irrepreensível". Como seus antepassados, ele se sentia também na diáspora comprometido com as tradições de sua terra-mãe Palestina. Em Gálatas 1,14, Paulo enfatiza seu zelo particular pela observância das tradições herdadas pelos pais: "No judaísmo, eu sobressaía a muitos compatriotas da minha idade, por ser extremamente zeloso por minhas tradições paternas" (Schnelle, 2010, p. 70-71).
16 Paulo era um cidadão do Império Romano, criou-se numa importante metrópole cultural do Império, submeteu-se a uma intensiva formação farisaica (possivelmente em Jerusalém). Sendo um judeu da diáspora e fariseu de formação profissional, ele viveu de acordo com a Torá. Ao mesmo tempo, sendo um cidadão da polis de Tarso, que falava grego e possuía a cidadania romana, não estava isento da educação e do espírito de seu tempo (Schnelle, 2010, p. 92).
17 Para se relacionar com outras pessoas e atender as exigências sociais, o indivíduo, muitas vezes, assume uma aparência ou um comportamento que não corresponde a quem ele realmente é, mas ao que os outros querem ou esperam que ele seja. Esta falsa aparência que Jung designou de persona, produz algum tipo de efeito sobre os outros, porém, tenta ocultar a verdadeira natureza do indivíduo. O termo é proveniente da antiga máscara usada pelos gregos para representar papeis em peças teatrais. Jung apropriou-se deste termo, por entender que o sentido é o mesmo quando o indivíduo faz uso de uma falsa aparência ou máscara como recurso para facilitar as relações sociais (Jung, 1971/1991, p. 389).
18 A sombra se constitui por aspectos da personalidade inconsciente que geralmente reprimimos e projetamos por ser repugnante e inaceitável. Segundo Jung (Jaffé, 1961/2006, p. 496), "é aquela personalidade oculta, recalcada, frequentemente inferior e carregada de culpabilidade, cujas ramificações remontam ao reino de nossos ancestrais animalescos". Ela representa o lado desconhecido da personalidade, são tendências e impulsos que a pessoa nega existir em si, mas consegue enxergar perfeitamente nos outros.
19 Líder da religião judaica.
20 "O sentimento de criatura é de alguma maneira um sentimento de depreciação diante de uma realidade majestosa. É o estado de alma que se sente finito, aniquilado diante do objeto numinoso que é de tal natureza que cativa e emudece a alma humana" (Birck, 1993, p.29).
21 Heráclito (séc. IV - V aC.) pensador pré-socrático considerado o filósofo do vir a ser; do movimento. Conhecido pela frase atribuída a ele: "não nos banhamos duas vezes no mesmo rio".

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