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Revista da Abordagem Gestáltica

versión impresa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.28 no.1 Goiânia ene./abr. 2022

http://dx.doi.org/10.18065/2022v28n1.5 

ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

 

Relação ética entre a psicologia clínica e religião: reflexões guiadas pelo enfoque da logoterapia e análise existencial

 

Ethical relation between clinical psychology and religion: reflections guied by logotherapy perspective and existential analysis

 

Relación ética entre psicología clínica y religión: reflexiones guiadas por el enfoque de logoterapia y análisis existencial

 

 

Vitor Célio Souza LanaI; Francielle Láilla MoreiraII; Eric Martins MoreiraIII; Alex Roberto Nogueira de Rezende JuniorIV

IGraduado em Psicologia pela UNIPAC/CL. Pós-graduando em Psicologia fenomenológica-existencial e humanista. Email: vitorc1902@hotmail.com
IIGraduada em Psicologia pela UNIPAC/CL. Pós-graduanda em Psicologia Hospitalar
IIIGraduado em Psicologia pela UNIPAC/CL
IVPsicólogo. Mestre em Psicologia Social pela UFSJ. Professor no curso de psicologia da Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC/CL

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo analisar a relação ética da psicologia clínica com a religião sob a perspectiva da logoterapia e análise existencial, proposta por Viktor Frankl, a partir de uma pesquisa exploratória de caráter descritivo. A religiosidade, em suas múltiplas formas de expressão faz parte da vida em sociedade e perpassa os saberes e práticas cotidianos, visto que está enraizada na cultura, interferindo nos modos de ser e estar no mundo. Assim, a religião é para muitos sujeitos o meio pelo qual encontram significado para a vida, dando sentido para ela a partir de suas experiências pessoais. Contudo, o debate sobre religião no campo da psicologia ainda gera estranhezas por parte de muitos profissionais, que apesar de encontrarem em seus atendimentos relatos que perpassam a religiosidade, ainda evitam trabalhar essa temática nos processos terapêuticos. A atuação ética do psicólogo(a) embasado na logoterapia pode facilitar o contato da pessoa com sua experiência religiosa, auxiliando-o a vivenciar plenamente as questões de sentido que se fazem presentes.

Palavras-chave: psicologia; religião; logoterapia.


ABSTRACT

This article aims to analyze the ethical relation between clinical psychology and religion from the perspective of logotherapy and existential analysis, proposed by Viktor Frankl, based on a descriptive exploratory research. Religiosity, in its multiple forms of expression, is part of life in society and permeates everyday knowledge and practices, since it is rooted in culture, interfering in the ways of being in the world. Therefore, religion is for many subjects the means by which meaning means to life, giving meaning to it from their personal experiences. However, the discussion about religion on Psychology fields still causes misunderstanding from many professionals that, despite finding religion-related stories in therapy, still avoid working with it in therapeutic processes. The ethical role of the psychologist based on logotherapy can facilitate the person's contact with their religious experience, helping them to fully experience the issues of meaning that are present.

Keywords: psychology; religion; logotherapy


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir la relación ética entre psicología clínica y religión desde la perspectiva de la logoterapia y el análisis existencial, propuesto por Viktor Frankl, basado de una investigación exploratoria de carácter descriptivo . La religiosidad, en sus múltiples formas de expresión, es parte de la vida en sociedad e impregna los conocimientos y prácticas cotidianos, ya que tiene sus raíces en la cultura, interfiriendo en las formas de ser y estar en el mundo. Para muchos sujetos, la religión es el medio por el cual encuentran sentido a la vida, dándole sentido a partir de sus experiencias personales. Sin embargo, el debate sobre la religión en el campo de la psicología aún genera extrañeza por parte de muchos profesionales, que a pesar de encontrar en su cuidado relatos que impregnan la religiosidad, aún evitan trabajar este tema en los procesos terapéuticos. El desempenõ ético del psicólogo basado en la logoterapia puede facilitar el contacto de la persona con su experiencia religiosa, ayudándola a experimentar plenamente las cuestiones de significado que están presentes.

Palabras-clave: psicología; religión; logoterapia


 

 

Introdução

As religiões e religiosidades sempre fizeram parte das concepções de mundo e do cotidiano (Albuquerque, 2007). Observa-se que a crença religiosa constitui-se enquanto parte de um sistema cultural, baseado em princípios, símbolos e valores pelos quais os sujeitos dão forma a julgamentos e ao processamento de informações (Peres, Simão e Nasello, 2007). À vista disso, a religião pode ser compreendida enquanto um fenômeno cultural relacionado a constituição humana, interferindo nas crenças dos sujeitos e consequentemente em suas formas de ser e estar no mundo (Melo, 2015). Todavia, percebe-se atualmente uma sociedade contemporânea caracterizada pelo apego à individualidade, que têm impactado significativamente o modo de viver do homem, gerando uma mudança de valores que estruturam a civilização ocidental (Costa, 2019). De acordo com Lima Vaz (2002), os valores gregos e os defendidos pelas mensagens bíblicas estão sendo questionados e substituídos pela tecnologia e pela cultura da particularidade e individualidade.

No que tange a concepção da psicologia clínica, Angerami (2010) ressalta que esta atuação deve ser contextualizada e refletida, considerando o indivíduo em seu contexto inserido e toda sua amplitude. Desta maneira, aponta que o manejo da atuação clínica psicológica exige uma constante reflexão acerca de todas as dinâmicas que perpassam o ser e sua singularidade, inclusive relacionados a sua espiritualidade ou religiosidade.

Contudo, apesar da importância desta atuação reflexiva, diversas pesquisas apontam que os profissionais de saúde, destacando-se entre eles os/as psicólogos/as, costumam negligenciar a escuta dos aspectos relacionados a religiosidade, conforme apontam Oliveira, Serur, Michel e Esperandio (2019). Em conformidade a isto, os autores apontam que há uma necessidade urgente da ampliação na formação acadêmica dos psicólogos(a) no que tange a aspectos relacionados a espiritualidade e religiosidade, para abarcar os avanços já alcançados pela Psicologia como ciência e profissão.

O Código de Ética da Psicologia, em seu artigo 2º, diz que é vedado ao psicólogo "induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais". Destarte, aponta também que a atuação psicológica deve se basear na promoção da liberdade, dignidade, igualdade e integridade do ser humano, considerando assim todos os fenômenos que perpassam a vida do sujeito.

Conforme afirmam Freitas e Piasson (2015), a religiosidade perpassa o ser humano no que se refere a sua construção socio histórica, estando muitas das vezes presente nos atendimentos clínicos psicológicos, e, por ser uma temática pouco enfatizada durante a graduação em psicologia, ressaltam a necessidade de tanto a pesquisa como a prática e a formação profissional em psicologia no país incluir em suas agendas os temas da religião, da religiosidade e da espiritualidade, permitindo uma maior compreensão destes conceitos e suas implicações enquanto fenômenos humanos presentes na vida das pessoas.

Assim, a partir da importância de uma atuação psicológica contextualizada, mediante os diversos fenômenos históricos e culturais que perpassam o sujeito, pode-se ressaltar a importância do debate acerca da psicologia clínica com a religião, favorecendo para a reflexão acerca de uma atuação psicológica condizente com seu código de ética, considerando em sua prática todos os fenômenos que atravessam a experiência trazida pela pessoa.

Como exposto anteriormente, diante da importância do debate acerca da psicologia com a religião, ressalta-se que a logoterapia, a partir de sua visão de homem e de mundo enquanto abordagem psicológica, possibilita e enriquece este debate, uma vez que suas concepções filosóficas e antropológicas consideram a pessoa enquanto única, e assim, parte de suas experiências concretas, concebendo o ser como mutável, capaz de reformular a cada fase de sua vida seu modo de ser e estar no mundo (Frankl, 2019).

Destarte, este trabalho tem por objetivo analisar a relação ética da psicologia clínica com a religião, sob a perspectiva da logoterapia e da análise existencial, reforçando a importância de considerar o fenômeno religioso na clínica psicológica, destacando a ética presente neste processo, e desenvolvendo assim contribuições pertinentes a logoterapia no contexto clínico.

Para atender o objetivo proposto, foi desenvolvido um estudo exploratório de caráter descritivo, visando explorar a relação ética da psicologia clínica com o fenômeno religioso, à luz da abordagem da Logoterapia de Viktor Frankl. Para tal, foi procedido um percurso exploratório-descritivo, perfazendo inicialmente um levantamento bibliográfico acerca do fenômeno religioso, e sua relação histórica com a constituição humana. Em seguida, foi pesquisado acerca da presença da religiosidade nos atendimentos psicológicos e sua possível relação com a qualidade de vida da humanidade. Posteriormente, foi feito uma análise teórica acerca da logoterapia e análise existencial, buscando possibilidades de compreensão desta temática de forma ética, a partir de tais aparatos teóricos.

O levantamento bibliográfico neste estudo foi feito utilizando-se de algumas das principais obras publicadas por Viktor Frankl (Frankl 2019; Frankl 2015; Frankl 2014; Frankl 2010; Frankl 2005), e de artigos nacionais periódicos publicados nas bases de dados Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), Periódicos Eletrônicos de Psicologia (PePSIC), e Scientific Electronic Library Online (Scielo), que analisavam a relação da psicologia clínica com a religião, utilizando-se das palavras-chaves: psicologia clínica; religião; experiência religiosa. Neste levantamento, foram selecionados 14 artigos para a realização do estudo, tendo por critério as publicações feitas no período de 2014 a 2020, juntamente com os livros acima pontuados.

 

Religiosidade/Espiritualidade

Religiosidade e espiritualidade foram por muito tempo tido como sinônimos, apesar de apresentarem diferenças em seus conceitos e significados. Entende-se por espiritualidade um estado de ser caracterizado pela busca de significados na vida, não limitado a tipos de crenças ou práticas, em que pode ser encontrado na relação com uma figura divina, como também na relação com os outros, em contato com a natureza, arte, culturas, dentre outras formas de descobrirem sentidos em sua vida (Panzini, Rocha, Bandeira e Fleck, 2007). Conforme salienta Freitas (2017), o termo espiritualidade remete "abertura para maior dinamismo e criatividade pessoal, ancorando-se na experiência pessoal, interior, sem prender-se a elementos de cunho avaliativo e moralista" (p.97-98).

Sendo assim, a espiritualidade pode ser compreendida enquanto uma dimensão especificamente humana, abarcando um conjunto de valores pessoais e completude interior, que podem facilitar para um processo de descoberta de sentido e propósito de vida (Silva J. B & Silva, 2014). Em 1988, a Organização Mundial de Saúde (OMS), incluiu a dimensão espiritual no conceito multidimensional de saúde, remetendo a questões como significado e sentido da vida, e não se limitando a qualquer tipo específico de crença ou prática religiosa. Para ela, a espiritualidade é o conjunto de todas as emoções e convicções de natureza não material, com a suposição de que há mais no viver do que pode ser percebido ou plenamente compreendido (Volcan, Sousa, Mari, & Lessa, 2003).

Já religiosidade, segundo Panzini et al. (2007) caracteriza-se pela crença em uma figura sagrada, sendo regido por um sistema de crenças e práticas, que são expressados através da fé. À vista disso, deve-se ressaltar que tanto a religiosidade quanto a espiritualidade estão intimamente relacionadas com a cultura, de forma histórica e social, enquanto fenômenos que fazem parte da constituição humana, conforme salientado por Freitas (2017).

A religiosidade e a religião implicam, ambas, necessariamente a referência ao transcendente, sendo que na segunda, a resposta é compartilhada e institucionalizada, não importando se está organizada conforme o modelo de religiões tradicionais ou se mostrada sob novas formas de expressões religiosas, segundo as variações históricas, étnicas, temporais e culturais. Enquanto isso, a espiritualidade implica referência à busca de sentido, o que pode coincidir ou não com a busca religiosa, existindo a possibilidade de que a resposta para esta demanda existencial venha de outra fonte, considerada e vivida pela pessoa como arreligiosa (p.101).

Portanto, deve-se observar que religião, religiosidade e espiritualidade apresentam diferenças, visto que a espiritualidade é uma vivência inata do homem, a religiosidade uma relação com o transcendente, enquanto a religião é uma instituição humana (Silva J. B & Silva, 2014).

Assim, conforme apontado anteriormente, observa-se que o fenômeno religioso se encontra presente na sociedade de forma sócio-histórica e cultural, corroborando para a construção do indivíduo enquanto ser-no-mundo, em que a atitude religiosa pode ser percebida como forma de encontrarem respostas para a vida, dando sentido para ela a partir de suas experiências religiosas (Frankl 2019). Estudos como os de Panzini et al., (2007), Melo (2015) e Costa (2019) demonstram relações entre maior religiosidade e melhor saúde mental, bem-estar geral e qualidade de vida.

Deve-se ressaltar também, que a experiência religiosa pode ser benéfica ou não ao sujeito, a depender da forma como este a vivencia (Costa, 2019), que não nos cabe aqui aprofundar, mas que, permite-nos apontar a importância de uma atuação ética frente as demandas trazidas pelos sujeitos em torno das experiências religiosas. Considera-se assim, na perspectiva da clínica psicológica, a ética enquanto o princípio de reconhecimento da diversidade das religiões presentes no cenário social, na qual uma atuação e postura ética consistem na compreensão destas enquanto experiências próprias e oriundas do sujeito.

 

Clínica Psicológica e ética no manejo da espiritualidade/religiosidade

O termo "psicologia clínica" remete a uma dimensão única na prática do psicólogo - aquela que tem de levar em conta a existência do outro, sua fala, as queixas, propiciando a instalação de um espaço de efetiva interlocução, reconhecendo a dimensão essencialmente clínica de estar com, de estar ao lado deste sujeito em construção e de-construção permanente na sua fala (May, 1988).

Destarte, o Código de Ética, enquanto um instrumento que busca delinear para a sociedade as responsabilidades e os deveres do psicólogo(a), fornece diretrizes necessárias para a sua formação, contribuindo para o fortalecimento e ampliação do significado social da profissão, desenvolvendo assim a autorreflexão necessária de cada indivíduo acerca da sua prática. Por conseguinte, sua missão primordial não é o de normatizar a natureza técnica do trabalho, mas sim, a de assegurar, dentro de valores relevantes para a sociedade e para as práticas desenvolvidas, um padrão de conduta que fortaleça o reconhecimento social daquela categoria (Freire, 2003).

Ademais, o Código de Ética do Profissional Psicólogo(a), inicia seu texto sustentando que a práxis desse profissional se baseará no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, sendo seus princípios norteados pelos valores expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Diz ainda que o psicólogo atuará com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural que perpassam sua prática. Há, portanto, responsabilidades nas condutas profissionais e devem-se ter cuidados quando se trata da integridade psicoafetiva e espiritual daqueles que recebem os serviços nos mais diversos espaços de trabalho.

Contando com as diretrizes éticas expressas no Código de Ética do Psicólogo(a), o VIII Congresso Nacional da Psicologia, em 2013, dentre tantas outras deliberações aprovadas, determinou que uma das ações a ser implementada pelo CFP e pelos CRPs, estaria baseada na construção de debates com a categoria acerca da questão da laicidade na profissão e a promoção dos Direitos Humanos.

Já em 2019, o Conselho Federal de Psicologia (CFP), em campanha promovida pela Comissão de Direitos Humanos (CDH), realizou um ciclo de eventos reunindo profissionais e estudantes, para debater temas que afetam diariamente a categoria, com base na grande abrangência de sua atuação na pauta diária da sociedade. Nestes eventos, uma das pautas abordadas foi a laicidade como garantia do direito à diversidade religiosa, buscando caminhos para o diálogo. A proposta foi reafirmar o compromisso ético da Psicologia, na garantia e no reconhecimento da diversidade social, moral, cultural e religiosa de uma sociedade, debatendo assim as relações da mesma com a promoção dos direitos humanos, e propondo a organização de eventos que venham a ampliar e qualificar o debate sobre o tema. Nesse sentido, a laicidade consiste na garantia da liberdade religiosa enquanto um direito para todos. No âmbito da Psicologia, a laicidade pressupõe a não interferência do viés religioso pessoal em sua prática, de modo que o profissional embase sua prática pautada no conhecimento científico (Freitas e Piasson, 2016).

Como visto, em síntese, a psicologia deve ser laica, contudo, possui o compromisso ético de contemplar o sujeito em sua amplitude, considerando todos os fenômenos que perpassam a existência humana. Desse modo, desprende-se que a psicologia enquanto ciência e profissão, não deve negligenciar os fenômenos de ordem religiosa, os quais perpassam os múltiplos contextos sócio-históricos que constituem e interferem na existência humana, mas sim, oferecer uma escuta acolhedora destes enquanto fenômenos do homem, analisando os efeitos da manifestação religiosa na vida pessoal e coletiva da humanidade.

 

Clínica Existencial e Logoterapia

A clínica psicológica existencial surgiu no momento histórico em que havia certa insatisfação, que não nos cabe aqui discorrer, com relação aos resultados dos trabalhos propostos pela Psicanálise e pela abordagem comportamental. May (1988, p. 46) afirma que "seria um erro identificar o movimento existencial em psicoterapia simplesmente como mais um na linha de escolas que derivaram do freudianismo, ou de Jung, Adler e daí por diante".

Os psicoterapeutas de orientação científico-naturalista procuravam, muitas vezes, encaixar as pessoas na teoria, ao invés de voltar-se para uma descrição fenomenológica da existência singular. Essas tentativas de enquadrar os pacientes nos modelos teóricos eram pródigas em explicações do sofrimento, mas quase sempre estéreis no sentido de propiciar relações terapêuticas que promovessem transformações existenciais efetivas (Kahlmeyer-Mertens, 2015). Para Ludwig Binswanger (1956, p. 144, apud May, 1988, p. 40), a clínica existencial "surgiu da insatisfação com os esforços predominantes para se obter conhecimento científico na psiquiatria".

Heidegger, filósofo alemão que se dedicou ao estudo da complexidade da existência humana, propõe, a partir de uma análise da existência humana, que o ser não deve ser compreendido em termos de alguma objetivação, seja biológica, psicológica ou sociológica, enxergando o ser enquanto possibilidades, na qual existe de modo a apropriar-se continuamente de si a partir de projetos de sentido que orientam sua existência (Heidegger, 2015).

Desse modo, ao projetar sentidos existenciais, o ser estabelece propósitos em virtude dos quais seus comportamentos se operarão, e assim rearticula sua própria existência, bem como sua compreensão acerca do mundo que o cerca (Kahlmeyer-Mertens, 2015).

Assim, a Psicoterapia Existencial funda-se no cuidado, enquanto ser-no-mundo-com-o-outro, e não em interpretações apriorísticas ou explicações causais sobre a realidade vivencial do paciente. Se há alguma interpretação, ela deve ser fruto da elaboração temática de uma existência que se explicita enquanto projeto. Deste modo, o psicoterapeuta remete o indivíduo a si, estimulando-o a reconhecer sua impessoalidade e a questionar-se no sentido de encontrar suas próprias respostas para as questões que a vida lhe apresenta (Kierkegaard, 2015).

O objetivo da psicoterapia existencial não é enquadrar o paciente em padrões morais ou em modelos teóricos, mas buscar compreender as possibilidades singulares de existir de cada um, tal como ele as experimenta em suas relações com as pessoas e coisas que lhe vêm ao encontro no mundo (May, 1988). À vista disso, diversos autores desenvolveram e apresentaram propostas teóricas e práticas embasados por conceituações fenomenológicas-existenciais, tais como Heidegger, Kierkegaard, Viktor Frankl, dentre tantos outros.

Viktor Emil Frankl (1905-1997) foi um psiquiatra e neurologista austríaco criador da logoterapia, abordagem psicológica também conhecida como terapia centrada no sentido, que salienta a busca por um sentido na vida enquanto uma característica fundamental do ser humano (Frankl, 2005).

O sentido diz respeito à totalidade da vida de uma pessoa e também ao momento presente. E, sendo cada pessoa única e insubstituível, o sentido se torna exclusivo e específico de cada um (Silveira & Mahfoud, 2008). Segundo o autor, encontrar um sentido é assumir uma responsabilidade diante de sua vida. Este questionamento, a respeito do sentido, é uma motivação primária no indivíduo, a que Frankl chama de vontade de sentido, e o que torna o ser essencialmente e unicamente humano. (Frankl, 2019).

Voltado para a preocupação acerca do sentido na vida, Frankl traz grandes contribuições à psicologia e a psicoterapia. Com raízes fenomenológicas e existenciais, o autor demonstra a importância da dimensão espiritual do ser humano, uma vez que é justamente a preocupação com o sentido da existência aquilo que distingue o homem enquanto tal (Frankl, 2015). Nesse aspecto, segundo a logoterapia, a existência humana aponta para além de si mesma, sempre para um sentido, sendo esta característica denominada por Frankl de autotranscedência (Frankl, 2005). Assim, compreende o homem como um ser responsável pelo cumprimento de um sentido.

Contudo, é preciso deixar ao paciente a decisão de como interpretar sua responsabilidade, enquanto ser-responsável diante da sociedade, da humanidade, ou diante não de algo, mas diante de alguém, diante do divino (Frankl, 2010). Por conseguinte, pode-se notar que:

Viktor Frankl foi um crítico da cultura moderna, ora denominando-a como narcisista, ora como cética. Também denunciou o niilismo e suas repercussões para a saúde mental. Para ele, o ser humano não é um sistema fechado, mas alguém que possui em sua essência uma abertura para o mundo. Por esse motivo, preocupa-se com valores, em alguns momentos criando obras, em outros amando ou comtemplando a natureza ou obras artísticas, e ainda, posicionando-se perante o sofrimento inevitável (Aquino, 2015, p.18).

Em suma, observa-se que Frankl desenvolveu uma abordagem psicoterapêutica a partir de um projeto antropológico que se liga, irrecusavelmente, a problemática ética, por meio de uma de uma visão de homem através de uma concepção valorada de agir humano (Pereira, 2013).

A novidade fundamental da logoterapia, enquanto sistema psicológico, portanto, foi a de introduzir e articular uma visão de homem tomado enquanto integrante de um universo moral que guarda uma relação direta com o sentido da vida do indivíduo. Este dito universo moral só pode ser admito na medida em que é sustentado por um domínio ontológico que reserve ao ser humano o estatuto de ser livre e responsável: teremos, aí, a dimensão espiritual, aquela que especifica o homem em sua humanidade e que inspira toda a investigação da escola iniciada por Viktor Frankl (Pereira, 2013, p.139).

Deste modo, a logoterapia compreende por espiritualidade uma dimensão de fenômenos especificamente humanos, aonde se encontram fenômenos como valores, liberdade e responsabilidade humana, descoberta de sentido de vida, criatividade, humor, dentre todos os outros aspectos que sejam unicamente pertencentes ao ser humano (Frankl, 2015).

Por conseguinte, a descoberta de sentido, como característica fundamental da dimensão espiritual do ser, é feita através da realização de valores, únicos em cada indivíduo. E diante das diversas possibilidades de realizar valores e encontrar sentido, nota-se que a religiosidade se apresenta enquanto uma delas, visto que o fenômeno religioso pode permear os sistemas de valores, crenças e condutas éticas daqueles indivíduos que tem uma experiência religiosa (Peres, Simão e Nasello, 2007).

Todavia, muitos são os mal-entendidos acerca do pensamento de Frankl sobre a religiosidade e espiritualidade. Neto (2013) aponta que o autor sempre manteve a preocupação em esclarecer os possíveis desentendimentos a respeito de sua concepção antropológica, justamente por abrir-se a uma perspectiva que concebe a dimensão espiritual do homem.

Desse modo, o modelo psicológico de Frankl busca abordar a religiosidade e a fé do homem em sua autenticidade, no qual corresponde como uma expressão da busca humana pelo sentido (Frankl, 2014). Segundo o autor, o objetivo da religião é a salvação da alma, enquanto o objetivo da psicologia clínica é a cura psíquica. Entretanto, isso não quer dizer que o objetivo de ambas não se encontre no mesmo plano, abrindo-se assim ao possível diálogo destas duas vertentes, entendendo pela religiosidade enquanto possibilidade de manifestação da dimensão espiritual do homem (Frankl, 2015).

À vista disso, é possível notar como a abordagem de Frankl trouxe uma nova ótica referente a diversos aspectos, tais como espiritualidade, vivência de valores, sentido de vida, religiosidade, dentre outros. Conforme aponta o autor "os seres caminham cada vez mais em direção a uma religião pessoal, uma religiosidade a partir da qual cada indivíduo encontrará o seu próprio idioma, pessoal e original, ao se dirigir a Deus" (Frankl, 2015, p.90).

Deste modo, percebe-se na obra do autor a religiosidade enquanto um fenômeno do ser humano, que pode facilitar com que ele dialogue consigo mesmo em sua consciência, que o orienta na direção de um sentido, fazendo com que o indivíduo perceba e assuma sua liberdade e responsabilidade perante sua vida (Frankl, 2014). Na análise existencial de Kierkegaard, filósofo considerado o pai do movimento existencialista, o indivíduo é visto enquanto um ser responsável em dar significado a sua vida, de modo que sua relação com Deus deve ser livre e pessoal, visto que é no silencio de sua interioridade que o sujeito se torna único, tomando decisões de forma livre e autêntica (Kierkegaard, 2015). "A pessoa que busca uma religiosidade sadia encontra tradições e valores que a direcionam a um relacionamento com o que ela pode considerar ser o criador, e isto, portanto, torna-a aberta ao outro e a transcendência" (Silveira & Mahfoud, 2008, p.572).

Destarte, podemos considerar que, baseado nos aportes da logoterapia e da análise existencial, o papel que cabe aos psicólogos(a) como pesquisadores do campo psíquico e espiritual, é o de estudar os efeitos da manifestação religiosa na vida pessoal e coletiva da humanidade de forma ética, não afirmando ou refutando se elas estão certas ou erradas como metodologias, mas sim, buscando a compreensão deste enquanto fenômenos da humanidade, no intuito de analisar qual sua relação com o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas.

Assim, pode-se concluir que a logoterapia oferece uma proposta de articulação entre a psicologia e a religião pautado por um viés ético, de modo que na clínica, juntamente com o indivíduo, o logoterapeuta deve auxilia-lo a perceber como tem se dado a relação deste com sua religião, desde que seja uma demanda trazida pela própria pessoa, levando-o a compreender o sentido que esta relação assume para ele, enquanto parte de sua vivência singular, utilizando-se para isto do método fenomenológico, na qual a experiência religiosa torna-se um fenômeno próprio do sujeito, cabendo a ele sua interpretação.

Portanto, o psicólogo(a) embasado na logoterapia e análise existencial, pode facilitar o contato da pessoa com sua experiência religiosa, auxiliando-o a vivenciar plenamente as questões de sentido que se fazem presentes (Frankl, 2014). Observa-se que essa atitude pode permitir ao sujeito entrar em contato com sua experiência, e assim, refletir sobre a mesma em toda sua amplitude.

 

Considerações Finais

Após considerar a relação ética da psicologia clínica com a religião, bem como a contribuição trazida pela logoterapia a este debate, percebe-se que, embora para muitos profissionais o debate sobre religião no campo da psicologia ainda gera estranhezas, é fundamental uma prática clínica psicológica que considere todos os fenômenos que perpassam a vida da humanidade, através de uma atuação pautada pelos preceitos éticos conforme expostos no Código de Ética da Profissão.

Não obstante, é importante salientar que a definição de religiosidade como experiência, deve levar em consideração a forma como o sujeito se deixa afetar e como interpreta essas experiências, e o que elas produzem enquanto sentido para a sua vida. Na prática clínica, o psicólogo(a) é um facilitador no processo de autoconhecimento e autonomia na integração com a dimensão espiritual, de modo que a escuta ética da experiência religiosa pode favorecer uma intervenção qualificada, através da compreensão das crenças do sujeito enquanto parte de sua vivência, facilitando para a elaboração própria do sujeito no que diz respeito a sua experiência.

Por fim, ressaltamos a importância de uma postura crítica, reflexiva, criativa e ética na prática do exercício da psicologia, por meio de um processo constante de reflexão acerca de sua prática e possíveis articulações decorrentes. Espera-se assim que as reflexões trazidas neste estudo favoreçam para futuras pesquisas que busquem aprofundar ainda mais no tema, ampliando o escopo de evidências científicas relacionadas a esta interface temática.

 

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Recebido em 24.10.2020
Primeira decisão editorial em 09.06.2021
Aceito em 24.06.2021

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