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Revista da Abordagem Gestáltica

versión impresa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.28 no.1 Goiânia ene./abr. 2022

http://dx.doi.org/10.18065/2022v28n1.6 

ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

 

As polaridades controle e confiança na sociedade contemporânea a partir da gestalt-terapia

 

Polarities control and trust in contemporary society from Gestalt-therapy

 

Las polaridades control y confianza en la sociedad contemporánea desde la Terapia Gestalt

 

 

Janaína Rocha FurtadoI; Fabíola Polito GasparII

IComUnidade Gestáltica - Clínica e Escola de Psicoterapia, Santa Catarina. Rua Imão Joaquim, 169, Centro, Florianópolis, Santa Catarina, CEP: 88020-620. Email: janaina.ufsc@gmail.com
IIComUnidade Gestáltica - Clínica e Escola de Psicoterapia, Santa Catarina. Email: fabiola.polito.gaspar@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo consiste em uma discussão teórica acerca das relações entre os fenômenos controle e confiança. Tomando como base os conceitos de contato, campo, ajustamento criativo e disfuncional da Abordagem Gestáltica, objetivou-se aprofundar as reflexões sobre as implicações do desejo de controle na sociedade atual e das polaridades controle e confiança no trabalho clínico do gestalt terapeuta. Observamos que o controle se apresenta, hodiernamente, como ajustamento necessário à autopreservação e à autoproteção. No entanto, quando disfuncional, impede a espontaneidade e a assunção de novas formas de relação consigo mesmo e com o mundo. A sensação de confiança se sustenta, por sua vez, na crença nas habilidades e condições tanto do próprio indivíduo, como daquelas fornecidas pelo campo, para enfrentar os riscos e as mudanças inerentes ao viver. Neste sentido, cabe ao terapeuta, na relação dialógica que estabelece com o cliente, facilitar um espaço para a integração das polaridades controle e confiança, tendo este equilíbrio como condição necessária para a "cura" em Gestalt-terapia.

Palavras-chave: Controle; Confiança; Indivíduo; Sociedade; Gestalt-terapia.


ABSTRACT

This article consists on a theoretical discussion about the relationship between control and trust phenomena. Based on the concepts of contact, field, creative and dysfunctional adjustment in Gestalt-therapy, the objective was discuss about the reflections and the implications of the desire for control in today's society and the polarities control and trust in the clinical work of the gestalt therapist. We observe that control presents itself as a necessary adjustment to self preservation and self protection. However, when dysfunctional, the control prevents the spontaneity and the assumption of new forms of relationship with oneself and with the world. The feeling of confidence is sustained, in turn, in the belief in the skills and conditios, both of the individual himself and of those provided by the field to face the risks and changes inherent in living. In this sense, it is up to the therapist, in the dialogic relationship he establishes with the client, facilitates a space for the integration of the polarities control and trust, having this balance as a necessary condition for "healing" in Gestalt-therapy.

Keywords: Control; Confidence; Individual; Society; Gestalt-therapy.


RESUMEN

Este artículo consiste en una discusión teórica sobre la relación entre los fenómenos de control y confianza. Partiendo de las teorías gestálticas de contacto, campo, ajuste creativo y disfuncional, el objetivo es profundizar aún más en las reflexiones sobre las implicaciones del deseo de control en la sociedad actual y la polaridad del control y la confianza en el trabajo clínico del terapeuta gestáltico. Observamos que el control se presenta, hoy, como un ajuste necesario a la autoconservación y la autoprotección. Sin embargo, cuando es disfuncional, impide la espontaneidad y la asunción de nuevas formas de relación con uno mismo y con el mundo. La sensación de confianza se sustenta, a su vez, en la fe en las habilidades y condiciones tanto del próprio individuo como de los proporcionados por el campo para afrontar los riesgos y cambios inherentes a la vida. En este sentido, le corresponde al terapeuta, en la relación dialógica que establece con el cliente, facilitar un espacio para la integración de las polaridades control y confianza, teniendo este equilíbrio como condición necesaria para la "cura" en la Terapia Gestalt.

Palavras-clave: Controlar; Confianza; Individual; Sociedad; Terapia Gestalt.


 

 

Nos dias certos, nos dias exteriores da minha vida,
Nos meus dias de perfeita lucidez natural,
Sinto sem sentir que sinto,
Vejo sem saber que vejo,
E nunca o Universo é tão real como então,
Nunca o Universo está (não é perto ou longe de mim,
Mas) tão sublimemente não-meu.
Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos

 

Introdução

A sociedade contemporânea é reflexo de um corpo social que prioriza uma forma dual e fragmentada de compreender as coisas do mundo. Enfatiza o pensar sobre o sentir, tendo a razão como centro organizador da experiência. Mesquita (2011) aponta como a ordem social atual deixou algumas faculdades da natureza humana fora de uso, reprimindo os aspectos naturais e enfatizando o controle do tempo, o domínio do presente, a ponderação sobre todas as decisões a partir de suas consequências futuras e a adaptação aos padrões sociais por meio da regulação dos impulsos.

Não sendo possível relaxar e entregar-se, as trocas deixam de ser fluidas e recíprocas, e passam a ser controladas a fim de que os resultados sejam obtidos e as expectativas atendidas. Fiscalizar, verificar, planejar e conter tornam-se comportamentos habituais de controle do sujeito contemporâneo, eminentemente racional. O controle pode ser entendido como uma das formas por meio das quais o indivíduo evita o contato com as suas emoções, pacifica e contém os seus impulsos ou, ainda, ajusta-se às demandas do meio para seguir da forma que acredita ser mais segura.

As relações entre controle, corpo e sociedade foram profundamente exploradas por Michel Foucault (1987), para o qual o controle é um fenômeno social e biopolítico desde o século XVIII. Para este autor, o meio se impõe através de distintas técnicas de controle, dentre as quais a disciplina que, introjetada, sujeita o corpo e suas forças a uma condição de docilidade-utilidade. A docilização dos corpos se dá pela regulação externa dos tempos, ritmos e ciclos individuais e naturais, sob a égide dos valores de produção e utilidade que subsiste na sociedade moderna. A atualidade parece estar marcada pela busca de segurança e pela gestão da ameaça, uma vez que vigora a necessidade de poder e domínio sobre a natureza, a vida e o futuro (Silva, Baptista & Alvim, 2015).

A vigilância é permanente para que o comportamento esteja normatizado. A docilização dos corpos visa roubar os seus potenciais a serviço do capital e do poder. Assim, os mecanismos de controle mantêm o corpo sendo mercadoria, transformando o corpo-potência em corpo-máquina. Foucault (1987) observou que o controle exercido no campo das relações sociais, especialmente institucionais, são assumidas pelos sujeitos de tal forma que estes passam a regular a si mesmos e as suas ações no mundo, a partir de regras e demandas externas, muitas vezes alheias às suas necessidades e características pessoais.

As sociedades contemporâneas produziram diferentes tecnologias de sujeição utilizando-se do agenciamento dos desejos e do controle de suas práticas. Reflita sobre o processo de disciplinarização escolar ou fabril, os ditames e publicidade sobre os corpos magros e saudáveis, às vezes que segurou a satisfação de uma necessidade essencial para não se constranger com a situação ou quando escutou frases como "meninas não abrem as pernas", "meninos não choram", "é feio sentir raiva", entre outras. A intenção é controlar o impulso vital do organismo, imobilizando o corpo por meio da contenção contínua, ao passo que agencia os seus desejos incutindo um modelo rígido de viver. Por um lado, o indivíduo se sente livre porque faz tudo o que deseja, enquanto isso, por outro, se submete às estruturas que induziram os seus desejos. São as suas próprias referências, baseadas nas suas experiências particulares no mundo, que são suplantadas e, com isso, a sua autoconfiança, a confiança na percepção do seu corpo, e, por fim, do seu potencial existencial.

Como a Gestalt-terapia se propõe a ser uma psicoterapia do "homem-no-mundo" (Robine, 2005), e entende que o comportamento e o psiquismo humano estão em íntima correspondência com a organização social (Perls, 2012), as características do campo social ganham relevância na compreensão do controle como um fenômeno biopsicossocial, que se situa na interface dos ajustamentos do indivíduo em relação ao meio em que vive.

Perls, precursor da Abordagem Gestáltica, traz a confiança como fenômeno polar ao controle. Para ele, "enquanto menor seja a confiança que temos em nós mesmos, menor é o contato conosco e com o mundo, maior nosso desejo de controlar" (Perls, 1974, p.31). Sua fala sugere que há entre controle e confiança uma relação polar, ambivalente, suscetível de ser investigada, cuja tensão está relacionada à qualidade do contato do indivíduo consigo e com o mundo. A sensação de confiança em relação a si mesmo e ao outro se manifesta inversamente proporcional ao desejo de controlar.

Enquanto terapeutas, observamos como o desejo de controle parece ter expressão na experiência clínica nos tempos atuais. Com diferentes matizes está presente, por exemplo, nos ajustamentos neuróticos comuns na clínica contemporânea, tais como síndrome do pânico, transtornos alimentares e ansiedade excessiva, dentre outros nos quais, frequentemente, a pessoa experimenta a sensação da perda do controle interno e uma busca ávida por controlar o meio. 0s mais distintos relatos na clínica abordam o desejo de controle vinculado à sensação de segurança, de domínio e estabilidade, em decorrência da possibilidade de prever resultados e planejar todos os tipos de situações ameaçadoras.

Frente a um futuro desconhecido, a experiência física do controle em excesso é regularmente de tensão e contenção. Não há muito contato com a experiência e as emoções são resguardadas ao fórum mais íntimo sobre o qual o sujeito aprende a construir uma muralha de proteção. A exposição emocional é relacionada à humilhação, vulnerabilidade e impotência, pois o indivíduo contemporâneo inspira-se em se apresentar autorregulado, confiante e dono de si mesmo o tempo todo.

A partir dessas reflexões, este artigo propõe uma discussão teórica acerca dos fenômenos controle e confiança tomados como polaridades, sob a perspectiva de alguns conceitos da Gestalt-terapia como Campo, Contato e Ajustamentos Criativos e Disfuncionais. Serão também consideradas as possíveis implicações e desdobramentos desses ajustamentos ao trabalho clínico do terapeuta na contemporaneidade.

 

Contato e Ajustamentos entre Controle e Confiança

Cada um de nós é um impulso em direção ao ser que aspiramos e, de uma forma ou de outra, buscamos a felicidade e a realização. Perls (2012) disse que a necessidade de sobreviver atua como força propulsora e que todos os seres vivos manifestam duas tendências: sobreviver como indivíduos e espécie, e crescer. Por caminhos diversos, múltiplas vezes tortuosos, procuramos o equilíbrio entre ser e estar no mundo. Como não somos autossuficientes, nascemos dependentes do outro e da materialidade visível e invisível que nos circunda. Crescer e se desenvolver implica em lidar com as satisfações e frustrações advindas da nossa relação com o meio. Para a Gestalt-terapia são justamente as qualidades da relação organismo e meio, aspectos cruciais que nos permitem compreender o comportamento de qualquer ser vivo, humano ou não.

Baseado nos estudos de Kurt Lewin, Perls reitera que "o estudo do modo que o ser humano funciona no seu meio é o estudo do que ocorre na fronteira de contato entre o indivíduo e o seu meio. É neste limite de contato que ocorrem eventos psicológicos" (2012, p.31). Para o autor, "o organismo tem tanta necessidade psicológica como fisiológica de contato" (Perls, 2012, p.22). Contato, "trabalho que resulta em assimilação e crescimento, é a formação de uma figura de interesse contra um fundo ou contexto do campo organismo/ambiente" (Perls, 1997, p.45). A cada experiência há um movimento de expansão ou de retraimento em relação a um estímulo do meio que nos toca. Tal excitamento gera o delineamento de uma figura e o organismo se mobiliza e age em direção à satisfação da necessidade que foi aberta, configurando um fluxo fluido no processo de contato, em um funcionamento saudável. O Contato é, pois, o que garante a sobrevivência do indivíduo como espécie e, também, o que possibilita o seu desenvolvimento e crescimento. Todos nós, assim sendo, somos dependentes do meio. Fundamentando-se nos estudos de Lewin, a totalidade relacional organismo e meio é denominada Campo.

A experiência de si como uma totalidade unificada depende da satisfação das necessidades prioritárias do organismo, a partir das condições disponíveis no meio, o que significa que nem sempre a satisfação é plenamente possível. É importante esclarecer que tais necessidades são de diferentes ordens: fisiológicas, afetivas, sociais, espirituais, entre outras. Sendo assim, o organismo buscará manipular o meio a fim de satisfazer as suas necessidades prioritárias, apresentadas momento a momento como figuras para ele. Tais figuras têm como suporte um fundo disponível, no qual se incluem elementos do campo sociocultural, animal e físico, a história de vida, entre outros aspectos. Uma vez que a busca pela satisfação da necessidade é impulsionada no campo e a energia necessária é mobilizada (excitação), tal necessidade deixa de ser figura e volta a ser fundo, possibilitando que novas figuras emerjam. O ciclo permanente de abertura figura/fundo na relação organismo e meio é o que chamamos de configuração da gestalt (Ribeiro, 1985).

A formação da gestalt se dá pelo surgimento de uma figura que busca um fechamento, ou seja, busca uma satisfação adequada mesmo que seja a aceitação da sua impossibilidade. No entanto, o processo contínuo, permanente e funcional da configuração das gestalten depende, por sua vez, da clareza do indivíduo com relação às suas necessidades reais, à hierarquia ou grau de prioridade destas necessidades e das condições do meio para satisfazê-las. A autorrealização ou autorregulação organísmica é o impulso do organismo em buscar modos eficientes de satisfazer as suas necessidades prementes. A satisfação das necessidades decorre, portanto, da forma como o organismo organiza a sua percepção sensorial e a sua ação no mundo. Assim, o fechamento adequado das gestalten, exige, pois, que o organismo esteja aware1 de suas necessidades (Perls, Hefferline & Goodman, 1997).

Muitas vezes, há contextos em que o indivíduo não consegue satisfazer as suas necessidades de forma plena. Nestes casos, ele experimenta a frustração e lhe é demandado encontrar outros meios e alternativas para resolver as suas demandas e fechar as gestalten. Essa capacidade de lidar com a não resolução de uma satisfação de modo primeiramente desejado, fazendo uso de outras formas de satisfação, é o que a Gestalt-terapia chama de Ajustamento Criativo (Lima, 2013). O ajustamento criativo não é uma forma padronizada ou mecânica de buscar o equilíbrio. Pelo contrário, é o ajustamento entre as necessidades do organismo e as demandas do meio da melhor maneira possível, da forma que seja mais gratificante, indo além da autorregulação herdada ou conservativa (Perls, Hefferline & Goodman, 1997).

Essa capacidade se sustenta na condição criativa de encontrar novas soluções às mais diversas questões cotidianas, sejam elas conhecidas ou não. O ajustamento criativo é, pois, o processo e a forma por meio do qual nos adaptamos à realidade e suas exigências, mas também a reinventamos de modo a atender as necessidades pessoais ou de dar a elas o melhor fechamento possível. Para tanto, implica-se a identificação de uma figura clara e coerente (que nasça do coração, da sensação real do corpo, do desejo verdadeiro de si) e o vislumbre na realidade do conjunto de possibilidades existentes, por vezes polares, que podem garantir um fechamento adequado da figura ou não (Cardella, 2014).

Contato e Awareness são, portanto, imprescindíveis, sem os quais não é possível a auto percepção de si e do campo, tampouco de buscar no meio as possibilidades através das quais as necessidades serão atendidas ou revogadas. Por isso, o ajustamento é uma integração sensório-motora, a aceitação dos impulsos e o contato atento com material novo que advém de cada nova experiência. Faz parte do ajustamento criativo, da natureza e qualidade do contato, os processos de confluência, introjeção, projeção, retroflexão e egotismo (Perls, 2012). O crescimento se dá a partir da assimilação das experiências vividas, tecida no reconhecimento dos próprios recursos, que mobilizados criativamente no campo, se consolidam como autosuporte do indivíduo para enfrentar e se abrir ao porvir, ao desconhecido.

Se observarmos a origem etimológica da palavra, do Latim medieval, controle deriva de "contrarotulus", que vem de "contra" + "rotulus", diminutivo de "rota" (roda). Contrarotulus é uma técnica medieval de se verificar contas, comparando registros do credor e do devedor em diferentes livros de verificação (Laraia, 2006). Não é aleatório que os significados mais comuns dados à palavra controle em nossa sociedade atual o relacionam aos substantivos domínio, poder, fiscalização e racionalização. Seus antônimos são: desequilíbrio, descontrole, desgoverno. Palavras associadas: supervisão, monitoramento, medição, valor, mecanismo, processo, resultado, entre outras (Ferreira, 1988).

Neste sentido, o controle é compreendido como o mecanismo ou função pelo qual um resultado é medido e comparado a um valor desejado, esperado. As ações de controle atuam sobre o resultado a ser medido novamente e assim sucessivamente. Desse modo, entendemos que o sentido da palavra controle invoca um conjunto de ações humanas, tais como: fiscalizar, monitorar, revisar, conferir, registrar, examinar, dentre outras, configurando o controle como uma função que perpassa pela capacidade humana de avaliar e analisar criticamente determinado resultado ou efeito, incidindo sobre a adaptação da atividade controlada (objeto do controle). Assim, o controle também é associado às atividades de planejamento e prospecção, uma vez que essas se sustentam em resultados esperados a serem alcançados e, portanto, verificados e controlados.

Dentro do funcionamento do self, o controle pode ser um ajustamento criativo no ciclo de contato, visando a preservação do meio e de si mesmo. É mais fortemente expresso por meio das etapas de projeção, retroflexão e egotismo, considerando que o indivíduo finaliza o contato e sai do contato após ter projetado a sua ação no meio, refletido sobre as consequências da ação para si e para o mundo. Para tanto, como vimos anteriormente, o indivíduo precisa estar aware das suas necessidade e limites, bem como daquilo que o campo disponibiliza ou não para ele, a fim de discriminar claramente a figura, momento a momento.

Segundo Yontef, a retroflexão em sua forma criativa, permite a reorganização antes de uma ação e exemplifica: "resistir ao impulso de expressar raiva serve para lidar com um ambiente perigoso. Em tal situação, morder a própria língua pode ser mais funcional do que dizer algo agressivo" (Yontef, 1998, p. 29). Dessa forma, a retroflexão está próxima às ações de reconsiderar, reajustar, pensar sobre e ao próprio pensamento. A retroflexão também se aproxima de sinônimos comuns de controle, como domínio, contenção e comedimento.

A retroflexão sadia enuncia que as etapas anteriores do ciclo de contato também o são, daí podemos vislumbrar que o controle saudável, enquanto retroflexão saudável, se fundamenta em assertivas projeções das necessidades sobre o meio e da capacidade ou limitação do meio em atendê-las. A qualidade do contato no campo é condição fundamental para a sua manutenção ou para a fuga. Entendemos que a retroflexão é saudável enquanto ajustamento criativo no campo, quando ocorre em benefício da preservação e do crescimento do organismo naquele momento.

Embora as ações de planejamento e previsão possam ser mais facilmente associadas à projeção, uma vez que se impõe a expectativa de determinado resultado, desde o começo salientamos que as diferentes etapas do ciclo de contato não podem ser concebidas isoladamente, mas como um fluxo contínuo na formação de gestalten. As ações de planejamento e as condições de previsibilidade se sustentam em ações de controle e monitoramento constantes, de dados de realidade apropriados (introjetos), a partir dos quais é possível projetar resultados e criar mecanismos e processos que se orientem a alcançá-los. A base das ações de controle é a previsibilidade. Assim sendo, por mais que relacionemos o controle a uma ou outra etapa do ciclo de contato, é para o funcionamento do self no campo que estamos olhando, como uma totalidade em que interagem diferentes dimensões.

Por um lado, o controle pode ser compreendido como uma retroflexão sadia, uma contenção saudável que pode impedir uma ação impulsiva capaz de provocar transtornos ao meio e ao indivíduo. Um "domínio de si", quando a razão assenta o coração impetuoso e diz para "segurar a onda". O indivíduo se contém frente a uma avaliação das consequências no campo, ou seja, para o meio e para si mesmo. No entanto, sob certas circunstâncias, o controle parece se apresentar em demasia, e o querer controlar pode ser percebido como um ajustamento não saudável impedindo que o desconhecido, os riscos e as vulnerabilidades, irredutíveis à condição de se estar vivo sejam aceitos plenamente pelo indivíduo. Assim, o excesso de controle impede o acesso ao novo.

Refletir sobre a polaridade entre a sensação de controle e confiança nos indivíduos nos mobiliza a refletir sobre relações entre seres humanos e dos seres humanos com o mundo. Se atentarmos para os significados comuns de controle, veremos como está associado à condição de possuir domínio sobre algo ou alguém e domínio de si mesmo; à capacidade de agir com moderação e comedimento, e às ações de monitorar, fiscalizar, inspecionar, verificar, planejar e comandar, que são tidas como seus sinônimos em diferentes contextos (Ferreira,1988).

De forma contrária, os significados de confiança estão relacionados a benefício mútuo, cooperação, excesso de liberdade com alguém, demonstração de intimidade, informalidade e tendência para ver o lado bom dos acontecimentos (Ferreira, 1988). Do Latim confidentia, de confidere, confiança significa acreditar plenamente, com firmeza, com fé (Jesus, 2015). Diferentemente do controle, as relações de confiança não questionam o domínio do eu sobre o outro ou da pessoa consigo mesma, a partir do qual ações subsequentes se fazem necessárias, tais como fiscalizar e vigiar. A confiança resulta na crença de que o outro cumprirá com a parte dele e de que a própria pessoa é capaz de cumprir com a sua, abrindo a relação para a possibilidade de cooperação em benefício mútuo. A confiança significa o sentimento de quem acredita na sinceridade e lealdade de algo ou de alguém, crença em si mesmo e nas próprias qualidades.

Os poucos estudos sobre confiança disponíveis apontam para uma convergente relação entre confiança e colaboração mútua. Os estudos relacionam confiança com vulnerabilidade, incerteza e cooperação (Jesus, 2015). A definição mais comum de confiança a compreende como "intenção para aceitar a vulnerabilidade, baseada em expectativas positivas acerca do comportamento de outro (Rosseau, Stkin, Burt, & Camerer, 1998). Jesus (2015) esclarece que as situações de interdependência envolvem sempre algum risco, pois o comportamento dos outros nunca é totalmente previsível. Sendo assim, "a incerteza e o risco são propriedades intrínsecas a situações de interdependência, nas quais a confiança é essencial" (p. 13). A ainda segundo o autor, pesquisas indicam que a confiança será provavelmente mais elevada numa relação, quando o sujeito ou os membros que fazem parte dela acreditarem que ambos agirão de forma a beneficiar os interesses mútuos, mesmo quando os interesses particulares sejam divergentes.

Enquanto ajustamento saudável no campo, a confiança traz como sentido a crença na cooperação mútua entre organismo e meio, entre indivíduo e sociedade. Para Cardella (2014), não poder confiar é nunca ter vivido a experiência de encontrar lugar na vida de um outro. É estar desenraizado. Entendemos que a confiança se estabelece na aceitação da vulnerabilidade e da potência de si e do outro/do campo, no risco frente ao imprevisível. Significa um fazer com; tece-se num eu, num outro (para além de humano), e num nós integrado; movimento e relaxamento; não há domínio ou conflito. Assim, podemos conceber a sensação de integração, do contato, da integração criativa das polaridades de um Todo.

A confiança pode ser compreendida a partir dos processos de introjeção e projeção do ciclo de contato, uma vez que se baseia em crenças, habilidades e percepções positivas das condições do próprio indivíduo e do meio para enfrentar os prazeres e desafios do viver. Na confiança, acredita-se na cooperação com o outro, assumindo as certezas e os riscos da relação. A apropriação e confirmação constante dessa qualidade permite a satisfação plena no contato, da diferenciação à confluência, o relaxamento, e novamente à diferenciação. Assim, a confiança se mantém no fluxo do contato, na interdependência das partes, já que a experiência relacional se centra no sentir com o outro, no benefício mútuo, e, portanto, na autorregulação contínua da própria relação.

Até aqui, apontamos estes fenômenos em seus ajustamentos criativos no campo das relações humanas, no funcionamento do self. Ao colocarmos a nossa atenção sobre como as ações de controle se apresentam na sociedade atual, consideramos que o paradigma do controle e o paradigma da confiança se sustentam em concepções radicalmente opostas de ser humano e de mundo. Enquanto a confiança pressupõe relações de interdependência entre as partes e se baseia na concepção de campo suportivo, onde a expectativa do resultado é positiva e se funda nas crenças das próprias qualidades e das qualidades do meio; o controle se funda na fragmentação do processo em partes a serem medidas e monitoradas, portanto, as ações de controle buscam por padrão, regularidade, estabilidade e previsibilidade.

Ao observarmos como as ações de controle se manifestam e se apresentam nos bloqueios e formas de interrupção de nossos clientes, percebemos como o controle é responsável por conter o fluxo de energia corporal, produzindo tensões físicas e emocionais. O excesso de controle que encontramos na clínica e no mundo atual nos impõe a refletir sobre o controle enquanto um ajustamento disfuncional, que se sustenta na adaptação normativa e conservativa do meio e na previsibilidade do futuro.

No controle, percebe-se uma construção ficcional na busca de prever da melhor maneira possível as situações e processos, de modo a se proteger e se preservar. Parece-nos que os ajustamentos neuróticos e o excesso de desejo de controle são a própria forma de adaptação do sujeito moderno ao tecido social, uma vez que, como aponta Mesquita (2011), o "homem que se configura a partir da modernidade tem uma vivência temporal calcada na projeção futura, na reflexividade de seus atos, no refreamento de impulsos, no planejamento a longo prazo das ações e em avaliações sobre o passado" (p. 60). Curiosamente, o próprio Manual de Distúrbios e Estatístico de Transtornos Mentais 5 - (DSM 5, APA, 2013) possui um capítulo denominado Transtornos do Controle dos Impulsos.

Rotter (1966; 1990) e Levenson (1981), por sua vez, situam a análise do controle sobre a perspectiva do seu lócus interno ou externo. Utilizando escalas para a medição de crenças e de como essas crenças determinam o comportamento das pessoas, os autores afirmam determinar o grau do lócus de controle individual. O constructo lócus de controle é considerado por eles um continuum que possui uma única dimensão, sendo esta bipolar de forma que em um polo extremo encontramos a internalidade e, no outro, a externalidade. Pessoas com o lócus interno acreditam que o que podem alcançar está sob o controle de seus esforços e competências, enquanto que pessoas com lócus externo creem que o que podem alcançar depende de qualquer outro fator que não elas próprias, como por exemplo, sorte, fé, outras pessoas ou o acaso (Rodrigues & Pereira, 2007).

Se, por um lado, é sobre esse sujeito para quem o controle se apresenta como ajustamento necessário à sobrevivência em sociedade que devemos dirigir o nosso acolhimento; por outro, como gestalt terapeutas, é a sua força, para a confiança que mantém em algumas partes suas e para o suporte disponível no campo, o horizonte para a construção da confiança na relação dialógica terapeuta-cliente. Talvez o nosso papel seja o de auxiliar o cliente a perceber em quais situações ele necessita de controle e quando pode e precisa relaxar na busca de equilíbrio, pensando que ambos são necessários de igual forma na nossa existência. Aprofundar a sua necessidade de segurança constante e, por sua via polar, ampliar a percepção sobre os riscos que assume ou não sem contato. Cabe também questionar a serviço do quê ou de quem se manifesta o desejo de controle. Trazer a reflexão sobre a polaridade controle-confiança na contemporaneidade permite-nos evidenciar um lugar para a potência criativa, do ponto de vista do indivíduo e da sociedade.

 

Controle e Confiança na Clínica Gestáltica: livres reflexões sobre a atuação do terapeuta frente aos ajustamentos neuróticos

Quando o meio se impõe e, repetida ou violentamente, frustra a manifestação da necessidade do indivíduo, ela passa a ficar "esquecida" para o organismo. Ao invés da fluidez no ciclo de contato, o organismo fica interrompido, manifestando, cristalizadamente, o ajustamento que "funcionou", aquele que foi utilizado na primeira ocasião. Assim, muitas vezes o indivíduo não consegue decidir por si mesmo quando contatar e quando se afastar em função das vivências inacabadas da sua vida, ou seja, das situações que ficaram abertas e que tendem a retornar buscando um fechamento adequado. Tais situações perturbaram o sentido de orientação do sujeito e ele passa a manipular o meio buscando um suporte e orientação externa, visando a satisfação de falsas necessidades. Nesta condição, o organismo não flui de maneira funcional. Rígido, age interrompendo o contato com o meio, de modo a preservar a sua fantasia de controle e segurança (Perls, 2012).

Neste sentido, Perls afirma que o neurótico é o Homem sobre quem a sociedade influi demasiadamente. "Sua neurose é uma manobra defensiva para protege-lo contra a amaça de ser barrado por um mundo esmagador" (Perls, 2012, p.45). A colocação de Perls traz a irredutibilidade da relação organismo e meio, e da relevância do campo para a compreensão dos ajustamentos neuróticos como produto de uma sociedade que reproduz e reafirma a opressão, a violência, a interrupção do contato, o silenciamento e a contenção das emoções e dos afetos.

O ajustamento neurótico ou disfuncional se caracteriza pela interrupção do contato, entre a excitação e a formação da figura. Para Perls (2012), todos os distúrbios neuróticos surgem da incapacidade do indivíduo encontrar e manter o equilíbrio adequado entre ele e o resto do mundo. Não consegue decidir quando participar e quando fugir, e o ajustamento é possível tanto no contato como na fuga do mesmo. De acordo com o autor, "para um neurótico, 'autocontrole' é uma necessidade existencial" (Perls, 2012, p. 58), enquanto que para outros é a auto expressão.

De modo geral, o que produz a interrupção na satisfação das necessidades são as reiteradas vivências de impossibilidade relacionais no campo, a partir das quais o organismo aprende uma forma fixa, rígida ou alargada, de sobrevivência emocional, que passa a ser repetida cotidianamente mesmo quando o meio não apresenta qualquer perigo real. O fluxo figura e fundo se enrijece e o novo deixa de ser assimilado já que as experiências atuais, o aqui-e-agora, o sentir é constantemente refutado.

Quando esses introjetos não são totalmente assimilados pelo organismo ocorre a inversão do afeto, sendo que o afeto que vale é o do meio; ou seja, a satisfação primordial é impedida em busca da adequação ao meio. Assim, na base da ação de controle disfuncional há um conjunto de introjetos mal assimilados que impedem o excitamento e fazem com que a sua experiência em diferentes contextos provoque ansiedade. O excitamento do/no corpo é, então, reprimido e adota-se o comportamento que se considera mais adequado ao momento.

A agressividade provocada pela inibição do excitamento gera o medo de destruir o meio ou de ser destruído por ele. Como não consegue lidar com o excitamento, ou melhor, com o conflito que o excitamento provoca na fronteira de contato com o meio, o organismo o contém. A energia volta para o próprio corpo, retroflexão, buscando evitar a exposição. O corpo se tenciona, a energia não flui ou flui exageradamente em alguma parte do corpo, a respiração encurta. A longo prazo, o controle em demasia se apresenta em sua polaridade radicalmente oposta, o descontrole: a síndrome do pânico e os transtornos de ansiedade são exemplos mais comuns do ajustamento disfuncional do controle na clínica.

Sob uma outra perspectiva, é importante elucidar que a agressividade guarda uma conotação de iniciativa, de um meio de renovação. Uma das grandes ênfases dadas por Perls (1997) reside justamente na compreensão de que a agressividade carrega um aspecto saudável, no sentido de ir em direção a; de um movimento que "destrói", desestrutura um "todo em fragmentos, para assimilá-los como partes de um novo todo (p. 148). Assim, há assimilação, crescimento!

Se o medo era de destruir o meio, a energia será usada para danificar-se, interromper-se. Se o medo era de ser destruído, a energia buscará de forma indireta danificar o meio. Por meio das ações de controle, o cliente costuma se interromper, a emoção é contida, se quer evitar o envolvimento, por fim, a energia é usada para conter o excitamento. Sua sensação diante de um iminente conflito é de que haverá destruição, desintegração, algum tipo de desastre, e assim ele volta as energias contra si próprio, o único objeto "seguro" disponível no campo (Alvim, Bomben, & Carvalho, 2010).

Na clínica gestáltica, observamos o controle como ajustamento disfuncional no campo em ajustamentos retroflexivos como descrito acima, e, também, nos ajustamentos disfuncionais egotistas onde o cliente apresenta uma narrativa de si na qual se protagoniza dominando e controlando o meio. Silva, Baptista e Alvim (2015), apontam que a impossibilidade de se exercer esse ato de entrega é chamada pela literatura de egotismo. A pessoa está fixada na sua forma de fazer e ver, ou então excessivamente preocupada consigo. O novo ou o imprevisível, ou seja, o excitamento é tido como ameaçador e provoca ansiedade. Os riscos não são assumidos e a previsibilidade dita a regra. Assim, o cliente se isola ou isola contato com o meio, não estando aware de suas necessidades reais e, uma vez que introjetou as necessidades do meio, controla-o continuamente para prever as consequências e não ser frustrado. Projetando o futuro, avaliando o passado, ausente do presente, o sujeito moderno que se apresenta em nossos consultórios, geralmente, não sabe o que sente, controla as emoções e racionaliza as próprias experiências. Neste sentido, o desejo de controlar se relaciona com um menor contato conosco e com o mundo (Perls, 1974).

O controle em demasia aparece como ajustamento subjacente a todo e qualquer ajustamento neurótico, enquanto ação de bloqueio na fronteira de contato no campo. A racionalização é forma mais evidente de o controle se apresentar no campo relacional do cliente, onde, na retroflexão, ressalta-se o individualismo e o isolamento, já que o outro é visto com desconfiança (Alvim, Bomben & Carvalho, 2010). Neste sentido, observar como o cliente controla e se interrompe, permite-nos identificar como lida com as suas inseguranças e como se isola no campo e, por consequência, onde necessitamos ser o suporte e o convite para a conexão. Fundamental observar as contrações musculares e os movimentos de contenção do cliente, pois eles evidenciam o controle, ou seja, a contenção do desfrute do contato em sua plenitude com a situação sobre a qual narra ou enfrenta.

As narrativas do controle na clínica são as mais diversas e todos nós terapeutas encontramos clientes que controlam demasiadamente alguns aspectos das suas vidas, algumas partes de seus corpos, alguns prazeres pessoais. No ajustamento neurótico, a sensação de confiança é baixa ou se sustenta na perspectiva de controle do meio, em excesso de previsibilidade e estabilidade. Pode haver o sentimento de segurança em relação a prever e planejar o futuro adequando-se às exigências contemporâneas. Contudo, diante do imprevisível, do inusitado, sucumbe à própria espontaneidade, contendo-se e repetindo padrões de ajustamento não saudáveis. Com a contenção busca-se evitar o conflito, pacificar o meio e apagar os distintos interesses em cena. Um corpo dócil ou dormente não é, porém, criativo.

Se o controle em demasia é mecanismo que impede a espontaneidade, qual será o lugar da confiança na relação terapeuta-cliente? Seriam o acolhimento e a confiança capazes de promover um campo saudável e suportes necessários para que o cliente reconheça as suas necessidades e busque a sua plena satisfação enquanto individualidade no mundo?

Entendemos que o terapeuta tem um papel essencial no acolhimento e espelhamento da dor trazida e experienciada pelo cliente. Formas manipulativas, figuras cristalizadas, introjeções disfuncionais podem ser entendidos como comportamentos que mantiveram nossos clientes "seguros". Desta forma, é importante que o terapeuta se sinta apto e disponível para confiar em si, no campo e no potencial de seu cliente.

O objetivo da terapia é trazer o novo, ainda que os processos de awareness provoquem a revivência das situações inacabadas e o vazio da excitação reprimida. Em terapia se quer ampliar a percepção que o cliente tem de si mesmo (Perls, 2012). Acredita-se que o resgate do sentir, da sensação provocada pelo excitamento e do prazer consequente à plena satisfação do desejo provoquem a retomada da confiança no corpo, enquanto corpo potente de desejo e potente em sua autorrealização.

Como o controle em excesso provoca a dormência dos sentidos, num jogo intenso de projeções em que o sujeito se projeta e projeta o futuro a todo momento, incapaz de estar no presente, de estar no sentir; talvez seja a confiança no campo psicoterapêutico, o processo de regulação entre eu e o outro, entre o sentir e o refletir, que empodera terapeuta e cliente para o crescimento mútuo.

Na retroflexão, o indivíduo controla uma vez que é incapaz de confiar que a expressão do seu desejo no campo não destruirá o meio ou será pelo meio destruída. No egotismo, não se abre para o contato e para a surpresa do encontro. Como afirmam Silva, Baptista e Alvim (2015), "o self, ao se enrijecer e evitando se entregar, não consegue agir em sua dimensão de espontaneidade e criatividade'" (2015, p. 196).

Talvez, como sutilmente sinaliza Cardella (2014), a confiança seja a configuração de um lugar em si, um lugar com raízes, a partir do qual a união e a diferenciação podem ser plenamente experienciadas, e o voar seja o vislumbre de um futuro com esperança. Como os significados de confiança sugerem, é a crença na qualidade do campo em se autorregular (na vontade de todo o Universo de promover o crescimento da vida) na qualidade das partes que interagem entre si e tecem um fazer com, um diálogo existencial para o qual nenhuma parte é suprimida e todas as partes podem ser aceitas e integradas, inclusive o inesperado, o imprevisível, a parte vulnerável de cada um.

Ao abordarmos a confiança na clínica em Gestalt-terapia, inevitavelmente relacionamos os significados comuns de confiança aos princípios da relação dialógica, um dos seus principais pilares epistemológicos, baseado na obra de Buber (2001). Os sentidos de confiança presumem uma relação Eu-Tu, diferentemente do controle onde podemos conjeturar o predomínio da relação Eu-Isso, o mundo apropriado como "objeto do controle".

Para Hycner e Jacobs (1997), é o diálogo genuíno condição para o aprofundamento maior das questões do cliente. O cliente é tratado como Tu, sendo considerado em sua singularidade e alteridade. Para os autores, o objetivo do trabalho em Gestalt-terapia é a restauração do diálogo e acreditam que é a relação terapeuta-cliente, o processo de encontrarmos um ao outro, o componente indispensável para a cura. Assim, podemos supor que a confiança é resultado de um lugar humano construído na relação dialógica terapeuta-cliente, que permite a ambos mobilizar uma energia criativa para o engajamento e comprometimento com o próprio bem-estar.

Todo diálogo é contato e é justamente no "entre", para além do visível e do palpável das relações, que podemos trabalhar, enquanto terapeutas, na ampliação da awareness do cliente e na diferenciação do eu e não eu. Nosso senso de união, paradoxalmente, depende de um elevado senso de separação, de modo que é no equilíbrio entre as polaridades onde encontramos a chave para um viver saudável (Hycner &Jacobs,1997).

Assim, entendemos que o gestalt terapeuta atua na busca do equilíbro entre controle e confiança, bem como de outras polaridades que podem ser salientadas a partir desse tema, tais como: controle x impulsividade, tensão x relaxamento, entre várias possíveis. É preciso refletir, ainda, que não atua apenas em relação ao cliente, mas também em relação a si mesmo. Quais as implicações no campo terapeuta-cliente quando é o terapeuta quem busca controlar demasiadamente a sessão a partir de certas expectativas de resultado? Ou quando o terapeuta não confia nas suas próprias percepções? Daí, a importância destas reflexões a nós terapeutas: como se dá o ajustamento criativo entre controle e confiança no campo de nossas experiências clínicas?

 

Considerações Finais: confiar é fiar com, tecendo um "nós"

Inegavelmente, viver é um convite à mudança, à dança da impermanência e da vacuidade. À capacidade de os seres humanos lidarem com as transformações do meio, que provocam satisfações e frustrações autorregulando-se, chamamos em Gestalt-terapia de ajustamento criativo. A autorregulação é um processo holístico, que age no ser humano, mas também em outros processos dinâmicos do Universo. Não se trata de uma simples adaptação ao meio, de aceitar as imposições do ambiente. Por meio da criatividade, do ajustamento saudável, o indivíduo é capaz de usar soluções antigas, presentes e disponíveis para solucionar novos problemas, ou buscar novas respostas a problemas já conhecidos. Encontrando no contato com o meio maneiras criativas e espontâneas para realizar-se em um viver pleno, saudável e funcional (Cardella, 2014).

O cliente virá em busca de acolhimento e compreensão, e a abertura do terapeuta para acolher glórias e, também, dores é a base para a confiança no processo psicoterapêutico. E a confiança é que permite que os sofrimentos e as vulnerabilidades encontrem um espaço adequado e honesto nessa relação, para que o cliente explore aspectos sombrios de sua personalidade e dos seus afetos, as introjeções mais profundas, os valores mais enraizados e mais estruturantes das suas escolhas diárias, das escolhas que o levam ao sofrimento, às idealizações e fantasias. Sem confiança é possível que pouco efeito terá a terapia para o cliente e que o vínculo terapêutico não se estabeleça.

Apoiar o cliente no que ele é se compara a estender uma corda a quem se aproxima do abismo, quando na verdade é a ponte por meio da qual o cliente aprende a identificar e utilizar os seus próprios recursos de sobrevivência, construídos e elaborados a partir do potencial e da criatividade que traz consigo mesmo, da manifestação plena do seu pulsar no mundo.

Acreditamos ser papel do terapeuta se despir das aparências, se desnudar das suas convicções e certezas, reconhecer as suas fragilidades e forças, para se abrir amorosamente (de peito aberto) ao imprevisível encontro com a alteridade, com a diferença e com a sabedoria que vem do outro. De acordo com Robine (2005), o suporte começa com a acolhida e o reconhecimento daquilo que está presente na experiência do contato na fronteira, o que significa dizer, com aquilo que está, do modo como está e não do modo como eu gostaria que estivesse ou fosse.

Se a essência da prática psicoterapêutica é evocar fortemente a tensão entre polaridades opostas (Hycner & Jacobs, 1997), que a confiança seja trazida como fundo e figura no campo terapeuta-cliente, de modo a equilibrar o demasiado desejo de controle de ambos, permitindo o desfrute pleno da relação a cada instante. Isso quer dizer permitir a experiência do presente, significa presença, promover a awareness do campo a partir da integração do self e da fluidez no ciclo de contato.

Pensamos que a confiança é também a base de fé existente na concepção do ajustamento criativo e da autorregulação organísmica, na capacidade que o organismo tem de encontrar meios eficientes de satisfazer as suas necessidades, ajustando-se ao imprevisível. Querer controlar o caos demanda muita energia, muito esforço. Entregar-se, acreditando firmemente que estará lá, presente e que poderá se guiar pelas próprias sensações e experiências, é uma forma que pode ser aprendida na relação com o terapeuta.

Acreditamos ainda, que a sensação de confiança resulta de introjeções e projeções positivas do/no campo, cuja manutenção e continuidade possibilitam a sensação de relaxamento, reflete-se em espontaneidade, fluidez no fluxo figura e fundo, na diferenciação organismo/meio, e, consequentemente, novidade na relação terapeuta-cliente. Com confiança, toda a vida se move e se lança abertamente às novas possibilidades de se expandir e se manifestar, e, como afirma Bergson (2005), "toda criação significa, antes de tudo, emoção".

Por fim, entendemos que são inúmeros os ajustamentos possíveis entre o controle e confiança na clínica, tanto quanto diversos são os terapeutas e seus clientes. Cabe ao terapeuta a importância de imprimir um olhar de inclusão e não o da exclusão, ou seja, se orientar para a busca do equilíbrio entre as polaridades. A relação entre controle e confiança pode ser bem representada pela metáfora da flecha ou pelo "paradoxo do arqueiro". A despeito do que o olho nu poderia sugerir, ao ser disparada, uma flecha viaja em direção ao alvo flexionando sua haste de um lado para outro. Isso ocorre devido às forças de tensão que agem na flecha no momento da largada, bem como do próprio movimento lateral da corda.

Para a flecha atingir o alvo corretamente, o arqueiro necessita mirar um ponto lateral ao centro do alvo, tensionar adequadamente a corda e soltar. É justamente na dança entre tensão e relaxamento, entre contenção e entrega, discriminando e orientando a sua percepção no campo, e regulando a sua intensidade com sabedoria, que o arqueiro pode atingir o centro do alvo e se satisfazer plenamente com o resultado da sua ação. É a tensão dada à corda que regula a intensidade da flecha em direção ao alvo.

 

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Recebido em 30.10.2020
Primeira decisão editorial em 29.03.2021
Aceito em 19.06.2021

 

 

1 Escolhemos a definição aware utilizada por Alvim (2014), baseada em Robine (2006), que situa aware como o saber do sentir, o saber da experiência; o fluxo da experiência aqui e agora que a partir do sentir e do excitamento presente do corpo orienta a formação da gestalt, produzindo um saber tácito do campo.

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