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Revista da Abordagem Gestáltica

Print version ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.28 no.1 Goiânia Jan./Apr. 2022

https://doi.org/10.18065/2022v28n1.8 

ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

 

Entre a salvação e a psicopatologia - o conflito de interpretações na experiência de uma paciente em pronto atendimento psiquiátrico

 

In between salvation and psychopathology - the conflict of interpretations in a patient's experience in a psychiatric emergency room

 

Entre la salvación y la psicopatología - el conflicto de interpretaciones en la experiencia de una paciente en pronta atención psiquiátrica

 

 

Paulo Eduardo Rodrigues Alves Evangelista

Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Sub-coordenador do Curso de Especialização em Psicologia Clínica: Gestalt-Terapia e Análise Existencial da UFMG. Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP, Mestre em Filosofia e graduado em Psicologia pela PUC-SP. Email: paulo.e.evangelista@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo parte da situação de chegada de uma mulher ao pronto atendimento psiquiátrico para considerar o conflito de interpretações que se abre entre o contexto religioso, no qual se articula o gesto da protagonista para sua família, e o contexto psiquiátrico, que reconhece no comportamento um surto psicótico. Para isso, inicia indicando o objetivo da Psicopatologia como ciência autônoma, como definida por Jaspers. Com apoio da distinção entre psicologia explicativa e descritiva, de Dilthey, mostra como é a primeira que vige na Psicopatologia moderna. Considerando a hermenêutica como processo de desvelamento de sentido, o artigo mostra a oposição de dois horizontes hermenêuticos: o fenômeno psicopatológico, para a psiquiatria, e o gesto purificador, no contexto hermenêutico religioso indicado pela família da protagonista. Ocorre um conflito de interpretações, como descrito por Ricouer. Por fim, recorrendo à Daseinsanalyse e à condição humana como ter-que-ser, dá um passo na direção de compreender o duplo sentido do gesto: como um modo de expiação de culpa, concomitantemente respondendo à condição humana de ser responsável por seu ser.

Palavras-chave: Hermenêutica; Daseinsanalyse; Psicologia Fenomenológica; Psicopatologia


ABSTRACT

This article departs from the situation of a woman's arrival in a psychiatric emergency room to consider the conflict of interpretations that opens up between the religious context, in which the protagonist's gesture is articulated to her family, and the psychiatric context, which recognizes the behavior as a psychotic episode. To this end, it begins by indicating the objective of Psychopathology as an autonomous science, as defined by Jaspers. With the support of Dilthey's distinction between explanatory and descriptive psychology, it shows how modern psychopathology is explanatory. Considering hermeneutics as a process of unveiling meaning, the article shows the opposition of two hermeneutic horizons: the psychopathological phenomenon, for psychiatry, and the purifying gesture, in the religious hermeneutic context indicated by the protagonist's family. There is a conflict of interpretations, as described by Ricouer. Finally, using Daseinsanalyse and the understanding of human condition as having-to-be, it takes a step towards understanding the double meaning of the gesture: as a mode of atonement of guilt, concomitantly responding to the human condition of being responsible for its being.

Keywords: Hermeneutics; Daseinsanalysis; Phenomenological Psychology; Psychopathology


RESUMEN

Este artículo se aparta de la situación de llegada de una mujer a la sala de urgencias psiquiátricas para considerar el conflicto de interpretaciones que se abre entre el contexto religioso, en el que se articula el gesto de la protagonista a su familia, y el contexto psiquiátrico, que reconoce en el comportamiento un episodio psicótico. Con este fin, comienza indicando el objetivo de la Psicopatología como una ciencia autónoma, tal como la define Jaspers. Con el apoyo de la distinción de Dilthey entre psicología explicativa y descriptiva, muestra cómo la psicopatología moderna es expllicativa. Considerando la hermenéutica como un proceso de descubrimiento de significado, el artículo muestra la oposición de dos horizontes hermenéuticos: el fenómeno psicopatológico de la psiquiatría y el gesto purificador, en el contexto religioso hermenéutico indicado por la familia del protagonista. Hay un conflicto de interpretaciones, como lo describe Ricouer. Por último, utilizando Daseinsanalyse y la condición humana como tener-ser, da un paso hacia la comprensión del doble significado del gesto: como un modo de expiación de la culpa, respondiendo concomitantemente a la condición humana de ser responsable de su ser.

Palavras-clave: Hermenéutica; Daseinsanalyse; Psicología fenomenológica; Psicopatología


 

 

Introdução

Quando eu ainda era aluno na graduação em Psicologia, tive a oportunidade de fazer um breve estágio num hospital psiquiátrico em São Paulo. Numa tarde nesse período, fiquei sabendo de um dos psiquiatras residentes que todos os profissionais da enfermaria estavam embevecidos com uma história recém-acontecida. Tratava-se de Lázara, uma senhora em torno dos 60 anos de idade encaminhada pelo pronto socorro do hospital. Ela fora trazida pelos filhos com graves queimaduras nas mãos. Foi atendida pelos médicos plantonistas, que, ao indagarem o que havia acontecido, ouviram o seguinte relato dos filhos: Lázara havia intencionalmente acendido duas bocas do fogão e as agarrado firmemente, até não aguentar mais. Enquanto fazia isso, rezava em voz alta. Os filhos presenciaram esse ato e a fotografaram enquanto segurava o fogo aceso e depois, com as mãos queimadas. Só então a levaram ao hospital para tratar as queimaduras. Segundo eles, ela era uma mulher muito devota, frequentadora assídua de uma igreja cristã, muito querida e atuante na comunidade. Enquanto queimava as mãos, rezava em voz alta e gritava: "Purificai, Senhor!"

Os médicos ficaram perplexos ao ouvirem que os filhos haviam deixado isso acontecer, mas os filhos não compartilhavam a mesma perplexidade. A única preocupação deles, como a da própria senhora, era com as queimaduras, que agora doíam e a impediriam de realizar suas tarefas domésticas e participar das atividades na igreja que frequentava. Ou seja, não identificavam nada "estranho" no gesto de acender o fogão e segurar as bocas acesas até não aguentar mais.

Ao ouvir esse relato, dificilmente alguém deixaria de pensar tal como o senso comum que "ninguém em sã consciência" faria algo assim. O mesmo senso comum nos diria que Lázara surtou e que os filhos também estavam em surto por assistirem a mãe queimar as mãos e fotografarem ao invés interferirem. Se sim, será possível alguma compreensão desse ocorrido? Qual?

Os médicos plantonistas do pronto socorro identificaram como um surto psicótico e encaminharam Lázara à psiquiatria do hospital. Talvez nem precisassem ter estudado psiquiatria para identificar a necessidade de tratamento psiquiátrico, pois o senso comum amparava essa interpretação.

O psiquiatra de plantão recebeu a família e conseguiu levantar algumas informações mais. A família explicou a ele que estava em pecado, impura, e que a única redenção possível era este gesto da mãe, que, bravamente, sacrificava-se por todos eles. Ninguém mais tinha a coragem e a força de vontade da mãe e eles estavam imensamente agradecidos pelo que ela tinha feito por eles. Por isso, eles assistiram enquanto ela os purificava e fotografaram seu martírio. A única preocupação agora era com a dor das queimaduras.

O psiquiatra propôs a internação da mãe, mas eles impediram. Propôs, então, que voltassem para consultas, mas eles alegaram dificuldades e quanto à distância do hospital. Por fim, após muita insistência, aceitaram agendar uma consulta psiquiátrica para alguns dias depois, mas nunca apareceram e a equipe não conseguiu mais os encontrar.

Como entender tudo isso? Como entender o vivido por Lázara? Seria muito importante ouvir a própria autora a respeito de seu gesto, mas isso não foi possível. A ausência do relato de Lázara não impede, entretanto, que se busque uma interpretação. A seguir, a análise percorrerá a interpretação psiquiátrica da situação e, em seguida, recorrerá às poucas informações apresentadas pela família para propor uma interpretação do gesto mais afinada com o mundo de Lázara. Ou seja, a proposta é revelar sentidos do gesto da senhora à luz dos dois contextos hermenêuticos que se encontram na situação que testemunhei. Estas interpretações são, portanto, inferências baseadas nos fenômenos e na literatura psicopatológica fenomenológica.

O primeiro acesso a essa experiência recorre à interpretação mais comum e cotidiana no hospital e, quiçá, no nosso horizonte histórico de que estamos diante de um surto psiquiátrico. Interpretar assim a vivência de Lázara é inscrevê-la num contexto médico-científico, ou seja, buscar nesse contexto um sentido para esse vivido. Em Ser e tempo, Heidegger (1927/2012, p. 57) propõe que cada ciência lida com uma região ôntica, um "domínio-de-coisa" demarcado e fixado, previamente aberto pela interpretação pré-científica do âmbito no qual o investigado aparece. A psiquiatria surge tendo por objetivo a prevenção, o tratamento e a assistência aos então chamados doentes mentais. O movimento fenomenológico na psiquiatria, iniciado por Binswanger, esforçar-se-á para acentuar que seu objeto é o humano que adoece e não a doença "em si". Mas não é de acordo com a proposta de Binswanger que a psiquiatria moderna se desenvolve. Pelo contrário, torna-se uma investigação cada vez mais especializada das doenças "em si", culminando nos manuais diagnósticos CID e DSM.

A história deste modelo de diagnóstico psicopatológico é recente, da segunda metade do século XIX. É fruto do esforço de psicopatologistas de fundar a Psicopatologia como ciência. Para Jaspers, que foi um dos fundadores desse ramo científico que deveria servir de apoio para o trabalho clínico dos psiquiatras,

[...] essa ciência é em si mesma o objetivo. Somente busca conhecer, caracterizar e analisar não o homem particular e, sim, o homem em geral. Não pergunta sobre a utilidade de sua ciência como meio auxiliar - isso se estabelecerá por si mesmo com o progresso dos resultados - senão, preocupar-se-á de reconhecimentos, de verdades, do obrigatoriamente demonstrável ou do claramente distinguível. (Jaspers, 1942/1977, p. 16)

Adiante, ele define como objeto da Psicopatologia:

[...] o acontecer anímico realmente consciente. Queremos saber o que e como experienciam os seres humanos, queremos conhecer a dimensão das realidades anímicas. E não somente o vivenciar (erleben) dos homens, pois que também queremos investigar as condições e as causas das quais depende, as relações em que está e as maneiras como se expressa objetivamente. Todavia, não é nosso objetivo todo acontecimento psíquico, senão somente o 'patológico'." (Jaspers, 1942/1977, p. 16-7)

Entre esse impulso inicial e os DSMs acontece uma história de decisões médicas e filosóficas que privilegiam um modelo descritivo e operativo de síndromes (Fulford, 2016), menosprezando especificidades étnicas e culturais e modelos teóricos (notadamente a psicanálise) para maior abrangência demográfica. Ou seja, a psiquiatria diante de Lázara não se pergunta "quem é esta mulher?", mas, sim, "qual é sua doença?".

O esforço para tornar a psicopatologia uma ciência exigiu que seguisse os ditames positivistas de que os fenômenos estudados sejam explicados causalmente. Conhecer algo, neste modelo, significa formular leis gerais de causalidade. É o princípio que rege a Física, por exemplo. Sabendo as causas de um fenômeno torna possível produzir novos resultados. Sendo assim, a nascente Psiquiatria moderna precisava formular explicações gerais para o surgimento das psicopatologias. De posse desse conhecimento, seria possível tratá-las.

É consenso entre os psiquiatras do final do século XIX e começo do século XX que a causa última das psicopatologias é orgânica. Há correntes mais organicistas que atribuem os fenômenos psicopatológicos estritamente a alguma alteração cerebral. Outras também acreditam num substrato orgânico, mas defendem uma causação psíquica para esses fenômenos. Ou seja, numa perspectiva organicista, queimar as mãos, rezar e conversar com Jesus são meros efeitos de uma alteração no cérebro. Assim, a pergunta psiquiátrica diante de Lázara é: "Por que ela age assim?"

 

Psicopatologia explicativa

O modelo hipotético dedutivo causal funciona assim: diante de um fenômeno presente, busca causas antecedentes. O direcionamento do olhar para essas causas depende de uma teoria explicativa. Ao mesmo tempo, o olhar explicativo-causal desfoca do fenômeno manifesto, dirigindo-se a algo suposto que esteja ali. O que atualmente aparece - colocar a mão no fogo, salvar a família do pecado etc. - não é levado em consideração. Parte-se desses fenômenos manifestos para ultrapassá-los em direção a supostas causas anteriores: um distúrbio no funcionamento cerebral ou psíquico. Nessa epistemologia científico-natural já descrita por Dilthey (1883/2010),

[...] os sujeitos com os quais o pensamento articula necessariamente as predições por meio das quais todo conhecimento ocorre são elementos que só são conquistados hipoteticamente por meio de uma decomposição da realidade exterior, de uma destruição e de um esfacelamento das coisas (p. 42).

Ou seja, a realidade é decomposta em partes menores num processo de abstração para ser posteriormente reconstruída a partir de uma teoria causal. Com Lázara, isso implica decompor a situação que vivencia para em seguida, recorrendo a uma teoria, explicar por que ela age assim. As teorias psiquiátricas do começo do século XX infeririam no comportamento da senhora uma teoria de causalidade orgânica ou psíquica que o destrói, enquanto gesto para, em seguida, reconstruí-lo como mero efeito. Ou seja, seu comportamento é sintoma de algo distinto (distúrbio somático ou psíquico).

É com esse ânimo que a Psicopatologia vai desenvolvendo métodos mais eficazes de diagnóstico. Eficiência significa rapidez. O DSM está atualmente na quinta revisão. Cada transtorno ali descrito está decomposto em partículas menores - os sintomas. Cabe ao psicopatologista identificar os sintomas que o paciente apresenta para encontrar o transtorno caracterizado por esse agrupamento. O diagnóstico permite uma intervenção correspondente. Ou seja, se o psiquiatra diagnostica um quadro de ansiedade, trata com ansiolíticos; se é depressão, com antidepressivos etc. Diante de Lázara, o trabalho de diagnóstico de um transtorno mental passa pela identificação de delírios religiosos, alucinações auditivas e autolesão. A questão que se colocaria é do diagnóstico diferencial: será um transtorno da personalidade borderline (F60.3), um transtorno delirante (F22), um transtorno psicótico breve (F23) ou transtorno da personalidade esquizotípica (F21)?

Este eficiente modelo científico-natural de lida com a psicopatologia apoia-se, portanto, num paradigma que o psiquiatra Messas (2008, p. 217) chama de "determinismo absoluto". Ao passo que dos séculos XVIII a meados do século XX cabia à Psicopatologia investigar esta forma de sofrimento humano e explorar possibilidades de cuidar do doente, a descoberta dos barbitúricos (1950's) inaugura o arsenal de psicofármacos e potencializa a intervenção psiquiátrica. Atualmente, esse paradigma restringe a função do psicopatologista a identificar quase que mecanicamente os sintomas e prescrever o tratamento adequado para reverter a situação (Messas, 2008)1. O psiquiatra neste contexto identificaria os sintomas de Lázara, proporia um diagnóstico (que traz consigo uma teoria explicativo-causal organicista), medicaria e esperaria para saber se o remédio corrigiu o distúrbio no funcionamento cerebral, fazendo com que ela deixe de agir dessa maneira. Por mais eficiente que este modelo possa ser (e é), o que o torna problemático é que passa longe de compreender o que Lázara vivenciava enquanto acendia a chama do fogão, queimava suas mãos e seus filhos a assistiam. Como afirma Messas (2008, p.213), "... a consequência mais dramática da limitação do fator humano reside na expulsão da hermenêutica do campo da psiquiatria..." A identificação de sintomas, isto é, de elementos observáveis por observador externo, elimina o trabalho de desocultação dos sentidos articulados nos gestos humanos. A importante contribuição de Freud para a psicopatologia foi a reinterpretação das produções psíquicas sonho, religião e sintoma e a renovação da psiquiatria do século XX. Até o fim do século XIX, os sintomas de distúrbios mentais eram vistos como meros efeitos de desordens orgânicas sem significação própria. Freud mostrou que eles têm, sim, uma significação própria que pode ser descoberta. Os sintomas são "manifestação de outra coisa que aflora no sensível: a expressão de um fundo que, podemos dizer, também se mostra e oculta." (Ricouer, 1977, p. 18) Os sintomas têm, portanto, um "duplo sentido" que se funda na condição linguística (logos) do ser humano. Tendo o sintoma um sentido oculto, ele pode ser decifrado. Essa decifração é tarefa da hermenêutica psicanalítica (Freud) e daseinsanalítica (Boss, Binswanger). A chave interpretativa de Freud, entretanto, indicava a realização de um desejo inconsciente como função do sintoma. A necessidade de embasar suas descobertas levou-o a explicar causalmente todo comportamento, inclusive o mecanismo de repressão do desejo que permanece alojado no Inconsciente. As relações afetivas da primeira infância são indicadas como determinantes causais de todas as experiências subsequentes. Ao passo que identificava um "de onde" e um "para que" dos sintomas, o primeiro foi enfatizado, pois, com isso, garantia-se a legitimidade científica da psicanálise, que, como toda ciência natural, mostrava-se capaz de explicar por que um sintoma acontece. Mas a direção, o sentido do gesto, articula-se com o "para que". Todos os comportamentos humanos são motivados.

 

Hermenêutica

Que todo comportamento humano tem um sentido e uma direção, ou seja, é um gesto, é o que desde Freud se defende na psiquiatria. Boss colocou a questão do gesto mais claramente à luz da fenomenologia existencial de Heidegger, apontando a preocupação/cuidado (Sorge) como ser do Dasein, ou seja, em toda possibilidade ôntico-existencial o ser-aí age em virtude de si. Esse como que fazer-se permanece oculto pelo que se faz, velando para o Dasein seu ter-que-ser (Heidegger, 1927/2012). Ao passo que na analítica existenciária de Ser e tempo o sentido da tarefa é arrancar da ocultação o ser do ser-aí, na Daseinsanalyse é arrancar da ocultação o sentido dos gestos enquanto constituidores de uma biografia2, aquilo que Binswanger chama de "projeto-de-mundo".

Hermenêutica significa 'interpretação'. A palavra relaciona-se ao deus grego Hermes, mensageiro dos deuses. Hermeneuta é alguém que informa o que outro quer ou pensa. Em Aristóteles, o termo hermeneuen aparece como sentido da fala (logos): fazer com que algo apareça. No século XVII aparece na filosofia como teoria da interpretação da Bíblia, mas logo seu escopo se estende a todo texto. No século XIX está ligado a interpretação de sentido. Dilthey a propõe como método de acesso à vivência dos povos históricos (Heidegger, 1923/2012; Schmidt, 2014).

A hermenêutica é o método fenomenológico de arrancar o ser de sua ocultação dos entes. No contexto das práticas psi, é arrancar o sentido oculto naquilo que aparece. Já era assim em Freud, mas ele carecia da fenomenologia e da compreensão da existência como "ser-adiantado-em-relação-a-si-em-um-mundo" (Heidegger, 1927/2012, p. 537), assumindo, em seu lugar, a concepção tradicional de animal racional, psique-soma. A Daseinsanalyse assume que o ser da existência é preocupação/cuidado (Sorge), de modo que todo comportamento é um gesto apoiado num sentido que não se mostra imediatamente, mas pode ser revelado pela hermenêutica.

Seguindo a formulação de Freud, todo sintoma tem um "de onde" e um "para quê", ou seja, uma causa e uma finalidade3. Perguntar pela causa (por que?) é investigar o "de onde". A psiquiatria do início do século XX respondia essa pergunta dizendo que os sintomas vêm de distúrbios orgânicos e não atentava para o "para quê". Para Freud (1917/2014), o "de onde" eram as experiências originais que ocasionaram o distúrbio psíquico e que podiam ser redescobertas pelo método psicanalítico. O "para quê" era igualmente investigado, isto é, qual e como era a experiência inconscientemente realizada pelo sintoma.

O que diferencia a hermenêutica psicanalítica é que ela é hipotético-dedutiva, isto é, ela recorre a um modelo de funcionamento psíquico e o interpõe ao fenômeno clínico, desvelando um sentido indicado pela teoria. Na psicanálise, todo sintoma é expressão de desejo inconsciente. Ou seja, diante da situação de Lázara, a resposta para a pergunta "por que?", "o que causa estes sintomas?" já estaria previamente delineada pela compreensão de que no passado, principalmente na infância, ela teria vivido situações moralmente insuportáveis, talvez impuras, na trama da triangulação edipiana e estaria hoje se queimando para se punir, quiçá se destruir (suicídio). A hermenêutica psicanalítica vai além do imediatamente manifesto, pois o comportamento da senhora deixa de ser somente efeito sem sentido de distúrbios cerebrais, mas o faz por meio de um modelo teórico: o Inconsciente.

No campo das ciências psi, hermenêutica significa o desvelamento de sentido do gesto humano. Quando Messas (2008, p. 213) afirma que "... a consequência mais dramática da limitação do fator humano reside na expulsão da hermenêutica do campo da psiquiatria...", está dizendo que a busca por uma compreensão do sentido do comportamento psicopatológico não tem mais lugar na psicopatologia. Quando um psicopatologista atenta somente para os sintomas e toma-os como sinais de um distúrbio orgânico ou psíquico que os está causando, perde de vista que tem diante de si alguém que intenciona algo, que habita um mundo compartilhado significativo e que está, de algum modo, posicionando-se em sua vida. Que é, em suma, um ser-no-mundo.

A pergunta hermenêutica que se coloca diante do comportamento de Lázara é: qual é o sentido desse gesto? Seu gesto funda-se em e expressa um contexto vital, ou seja, está atravessado por significados de seu mundo compartilhado. Mundo é um conceito que Heidegger desenvolveu sobretudo no livro Ser e tempo (1927/2012) e que indica um nexo de múltiplas e mútuas remissões - uma trama de significados - que sustenta e fornece significado para cada coisa, outro e si mesmo.

A fenomenologia surge na psiquiatra muito cedo para responder a inquietação de estar "(...) vendo o paciente em seu verdadeiro mundo, o mundo no qual ele 'vive, se movimenta e é dono de seu ser', e que para ele é único, sólido e diferente de nossas teorias gerais sobre a cultura", como afirma May (1958, p. 4) Isto é, preocupa-se que o conhecimento produzido seja científico, no sentido de dar a ver a experiência tal como acontece.4

Assumindo que o sentido das ações humanas é oculto, porém acessível, necessitando de uma atenção estrita e cuidadosa para não as interpretar a partir de pressupostos, os psiquiatras fenomenológicos se apropriaram da explanação de Heidegger sobre a existência como ser-aí (Dasein) e do método fenomenológico hermenêutico como modo de acesso ao sentido da experiência humana.

A expressão ser-no-mundo indica a existência situada sócio-historicamente em meio às coisas e aos outros desvelados significativamente. O conceito "mundo" refere-se aos contextos nos quais o existir se dá. Explica Heidegger (1920/2010, p. 16): "'Mundo' [Welt] é algo no qual se pode viver." No cotidiano, as coisas aparecem primeiramente como instrumentos de ocupação. Para Lázara, o fogão apareceu imediatamente como fogo purificador. Não é que ela olhou para fogão, identificou um utensílio doméstico usado para cozinhar alimentos e, num segundo momento, considerou que a chama alimentada pelo gás de botijão não é realmente um fogo purificador, mas poderia servir para tal, ser um símbolo, uma metáfora. Pelo contrário, sua experiência é tal que, imediatamente, o fogão se apresenta a ela como (sendo, significando) fogo sagrado. O ser desse ente (nos termos de Ser e tempo, desse instrumento - zeug) funda-se no projeto de purificação do pecado num mundo histórico no qual há pecado e redenção, no qual esta dependente do sacrifício do crente e no qual fogo é purificador. Mas esta compreensão não se apresenta direta e imediatamente, devendo ser desocultada pela hermenêutica.

 

Conflito de interpretações: purificação X psicopatologia

"Conflito de interpretações" é uma expressão usada por Ricouer para se referir à multivocidade das experiências humanas. Apoiado no entendimento de que a existência é linguística (logos), discursiva e de que as experiências são tal como significam e delas se pode falar, a hermenêutica para esse filósofo, assim como para Heidegger, mostra o caráter determinante da situação hermenêutica - o contexto interpretativo - para o ser daquilo que vem ao encontro e de que se fala. Da psicanálise freudiana ele retira um exemplo claro: a interpretação de um sonho deve levar em conta a situação em que o sonho acontece. Há o sonho sonhado, isto é, o momento em que algo é experienciado oniricamente. A interpretação dessa experiência depende do relato do sonhador ao analista. Este relato não é mais o sonho sonhado, pois já é o sonho dito, portanto, interpretado. O analista, ao ouvir o relato do sonho, substitui o texto do sonho sonhado pela linguagem psicanalítica, isto é, recolhe o dito em outro contexto interpretativo e ouve dele as manifestações de desejos inconscientes. Ou seja, há o sonho sonhado, o sonho relatado e o sonho psicanalisado (Ricouer, 1977). Essa multiplicidade de fenômenos (de dizeres dos fenômenos) é submetida a uma hierarquia de poder sobre a verdade da experiência, de tal modo que o analista pode se considerar o detentor da verdade sobre o sonho sonhado, indiferente, até mesmo ignorante, à diferenciação dos momentos fenomenológicos sonhar, narrar o sonhado e psicanalisar o narrado.

Situação análoga acontece com Lázara ao chegar ao hospital. Até então, a interpretação de seu gesto acontecia num contexto hermenêutico da religiosidade. Lázara e seus filhos comungavam do sentido salvífico de seu queimar as próprias mãos purificando-se. Ao adentrar o hospital e ser encaminhada para a psiquiatria, esse gesto passa a poder ser determinado à luz da psiquiatria. Ou seja, seu comportamento revela-se sinal de distúrbio psiquiátrico. Interpretar tão forte experiência como um equívoco perceptivo ou desequilíbrio químico é uma violência tão grande quanto a que ela já vivenciou. É transformar seu gesto salvacionista em sintoma psicopatológico.

O encaminhamento para a psiquiatria do hospital abre um conflito de interpretações que ameaça o sentido do gesto de Lázara. Mas essas interpretações não são meras significações atribuídas a uma mesma situação. A interpretação é o que a situação realmente é. A vivência de Lázara é de ter se limpado do pecado. A vivência que os psiquiatras têm dessa situação é que ela estava em surto psicótico e seu gesto nada mais é que um sintoma de distúrbio orgânico ou psíquico. Se o que ela fez foi sintoma psicopatológico, suas queimaduras não são estigmas de sua purificação e seu comportamento não foi um ritual purificador.

Lázara e seus filhos entenderam a situação e se esquivaram de iniciar um tratamento psiquiátrico. Para eles, o entendimento médico seria uma compreensão errada e destruidora da experiência religiosa vivida.

Se ela começasse a ser acompanhada e sua biografia fosse tema de investigação interessada, quiçá num processo psicoterapêutico, explicitar-se-ia o contexto de mundo no qual o pecado a consome e à sua família e no qual o fogo é o único caminho para a redenção. Talvez ganhasse liberdade em relação a ser a salvadora - a escolhida - de sua família. Talvez pudesse buscar outros modos de purificação menos agressivos consigo. Mas nada disso aconteceu e seu destino quedou-se um enigma.

 

Uma possível compreensão daseinsanalítica do comportamento psicopatológico de Lázara

Ao passo que os fenômenos naturais podem ser explicados com base em leis gerais de causação construídas como hipóteses, os fenômenos humanos só podem ser descritos compreensivamente à luz do sentido. Para isso, é necessário compreender e explicitar o mundo no qual os gestos de Lázara acontecem, pois, gesto e mundo se copertencem. Hermenêutica, assim, significa buscar o significado de um comportamento em seu contexto histórico-cultural (mundo).

A hermenêutica da situação que ocasionou as queimaduras de Lázara exigiria um mergulho em seu mundo, o que, por sua vez, dependeria de que ela e seus filhos detalhassem seu cotidiano, seus valores, sua história de vida. Os médicos tentaram isso quando propuseram a internação e convidando enfaticamente que os filhos a trouxessem para consultas subsequentes, o que não aconteceu. Dessa forma, a explicitação do sentido de seus comportamentos proposta a seguir permanece um tanto hipotética, apoiando-se unicamente na pouca informação disponível, porém incapaz de explicitar os nexos biográficos e os incidentes motivadores que culminam neste ritual de purificação.

Interessa ao fenomenólogo compreender o gesto da paciente como motivado. Enquanto a causalidade busca eventos antecedentes, a motivação dirige-se ao futuro. "O motivo faz surgir o livre arbítrio; ele não o limita", diz Heidegger nos Seminários de Zollikon. "O motivo não obriga. A pessoa não é obrigada, é livre. Ele me solicita fazer algo." (Boss & Heidegger, 2009, p. 52) Na Daseinsanalyse, a primazia temporal é do futuro; é sempre a fim de algo que um mundo se abre e as coisas e os outros recebem sua significação. Isso não significa que passado e presente não tenham importância. Significa apenas que sua significatividade se articula a partir do futuro. Com vistas a expiar seus pecados (futuro), numa existência para a qual a religiosidade é tema importante (passado), este fogo aparece agora como purificador e este momento como o propício (kairós) para o martírio.

O que Lázara almeja realizar ao agarrar as chamas no fogão ela mesma diz: purificar-se. Ou seja, em seu ser-no-mundo, está impura e pecaminosa e busca, por este gesto, deixar para trás esta condição. À luz do purificar-se, esta chama e este fogão são caminho de libertação do pecado.

Bachelard (1994) explica que no mundo histórico humano "O fogo purifica tudo, porque suprime os odores nauseabundos. (...) Por sua ação desodorizante, o fogo parece transmitir um dos valores mais misteriosos, mais indefinidos e, portanto, mais surpreendentes. (...) ideia de virtude substancial." (p. 151). O fogo "separa as matérias e aniquila as impurezas materiais" (p.152) e ainda prepara terreno, enriquecendo a terra com cinzas. No Cristianismo, ele destrói e renova. O pecado é mancha, sujeira (Ricouer, 1977, p. 22). Aquilo que para os olhos dos psiquiatras foi um episódio de surto psicótico parece ter sido para ela e para seus filhos, que o testemunharam, um gesto de sublimação, de limpeza da conspurcação familiar, de martírio pelos pecados de sua estirpe. Nesse contexto, sua cozinha seria uma igreja, um altar onde Deus agracia com o perdão aqueles que se martirizam. Ou seja, Lázara e seus filhos vivenciam conjuntamente uma cerimônia religiosa.

Análise correlata aparece na interpretação de Binswanger (1945/1958a) do gesto de Ilse, que queima sua mão no forno como sacrifício "chamado a ser a tormenta purificadora que descarregaria naquela atmosfera carregada e opressiva da vida do lar dos pais" (p. 220). O fracasso do gesto, isto é, não produzir o efeito desejado de mudança no modo de ser do pai, torna-a refém do tema biográfico em torno do qual sua vida girava. A loucura, explica Binswanger, não está no queimar as mãos e, sim, acontece após o gesto sacrificial falhar.

Em termos fenomenológicos, Lázara e seu gesto acontecem num mundo religioso em que o pecado aprisiona e só pode ser expurgado pela dor do queimar-se no fogo purificador. E ela realiza aquilo que diz realizar: livra si mesma e seus filhos do pecado. Qual pecado? Talvez nem seja este ou aquele fato específico taxado de pecaminoso, e sim uma compreensão genérica, bíblica, de que todos nós vivemos em pecado e carregamos o pecado original. O esclarecimento disto traria luz à biografia de Lázara e ao entendimento de seus motivos para nesta situação queimar suas mãos.

Lázara e seus filhos compartilham o pecado e a expiação. Eles também se veem, a veem como pecadora. Tanto é assim que a assistem e compartilham com ela este mundo religioso no qual o fogo liberta. Eles assistem esse batismo maravilhados e agradecidos e só a levam ao hospital por causa da dor das queimaduras. Isto é, eles compreendem e compartilham o sentido do seu gesto, tanto que fotografam o ato de bravura. Ou seja, o mundo de Lázara é compartilhado por eles.

Binswanger5 pensava o processo psicoterapêutico como esforço de superação do abismo entre o isolamento no mundo próprio (idios kosmos) e o mundo compartilhado (koinos kosmos). Para ele, na doença mental o paciente ficava como o sonhador: diante de fenômenos que só se mostram a ele. Mas estava Lázara só? Seus filhos habitavam com ela um mundo no qual estavam em pecado e necessitados de redenção. Eles estavam com ela enquanto ela queimava as mãos no fogão, registraram esse momento e depois cuidaram dela levando-a ao hospital para tratar as queimaduras. Por mais raro que seja o relato de alguém se queimando para expiar seus pecados, esse comportamento poderia ser entendimento como de autoflagelo, este sim comum especialmente em relatos religiosos. É por demais incomum em nosso contexto histórico-cultural que alguém, por motivos religiosos, fira-se tão gravemente. Mas, neste raciocínio, a senhora estaria sendo comparada com uma norma estatística e a especificidade de sua experiência desapareceria. O comportamento de Lázara precisa ser entendido tal como ela o experienciou: como um ato de purificação.

Sendo gesto seu, o purificar-se por fogo, como qualquer outro comportamento humano, é possível pois a existência é ontologicamente livre. Do ponto de vista ôntico-biográfico, há momentos em que se toma as rédeas da própria vida e outros em que se é levado. Binswanger escreve que "... na 'pessoa saudável' a existência se desdobra mais ou menos equilibradamente entre atores (papeis), diretor e espectadores, aqui [em Elllen West] está dicotomizado em palco e eventos no palco, de um lado, e o assistir 'passivamente', do outro" (1945/1958b, p. 291). Ou seja, a liberdade essencial pode, no existir concreto, ficar restrita e a existência perde a capacidade de escolher livremente com quais entes engaja-se na abertura de seu mundo e como. É desta forma que se pode compreender a patologia na Daseinsanalyse: possibilidades ôntico-existenciais "cuja realização está perturbada na doença"6 (Boss, 1994, p. 199). A pergunta que deveria ser feita sobre Lázara ou a ela diretamente é: que liberdade ela tem para expurgar seus pecados desta maneira? E outra: ela se livra do pecado ao queimar-se?

Uma definição mais sintônica com o modo daseinsanalítico de pensar os comportamentos psicopatológicos é a de que:

[...] são experiências ou procedimentos semelhantes ou homogêneos que se destacam do cotidiano comum das pessoas de um certo meio cultural. Nenhum sintoma psicopatológico tomado isoladamente é pura e simplesmente irregular ou mesmo doentio, pois todos os sinais podem ser encontrados também em pessoas sãs, sob condições especiais. Estes somente serão sinais de enfermidade quando aparecem, dependendo da situação da 'história de vida' e do contexto sócio-cultural, com um certo 'peso', numa certa densidade e frequência, numa certa relação e duração e, com isso, fizerem a própria pessoa ou os outros sofrerem, impossibilitando o convívio com os outros (Scharfetter, 1977, p. 45).

Para compreender o queimar-se de Lázara, seria necessário ter acesso à sua história para saber se e como seu fervor religioso atingiu esta intensidade e peso evidenciados nas queimaduras. Terá ela sido sempre assim ou terão acontecido modificações e estreitamentos de possibilidades existenciais a ponto deste ato ser o único ato possível? A análise hermenêutica deve explicitar o sentido do que ela realiza com seu gesto e o que ela não pode realizar em seu existir.

Os modos de ser psicopatológicos são, segundo Binswanger (1945/1958b), uma modificação no ser-no-mundo que restringe a liberdade essencial, diminuindo-o e estreitando-o, esmagando-o por um projeto-de-mundo (poder-ser) que se sobrepõe à condição de ser livre, isto é, projetante de si e de mundo. Ou seja, terá Lázara perdido a liberdade para posicionar-se em relação aos pecados seus e de sua família, tornando-se obrigada e limitada a sacrificar-se? Teria ela liberdade para purificar-se de outros modos menos nocivos para si?

Enquanto para a psicopatologia tradicional as rezas e os diálogos com Jesus e os santos seriam interpretados como alucinações (percepções sem objeto), a psicologia fenomenológico-existencial entende que a intensa experiência de Lázara é de que ela realmente dialogava com esses interlocutores. Estava tão próxima e envolvida, absorvida pode-se dizer, pelo tema do pecado e da purificação, que essa significatividade percebida é tamanha que o percebido surge como presença sensorial. Se as vozes a obrigavam a pôr a mão no fogo, ela estava alheia à sua condição de poder-ser-si-mesma, de modo que suas escolhas presentificaram-se como ordens vindas de fora. Como explica Heidegger nos Seminários de Zollikon, "Quem está alucinando só pode ver seu mundo mediante um estar presente imediato, sensorialmente perceptível de todos os fatos, porque ele não pode lidar com o presente e o ausente - porque ele não pode se mover livremente em seu mundo." (Boss & Heidegger, 2009, p. 191) O pecado se impõe como ente subsistente - isto é, Lázara tem um pecado que pode ser manipulado, por assim dizer - e o fogo purificador aparece como única possibilidade de ação contra ele.

Na literatura daseinsanalítica há muitos relatos de caso que apresentam estreitamentos semelhantes, em que a existência fica limitada a existir de um único modo. Nesses mesmos relatos de casos clínicos, a psicoterapia figura como método de resgate da autonomia perdida. A psicoterapia é uma relação humana possibilitadora de confiança e do desvelamento de potencialidades negadas que culminam num momento biográfico pobre, restrito e limitado. Seria, para Lázara, um modo de se aproximar de sua história e recobrar liberdade, caso seu ritual religioso esteja determinado por estreitamento de seu mundo.

Essa hipótese - de estreitamento - pode ser considerada à luz do sentido de seu gesto. Queimar suas mãos é um modo de livrar-se do pecado. Mas será esse o único sentido? À condição hermenêutica da existência copertence o "duplo sentido"7 dos gestos humanos, isto é, que os significados dos mesmos não sejam imediatamente aparentes e permaneçam ocultos no que se mostra.

Lázara chega ao hospital com as mãos queimadas e doendo. Ela e seus filhos preocupam-se com a dor e com as restrições na vida cotidiana comunitária que advém de seu gesto. Toda experiência de dor é um modo de ser-no-mundo que abre o reconhecimento "de que um óbvio dano está acontecendo ou aconteceu a alguma potencialidade de relaciona-se corporeamente com o que está em seu mundo." A relação com o divino que figurava na abertura de mundo de Lázara enquanto ela segurava as chamas do fogão fecha-se e abre-se então um âmbito limitado de relação com a dor aguda presente; ela é retirada do mundo divino, como se Deus a deixasse, e se descobre ardendo sozinha. Mesmo a cozinha enquanto cozinha desaparece. A abertura de mundo restringe-se, foca-se na dor latejante. Como projeto de mundo surge unicamente o mais rápido alívio da dor. É quando ela e seus filhos buscam socorro humano.

Com dor e no período dos tratamentos necessários para que volte a poder tocar com as mãos, Lázara encontra-se impedida de cuidar de sua casa e de participar das atividades de sua igreja. Suas queimaduras queimaram junto, pelo menos temporariamente, o livre trânsito na comunidade, inaugurando o ter que esperar que a visitem para trocar com os demais. Surge também o depender de outrem para se alimentar, se lavar etc., ou seja, queimaram-se as possibilidades de cuidar de si e de seu lar, lançando-a no ter que ser cuidada como modo de se relacionar com os outros. Lázara não atentava para isso enquanto acendia o fogão, mas isso quer dizer que não se relacionava com essas possibilidades? Seria um desejo "inconsciente" de ser cuidada por seus filhos, pela comunidade? Não faz sentido afirmar uma causação inconsciente para seu gesto, muito menos que um desejo assim tenha sido ocultado de sua consciência, sendo alojado no inconsciente. Mas seria ingenuidade recusar que a relação com sua condição ôntico-ontológica de ter-que-ser, realizada cotidianamente na forma de cuidados básicos consigo, sua casa e sua comunidade não devam ser consideradas na hermenêutica de seu gesto. Holzhey-Kunz (2018, p. 60) refere-se a essa determinação como "ser corpo como tarefa" (Leibsein als Aufgabe) No momento da purificação, a preocupação com a manutenção diária permanecia na periferia da clareira, mas não tem como não estar lá, pois é constitutiva, tanto que o findar do gesto purificador se dá com o chegar da dor. O sacrifício para livrar-se do pecado desdobra-se no tornar-se limitada na capacidade de cuidar de si e, portanto, dependente.

Não é mera coincidência que na analítica existenciária o pecado figure como culpa decaída. Isto é, as experiências ônticas de pecado são indícios formais do ser culpado ontológico.

Em todo caso, o ser-culpado (...) como violação de uma 'exigência moral', é um modo de ser do Dasein. Isso vale também por certo para o ser-culpado como 'tornar-se punível', como 'ter dívidas' e como todo 'ser-responsável...' (...) O comportamento da culpa moral está também ontologicamente tão pouco elucidado que pôde haver e continua havendo um predomínio de interpretações desse fenômeno que introduzem em seu conceito a ideia de ser-digno de punição e até a de estar em dívida junto a... (...) Mas com isso o 'culpado' de novo se extravia no âmbito da ocupação, no sentido do cálculo equitativo de pretensões. (Heidegger, 1927/2012, p. 775)

O pecado, como falta, só é possível à luz do desdobrar-se temporal da existência, que pode retornar ao feito ou deixado de fazer e indagar-se ou mesmo criticar-se por o ter ou não ter feito8. O pecado do qual Lázara tentava livrar-se seria algo que ela fizera ou deixara de fazer, ou ainda herdara por outro ter feito, e que a tornava impura. Seu gesto purificador almejava a limpar dessa impureza. Implícito aqui estava a esperança de tornar-se pura e manter-se para sempre nessa pureza, o que não fica garantido. Assim que as mãos começam a arder, está de volta ao mundo das tarefas cotidianas, das impurezas, no qual pode se tornar pecadora novamente.

Boss (1977) retoma as análises de Heidegger para mostrar que culpa não é algo que se tem e poderia não ter, mas algo que se é, de modo que a tarefa psicoterapêutica não é a eliminação dos sentimentos de culpa, mas, sim, a assunção da dívida consigo mesmo de desdobrar o próprio ser nas possibilidades existenciais; é "... cumprir a missão humana de guardião e pastor de tudo aquilo que tem que aparecer, que ser, e que quer se desdobrar na luz de uma determinada existência humana." (Boss, 1977, p. 39) Isto implica recusar outros possíveis e suportar tantos nãos. O pecado e os sentimentos de culpa ocultam o ser-culpado originário do Dasein, o ter que ser si mesmo ao qual Lázara está entregue, criando a ilusão de que são entes manipuláveis - males feitos a alguém -, evitáveis ou corrigíveis, como na tentativa de purificação por fogo. Mas essa ocultação indica (podendo vir a revelar) a inexorável responsabilidade que cada qual tem por sua existência (o ser-preocupação - Sorge). Lázara sentiu-se pessoalmente responsável por sacrificar-se por si e por sua família; se não ela, quem? Sua existência lhe foi entregue como tarefa a ser cumprida a cada vez, tarefa essa que só se completa quando ela não existir mais. Ter-que-ser é um fardo. A dependência que ela gera com as mãos queimadas poderia ser um modo de tentar se aliviar desse peso? Não seria manifestação de um desejo de voltar à condição infantil de ser cuidada e protegida das exigências do mundo, de guardar-se e permanecer abrigada em casa? Se a resposta a essa pergunta for afirmativa, o ser responsável por si, por cuidar de si mesma, de sua casa, por ativamente participar da vida comunitária estariam, por razões desconhecidas, pesando demais.

Uma psicoterapia seria ocasião da hermenêutica do sentido de seu comportamento e de possível recuperação de liberdade existencial.

 

Referências

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Recebido em 11.06.2019
Primeira Decisão Editorial em 18.12.2020
Segunda Decisão Editorial em 16.07.2021
Aceito em 30.07.2021

 

 

1 Este encurtamento pode trazer prejuízos aos pacientes. Rocha Neto e Messas (2016) descrevem, com base em um caso clínico, os diferentes diagnósticos a que chega um psiquiatra que segue o modelo operacional (CID, DSM) e o que recorre a análise fenomenológica, que leva em conta a biografia da pessoa. No caso descrito, o diagnóstico pelo DSM levou a paciente a ser tratada de forma errada.
2 A daseinsanalista Holzhey-Kunz (2018) vai além e propõe que o sentido da hermenêutica é revelar o ser do ser-aí indicado nas experiências cotidianas.
3 "No "sentido" de um sintoma reunimos duas coisas: sua procedência e sua destinação ou motivação, ou seja, as impressões e vivências que o acarretaram e o propósito a que serve. A procedência de um sintoma se reduz, pois, a impressões vindas de fora, que já foram conscientes no passado, mas que o esquecimento pode ter tornado inconscientes. Mas a destinação de um sintoma, sua tendência, é sempre um processo endopsíquico, que pode haver se tornado consciente no início ou pode também jamais tê-lo sido, tendo permanecido desde sempre no inconsciente." (Freud, 2014, p. 30)
4 'Científico' significa apenas 'fazer conhecimento' (scire, conhecer; facere, fazer). [...] Se o pensamento daseinsanalítico realmente se aproximar mais da realidade humana do que o pensamento das ciências naturais, conseguirá nos dar algo que até o momento não encontramos na teoria psicanalítica: um entendimento sobre o que estamos realmente fazendo (e por que nós fazemos deste modo específico) quando tratamos um paciente psicanaliticamente; tal entendimento sendo baseado em intuições da essência do ser humano. (Boss, 1963, p. 29)
5 "... pois em todo e qualquer tratamento psíquico sério, por exemplo, e sobretudo precisamente na psicanálise, chegam instantes, nos quais o homem precisa se decidir, quer ele queira preservar a sua opinião privada, o seu teatro privado, como um doente me disse certa vez, quer ele queira despertar do seu sonho com o auxílio do médico enquanto o mediador sapiente entre mundo próprio e mundo comum, entre ilusão e verdade, participando da vida da universalidade, koinos kosmos." (Binswanger, 2013, p. 207) Também brevemente apresentado em Scharfetter, 1977.
6 Ao invés de uma patologia geral, deve-se, a cada caso, colocar três questões: "(1) Como a liberdade para realizar suas potencialidades está prejudicada num dado momento?; (2) Quais são essas potencialidades?; e (3) Em relação a quais entes do mundo desta pessoa esse prejuízo ocorre?" (Boss, 1994, p. 200)
7 "... como homem do desejo, empenho-me mascarado - larvatus prodeo -; ao mesmo tempo, a linguagem é, antes, e na maioria das vezes, distorcida: quer dizer outra coisa do que aquilo que diz, tem duplo sentido, é equívoca. O sonho e seus análogos se insvcrevem, assim, numa região de linguagem que se anuncia como lugar das significações complexas onde um outro sentido ao mesmo tempo se revela e se oculta num sentido imediato." (Ricouer, 1977, p. 17-8)
8 Cf. "Culpa e Desculpa" (Pompeia & Sapienza, 2004)

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