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Revista da Abordagem Gestáltica

Print version ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.28 no.1 Goiânia Jan./Apr. 2022

http://dx.doi.org/10.18065/2022v28n1.9 

ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

 

Suicídio e trabalho na era da técnica: um olhar sob a perspectiva fenomenológico-hermenêutica

 

Suicide and work in the technical age: a view from a phenomenological-hermeneutic perspective

 

Suicidio y trabajo en la era de la técnica: una mirada bajo la perspectiva fenomenológica hermenêutica

 

 

Elina Eunice Montechiari Pietrani

Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Mestra e Doutoranda em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: elinapietrani@gmail.com

 

 


RESUMO

Este estudo objetiva refletir sobre a questão do suicídio em sua relação com o trabalho, tendo como base a fenomenologia-hermenêutica em Martin Heidegger. A psicologia organizacional e a psiquiatria, adotando uma posição técnico-científica, analisam a morte voluntária relacionada ao trabalho, ora a partir de aspectos intrapsíquicos, ora em torno das condições socioeconômicas envolvidas nesse campo. Visam, dessa forma, incidir sobre o comportamento suicida, prevenindo sua ocorrência. Heidegger, que descreveu a era em que vivemos como era da técnica, alerta que esse modo de análise do comportamento humano, planejado e calculado, com vistas ao controle, pode ser insuficiente para uma compreensão que vá ao encontro do que está em questão para a pessoa. Isso porque, uma vez que a existência é fundamentalmente paradoxal, o modelo científico pode encobrir os sentidos mais próprios que se dão na relação da pessoa com seu projeto profissional, assim como os sentidos envolvidos na sua decisão pela morte voluntária. Alicerçada na psicologia fenomenológico-hermenêutica, cabe deixar que a relação do homem com o trabalho se mostre pela abertura que se estabelece, de forma singular, na própria relação, para que, assim, o sentido que está em jogo, quando uma pessoa pensa em dar fim à vida, possa aparecer.

Palavras-chave: Suicídio; Trabalho; Psicologia fenomenológico-hermenêutica; Técnica.


ABSTRACT

This study seeks to reflect on the issue of suicide related to the work, based on the phenomenology-hermeneutics in Martin Heidegger. Organizational psychology and psychiatry, adopting a technical-scientific position, analyse voluntary death related to work, sometimes from intrapsychic aspects, sometimes around the socioeconomic conditions involved in this field. In this way, they aim to focus on suicidal behavior, preventing its occurrence. Heidegger, who described the era in which we live as an era of technique, warns that this way of analyzing human behavior, planned and calculated, with a view to control, may be insufficient for a comprehension that meets what is in question for the person. This is because, since existence is fundamentally paradoxical, the scientific model can cover up the most specific meanings that occur in the person's relationship with his/her professional project, as well as the meanings involved in his decision for voluntary death. Based on phenomenological-hermeneutic psychology, it is necessary to let person's relationship with work show itself through the opening that is established, in a singular way, in the relationship itself, so that, thus, the meaning that is properly involved when a person thinks ending his/her own life may appear.

Keywords: Suicide; Work; Phenomenological-hermeneutic psychology; Technique.


RESUMEN

Este estudio busca reflexionar sobre el problema del suicidio con relación el trabajo, basado en la fenomenología-hermenéutica de Martin Heidegger. La psicología organizacional y la psiquiatría, adoptando una posición técnico-científica, analizan la muerte voluntaria relacionada con el trabajo, basándose algunas veces en aspectos intrapsíquicos y otras en condiciones socioeconómicas actuales. Su objetivo se centra en el comportamiento suicida, evitando que ocurra. Heidegger describió la era en que vivimos como era de la técnica, advierte que ese modo de análisis del comportamiento humano, planeado y calculado, con miras al control, puede ser insuficiente para una comprensión que vaya al encuentro de lo que está en cuestión para la persona. Una vez que la existencia es fundamentalmente paradójica, el modelo científico puede encubrir otros sentidos que ocurren en relación de la persona con su proyecto profesional, así como los sentidos involucrados en su decisión de muerte voluntaria. Fundamentado en la psicologia fenomenológica-hermenéutica, es necesario saber que la relación del hombre con el trabajo se muestra a través de la apertura que se establece, de manera singular, en la propia relación, de modo que, el sentido que está en juego cuando una persona piensa em poner fin a la vida, puede aparecer.

Palabras-clave: Suicidio; Trabajo; Psicologia fenomenológica-hermenéutica; Técnica.


 

 

Introdução

O tema do suicídio vem alcançando grande destaque, justificado, frequentemente, pelo crescimento de seus índices, numa escala global, em faixas etárias e segmentos sociais variados. O vertiginoso aumento desse fenômeno tem sido abordado em estudos e publicações científicas, em todo o mundo, nas várias disciplinas sociais e humanas, incluindo a psicologia, assim como na área médica, a psiquiatria. Além disso, o suicídio se tornou tema relevante em diversos órgãos de saúde, em redes de assistência social e em políticas públicas (Magliano, 2018; Castro, 2014). Alguns desses estudos associam o ato suicida a causas como humor depressivo ou transtornos mentais como psicose ou consideram que o ato pode ser potencializado se a pessoa fizer uso de drogas ou álcool (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais [DSM5], 2014).

Nessa direção, conforme apontado por Dejours e Bègue (2010), Castro (2014) e Cortez, Veiga, Gomide e Souza (2019), o mundo do trabalho, que também vem sendo alvo de discussão pela psicologia, é apontado frequentemente como palco de ocorrência para o fenômeno do suicídio. Esses estudiosos consideram que a morte auto infligida em função do labor tenha se iniciado a partir da década de 1990, quando também teve início a denominada reestruturação produtiva. Nesta, o campo do trabalho seria investido por uma lógica de resultados sem precedentes na história, colocando o trabalhador em uma relação de total instabilidade para com sua tarefa laboral, gerando sofrimento para o homem.

Cortez et al. (2019, p. 524) relacionam o suicídio e o trabalho aos "aspectos subjetivos do trabalhador, os quais são mediados pelas desiguais e perversas relações laborais provenientes de políticas neoliberais que incidem na precarização dos contextos e do significado do próprio trabalho". Esses autores consideram a relevância do estudo acerca do suicídio relacionado ao trabalho para a psicologia, de modo que, a partir dos referenciais teóricos desta, se possa proceder a um mapeamento dos aspectos individuais, coletivos e contextuais que seriam geradores dos altos índices de tal fenômeno, embora reconheçam a dificuldade de identificar "o nexo causal entre trabalho e comportamento suicida" (p. 524), tendo em vista as variáveis que impactam sobre esse fenômeno e as forças conflitantes que incidem sobre ele.

Chama-nos a atenção que a psicologia organizacional vem assumindo uma posição de objetividade e racionalidade frente às questões do homem na lida para com seu trabalho e a decisão, relacionada a este, de pôr fim à vida. Tal posição, científica e pragmática, em verdade, consolidou a psicologia em seu status de ciência, ainda no século XIX, com a finalidade de antecipação (diagnóstico) e controle (prognóstico) sobre o homem em sua relação com as coisas ao redor.

A psiquiatria, por sua vez, balizada nos princípios médico-científicos de salvar vidas, também vem, de modo geral, buscando antecipar-se ao ato suicida, envidando esforços para mensurar suas causas e, desse modo, promover procedimentos preventivos ou remediar sua proliferação. Bertolote, Mello-Santos e Botega (2010), apesar de reconhecerem que uma doença clínica grave, por si mesma, não produz o comportamento suicida, apontam que a maioria dos suicídios ocorre em pessoas que, além de sofrerem de uma doença clínica, encontram-se sob o influxo de transtornos psiquiátricos.

Queremos dizer que, tanto por parte da psicologia organizacional como da psiquiatria, a julgar pelos estudos publicados, a prevenção se põe como um aspecto essencial frente à temática da morte voluntária, a partir de seu nexo causal com o trabalho. Para isso, pautam-se, por um lado, às condições do contexto laboral que gerariam tal atitude, para então, identificadas as causas, promoverem ações que possam neutralizar ou minimizar essas condições. Por outro lado, voltam-se ao trabalhador, individualmente, buscando identificar nele aspectos intrapsíquicos que justifiquem sua decisão de exterminar a própria vida, como transtornos mentais ou a desestabilização do indivíduo frente às demandas do trabalho, gerando uma "crise suicida" (Debout, conforme citado por Castro, 2014, p. 258). Além disso, essas ciências assentam sua defesa pela vida a qualquer custo nos princípios éticos da profissão, em seu papel de responsabilidade social (Zana & Kovács, 2013).

Entretanto, parece-nos insuficiente compreender o suicídio do homem no trabalho pela via da causalidade, empreendendo medições para avaliar o potencial de risco suicida por determinantes internos ao indivíduo ou por determinantes externos, no contexto laboral, embora evidentemente tenham sua validade. Isso porque, para uma compreensão mais ampla do problema, perde-se de vista a relação mais sensível que o indivíduo estabelece com seu propósito em dar fim à própria vida e na relação singular que esse objetivo estabelece com o seu trabalho. Ao agir assim, a psicologia concede um caráter pragmático e positivista a questões que estão na própria lida existencial e que, sendo assim, são questões que se encontram sempre em um aberto, não se deixando delimitar por medidas calculadas e planejadas.

Com o objetivo de repensar o fenômeno do suicídio em sua aproximação com o trabalho, passamos a questionar o modelo de análise empregado pela psicologia e pela psiquiatria, realizado, a nosso ver, sob um modo calculado e planejado. Nesse sentido, pautado na fenomenologia hermenêutica em Martin Heidegger, o presente estudo tem como objetivo lançar outro olhar à questão do suicídio e sua associação com o trabalho.

Nossa escolha pela fenomenologia-hermenêutica para discutir o tema proposto tem em Heidegger a referência pela problemática do reducionismo da era em que vivemos, denominada por ele como era da técnica, a qual, segundo o filósofo, assombra a existência no mundo moderno, em que todas as coisas, inclusive o comportamento humano, são analisadas em um modo calculado, visando obter, assim, o controle sobre suas ocorrências. O filósofo alerta para o fato de o homem se deixar monopolizar pelo uso da técnica e não refletir sobre ela, levando, assim, ao esquecimento do ser.

Como procedimento metodológico, procedemos inicialmente a uma revisão bibliográfica sobre a temática do suicídio no trabalho, definindo os descritores a serem empregados. Foram aplicados então os termos "suicídio" e "trabalho" na base de terminologias da Biblioteca Virtual de Saúde em Psicologia (BVS Psi) e na Annual Review of Psychology, tendo em vista nosso foco em psicologia, e na Revista Brasileira de Psiquiatria. Nelas, desconsideramos as publicações que apresentassem outros campos de relação do suicídio, para nos determos naquelas que tematizam propriamente o suicídio e o contexto do trabalho. Para trazer o pensamento fenomenológico-hermenêutico, partimos das obras Serenidade (1955/2001), A questão da técnica (1953/2007), Seminários de Zolikon (2009) e Ser e Tempo (1927/2012), de Martin Heidegger, além de estudos na psicologia existencial, como os de Feijoo (2019, 2018) e outros.

 

Trabalho e suicídio: desafios para a psicologia

A psicologia se inseriu no campo do trabalho desde a ascensão deste ao sistema industrial de produção e, daquela, ao posto de ciência. A racionalização das tarefas implantada na administração científica, ainda em meados do século XIX, contou com a colaboração dos estudos sobre o comportamento humano, então em desenvolvimento pela psicologia, consolidando a então jovem ciência em um contexto eminentemente marcado pela calculabilidade e pela produtividade, que determinava que as pessoas fossem avaliadas por sua capacidade expressa de gerar resultados (Pietrani, 2014).

O modelo de trabalho científico demarcaria o início de uma nova era para o mundo do trabalho, pautada não apenas pela divisão das tarefas, mas pela especialização e materialização do homem. A distribuição das tarefas era desenvolvida conforme supostamente a habilidade e a aptidão de cada sujeito, avaliadas a partir de critérios prévios. O homem, tomado por uma natureza materializada e análoga a um relógio, estaria também sujeito às mesmas leis conferidas às demais matérias analisadas pelas ciências naturais.

Junto com sucessivas crises econômicas e sociais, o trabalho chega ao século XXI contíguo a um amplo desenvolvimento da automação de base microeletrônica, robótica e da informática, que, conforme descreve Coutinho (2015, p. 58), "marcarão de forma definitiva a passagem do segundo para o terceiro período da Revolução Industrial". A ideologia da competitividade entre as empresas se manifestaria impulsionada pela expansão dos meios de comunicação e o mundo se tornaria uma grande (mas, paradoxalmente, pequena) aldeia global. O aspecto econômico passaria então a ser considerado como o fator determinante na vida das sociedades, das organizações e das pessoas.

O modelo de produção agora se realizaria, segundo Castro (2019), amparado por um novo tempo histórico capitalista, proveniente de uma crise econômica que se impôs rapidamente como uma crise do próprio trabalho. A flexibilização dos processos de trabalho, somada aos avanços tecnológicos, à automação, à denominada Internet das Coisas e à Inteligência Artificial, vem propiciando e gerando novas relações no interior do campo laboral. Conforme o autor, essas plataformas e seu formato eletrônico "colocaram em um patamar qualitativamente novo as possibilidades da reprodução capitalista: o sujeito econômico não é mais humano, mas robôs, dispensando ou relevando a trabalhadores temporários e altamente precarizados, parte do trabalho vivo" (p. 142-143). Para esse estudioso, presenciamos na contemporaneidade a propagação de um novo regime de trabalho, cultuado pela instabilidade, pelo risco, pelo imediatismo, fazendo-nos crer que a única razão para existir está na submissão robotizada a essa fluidez "intensa e hipercompetitiva do sistema de mercado" (p. 140) e que, quanto mais os trabalhadores se assemelharem a robôs humanos, mais possibilidades terão de obter um salário, "um salário de miséria", ressalta ele (p. 143).

Antunes (2018) aponta também que, em pleno alvorecer do século XXI, bilhões de pessoas ao redor do mundo dependem exclusivamente do trabalho para sua sobrevivência, ao mesmo tempo em que convivem com o que denomina "o flagelo do desemprego" (p. 25). Por outro lado, aqueles que se mantêm empregados, segundo ele, testemunham a erosão de conquistas historicamente alcançadas, a favor de uma lógica do trabalho perversa e destrutiva.

A psicologia nas organizações, apesar de recusar a denominação de Psicologia Industrial, que lhe foi vinculada ainda durante o período taylorista, vem, por sua vez, alternando suas práticas atuais com a mesma ideologia que conduzia, em seu início, o ajustamento do homem às determinações do trabalho moderno. Essa postura, nos dias atuais, viria através do que ficou denominada nas organizações como "gestão por competências" (Maturo, 2013). Partindo dessa metodologia, proposta por McClelland, a gestão por competências relaciona-se a uma combinação de intenção, ação e resultado. Em um "fluxo causal" (Maturo, 2013, p. 212), trata-se de associar, em uma determinada medida, as características pessoais do trabalhador (denominadas como a intenção) a seu comportamento (fase da ação) e, em última instância, a seu desempenho (ou atingimento de resultado). Em outras palavras, efetuar a gestão das competências, no universo da psicologia organizacional, se dá por um gerenciamento dos aspectos psíquicos e comportamentais do homem em prol dos resultados organizacionais.

Ramos, Costa e Feitosa (2017) vão mais longe e se apropriam do conceito de competência organizacional para pensar as lacunas deixadas pela formação do psicólogo. Seus estudos se voltam então a mapear as competências exigidas pelo mercado de trabalho e as diretrizes curriculares do curso de psicologia, levando os autores a concluírem que tais diretrizes distanciam o futuro psicólogo das demandas sempre crescentes do campo organizacional, tornando sua atuação inócua nesse campo. E complementam: "uma atuação eficaz e competente, alinhada às necessidades da sociedade e do mercado, requer uma formação acadêmica que foque o desenvolvimento de competências técnicas e pessoais alinhadas aos fundamentos da pesquisa" (p. 120).

Vemos, assim, que a psicologia organizacional, ainda que tenha se distanciado do modelo positivista que a caracterizou em seu início no campo do trabalho e se voltado à saúde mental do homem laboral, faz coro, em alguns dos seus estudos, aos pressupostos estabelecidos nesse campo, naturalizado como um espaço do cálculo e da técnica. Minora aquilo que essencializa o homem em sua relação cotidiana com o trabalho e os sentidos estabelecidos nessa relação, para se ocupar das métricas daquilo que deve ser apropriado pelo trabalhador para obter um resultado específico em seu fazer laboral. Além disso, ela própria toma o seu saber e seu fazer a serviço desse pensar calculado e planejado, cuja finalidade deve estar associada a uma máxima eficiência.

Analogamente, o tema do suicídio relacionado ao trabalho também vem sendo alvo de discussão pela psicologia. Embora possa parecer um conceito simples, segundo Bertolote (2012, p. 21), a definição para o termo suicídio ainda é motivo de divergências. Esse autor declara sua preferência pelo conceito adotado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que, citada por ele, diz que "o suicídio é o ato deliberado, intencional, de causar a morte a si mesmo".

Segundo Berenchtein Netto (2013), Minois (1995/2018) e Lessa (2018), a morte voluntária foi se constituindo como um fenômeno com características específicas, em distintos momentos históricos, algumas vezes, até de tons bem diferentes ao que é revestido na atualidade. Assim é que, na Antiguidade, o suicídio era visto como uma possibilidade no curso da vida, sendo percebido, em determinadas ocasiões, até mesmo como um ato de coragem. Havia, contudo, aqueles, como Aristóteles (conforme citado por Lykouras, 2013, conforme citado por Lessa, 2018), que consideravam o suicídio um ato de covardia, por se tratar de uma atitude que feria a Pátria, além de si mesmo. Já na Idade Média, era caracterizado como pecaminoso, uma vez que a vida era considerada uma dádiva de Deus, não devendo o homem atentar contra ela. Ainda na Idade Média, o ato de antecipar a morte era também considerado criminoso, um ato lesivo aos interesses da Coroa, sendo confiscados os bens daquele que cometia tal alto. Fato é que "a morte de si mesmo", denominação usada para se referir ao suicídio até o século XVI, nunca foi vista com indiferença.

Com o advento da Era Moderna, o pensamento científico e, com ele, o poder médico passaram a nortear os eventos físicos e também humanos. A partir de então, as ciências médicas, como a psiquiatria, e as ciências humanas, como a psicologia, "tentam explicar esse comportamento desconcertante e intrigante" (Minois, 1995/2018, p. 400), para destituir sua aura de mistério. Baseando-se no método científico de análise, a antecipação da morte passaria a ser examinada sob o viés da causalidade, estabelecida sob razões determinantes, as quais, sendo identificadas, pautariam as ações para a interdição do ato suicida.

Estellita-Lins, Oliveira e Coutinho (2006, p. 158) ressaltam a importância de avaliar com detalhe e precisão as circunstâncias de risco suicida, o que, segundo eles, teriam levado a psicologia e a psiquiatria ao incremento de instrumentos específicos "para dimensionar e quantificar o risco de suicídio por meio de escalas, tabelas, questionários e índices". Os instrumentos, para esses autores, podem ser agrupados em focos de interesse, dando destaque àqueles voltados para a estimativa de risco e para a avaliação de intenção/ideação, como o Suicide Potential Scale, que consiste em uma entrevista semiestruturada, e o Beck-Kovacs Suicidal Ideation, variante de um dos protocolos propostos pelo pai da Terapia Cognitiva, Aaron Beck.

Assim, o rastreamento das supostas causas que levariam uma pessoa a incorrer na morte voluntária passou a se valer de duas direções básicas: uma de natureza interna e outra de natureza externa. Na primeira, a pessoa que tenta o suicídio seria vista como alguém acometida por uma desordem psiquiátrica, sendo tratada com as prescrições médicas para tal (Santos & Siqueira, 2010; Venco & Barreto, 2014). Em outra ponta, aspectos do contexto social é que seriam alvo de análise para a compreensão do fenômeno da morte voluntária na modernidade.

Assim é que a OMS (WHO, 2014) apresenta o suicídio a partir de um processo multifatorial, destacando os transtornos mentais como um aspecto que está presente em 90% das mortes por suicídio, principalmente em países de alta renda, além do fato de que a propensão ao ato seria maior quando existisse uma condição de comorbidade, como, por exemplo, a associação entre o transtorno depressivo e o uso de substâncias químicas. O relatório aponta também aspectos de caráter "individual" (WHO, 2014, p. 44), como perda do emprego, histórico de suicídio na família e predisponentes genéticos e biológicos, que potencializariam o comportamento suicida. A instituição ressalta ainda fatores sociais que podem impulsionar o indivíduo ao suicídio, como desastres naturais; guerras e conflitos; tensões por aculturação decorrentes de deslocamentos e/ou migrações de pessoas de um país para outro e de região para outra; discriminação por orientação sexual e sujeição a bullying. A OMS destaca a ideia de que suicídios são evitáveis e relaciona possibilidades de intervenção, enfatizando que esforços nesse sentido devem ser uma prioridade na saúde pública de todos os países.

O suicídio relacionado ao trabalho também segue a mesma concepção científica da modernidade, como podemos encontrar em Dejours e Bègue (2010). Bègue, psicóloga do trabalho, e Dejours, psiquiatra e médico do trabalho, maior representante da denominada Psicodinâmica do Trabalho, vivenciaram, com certa proximidade, a onda, noticiada a partir do ano de 2007, de suicídios e tentativas de suicídios realizados por trabalhadores das empresas Renault, Peugeot e Electricité de France, alguns dos quais ocorridos no interior da organização e diante dos próprios colegas de trabalho. Em seu livro Suicídio e trabalho: o que fazer?, escrito a partir da experiência dos pesquisadores em uma dessas organizações, eles iniciam a discussão com a seguinte afirmação: "os suicídios e as tentativas de suicídio no local de trabalho apareceram na maioria dos países ocidentais nos anos 1990" (p. 11). Sustentam eles que, antes desse período, havia apenas relatos de suicídios no campo, mas não nas indústrias. A partir daí, os autores procuram compreender o que estaria por trás do contexto do trabalho que geraria a decisão de pôr fim à vida e realizá-la no próprio local de trabalho. Dejours e Bégue apresentam três causas: desestruturação dos coletivos de trabalho e estímulo individualizado ao alcance dos objetivos organizacionais; modelos de avaliação de desempenho que punem os erros e não oferecem o reconhecimento pelos acertos; certificação de qualidade total, que, propalada por muitas organizações, em verdade, ocultaria problemas de produção, levando os trabalhadores a agir sob uma falsa ética, para "cooperar" com a organização no alcance do almejado título.

Cortez et al. (2019) apresentam a relevância das pesquisas sobre o suicídio no contexto brasileiro recente, ao levarem em conta a radical alteração nas relações de trabalho, ocasionada, entre outros aspectos, pela terceirização de atividades-fim e pelas mudanças na legislação trabalhista. Esses pontos, segundo os autores, estariam alinhados à ideologia neoliberal, que vem precarizando as relações entre trabalhadores e organizações, tornando-as mais instáveis.

Na esteira da onda neoliberal, vêm crescendo também estudos que identificam o desemprego a eventos de suicídio. É o que apontam pesquisas analisadas por Wanberg (2012) e Friedman e Kern (2014). O primeiro diz que, no extremo, o desemprego pode ser angustiante de tal modo para algumas pessoas, a ponto de conduzi-las ao suicídio. No mesmo ponto, esse autor esclarece que a literatura sobre desemprego e suicídio tem sido difícil de sintetizar em função de resultados não muito consistentes, grande variedade de projetos e metodologias e diferenças de qualidade de estudo. Friedman e Kern, por sua vez, descrevem a importância do trabalho para a saúde mental das pessoas, destacando que o desemprego é frequentemente acompanhado como correlato de transtornos psíquicos e de suicídios. Eles apontam estudos realizados nos Estados Unidos e na Inglaterra que, no período 2008-2010, de grande recessão econômica, testemunharam índices significativos de suicídio. Por outro lado, esses autores defendem que o indivíduo que detém bom nível de consciência (definido por eles como prudência, boa organização e persistência) tende a ser melhor sucedido na manutenção do seu emprego do que aquele mais impulsivo e com baixo autocontrole.

Pelo exposto, observamos que os estudos sobre a relação suicídio e trabalho têm um forte amparo nas métricas estatísticas, as quais, devido ao seu crescimento, vêm gerando preocupação por parte não apenas de estudiosos como também de instituições voltadas à saúde pública. Verificamos também a aplicação do nexo causal para se buscar a delimitação da relação entre o suicídio e o trabalho, transferindo, por um lado, a responsabilização de tal decisão a aspectos de ordem intrapsíquica ou pela inabilidade da pessoa em lidar com as exigências laborais, e, por outro lado, esquadrinhando o cenário laboral para, daí, lançar luzes sobre o elemento gerador do suicídio, com o objetivo de, em última instância, ao transformar ou anular esse elemento, criar condições para que situações de morte voluntária decorrentes desse campo sejam prevenidas ou minimizadas.

Trata-se, assim, de uma responsabilização que ora se inclina por uma perspectiva "externa", o contexto do trabalho, ora se volta ao caráter "interno" da decisão, o próprio sujeito, com suas desordens psíquicas. Identificada a causa, a ação prevencionista atuaria, respectivamente, frente a eventuais mudanças no ambiente corporativo, uma vez que, ao transformá-lo, o comportamento da pessoa também seria transformado; ou tomando em consideração uma certa natureza intrapsíquica, e valendo-se de teorias e procedimentos acerca do psiquismo humano, a percepção do indivíduo poderia ser alterada e, em consequência, sua ideação suicida. Trata-se de posturas que se posicionam em dois extremos, mas se valem de medidas objetivas para efetuar o diagnóstico acerca do suicídio, visando, desse modo, um prognóstico para controlar seus efeitos. Tanto em relação a desordens intrapsíquicas ou a desordens do contexto, a psicologia parece se embasar em metodologias pragmáticas, com contornos fixos e determinados, para tratar do tema do suicídio.

Evidentemente esses estudos detêm sua importância e contribuem para o avanço da compreensão sobre a temática em questão. Entretanto, defenderemos aqui o que consideramos uma outra perspectiva acerca da relação que se estabelece entre o ato suicida e o contexto corporativo, com base na psicologia fenomenológico-hermenêutica. Acreditamos, com base nessa abordagem, na manutenção de um espaço que tenha como propósito interessar-se com o que mobiliza o outro, acompanhando o acontecimento ao modo como ele se dá, "para que então possamos atuar junto a políticas sociais e também junto ao singular" (Feijoo, 2018). Passaremos, assim, a apresentar, a partir de agora, nossas considerações acerca do suicídio em sua relação com o trabalho, pela perspectiva da psicologia fenomenológico-hermenêutica, em Martin Heidegger.

 

O produzir e a morte voluntária: um olhar a partir da técnica em Heidegger

Em Seminários de Zolikon, Heidegger (2009) traz à tona a questão da mensurabilidade como um aspecto que precede e ocasiona a previsibilidade, com fins à dominação. Ou seja, medir e calcular são requisitos para prever o comportamento das coisas e, assim, poder controlar e dominar esses comportamentos. Heidegger lembra que o medir de forma calculada e planejada é geralmente atribuído à objetividade das coisas, visto que a medição só é possível acontecer quando algo é pensado como objeto, em seu caráter tangencial. A mensurabilidade nomeia, delimita, circunscreve as coisas. Vale ainda dizer que a mensuração se coloca sempre em comparação com outro elemento, ou seja, toma sempre algo previamente como um padrão, no qual o objeto em questão possa ser avaliado, buscando, assim, evidenciar sua correspondência. O fenômeno em análise é visto não por si mesmo, mas sempre em comparação com outra coisa.

O pensador então lembra que a era moderna surge com a concepção de verdade estabelecida pela racionalidade. As coisas passariam desde então a ser apropriadas pelas proposições instauradas pela lógica da calculabilidade, da quantificação, para, assim, tornarem-se apreensíveis e controláveis. Esse modelo de pensamento em que tudo é tomado sob o modo da análise dedutiva, em que as coisas são planejadas e configuradas sob a lógica da mensuração e do controle, essa totalidade histórica foi denominada por Martin Heidegger como a "era da técnica" (1953/2007, p. 386. Grifos nosso).

Para Heidegger (1953/2007), esse modelo de pensamento, baseado na lógica, na mensuração e no cálculo, restringiu a busca pelo saber à questão de operar efeitos, visar resultados. Segundo o filósofo, o método científico é representativo desse modelo de pensamento da era moderna, uma vez que ele vem baseando seu modo de análise estritamente no cálculo e na precisão, e promovendo o caráter utilitarista das suas descobertas. Tal método cresceria em valor e reconhecimento quanto mais seu saber fosse aplicado às necessidades do cotidiano e, com isso, tivesse controle sobre o comportamento do objeto estudado. Através do seu objetivo instrumental, a ciência foi deixando de ser um modo de acesso puro ao conhecimento, para empreender-se como um método que pudesse intervir sobre as coisas. Ou seja, a ciência, segundo Heidegger, imersa no pensamento tecnicista da era moderna, abandonou a reflexão sobre as coisas em si mesmas, a exploração das coisas sem as construções apriorísticas, para atuar de modo sistemático e calculado, com o propósito de interferir e controlar as coisas.

A concepção de técnica em seu postulado moderno atravessaria a relação do homem com sua existência, que passaria a adquirir um caráter substancializado, devendo ser decodificada para ser compreendida e dominada. Assim é que o pensamento científico se inseriu na psicologia, levando-a a conceber o homem como objeto passível de análise, mensuração e previsibilidade. A relação de causa e efeito e o pensamento técnico-calculante, ao se constituírem como o método priorizado pelas ciências naturais, passaram a se constituir também como método de análise na busca pela compreensão do homem.

Ora, vimos que não apenas a psicologia, mas também a psiquiatria sustenta esse modelo de compreensão do homem, ao orientar seus estudos sobre o comportamento suicida frente ao campo laboral, através de uma análise objetiva e pragmática da situação. Partindo de dados estatísticos, ambas passaram a considerar a vulnerabilidade da situação, uma vez que os números (elevados) chamam a atenção para o fato. Além disso, esquadrinham os aspectos polares envolvidos na situação: o homem, de um lado, e o contexto do trabalho, de outro. Partindo de suas influências positivistas e funcionais, a psicologia e a psiquiatria analisam cada polo por um modelo tecnicista, buscando racionalizar os enigmas presentes em cada um, para então dominar o problema que se investe sobre ambos.

Baseando-se no método científico, a psicologia faz uso do mesmo método da calculabilidade, previsibilidade e domínio aplicado pelas ciências naturais aos eventos da natureza. Nesse modelo de análise, a psicologia parece tomar o homem como um ente localizável no tempo e no espaço, dotado de uma substância racional ou emocional, com determinações e sentidos previamente estabelecidos e que se relaciona com o mundo de forma dicotomizada, o que evidencia a ideia de homem baseada na tradicional concepção cartesiana. Além disso, toma a existência por uma certa linearidade, idealizada por um porvir pleno de satisfação, devendo os obstáculos serem removidos para que a harmonia volte a se instalar.

Baseando-se na concepção de verdade como correspondência a uma medida prévia e considerando o homem substancializado, a ação do suicídio em relação ao trabalho passou a ser compreendida como um aspecto do querer humano, que tanto se daria pela voluntariedade da decisão de pôr termo à vida, como também se daria na sua "força de vontade" para abandonar a ideia. Segundo Feijoo (2019, p. 163), "a frase de ordem do homem moderno passou a ser Poder é querer. Assim basta que eu queira para que algo aconteça no sentido do esperado. Se não acontecer, a explicação é a insuficiência de seu querer" (grifos da autora).

Desse modo, os estudos da psicologia acerca da relação homem-trabalho, a nosso ver, parecem ignorar as contradições e ambiguidades inerentes ao existir (e que também estão presentes no ambiente corporativo): interesses profissionais que nem sempre se realizam, motivações múltiplas e inconstantes pela tarefa laboral, contradições que se presentificam diariamente. E é aquilo que é da ordem do não-realizável, do mutável, do paradoxo que o pensamento tecnicista da era moderna quer decifrar. Por meio de teorias e do posicionamento das causas, tal pensamento busca esclarecer o enigma da existência humana, ignorando, entretanto, que este pode, não raras vezes, transcender qualquer explicação lógica.

O suicídio, ao contrariar a manutenção da vida, tão cara à medicina, desafia também o saber da psiquiatria. Configura-se-lhe como um trágico final, uma vez que escancara para as ciências médicas seu suposto fracasso. As motivações que levam muitas pessoas ao ato de romper com a vida escapam, por vezes, aos contornos delimitados pela medicina psiquiátrica (Teng & Pampanelli, 2015). Trata-se do mistério, da lacuna, que a ciência nem sempre consegue pleno acesso pelas vias do cálculo.

A ciência se esquece do caráter de mistério que toda a vida em seus caracteres existenciais comporta. Por isso o fenômeno do suicídio sustenta uma incontornabilidade e, quando tentamos dar-lhe contornos, o fenômeno se retrai e, então, não podemos mais ver o modo de acontecer do fenômeno de dar fim à vida. (Feijoo, 2019, p. 164)

A técnica moderna se fundamentou pelo pensamento científico, o qual somente se concebe pelo rigor da exatidão calculada e planejada. Não cabem nele as contradições da existência humana, caráter indissociável ao próprio existir. Nesse modelo de pensamento, o objeto de conhecimento deve ser estudado a partir de explicações que demonstrem o fato de ele ser o que é e como é, tomando como pressuposto o princípio da causalidade. A técnica, ensejada pelo pensamento científico, passou a considerar como natural que conhecer algo implica identificar suas causas.

Ocorre que, a despeito de os estudos da psicologia e da psiquiatria sobre a relação suicídio-trabalho estarem adequados a um horizonte histórico baseado predominantemente no rigor do pensamento científico, eles podem encobrir o desvelamento de sentidos mais próprios sobre o modo como a decisão da pessoa pela morte antecipada se mostra em sua relação mais sensível com seu campo laboral. Como afirmam Pompeia e Sapienza (2011, p. 151), "no enxergar sob a luz da razão pode haver clareza, mas não intimidade com o que é visto".

A proposta de Heidegger para pensarmos a técnica parte de sua concepção acerca do "eu" e se fundamenta na existência. Esta, enquanto uma instância cuja constituição se dá na inseparabilidade eu-mundo, demonstra o caráter de indeterminação do que os demais teóricos nomeiam como homem e que Heidegger se refere como ser-aí (o Dasein). Ao se constituir na relação com o mundo, o ser-aí existe em uma relação originária, que antecede as determinações provenientes do mundo e das teorias acerca do seu funcionamento.

Segundo Heidegger (1999, p. 158), "todo comportamento [...] se caracteriza pelo fato de, estabelecido no seio do aberto, se manter referido àquilo que é manifesto enquanto tal". Ou seja, a relação do homem com o mundo se funda nas condições concretas, históricas, ao modo como o ser-no-mundo se relaciona com essas condições em seu processo de abertura. Trata-se de uma disposição do ente que, desde sempre, se encontra no abandono de sua existência. Trata-se do mostrar-se em seu si-mesmo em sua totalidade histórica, a qual implica mostrar-se ao seu modo, pôr-se ao seu modo com o que lhe vem ao encontro. E o que vem à procura do homem, vem com seus paradoxos e mistérios, muitas vezes incontornáveis.

Para obtermos a totalidade da compreensão de sentidos do homem em sua relação com o que está em questão para ele (no caso, sua relação com o trabalho), requer que se amplie a visão para a medida vinculadora com a qual homem e mundo se encontram, nas possibilidades de abertura do ser-aí em seu horizonte histórico. E o tempo histórico da modernidade, conforme mencionado anteriormente, se caracteriza por um produzir ilimitado, um fazer incessante, em que as coisas são tomadas pelo seu caráter estritamente funcional, a fim de atender a essa produtividade. O produzir moderno, assim como toma os elementos da natureza, toma também o homem, a serviço desse fazer e refazer contínuo das coisas.

Pietrani (2019), baseando-se na filosofia heideggeriana, refere-se ao mundo moderno como o mundo da desmedida, onde predomina a lógica da produtividade que, por desconhecer limites, nunca cessa. Desse modo, o homem também é tomado pela marca da compulsividade, guiando seu fazer pela correspondência àquilo que lhe vem ao encontro. Considerando o caráter de desmedida do trabalho vigente, o homem passa a tomar-se também como um ente que vivencia o seu trabalho de forma ilimitada, sem pausas, envolvido exaustivamente com as demandas que lhe chegam. E ao assim proceder, sua medida mais própria para com sua tarefa laboral fica encoberta, gerando dor e sofrimento.

A técnica presente no produzir moderno e o uso da técnica pelas ciências médicas e humanas, ao valerem-se de medidas prévias, tendem a obscurecer a medida mais própria com que o homem lida com seu trabalho. Tendem a encobrir a singularidade dessa relação, com todas as contradições que ela implica, para se aterem apenas a um modelo único, que tanto o mundo do trabalho como o mundo das ciências logram determinar.

Para fundamentar sua noção sobre a técnica moderna e o produzir, Heidegger (1953/2007) se baseia na concepção da palavra produzir para os gregos, a techne. Esta se relacionaria ao trabalho do artesão, com sua arte, pelo aparecer do que se oculta. Em outras palavras, produzir, para os gregos, seria deixar "vir à presença (Anwesen) o que ainda não se apresenta" (Heidegger, 1953/2007, p. 379), o que vem também a se relacionar com a definição de aletheia para os gregos, como sentido do desvelamento da verdade. Ambas consistem em suspender qualquer posição prévia para se manter e manter o outro em uma posição libertadora, que deixe desvelar sua relação mais singular com o que está em questão para ele, que lhe permita ir ao encontro de sua medida mais própria. Como descreve Feijoo (2019, p. 165), "por não termos uma posição antecipadora é que podemos dar a cada um a oportunidade de conquistá-la. Dar, então, significa abrir um campo de possibilidades para que cada um possa conquistar a existência que é a sua".

Assim, compreendemos que o mundo moderno, revestido pelo caráter da técnica, reveste-se também de uma produção desmedida de saberes e fazeres, para conduzir o homem em sua medida existencial. Tanto o mundo do trabalho como o mundo das ciências humanas se esmeram em renovadas tentativas de orientar o homem sobre como ele tem que produzir no seu trabalho, assim como ele deve pensar, sentir e se comportar em relação a este. Por esse motivo, como descreve Feijoo (2019, p. 165), "a existência do homem passa a ser desconhecida por ele mesmo. [...] Em um círculo vicioso, cada vez mais o homem desconhece o sentido de sua existência e, na mesma medida, proliferam as tecnologias de si".

Logo, orienta-se o homem sobre o risco que é para ele o ato de cometer o suicídio, do mesmo modo como se procede em relação a um possível transtorno psíquico ou uma característica de comportamento considerada inadequada ao produzir moderno. "E, assim, damos o que não temos, roubando do homem aquilo que ele tem, ou seja, a possibilidade de conquistar a si mesmo, ou seja, a sua medida existencial" (Feijoo, 2019, p. 165).

Nossa proposta, portanto, sobre pensar o suicídio em sua relação com o campo do trabalho, sob a perspectiva da existência em Heidegger, é a de que a psicologia assuma uma postura fenomenológica. Ou seja, diante daquele que se diz intencionado em pôr fim à própria vida, em que ele próprio relaciona essa decisão ao modo como o trabalho aparece para ele, que a psicologia tome uma atitude antinatural, de modo a se aproximar do fenômeno sem partir de premissas acerca do suicídio como patologia, sofrimento, desespero, controle, da mesma forma que suspenda, fenomenologicamente, conceitos prévios acerca do mundo do trabalho. Ao agir assim, a psicologia pode encontrar a pessoa no desvelamento mais próprio em sua relação laboral, deixando vir à tona a singularidade dessa relação a partir dos sentidos que surgem para a pessoa. Logo, requer que suspendamos qualquer perspectiva prévia e sustentemos uma visada não moralizante acerca do fenômeno do suicídio e do trabalho, para que, desse modo, possamos nos aproximar daquele que diz não mais querer viver, sem a referência de uma moral normativa que estabeleça o que é bom ou mau, normal ou patológico. Ao assim atuarmos, consideraremos a relação homem-trabalho em suas possibilidades mais amplas, com os paradoxos que compõem essa relação, dentro daquilo que emerge na rede de sentidos para o homem.

 

Considerações Finais

Refletir sobre o fenômeno do suicídio em sua relação com o campo do trabalho a partir da perspectiva fenomenológico-hermenêutica se mostra como um desafio, tendo em vista a necessidade de nos afastarmos da concepção tradicional das ciências humanas e médicas, de modo que não nos deixemos cair em um novo método sobre como lidar com esse evento, nem que tampouco sejamos arrastados à sua indiferença. Nesse sentido, compreendemos a importância de encerrar este estudo, acentuando os aspectos que nortearam nossas reflexões.

Conforme vimos, o modelo médico-científico adotado pela psicologia e pela psiquiatria nos estudos acerca do mundo do trabalho (através da denominada psicologia organizacional) e da decisão pela antecipação da morte encontra-se em correspondência com um mundo que, baseando-se na análise dedutiva e no procedimento, busca gerar resultados, causar efeitos. Esse modelo se orienta pela busca das causas do problema, do distúrbio, para então dominá-lo. Uma vez que a aplicação desse modelo nas ciências físicas e biológicas gerou um poderoso instrumento de controle das mais diversas situações, sua aplicação aos fenômenos humanos tende a ser creditado também como eficiente.

Ocorre que, ao refletirmos sobre os fenômenos da existência, tal modelo pode se mostrar insuficiente. Isso porque a existência, em que o ser-aí se constitui sempre como projeto, não é dotada de elementos dados e acabados, tais como os objetos da física e da biologia. A existência nos convida a todo momento a lidar com suas demandas e a nos fazer nelas, um fazer enquanto ser que está sempre , nessa relação. Desse modo, a psicologia fenomenológica, ao contrário de prescrever modos de o existente lidar com sua existência, recuará, dará um passo atrás, para que essa relação, que é o próprio ser-aí, se deixe aparecer ao modo como, em suas possibilidades, possa se apresentar.

É nesse sentido que o conhecer, fundamentado no mundo da técnica como um conhecer pela lógica e pelo cálculo, é abandonado aqui para deixar que o fenômeno da morte voluntária em sua relação com o cotidiano laboral seja conhecido pela aproximação entre o psicólogo e o próprio homem diante de tal fenômeno, e que possam ambos meditar sobre ele, deixando-o aparecer nos seus vários modos possíveis. Esse saber, posto de lado no decorrer da modernidade, caminha na mesma direção com o que Heidegger chama de "o esquecimento do ser". Para o filósofo, a era moderna, com sua idolatria ao pensamento técnico-calculante, esqueceu-se do caráter de abertura em que o homem se dá na existência e se ateve à concepção de homem como simplesmente um ente, algo dado, e, portanto, manipulável e controlável. Para Heidegger, o sentido de compreensão do homem e seu modo de existência ficaram reduzidos ao caráter fático da existência, à questão da impessoalidade e do automatismo da era moderna, em que o homem é apenas mais um e não se distingue em seu si-mesmo.

A psicologia tradicional e a psiquiatria, ao conduzir seus estudos sobre o suicídio e o trabalho pela via do cientificismo, esquecem que o ser-aí carrega consigo a negatividade da existência, ou seja, uma existência que se dá por uma totalização sempre em curso, por um não-ser. Portanto, orientar o comportamento humano a partir de teorias prévias sobre o suicídio, tendo como base tão somente dados generalizáveis, é considerar que a existência já é dotada do determinismo, do pronto e acabado. Assim como o próprio contexto do trabalho determina medidas ao homem, assim também conceitos sobre o comportamento humano em relação ao suicídio orientam com suas medidas. Se pensarmos, conforme apresentamos anteriormente, que a medida que provém de fora sempre se dá por um padrão de comparação, ao homem caberá comparar-se ao modo como é afetado pelo padrão vigente do trabalho: feliz ou infeliz, doente ou saudável, adequado ou inadequado.

Entretanto, à psicologia fenomenológica -hermenêutica cabe encontrar o homem em sua relação profissional a partir da própria negatividade da existência, em que esta não é dada a priori, mas se constitui pela indeterminação, ao mesmo tempo em que demanda do homem, constantemente, posicionamentos em relação a ela. É nessa indeterminação, em meio aos paradoxos e contradições, que o homem se constitui na existência. A psicologia fenomenológico-hermenêutica buscará encontrar o homem em sua relação mais originária com o trabalho, sem métricas ou padrões de comparação, cabendo ao homem, na relação com as complexidades do mundo do trabalho, apropriar-se de sua medida, singularizar-se.

Baseando-nos na fenomenologia-hermenêutica em Heidegger, compreendemos que é possível pensar a relação homem-trabalho que não seja pautada apenas pelo seu caráter positivista, mas pela abertura em que essa relação se estabelece, em sua singularidade, para, assim, podermos apreender o sentido que está em jogo quando uma pessoa pensa em dar fim à sua vida.

 

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Recebido em 30,11.2020
Primeira decisão editorial em 12.07.2021
Aceito em 13.08.2021

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