SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28 número1Suicídio e trabalho na era da técnica: um olhar sob a perspectiva fenomenológico-hermenêuticaRelevância nas fenomenologias de Gurwitsch e Schütz: contornos de um problema índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.28 no.1 Goiânia jan./abr. 2022

http://dx.doi.org/10.18065/2022v28n1.10 

ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

 

Gadamer e a verdade da arte: a literatura como expressão e compreensão da (inter)subjetividade

 

Gadamer and the truth of art: literature as an expression and understanding of intersubjectivity

 

Gadamer y la verdad del art: la literatura como expresión y comprensión de la intersubjetividad

 

 

Jefferson Maciel Moraes GomesI; Almir Ferreira Silva JuniorII

IMestre em Psicologia pelo Programa de Pós Graduação em Psicologia - UFMA. Doutorando em Psicologia pelo Programa de Pós Graduação em Psicologia - UFF. Email: jeffersonmmgomes@gmail.com
IIProfessor permanente do Programa de Pós Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Email: alferjun@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo propõe-se a destacar o importante papel da arte, sobretudo da literatura, como recurso de expressão e compreensão da subjetividade. A metodologia é fundamentada pela hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, uma vez que este advoga pela arte como experiência ontológica de verdade, na medida em que pressupõe uma crítica dirigida à noção de subjetividade moderna com vistas a ressignificá-la pelo horizonte de uma relação eu-tu. Nesse sentido, com a intenção de experimentar a verdade da arte como experiência ontológico-dialógica, o artigo realiza um exercício de "aplicação" hermenêutico-filosófica (compreender é aplicar) por meio de uma interpretação da obra Água viva de Clarice Lispector, uma vez que seu enredo enfatiza a palavra poética como acontecimento de verdade intersubjetiva, atualizada no tempo e repleta de sentido.

Palavras-chave: Hermenêutica filosófica; Literatura; Subjetividade; Intersubjetividade.


ABSTRACT

This article aims to highlight the important role of art, especially literature, as an expression. and understanding of subjectivity. The methodology is based on Hans-Georg Gadamer's philosophical hermeneutics, considering his phylosophy sees the aesthetic experience as an ontological and genuine experience of truth and, consequently, lauches a critics to the modern subjectivity idea so that it might be redesign by a dialogical relation. For that, it is performed through hermeneutic application an interpretation of the book Agua viva by Clarice Lispector, since its story depicts the literatura or art made by poetic word as an intersubjective and genuine experience of truth, updated in time and full of meaning.

Keywords: Gadamerian hermeneutics; Literature; Subjectivity; Intersubjectivity.


RESUMEN

Este artículo destaca el importante papel del arte, especialmente la literatura, como recurso para la expresión y comprensión de la subjetividad. La metodología se basa en la hermenéutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, ya que él defiende la experiencia del arte como una experiencia de sentido, en la medida en que critica la noción de subjetividad moderna hacía replantearla como una relación yo-tú. En este sentido, entendiendo que en la hermenéutica de Gadamer comprender es aplicar, se realiza un ejercicio de interpretación del libro Agua viva de Clarice Lispector, considerando que su trama enfatiza la palabra poética como un evento de verdad intersubjetiva, actualizado en el tiempo y lleno de significado.

Palabras-clave: Hermenéutica de Gadamer; Literatura; Subjetividad; Intersubjetividad.


 

 

Introdução

As artes não carregam em si a preocupação de contar aquilo que são ou o que as envolve. Elas apenas se realizam no mundo sem assumir a responsabilidade de descrever sua própria substância ou aquilo que podem provocar em quem as contempla. Porém, o não compromisso direto das artes com os seus prováveis efeitos não significa um completo descompromisso delas para com o mundo. Na verdade, seus potenciais e importância são bastante reconhecidos, chegando a ser evidentes, tanto para a intuição mais simples quanto para saberes mais elaborados que conceituam o fenômeno estético. É nesse momento que entra em cena saberes como a filosofia, que por anos tem encontrado na estética e nas filosofias da arte uma grande fonte de instigação e reflexão sobre a singularidade do domínio da arte e do belo1. Dentre elas, sobressai a hermenêutica filosófica, que toma como base nuclear para a construção dos seus fundamentos o caráter paradigmático da experiência da arte como acontecimento de verdade e compreensão de mundo, para além dos limites metodológicos fixados pela ciência moderna.

De maneira geral, a hermenêutica se constitui uma expressão tradicionalmente vinculada às atividades (arte ou ciência) de interpretar textos, objetos, produções culturais trazendo-os à compreensão. Nesse sentido, ela implica tanto a noção de expressão (hermeneia), exposição (hermeneuein) quanto a ideia de intérprete (hermeneutés), aquele que revela uma mensagem. (Oses, 1997). Se a pluralidade de seus sentidos assume diferentes e marcantes versões teóricas - da tecnologia para uma boa compreensão à filosofia -, na década de 80 o filósofo italiano Vattimo (1999) a distingue como uma espécie de "topos koiné" da cultura ocidental, na medida em que se manifesta não simplesmente como uma prática interpretativa, mas como uma teoria cujo propósito é refletir e afirmar os direitos da interpretação e as experiências de sentido viabilizadas no médium da linguagem. Afinal, é a linguagem que nos articula ao espaço da interpretação e compreensão dos fenômenos e acontecimentos.

Aqui confere-se um destaque à hermenêutica filosófica gadameriana, de base ontológico-existencial, em cuja formulação destaca-se a retomada do problema clássico da verdade da arte em sua ressignificação ontológica de sentido2 e do fenômeno da compreensão como abertura de sentido, práxis e encontro com a tradição; fundamentos promissores para o exercício de uma filosofia da literatura que pensa a palavra literária como expressão de um acontecimento lúdico capaz de ampliar níveis de compreensão dialógica e horizontes interpretativos humanos.

Fascinado pelas artes, Gadamer dedicou grande parte dos seus investimentos intelectuais ao fenômeno estético, tendo sido influenciado por alguns nomes como Platão, Hegel, Dilthey, Husserl e Heidegger, porém não se firmando como um simples seguidor, já que em sua trajetória filosófica potencializa e desdobra tais ensinamentos, resultando uma teoria hermenêutica de identidade própria, inclusive no tocante ao problema ontológico da verdade, subjetividade e intersubjetividade3. A hermenêutica filosófica vê a experiência estética como um acontecimento de troca mútua entre sujeitos e objetos, o que não coloca em risco o seu rigor, podendo, ao contrário, até fazer frente ao absolutismo da ciência. Daí o propósito deste artigo constituir-se na tarefa de enfatizar a vitalidade da arte (literária) como modo legítimo de acontecimento das verdades do mundo e da humanidade, contemplando o caráter lúdico e dialógico de abertura de sentido, constitutivo da arte enquanto experiência hermenêutica.

Para tanto, em um primeiro momento, é estabelecida uma breve apresentação dos fundamentos da hermenêutica filosófica, privilegiando considerações sobre a hermenêutica da arte enquanto experiência ontológica de compreensão e acontecimento de verdade sob o médium da linguagem, bem como a especialidade da palavra poética. Após essa empreitada, Clarice Lispector e sua obra são apresentadas não só por conta de uma predileção pessoal, mas também devido ao modo peculiar como a escritora, de origem ucraniana e naturalizada brasileira, ousou em suas descrições sobre a substância da subjetividade, a dinâmica das relações eu-tu (intersubjetividade) e o acento da temporalidade como o instante-já. Em seguida, toma-se Água viva como objeto que manifesta a própria dinâmica do acontecimento estético por meio de uma leitura hermenêutica4, o que atende ao fundamento da hermenêutica como práxis e torna possível visualizar os conceitos hermenêutico-filosóficos que expressam o caráter de abertura do acontecimento ontológico da arte (jogo, símbolo e festa), bem como ilustram o vigor atualizado da palavra poética como compreensão dialógica de mundo.

 

H-G. Gadamer e sua Hermenêutica-Filosófica: A Arte como Experiência de Verdade

Nascido em 1900, Hans-Georg Gadamer parece representar um marco para o início de um século, cujos acontecimentos e pensadores motivariam a construção de novas posturas críticas acerca do modelo tradicional do conhecimento. Diferentemente do pai, Gadamer foge da tradição familiar e não se torna um investigador da natureza; em vez disso, ele envereda pelos caminhos das ciências humanas, tendo como principal motivação seu fascínio pelas artes e idiomas. Em sua principal obra, Verdade e método (Wahrheit und Methode), originalmente publicada em 1960, Gadamer expõe os fundamentos da sua hermenêutica filosófica, e sua postura crítica ao monopólio e excessos da ciência moderna, através, sobretudo, da restituição do valor de verdade de experiências como o acontecimento da arte.

As raízes ou mesmo estímulos teóricos que conduziram Gadamer a formular a proposta de uma hermenêutica filosófica foram a crítica à postura positivista que consistia em absolutizar um método de busca pela verdade. Para Gadamer, não seria esse o caminho que viabilizaria o alcance de uma fundamentação filosófica do conhecimento e do mundo, bem como do acesso à verdade. A compreensão, antes de tudo, constitui um modo de ser do homem vinculado a sua finitude. Eis o fundamento que determina a condição hermenêutica da existência humana, pois é a condição de finitude humana que faz da compreensão uma tarefa infinita, universal, circular, no interior da qual não se dá nenhuma objetividade e nenhuma neutralidade de observação e interpretação; o que não gera nenhuma recaída no subjetivismo.

Trata-se de uma particularidade filosófica5 demarcada pela ruptura com uma hermenêutica de caráter metodológico e o questionamento do paradigma da subjetividade moderna como fundamento para explicar o fenômeno da compreensão e interpretação humanas. Nesse intento, começa a ser considerado um contexto de tradição ao qual o processo de compreensão está radicalmente vinculado. A compreensão enquanto objeto de especulação deixa de ser abordada em seu caráter metodológico e passa a ser privilegiada em seu caráter ontológico, em que pese a decisiva contribuição da filosofia fenomenológica, mediante seus questionamentos sobre a consciência e a noção de existência, assim, é a partir de Heidegger e mediante a base ontológica da pergunta pelo sentido do ser que o problema hermenêutico da compreensão é redefinido.

O mestre Heidegger, cujo diferencial destacado por Gadamer (2007, p.11), era também "a força intuitiva fenomenológica" presente em seu olhar e discurso, na ocasião em que ministrava seus cursos, exerceu uma forte influência na hermenêutica filosófica, o que não significa que esta seja uma simples continuidade da fenomenologia heideggeriana. Embora seu impulso ontológico fundamental tenha sido dado por Heidegger, tendo em vista o significado e o horizonte da denominada "hermenêutica da facticidade" - o ser humano na condição de seu modo fático de ser -, o que propõe Gadamer, nos diz Stein (2004, p.74), é uma "ontologização da hermenêutica em sentido novo" 6, considerando ter em sua proposta uma hermenêutica da práxis, o desdobramento de uma ontologia lúdica e criativa e um diálogo permanente com a tradição, enquanto abertura plenamente atualizada de sentido. A pergunta pelo ser e o propósito específico de superação da metafísica clássica (Verwindung) (Gadamer, 2007, p.23), mediante a desconstrução de sua terminologia tradicional, são ampliados para o horizonte de uma sabedoria prática e de um vigor histórico, atualizado segundo um frutífero e permanente diálogo com os pré-conceitos e no confronto com o outro7. Como escreve Gadamer (2015, p. 305): "A compreensão começa aí onde algo nos interpela". Portanto, ela constitui agora uma "fusão de horizontes"; entendendo por horizonte "o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto" (Gadamer, 2015, p.307). Toda essa experiência dinâmica de encontro acontece no cerne da linguagem e se articula sob os efeitos da história (Wirkungsgeschichte) e soba escuta da tradição que, de modo atualizado, interpela os sujeitos. Pensada pela diretiva ontológico-heideggeriana, a relação linguagem e compreensão sobressai de modo muito relevante considerando que para o hermeneuta os seres humanos se compreendem no confronto com o outro, pois é na perspectiva do diálogo (Sprach) que é dissolvida a centralidade de um sujeito e de um objeto, ressignificando-os em uma relação sempre tensionada pela alteridade; só assim o homem pode ampliar seus horizontes, sobretudo, quando este reconhece que o outro pode ter razão (Grondin, 1999, p.92). Acerca da relação linguagem e diálogo diz Dutt (1998, p.58), em entrevista com Gadamer:

[...] à diferença de Heidegger, você não tem a intenção de criar uma nova consciência do diálogo e uma nova consciência da compreensão do ser, mas explicitar a ideia já existente do que é um diálogo. Por isso incorpora em seu discurso o que em nossos discursos cotidianos dizemos sobre a "compreensão" e a "conversação". Em um pequeno texto autobiográfico, você expõe uma réplica à famosa expressão da Carta sobre o humanismo que considero ilustrativa neste sentido: "me segue parecendo verdade [...] que a linguagem não é só a casa do ser, mas também a casa do homem, na qual vive, se encontra com outros, se encontra com o outro" (Dutt, 1998, p. 58).

Boa parte das proposições da hermenêutica filosófica são desenvolvidas em articulação com a estética. Na verdade, é sobre a experiência da arte que Gadamer se lança para fazer frente ao absolutismo da ciência, para isso, restituindo a ela seu valor de verdade de verdade. Para Gadamer (2010, 2015) existe a possibilidade de se encontrar um mundo na obra de arte, o qual se revela ao homem como universo que se expressa de maneira imediata, inspirando familiaridade enigmática e mobilizando o ser por inteiro e de maneira particular. A arte tem seu próprio modo de ser e se constitui, portanto, como experiência ontológica, cuja particularidade consiste nela possuir um em si convocador. Em outras palavras, a arte convida seus espectadores para um diálogo a partir do qual ela se realiza e revela a sua primazia que, ao se sobrepor aos personagens do autor e espectador, confere toda garantia do rigor daquilo que pode ser extraído através dela. Vale destacar que a retomada gadameriana da pergunta pela verdade da arte, além de ser inicialmente orientada pela noção heideggeriana de aletheia - desvelamento -, cujo ponto essencial é a "copertinência interna entre mostrar-se e esconder-se" (Gadamer, 2007, p.21), assume outros contornos na hermenêutica filosófica.

Em uma retrospectiva tardia, o hermeneuta alemão observa que a crítica à tradição metafísica só ganha força, em sentido hermenêutico, quando a mesma alcança e convoca o outro para qual se direciona enquanto fala. Desse modo, para além de refletir o movimento de pôr-se como obra enquanto acontecimento ontológico de velamento e desocultação, Gadamer (2000, p. 205) está preocupado em mostrar a relevância que a "presença misteriosa da arte possui" para o desenvolvimento das ciências do espírito. Afinal, parece estar bastante claro em Verdade e Método que a verdade não é uma questão de método, uma vez que esse não define a verdade e mantém com a mesma apenas uma relação de tensão.

Mas, se isso sustenta a desconfiança e descrédito na pretensão de verdade reivindicada em exclusividade pelo pensamento científico de base iluminista, por outro lado permite o hermeneuta explicitar a estrutura própria da experiência da arte - o seu vir ao encontro do homem - tendo em vista a anterioridade da presença da própria obra de arte. Uma hermenêutica filosófica da arte resultaria, por conseguinte, em pensá-la como experiência de finitude, de alteridade, e de diálogo com a tradição em uma temporalidade sempre atualizada. Para ilustrar essa dinâmica do acontecimento da arte, Gadamer (2015) submete a experiência da arte à aplicação dos conceitos ontológico-hermenêuticos, capazes de explicitar o modo de ser da arte: jogo, símbolo e festa.

O jogo se caracteriza como o modo de ser da obra de arte e está associado à ideia de ludicidade que não deve ser entendida como uma não-seriedade, mas sim como a característica que permite o acontecimento da própria arte e o acesso à verdade por meio dela. É o ser verdadeiro da obra de arte, não subjugado a uma subjetividade que atua no jogo, que a torna uma experiência capaz de transformar a vida daqueles que a experimentam:

Quando falamos de jogo no contexto da experiência da arte não nos referimos ao comportamento, nem ao estado de ânimo daquele que cria ou daquele que desfruta do jogo e muito menos à liberdade de uma subjetividade que atua no jogo, mas ao modo de ser da própria obra de arte (Gadamer, 2015, p. 154).

Pode-se afirmar que a obra de arte ludicamente comunica a si mesma. Ela possui seu próprio presente, retém em si a sua origem histórica e é, em particular, expressão de uma verdade que não está presa nem se limita aquilo que o seu autor e intérprete imaginam (Gadamer, 2010). A obra de arte possui uma primazia e é dela que o acesso à verdade pode brotar com todo rigor, dentro de uma inesgotabilidade que está para além dos anseios do próprio autor, bem como das percepções particulares de seus intérpretes. O jogo da verdade da arte significa que, enquanto acontecimento, ela constitui uma experiência de abertura paradigmática, pois sua atualização de sentido está sempre sendo revigorada por novos movimentos de encontro entre os jogadores.

Gadamer (2010, 2015) lembra que a linguagem da obra de arte se distingue ainda pelo fato dela reunir-se em si mesma e ainda trazer à aparência o caráter simbólico que, em termos hermenêuticos, advém a todo ente. Essa função representativa do símbolo não se trata de uma mera referência a algo que não está presente. Ela é, na verdade, mais do que isso, uma vez que o símbolo deixa aparecer como presente algo que, no fundo, está sempre lá:

[...] o que significa símbolo? É antes de tudo uma palavra técnica da língua grega e significa pedaços de recordação. Um anfitrião dá a seu hóspede a chamada "tessera hospitalis", ou seja, ele quebra um caco no meio, conserva uma metade e dá a outra ao hóspede, a fim de que, quando daí a trinta ou cinquenta anos um sucessor desse hóspede vier de novo à sua casa, um reconheça o outro pelo coincidir dos pedaços em um todo. Um antigo passaporte: este é o sentido originário de símbolo. É algo com que se reconhece em alguém um antigo conhecido (Gadamer, 1985, p. 50, grifo do autor).

Entende-se que a arte como símbolo, dentro do jogo que permite seu acontecimento, oferece ao espectador a possibilidade de reconhecer algo já dado no mundo (Gadamer, 2015). Esse reconhecimento é partilhado e desencadeia no conceito de festa ou celebração coletiva, o qual remete a uma reunião não necessariamente física. "A festa só existe na medida em que é celebrada. Com isso não se quer dizer, de maneira alguma, que seja de caráter subjetivo e que só tenha o seu ser na subjetividade dos que a celebram" (Gadamer, 2015, p. 181). Existe uma interação intersubjetiva que concede fôlego ao acontecimento artístico, revelando a primazia da obra de arte por meio do encontro entre uma ação criadora e outra espectadora que compartilham e celebram, de forma mútua, os sentidos de um fenômeno cheio de ludicidade.

De modo mais específico, Gadamer ainda ilustra a dinâmica desse acontecimento da arte, conferindo privilégios, dentre todas as manifestações artísticas, à arte que é feita com as palavras. Para ele, diferente das formas e cores, a palavra não é um elemento do mundo disposto em uma nova ordem; na verdade, "[...] toda palavra já é muito mais por si mesma elemento de uma nova ordem e, com isso, potencialmente, essa própria ordem na totalidade (Gadamer, 2010, p. 44)". A palavra verdadeira viria à tona na obra poética, podendo ali dizer mais do que em qualquer outro lugar. Na verdade, na obra poética a palavra se consumaria e, portando, teria as condições adequadas para experimentar o caráter próprio e estranho da linguagem.

Mergulhada em toda a sua inesgotabilidade a palavra poética pode desencadear sentidos que jogam e se enriquecem em um puro e rico processo de desvelamento, permitindo a seus autores, coautores e/ou intérpretes um acesso e redescobrimento do mundo com conceitos amplos, não cristalizados ou engessados. A ênfase sobre o valor polissêmico das palavras desemboca no desvelamento da extensibilidade da própria palavra, denunciando o quanto ela é capaz de abranger a riqueza de ânimos intrínseca aqueles que a proferem. Como representante de uma linguagem sem amarras e horizonte radical da ontologia hermenêutica, a palavra poética constitui-se, portanto, como uma possibilidade autêntica de realização do homem no mundo e do próprio mundo.

 

Clarice Lispector e Água viva: A Palavra Poética como Quarta Dimensão

De prenome sibilante e suave e com um sobrenome que ressoa opulência, Clarice Lispector (1920-1977) sempre se mostrou mestre na arte das palavras. Moser (2009) conta que Clarice, na curiosa tentativa de esconder suas origens estrangeiras, além de ter abreviado a idade com a qual havia chegado ao Brasil, também ousou latinizar-se, tendo dado ao seu nome de família, ucraniano e incomum, uma combinação figurativa mais abrasileirada, composta pelas palavras latinas lis (lírio) e pector (peito).

Essa artimanha é capaz de sugerir um pouco do quanto Clarice Lispector se revelou habilidosa no trato com as palavras, jogando com a sua polissemia, sobretudo, ao realocá-las dos seus domínios mais usuais. Pode-se dizer que Clarice fez uso com excelência da palavra poética, o que se confirma em muitas de suas obras por meio da manifestação de diálogos despretensiosos sobre a própria substância orgânica da palavra e a comunicação que provém delas. Acredita-se que Clarice, ao utilizar-se da palavra fora do seu domínio convencional, concede credibilidade distinta à palavra metafórica e amplia as portas de acesso ao mundo e as possibilidades de autocompreensão, o que, de certa maneira, lembra o entendimento gadameriano sobre o acontecimento da arte.

No romance Água viva, originalmente publicado em 1973, encontra-se um grande exemplo de uma narrativa que se concentra e propõe indagar o próprio pensamento de maneira inusitada, a partir dos atravessamentos da linguagem e seus imprevisíveis (des)encontros entre enunciado e enunciação. Ao longo de todo o texto existe uma reflexão sobre a distância entre aquilo que é dito, aquilo que se quer dizer e aquilo que se pode compreender. A palavra e o pensamento são retratados de modo não convencional, sem que sua validade seja vilipendiada; em vez disso, apega-se a polissemia da palavra poética ou metafórica para que se possa garantir ao mundo e aqueles que o anunciam e recepcionam, por meio das palavras, a pluralidade de estados e ânimos outrora negligenciada.

O enredo de Água viva situa-se atrás do pensamento. Sua questão central, ou como destaca Oliveira (2014), seu leitmotiv, é o tema do pensamento que atravessa todo o texto, forçando a pensar em um ato singular de pensar, contrário às formas tradicionais, o que elimina a chance de paradoxo. Disposto a revelar o (seu) mundo e suas interações com tudo aquilo que há nele, o eu-lírico do romance, personagem protagonista da própria história, assume as limitações da arte da pintura que dominava até então e adota a palavra poética como quarta dimensão, como forma de ir além ou expressar aquilo que já não é mais viável por meio de cores e formas.

Quando vieres a me ler perguntarás por que não me restrinjo à pintura e às minhas exposições, já que escrevo tosco e sem ordem. É que agora sinto necessidade de palavras - e é novo para mim o que escrevo porque minha verdadeira palavra foi até agora intocada. A palavra é a minha quarta dimensão (Lispector, 1998, p. 11).

Em sua constituição, Água viva é um romance cunhado de prosa poética; caráter muito exaltado e apreciado na escrita de Clarice Lispector. A narrativa apresenta um esgarçamento do enredo (Nunes, 1989), isto é, desobedece aos padrões do romance clássico, não possuindo uma história com fatos sequenciados, clímax ou desfecho claro. Na verdade, ela parece ser a todo instante um clímax e traz em si a especificidade do próprio incidente, sendo uma coisa que borbulha e, por isso, a preferência pelo título, como registrado em entrevista concedida por Clarice à Revista Textura de 1974 (Gotlib, 2013); (Boeno, 2017).

Em Água viva põe-se em destaque um estar no mundo que revela a vida na finitude fugidia do seu acontecimento e no horizonte intricado de suas relações, integrando o ser humano a tudo de mais diverso que possa existir no mundo. O tempo e a forma das coisas se mesclam e fluem de maneira singular, sendo celebrados enquanto um acontecimento dado na palavra poética que é, através do seu caráter multifacetado, o fio condutor que oportuniza uma riqueza de expressão, abrangendo desde uma palavra conceitual até o emergir do que não pode ser dito:

[...] e se tenho aqui que usar-te palavras, elas têm que fazer um sentido quase que só corpóreo, estou em luta com a vibração última. Para te dizer o meu substrato faço uma frase de palavras feitas apenas dos instantes-já. Lê então o meu invento de pura vibração sem significado senão o de cada esfuziante sílaba, lê o que agora se segue: "com o correr dos séculos perdi o segredo do Egito, quando eu me movia em longitude, latitude e altitude com ação energética dos elétrons, prótons, nêutrons, no fascínio que é a palavra e a sua sombra". Isso que te escrevi é um desenho eletrônico e não tem passado ou futuro: é simplesmente já (Lispector, 1998, p. 11-12).

Como forma de se adequar a esse modo particular de acontecimento da palavra, propõe-se uma maneira igualmente particular de captação das mensagens transmitidas por ela: "[...] o que te digo deve ser lido rapidamente como quando se lê" (Lispector, 1998, p. 17). É uma exigência que muito bem se encaixa à própria maneira com a qual o texto se desenrola, um texto que é todo escrito à beira e que, portanto, precisa também ser lido à beira. Inclusive todas as confidências do eu-lírico parecem se dirigir a um tu que a princípio não se sabe ao certo quem é, mas que, ao longo da narrativa, incorpora uma personalidade impessoal, identificando-se com a imagem de um leitor que é convocado para realizar o desejo de uma intenção.

Outro aspecto importante para entender a dinâmica particular das palavras no texto clariceano parece ser o comportamento de generosidade entre esse eu e tu que dialogam. Na verdade, a generosidade, assim nomeada por influência de Sartre (1989)8, desenha-se como condição fundamental para que a relação entre eles possa acontecer, mesmo a palavra tendo as suas fragilidades: "[...] escrevo-te toda inteira [...]. Ouve-me então com teu corpo inteiro" (Lispector, 1998, p. 10). Nisso se estabelece um primeiro diálogo mais direto entre a obra de Clarice e algo apontado por Gadamer (1985) sobre a realidade do jogo, uma vez que na perspectiva gadameriana o jogar sempre exige uma participação plena de quem joga, fazendo do espectador não um mero observador que vê o que se passa diante de si, mas alguém que participa do jogo e faz parte dele.

Destaca-se que essa participação é igualmente peculiar, uma vez que se reconhece que o que é narrado ultrapassa o narrador e o leitor. É dessa forma que a primazia da obra se denuncia:

[...] na verdade, a escrita ocupa o centro do fenômeno hermenêutico, na medida em que, graças ao escrito, o texto adquire uma experiência autônoma independente do escritor ou do autor, e do endereço concreto de um destinatário ou leitor. De certo modo, o que é fixado por escrito se eleva aos olhos de todos para uma esfera de sentido na qual pode participar todo aquele que esteja em condições de ler (Gadamer, 2015, p. 507).

Isso é o que garante ao acontecimento da arte o vigor ontológico de sua atualização, uma vez que quando a leitura se finaliza, a obra continua à espera de um novo encontro que possa reacendê-la, o que na obra de Clarice também parece ressoar quando o eu-lírico proclama que: "[...] tudo acaba mas o que te escrevo continua. O que é bom, muito bom (Lispector, 1998, p. 95). Essa continuidade atualizante se confirma ainda ao fim da obra quando mais uma vez é declarado que: "[...] o que te escrevo é um 'isto'. Não vai parar: continua (Lispector, 1998, p. 95). Ousa-se então reconhecer que, com a ajuda de Água viva, a verdade da palavra poética pode revelar-se como declaração atualizada, uma vez que na escrita a linguagem liberta-se do ato de sua realização e tudo o que é transmitido através dela permanece simultaneamente presente para qualquer atualidade (Gadamer, 2015).

 

Palavra Poética como Recurso Primeiro (ou último) de Redescoberta do Eu e do Mundo

Pode-se depreender que para Gadamer a palavra poética se revela como maneira distinta de acesso para aquilo que a palavra concreta não foi capaz de atingir, embora esta tenha tido largos alcances e promovido inúmeros avanços. De maneira paralela, ainda que sem associação direta, em Água viva, a palavra, enquanto escrita intocada e situada atrás do pensamento, surge como recurso último e emergencial para realizar o que não se conseguiu através da pintura, mesmo que ainda paire o risco do insucesso. A palavra poética como quarta dimensão incorpora-se, portanto, como fundamento distinto ou estratégia de resgate para contar o mundo e a si mesmo sem que se cometa deslizes, ou mesmo garantindo a preservação do próprio deslize como característica da palavra e de seus anunciadores.

Vislumbra-se Água viva como um romance que não só é objeto da estética, mas também como uma obra que despretensiosamente apresenta os elementos que integram o acontecimento estético, uma vez que ela se compõe de um eu-lírico que se direciona a um tu, tentando lhe transmitir uma mensagem e que, ao mesmo tempo, indaga-se sobre os alcances da própria linguagem que utiliza para se comunicar. Nessa história sem história a palavra ressoa como um dos personagens principais, ao lado de um emissor e um provável receptor que, de uma relação simbiótica, e somente por intermédio dela, podem ampliar suas compreensões do mundo e de si. Ao longo das páginas de Água viva, testemunha-se as evidências de como a herança do texto dirige-se ao leitor e o interpela dentro de uma relação sustentada pela reciprocidade, na qual o texto fala e o leitor se mantém aberto a ele, exercitando possibilidades de experimentação, onde ambos são nivelados e afetados no encontro (Silva Júnior, 2005).

Água viva se autodefine como um mergulho na matéria da palavra, versando sobre a própria substância que a constrói, seu fio condutor. Para isso, a narrativa é encabeçada por um eu-lírico que confessa amiúde não saber lidar com as palavras, mas se encoraja e se arrisca livremente em experimentações com elas. As palavras e seu manuseio são, portanto, as verdadeiras protagonistas da obra, o que a torna evidentemente metalinguística, ou um manifesto sobre o uso da palavra poética, sua produção e acesso, sugerindo a ilustração do jogo estético que acontece entre os personagens que compartilham de um mesmo universo simbólico e celebram o acontecimento da arte:

Cada um de nós é um símbolo que lida com símbolos - tudo ponto de apenas referência ao real. Procuramos desesperadamente encontrar uma identidade própria e a identidade do real. E se nos entendemos através do símbolo é porque temos os mesmos símbolos e a mesma experiência da coisa em si: mas a realidade não tem sinônimos (Lispector, 1998, p. 80).

Desde os seus primórdios a interação humana com os seus arredores se estabelece por meio da construção de uma rede simbólica que é compartilhada e atualizada através dos tempos entre seres que se reconhecem como sendo de uma mesma realidade. No domínio da arte, em especial, lida-se com uma realidade delicadíssima e transfigurada, o que não corresponde a uma distorção inconsequente ou sem fundamentos, mas sim resvala sobre um modo mais particular de diálogo, no qual a construção do sentido das coisas acontece por meio da convocação de outrem, o qual assume nada menos que o lugar de coautor: "[...] transfiguro a realidade e então outra realidade, sonhadora e sonâmbula, me cria" (Lispector, 1998, p. 22).

O leitor é então responsável pela germinação da semente que o escritor planta: "[...] você que me lê que me ajude a nascer" (Lispector, 1998, p. 36). É uma relação não só de generosidade, mas também de gentileza que, por vezes, devido ao grau de dependência, pode até levar ao susto: "[...] preciso terrivelmente de você. Nós temos que ser dois" (Lispector, 1998, p. 42). A aproximação entre esses dois personagens é tanta que eles chegam quase a se confundir, mostrando que um discurso que se particulariza é apenas um fragmento de um discurso que já foi um só, mas precisou se emancipar em vários outros para conceder direitos a uma interioridade. Ao sustentar seu discurso a partir de experimentações com a linguagem, Água viva torna-se uma prova de como são inconcebíveis vivências fundadas em um isolamento ou enclausuramento do eu ou de uma consciência desconectada dos outros. Resulta dessa reflexão o resgate da relevância dos atravessamentos subjetivos e interações entre as subjetividades como possibilidades autênticas de abertura para o mundo e autocompreensão. Ao escrever sobre a linguagem é como se Clarice se movimentasse, como lembra Gadamer (2009), para além da própria subjetividade, atingindo a interação dialógica que compõe a experiência da intersubjetividade.

A linguagem e a forma como os interlocutores se dispõem em Água viva ajudam na compreensão dessa ideia de interdependência entre os sujeitos, embora estes reivindiquem suas individualidades, particularidades e estranhamentos. Obviamente, existem maneiras peculiares que distinguem uma pessoa da outra, mas mesmo na diferença emerge o reconhecimento de algo que é uno e que, portanto, une os seres viventes. A voz que enuncia só se completa e se avaliza no olhar de um segundo, ou na perspectiva do outro, já que naquilo que é narrado existe a possibilidade de um reconhecimento, cuja confusão de identidades é evitada graças à ousadia de uma personalização: "[...] e se digo 'eu' é porque não ouso dizer 'tu', ou 'nós' ou 'uma pessoa'. Sou obrigada à humildade de me personalizar me apequenando mas sou o és-tu" (Lispector, 1998, p. 13).

(...) ao se deparar com o outro, o eu depara-se consigo, uma vez que entram em jogo diferentes modos de ser, sendo levados à experiência profunda de si, desafiando a ser outro. Quem participa do diálogo sai transformado, porque, na experiência estética, efetiva-se um estranhamento em que algo nos afeta, interpela. Isso evidencia o ser humano como um acontecer no jogo intersubjetivo aberto, nos termos de Gadamer. É por isso que somos da forma que somos, que podemos deixar de ser o que somos e que podemos vir-a-ser outro (Lago, 2011, p. 107).

A partir da preservação do entrelaçamento necessário entre o eu e o tu, e com a ambientação da palavra poética, salta aos olhos o caráter de inesgotabilidade que dá aos personagens eu-tu a chance de anunciar e receber um mundo pleno de sentido e com a capacidade de a todo momento ser reinventado e recontado:

[...] ouve-se, ouve o silêncio. O que te falo nunca é o que eu te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e, no entanto vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão. Um instante me leva insensivelmente a outro e o tema atemático vai se desenrolando sem plano, mas geométrico como as figuras sucessivas num caleidoscópio (Lispector, 1998, p.14).

A lógica do que é escrito em Água viva é outra, bem diferente, por exemplo, da lógica que sustenta os princípios sólidos da matemática, a qual o eu-lírico declara como sendo a loucura do raciocínio: "[...] será que isto que estou te escrevendo é atrás do pensamento? Raciocínio é que não é. Quem for capaz de parar de raciocinar - o que é terrivelmente difícil - que me acompanhe" (Lispector, 1998, p. 33). Contudo, o conteúdo que se encaminha ao leitor não mergulha, por isso, em completa ilogicidade, uma vez que: "[...] no atrás do pensamento está a verdade que é a do mundo" (Lispector, 1998, p. 85).

[...] o pensamento que encontramos ou pescamos nas entrelinhas de Água viva de Clarice Lispector distancia-se do pensamento racional que é regido pela inteligência lógica. Pensar, a partir das sugestões que encontramos no texto Água viva de Clarice Lispector, é, por via da intuição estética, traçar uma nova imagem do pensamento: não mais o pensamento habitual, tradicional, o exercício natural de uma faculdade, mas sim um pensamento invertido, dificultoso, que se situa "atrás do pensamento" lógico ou da inteligência (Oliveira, 2014, p. 51).

Água viva faz, portanto, o caminho inverso da tradição moderna, conforme não delimita os atravessamentos subjetivos nem engessa aquilo que pode ser atingido por eles; e ao mesmo tempo em que nega o ensimesmamento, também recusa a frágil ideia de imparcialidade. Preza-se pela articulação, pela troca entre os sujeitos e os objetos. É a fuga de uma realidade que para se organizar se cindiu e o resgate de um elo e uma (des)ordem que são intrínsecas à condição da existência humana: "[...] quero a experiência de uma falta de construção. Embora este meu texto seja todo atravessado de ponta a ponta por um frágil fio condutor - qual? o do mergulho na matéria da palavra? o da paixão?" (Lispector, 1998, p. 27).

Contudo, o romance não é pura desorganização. Na verdade, ele se estrutura através de aspectos que não atendem a uma expectativa prática de ordem, pelo menos não da ordenação convencional. É como se houvesse um resgate da realidade dentro de uma confusão comum que a constitui, onde saberes se esbarram e podem até mesmo se complementar, a exemplo do que acontece ao longo das páginas onde as flores são introduzidas por uma abordagem marcadamente botânica antes das suas descrições metafóricas:

Agora vou falar da dolência das flores para sentir mais a ordem do que existe. Antes te dou com prazer o néctar, suco doce que muitas flores contêm e que os insetos buscam com avidez. Pistilo é órgão feminino da flor que geralmente ocupa o centro e contém o rudimento da semente. Pólen é pó fecundante produzido nos estames e contido nas anteras. Estame é o órgão masculino da flor. É composto por estilete e pela antera na parte inferior contornando o pistilo. Fecundação é a de dois elementos de geração - masculino e feminino - da qual resulta o fruto fértil (Lispector, 1998, p. 56).

Por mais distinta que tente ser, a forma de dizer em Água viva denuncia-se também insuficiente, mas, ao contrário do discurso técnico, essa insuficiência não se configura um defeito a ser mascarado por uma estatística ou margens seguras de erro: "[...] há muita coisa a dizer que não sei como dizer. Faltam as palavras. Mas recuso-me a inventar novas: as que existem já devem dizer o que se consegue dizer e o que é proibido" (Lispector, 1998, p. 29). Com a recusa para formular novas palavras a tendência é que o sentimento de falta permaneça e a dificuldade em dizer perdure, seguindo a lógica do reconhecimento de uma incompletude que paira sobre a existência:

Nenhuma palavra humana pode expressar nosso espírito de uma maneira perfeita. Mas como já o indicou a imagem do espelho, isso não representa a imperfeição da palavra como tal. A palavra reproduz de fato e por completo aquilo a que o espírito tem em mente. Antes, a imperfeição do espírito humano consiste em que não possui jamais uma atualidade perfeita de si mesmo, mas encontra-se disperso, tendo em mente uma vez isso, outra vez aquilo (Gadamer, 2015, p. 549).

Não existe, portanto, palavra que possa expressar ou descrever a realidade do eu de forma perfeita, o que não denuncia uma falha desta, mas desvela a impossibilidade da existência de uma descrição que não se disperse. Por isso, ela não se esgota em sua função designativa e sempre ultrapassa uma possível função conceitual que esgote seu sentido na formulação dos enunciados. A palavra reproduz a humanidade tal como ela é, em sua completude hesitante, detendo a palavra poética o caráter de não se isentar da sua substância vacilante que harmoniza seu ser semântico e polissêmico à realidade humana que é igualmente numerosa e diversa.

 

Considerações Finais

Ao longo da história, criou-se uma distância entre a sensibilidade da estética e o rigor da ciência moderna tradicional, o que acabou reservando à arte uma apreciação que, amiúde, resume-se a sua beleza ou a seu suposto caráter descompromissado. Por isso, ainda que se reconheçam os potenciais artísticos, parece ser sempre necessário, sobretudo, em cenários majoritariamente regidos pela lógica da ciência, sustentar a verdade estética por meio de algum outro discurso que seja capaz de garantir a sua legitimidade - mesmo porque a arte em si mesma não assume propriamente o compromisso de ser uma alternativa à verdade. Na realidade, ela se manifesta como um acontecimento de verdade, na medida em que expressa, historicamente, de maneira pungente e cativante, o mundo e as subjetividades em constante diálogo.

Hans-Georg Gadamer esteve entre os nomes que se preocuparam em reaver o lugar de importância filosófica da arte. Como filósofo do diálogo e mais próximo de um fazer pragmático, ele repensou, de forma muito original, o sentido da própria experiência, contribuindo para uma perspectiva em que a verdade da experiência da arte pudesse ser pensada apenas como diferente e não inferior à experiência do cientista. Por meio do reconhecimento da arte como experiência ontológica de verdade, entendendo por ontologia o em si convidativo e convocador da arte, a hermenêutica-filosófica motivou um resgate dos sujeitos em diálogo no que concerne aos modos de se construir o saber e acessá-lo, a partir de uma dinâmica que é claramente dialógica e enredada por realidades diferentes.

Entre os modos de manifestação artística atribuiu-se mais destaque à literatura por conta da sua natureza semântica, marcadamente, mais polissêmica e afetiva. A partir da particularidade da palavra poética, como Gadamer se refere à arte com a palavra, foi mais exequível construir descrições autênticas acerca das realidades humanas e suas relações particulares, provando como o contato com ela constitui uma grata estratégia de acesso a um material humano adequado para o entendimento do psiquismo, da subjetividade e do comportamento, assim, tornando-se edificante para a formação (profissional e pessoal) daqueles que se encontram inseridos em contextos cujo foco é o cuidado humano (Freire, 2008).

Ao não se submeter a um rigor técnico, mas, em vez disso, explorar ao máximo uma linguagem mais pitoresca, a arte literária não se alheia de forma alguma do mundo e de seus acontecimentos circundantes, ao contrário do que poderia sugerir opiniões mais equivocadas (Germano, 2006). Na verdade, ela transfere para os seus domínios as realidades, revelando-se como meio de pensar e transmitir a experiência entre as pessoas distanciadas pelo espaço, tempo e por suas realidades de vida, tornando, assim, quem a aprecia mais sensível, melhor e mais sábio (Compagnon, 2009). Ela é fonte de um saber enriquecedor e pode promover perspectivas ou até mesmo índoles mais humanitárias.

Por meio de modos nada convencionais, a literatura desconcerta, gera incômodo, desnorteia e, assim, orienta curiosamente muito mais que outros saberes como a filosofia, psicologia ou sociologia. Isso acontece porque ela atinge as emoções e a empatia, atravessando regiões e experiências que outros discursos não alcançam; na verdade, é exatamente por se lançar mais a fundo que ela acaba se tornando mais capaz de reconhecer essas regiões e experiências com muito mais detalhes vívidos (Compagnon, 2009). Provém disso a possibilidade do mundo ser retratado e vislumbrado por uma ótica cuja diferença consiste no zelo espontâneo por uma plenitude e pluralidade, a exemplo do eu e do mundo que na prosa poética de Clarice podem ser não somente redescobertos, como também motivam redescobertas particulares que se atualizam no tempo.

 

Referências

Boeno, N. S. (2017). Água viva de Clarice Lispector: crítica textual, escritura entrelinhar, palavra objetivada. Revista da ABRALIN, v. 16, n. 2, p. 387-414.         [ Links ]

Bleicher, J. (1992). Hermenêutica contemporânea. (M. G. Segurado Trad.). Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Compagnon, A. (2009). Literatura para quê? (L. T Brandini Trad.). Belo Horizonte: Editora UFMG.         [ Links ]

Dutt, C. (1998). En conversación com Hans-Georg Gadamer: Hermenéutica - estética - filosofía práctica. (T.R. Barco Trad.) . Madri: Tecnos.         [ Links ]

Freire, J. C. (2008). Literatura e psicologia: a constituição subjetiva por meio da leitura como experiência. Arquivos brasileiros de psicologia, v.60, n.2. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/revistas/rag/pinstruc.htm.         [ Links ]

Gadamer, H. G. (1985). A atualidade do belo. (C. A. Galeão Trad.). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.         [ Links ]

Gadamer, H. G. (2000). "Retrospectiva dialógica à obra reunida e sua história da efetuação" - Entrevista de Jean Grondin com Hans-Georg Gadamer. In: Almeida, C. L. Silva de, Flickinger, H-G., & Rohden, L., (Orgs.). Hermenêutica filosófica; nas trilhas de Hans-Georg Gadamer. Porto Alegre: Edipucrs.         [ Links ]

Gadamer, H. G. (2005). Quem sou eu, quem és tu? comentários sobre o ciclo de poemas Hausto-Cristal de Paul Celan. (R. A. Samara Trad.). Rio de Janeiro: Eduerj.         [ Links ]

Gadamer, H. G. (2007). Lembranças dos momentos iniciais de Heidegger. In: Gadamer, H. G. Hermenêutica em retrospectiva. (M. Casanova Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Gadamer, H. G. (2009). Subjetividade e intersubjetividade, sujeito e pessoa. In: Gadamer, H. G. Hermenêutica em retrospectiva. (M. Casanova Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Gadamer, H. G. (2010). Hermenêutica da obra de arte. (M. A. Casanova Trad.). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes.         [ Links ]

Gadamer, H. G. (2015). Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. (F. P. Meurer Trad.). Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Germano, I. (2011). Éramos cinco. Em EWALD, A. P. (Org.). Subjetividade e literatura: harmonias e contrastes na interpretação da vida. (pp. 155-168). Rio de Janeiro: Nau.         [ Links ]

Gotlib, N. B. (2013). Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Edusp.         [ Links ]

Grondin, J. (1999). Introdução à hermenêutica filosófica. (B. Dischinger Trad.). São Leopoldo: Editora Unisinos.         [ Links ]

Grondin, J. (2000). Hans-Georg Gadamer: una biografía. (A. Pilári & R. Bernet Trad.). Barcelona: Herder.         [ Links ]

Habermas, J. (1987). Dialética e Hermenêutica. (A. L. M. Valls Trad.). Porto Alegre: LPM.         [ Links ]

Lago, C. (2011). Experiência estética e formação: articulação a partir de Hans-Georg Gadamer. (Tese de Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.         [ Links ]

Lispector, C. (1998). Água viva. Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

Moser, B. (2009). Clarice, uma biografia. (J. G. Couto Trad.). São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

Nunes, B. (1989). Clarice Lispector ou o naufrágio da introspecção. Remate de males. Campinas, v. 9, p. 63-70.         [ Links ]

Oliveira, C. A. (2014). A intuição como método na composição de Água viva (versão final), de Clarice Lispector: a vizinhança da literatura e a filosofia de Bergson. (Tese de Doutorado em Letras). Universidade Federal do Espírito Santo.         [ Links ]

Oses, A.O. (1997). Diccionario de hermenéutica. Bilbao: Universidad de Deusto.         [ Links ]

Rohden, L. (2012). Hermenêutica filosófica: entre Heidegger e Gadamer! Natureza Humana, v. 14, n. 2, p. 14-36.         [ Links ]

Sartre, J. P. (1989). Que é literatura? (C.F. Moises Trad.). São Paulo: Editora Ática.         [ Links ]

Silva Júnior, A. F. (2005). Estética e hermenêutica: arte como declaração de verdade em Gadamer. (Tese de Doutorado em Filosofia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.         [ Links ]

Souza, T. M.(2011). O movimento entre a ética e a estética em Sartre: a prosa e a compreensão dos paradoxos humanos. In: Ewald, A. P. (Org.). Subjetividade e literatura: harmonias e contrastes na interpretação da vida. (pp. 169-204). Rio de Janeiro: Nau.         [ Links ]

Stein, E. (2004). Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS.         [ Links ]

Vattimo. G. (1999). Para além da interpretação. (R. Paiva, Trad.) . Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.         [ Links ]

 

 

Recebido em 21.03.2019
Primeira Decisão Editorial em 05.11.2019
Segunda Decisão Editorial em 17.01.2021
Aceito em 01.02.2021

 

 

1 O ressurgimento da estética como experiência de compreensão humana consolida-se entre os séculos XIX e XX quando a filosofia atualiza o seu sentido com o concreto e reconhece nas artes um modo de expressão máxima da realidade humana. Mantendo a particularidade de seus discursos, filosofia e artes aproximam-se por intermédio de um diálogo entre a conceituação e a retratação do vivido, complementando-se, iluminando uma a outra. (Souza, 2011).
2 Ressalte-se, todavia, que ao abordar a arte como acontecimento de verdade, segundo a hermenêutica filosófica, pressupõe-se uma concepção ontológica de verdade, cuja significação não se refere a uma teoria da correspondência, mas a um processo de abertura e desvelamento (aletheia) em diálogo com a tradição (Uberlieferung). A verdade é pensada a partir do seu modo de ser (ontologia) ou na sua dinâmica de manifestação, no seu revelar-se . Por isso, a necessidade e importância de se considerar as experiências de arte como advertência à metodologia científica moderna, na medida em que esta última toma como referência uma concepção de verdade engessada. Assim, a concepção ontológica, além de não insinuar uma verdade única sobre as experiências, relativiza-se com o intuito de pensar o humano na amplitude das suas manifestações e experiências intersubjetivas.
3 Gadamer (2009) seguia o princípio metodológico de não empreender nada sem antes prestar contas com a pré-conceptualidade de seu filosofar. Nesse sentido, ele sabia que para abrir novos horizontes para a problemática da intersubjetividade, ele teria antes que explicitar o conceito de subjetividade e seu papel na fenomenologia. "Ao apropriar-se da proposta husserliana, Gadamer não apenas corrigiu seu mestre como também a proposta de Husserl, uma vez que, no modelo estrutural do jogo, nem a subjetividade nem a transcendentalidade são absolutizadas ou negadas, pelo contrário, são situadas e conservadas relacionalmente e, por isso, potencializadas" (Rohden, 2012, p. 26). Ainda nesse movimento de prestação de contas, Gadamer (2009) lembra a crítica de Heidegger à filosofia de Husserl, na qual aquele visando a estreiteza de uma concepção do ser diverge da ideia de uma validade do conceito de autoconsciência e sua função basilar para o idealismo transcendental. Preocupado prioritariamente com a questão do ser, Heidegger chega ainda a ver o outro como limitação da própria existência, o que vem marcar a diferença entre Gadamer e seu mestre: "(...) assim o penso, justamente o fortalecimento do outro contra mim mesmo descortina para mim, pela primeira vez, a possibilidade propriamente dita da compreensão. Deixar o outro viger contra si mesmo - e foi a partir daí que surgiram todos os meus trabalhos hermenêuticos - não significa apenas reconhecer em princípio o caráter limitado do próprio projeto, mas exige precisamente que alcancemos um âmbito para além das próprias possibilidades no interior do processo dialógico, comunicativo, hermenêutico" (Gadamer, 2009, p. 109).
4 Na leitura hermenêutica compreende-se o intérprete como um leitor apreciador ou alguém que questiona a obra e é conhecedor da língua em questão, tendo como foco o valor semântico das palavras (Gadamer, 2005). Na obra Quem sou eu, quem és tu?, Gadamer (2005), na tentativa de esclarecer o hermetismo dos versos do poeta romeno e naturalizado francês Paul Celan, revelou nos seus versos as relações de simultaneidade e estranhamento entre as instâncias eu e tu, evidenciando, de certa forma, o modo como ele, a partir da sua filosofia hermenêutica, refletia o fenômeno da subjetividade. A leitura hermenêutica a ser desenvolvida, por sua vez, não tem o propósito de esclarecer hermetismo algum, mas sim abordar a prosa poética de Clarice como uma possibilidade de redescoberta do eu e do mundo.
5 Segundo Bleicher (1992), três são as tendências da crítica hermenêutica contemporânea, na tentativa de abordar o problema hermenêutico do significado das expressões humanas: a teoria hermenêutica como teoria geral das interpretações, ou metodologia das ciências humanas; a filosofia hermenêutica, crítica ao objetivismo e ao metodologismo, enquanto busca de um conhecimento fundamentado na explicação e descrição do "Dasein" humano, em sua temporalidade e historicidade; e a hermenêutica crítica, em seu desafio crítico aos considerados pressupostos idealistas, subjacentes tanto à filosofia hermenêutica, quanto à teoria hermenêutica. A hermenêutica filosófica situa-se como uma expressão da filosofia hermenêutica, no horizonte da qual a obra deste filósofo empreende uma viragem linguístico-filosófica.
6 Sobre o impulso fundamental que a fenomenologia exerceu no caráter de valorização ontológica do problema da compreensão, junto à proposta hermenêutico-filosófica, convém destacar uma passagem do diálogo estabelecido entre Gadamer e Habermas e, de modo mais específico, no pronunciamento habermasiano intitulado "Hans-Georg Gadamer: Urbanização da província heidegeriana", proferido por ocasião da entrega do Prêmio Hegel, de 1979 em Stuttgart. Enquanto discípulo de Heidegger, cujo pensamento radical instala um abismo ao redor de si, a hermenêutica filosófica de Gadamer teria naquele momento o mérito de lançar uma ponte que não apenas neutralizasse o distanciamento entre as ciências humanas e a filosofia, bem como pudesse transpor o abismo ocasionado pela filosofia heideggriana. Habermas explicita melhor essa idéia assim afirmando: "[...] a imagem de ponte sugere falsas conotações [...] Eu preferia dizer que Gadamer urbaniza a província heideggeriana. Vale ressaltar que a palavra 'província' (Provinz), sobretudo em alemão, nós associamos não somente ao limitativo, mas também o teimoso, o cabeçudo (Dickschädelig-Eingenssinnig) e o primitivo ou original (Ursprünglich)" (Habermas, 1987). Tal ideia de urbanização implica, portanto, que Gadamer construiu a sua própria concepção de hermenêutica.
7 Lago (2011) reforça que Gadamer não funda os referenciais à crítica da teoria estética, mas os potencializa de pensadores como Heidegger na medida em que escolhe "o conceito de subjetividade como objeto de uma reflexão histórico-conceitual a fim de abrir um novo horizonte para a problemática da intersubjetividade" (Gadamer, 2009, p. 106). Ele supera a distinção estética fundada na unilateralidade ora do objeto, ora do sujeito, compreendendo, em vez disso, o envolvimento entre eles menos como interação e mais como articulação, o que significa afirmar que o movimento constitutivo da experiência não se encerra em pura subjetivação tampouco alheamento total, senão ocorre na e com a experiência (Erfahrung), sendo, por isso, dialogal, ontológica (Lago, 2011).
8 "[...] a leitura é um exercício de generosidade; e aquilo que o escritor pede ao leitor não é a aplicação de uma liberdade abstrata, mas a doação de toda a sua pessoa, com suas paixões, suas prevenções, suas simpatias, seu temperamento sexual, sua escala de valores". (Sartre, 1989, p. 42).

Creative Commons License