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Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.9 no.2 São João del-Rei Dec. 2014

 

ARTIGOS

 

Perfis de mães detentas convivendo com seus filhos

 

Profiles of imprisoned mothers living with their children

 

Perfiles de madres reclusas conviviendo con sus hijos

 

 

Ilka Franco FerrariI; Marília Novais da Mata MachadoII

IDoutora pela Universidade de Barcelona, Espanha, professora nos cursos de graduação e pós-graduação da PUC Minas, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, com sede em Paris, França. Endereço: francoferrari@terra.com.br
IIDoutora pela Universidade de Paris Norte (Paris XIII). Professora Visitante Nacional Sênior (PVNS/Capes) junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei e junto ao Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial (Lapip), da mesma instituição. Endereço: marilianmm@gmail.com

 

 


RESUMO

O texto percorre informações extraídas de ampla pesquisa que tem como objeto de estudo o Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade (CRGPL), situado na cidade de Vespasiano, Minas Gerais. Dedica-se, especialmente, à apresentação de dados estatísticos que configuram um perfil das detentas daquela instituição, trazendo também considerações advindas de observações e conversações realizadas com detentas, que temperam a aridez numérica e mostram outra face do perfil. Descrições quantitativas e qualitativas do perfil das detentas são marcantemente diferentes, sugerindo que, como práticas de pesquisa, os dois métodos mais disputam que se harmonizam em seus resultados.

Palavras-chave: mães detentas, pesquisa-intervenção, perfil estatístico, conversações.


ABSTRACT

The text covers information drawn from an extensive research that has as its subject matter the Reference Center for Pregnant Women Deprived of Freedom (CRGPL), located in Vespasiano, Minas Gerais. It is dedicated especially to the presentation of statistical data that configures a profile of the inmates of that institution, but it also brings considerations arising from observations and conversations held with inmates, tempering the numerical aridity and showing another side of the profile. Quantitative and qualitative descriptions of the inmates' profile are markedly different, suggesting that, as research practices, the two methods most dispute that harmonize in their results.

Keywords: mothers inmates, intervention research, statistical profile, conversations.


RESUMEN

El texto cubre informaciones extraídas de una extensa investigación que tiene como objeto de estudio el Centro de Referencia à Gestante Privada de Liberdade (CRGPL), ubicado en la ciudad de Vespasiano, Minas Gerais. Se dedica especialmente a la presentación de los datos estadísticos que configuran un perfil de las reclusas de la institución, incluyendo también consideraciones derivadas de observaciones y conversaciones mantenidas con las reclusas, templando la aridez numérica y mostrando otro lado del perfil. Las descripciones cuantitativas y cualitativas del perfil de las reclusas son muy distintas, lo que sugiere que, como prácticas de investigación, los dos métodos más que armonizan, disputan sus resultados.

Palabras clave: madres reclusas, investigación-intervención, perfil estadístico, conversaciones.


 

 

São apresentados, neste artigo, resultados parciais de uma pesquisa realizada no Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade do Sistema Prisional de Minas Gerais (CRGPL). Essa instituição foi inaugurada em 2009, na cidade de Vespasiano, região metropolitana de Belo Horizonte, com o objetivo de humanizar o sistema prisional por meio da garantia de convívio de mãe-detenta e filho, em instalações sem grades e celas, desde os dois últimos meses de gestação até o final do primeiro ano de vida da criança.

É a única unidade prisional da América Latina com essas características. Excepcionalmente acolhe mulheres grávidas antes do sétimo mês, quando o caso exige cuidados. Há também eventos de permanência além de um ano, quando há impasses na destinação da guarda da criança e a mãe deve continuar presa em outro cárcere. Há casos, ainda, de mulheres que ali são ingressadas após o parto.

Planejado para 35 detentas, na época do início da pesquisa o Centro de Referência abrigava 56 e suas instalações estavam sendo ampliadas em razão de demanda crescente. Ao finalizar a pesquisa, em área maior que os quatro mil metros quadrados iniciais, ele já abrigava 78 detentas. Nele há 13 alojamentos, cada um com cerca de quatro a seis berços. O modo de organização supõe colocar nos alojamentos mais antigos as mulheres com filhos maiores e, no novo alojamento, aquelas que estão grávidas ou com filhos recém-nascidos. Há uma equipe profissional multidisciplinar para acompanhar a constituição dos vínculos afetivos de mães e filhos, capacitar as detentas quanto a cuidados gerais da criança, puericultura e higienização e para prepará-las para o processo de separação do filho.

Visitas à instituição e conversas com a diretora, com a psicóloga e com algumas presas, antes do desenvolvimento do projeto para esta pesquisa, apontaram incertezas e antecipações de sofrimentos relativos à experiência no Centro. Todas sabem que a mãe detenta fica isolada da própria família (esta, quase sempre, residente em outra Comarca), que poderá não ter a guarda da criança, depois de um ano de dedicação praticamente integral a ela, e, caso siga ingressada, deverá mudar de prisão depois desse período. Detentas e funcionárias indagam sobre o destino da criança, sobre a vida sexual dessas mulheres, sobre a homossexualidade ocasional, institucional, já que ali elas não podem receber visitas íntimas, ou seja, estão em um lugar onde a condição de mulher lhes é negada.

É possível encontrar reportagens televisivas e impressas sobre o Centro de Referência, mas não se encontra pesquisa a respeito dele. Esta foi a primeira que se realizou. Nela o Centro é visto como um caso a ser estudado, um importante local de passagem, um sintoma referido ao Outro social responsável por garantir o estabelecimento e a manutenção de laços sociais. A pesquisa inseriu-se no Núcleo de Psicanálise, Psicopatologia e Sociedade (Nupps) do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC Minas, coordenado pela pesquisadora responsável. Igualmente, vinculou-se ao Laboratório de Estudos Clínicos da Faculdade de Psicologia da PUC Minas e contou com a participação de quatro pesquisadores interinstitucionais. Um do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial (Lapip), da Universidade Federal de São João del-Rei, outro do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de Pernambuco e mais dois internacionais: um professor da Universidade de Barcelona (Espanha) e outro da Universidade de Antioquia (Colômbia), ambos psicanalistas filiados à Associação Mundial de Psicanálise.

A pesquisa como um todo buscou investigar o Centro de Referência como uma resposta social às questões do mal-estar na civilização atual, a partir do aprisionamento das mulheres e seus filhos, o que instaura questões diversas sobre formas de laços sociais e modos sintomáticos de vida que convocam as políticas públicas. Para tanto circunscreveu um perfil das 56 detentas da época, considerando fichas institucionais, especificamente os documentos advindos da área jurídica da área psicológica. Esses documentos forneceram informações que puderam ser quantificadas, mas que, também, foram tomados como discursos da instituição passíveis de análise. Além disso, mostrando outro lado do perfil, a pesquisa contou com informações advindas de conversações realizadas com detentas e funcionárias, sustentadas por formalizações do psicanalista francês Jacques-Alain Miller, no livro La pareja y el amor (2003). Trata-se de um dispositivo da psicanálise clínica que tem se estendido a outros espaços como psicanálise aplicada. É procedimento grupal em que os participantes debatem sobre tema proposto, sem a injunção de um saber prévio conduzindo o trabalho e considerando a dimensão do sujeito, ainda que em grupo. Nesse modo psicanalítico de trabalhar, os sintomas das instituições permitem a análise quando os sujeitos que a constituem e desconstroem podem se expressar.

Como método, o trabalho realizado foi o de uma pesquisa-intervenção, fundada numa declarada ignorância fecunda permitida ao pesquisador (Ferrari, 2008). Seus dispositivos levaram em conta as dimensões simbólicas da pesquisa, a demanda institucional, a revisão continuada do contrato com a instituição, a posição de terceiros dos pesquisadores /interventores, a complexidade do Centro de Referência, a autonomia pessoal e política do coletivo envolvido e a coparticipação desse coletivo (Machado, 2004). Foi feita a devolução das observações realizadas, dos dados e informações levantados, das imagens feitas, que compuseram um vídeo, e das reflexões suscitadas. Escutar e refletir foram exigências no sentido de se chegar a propostas de políticas públicas dirigidas ao sistema penitenciário e a medidas apaziguadoras de sofrimentos.

O relatório desta investigação foi encaminhado à instituição e os pesquisadores se colocaram disponíveis para as discussões necessárias. Os resultados serão amplamente divulgados para a comunidade interessada, por meio de publicações, eventos científicos, construção de material didático e intercâmbios institucionais, nacionais e internacionais.

O principal procedimento para obtenção de informações e dados foram as conversações estabelecidas em comum acordo. Mas, como elas supunham conversas sobre temas específicos, isolados em um primeiro encontro chamado "Conversação diagnóstica", considerou-se que valeria a pena conhecer um pouco das trajetórias de vida daquelas mães/mulheres que poderiam não encontrar espaço nos encontros de diálogo e ajudariam a lançar luzes sobre as falas ouvidas.

O foco do presente artigo recai, exatamente, na descrição quantitativa do perfil das 56 mães vivendo com seus filhos no Centro de Referência, no início da pesquisa, feita com base em anotações institucionais dos prontuários jurídico e da saúde. Mas o artigo também lançou mão das luzes advindas de observações feitas in loco e das conversações. A pesquisa contou com a concordância da Diretoria da instituição, da Superintendência de Atendimento ao Preso da Secretaria de Estado de Minas Gerais, foi aprovada pelo Comitê de Ética da PUC Minas e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme a Resolução CNS 196/96, vigente na época.

 

Procedimentos metodológicos: a construção de um protocolo de pesquisa e seu preenchimento

Para descrever o perfil estatístico das detentas, os dois prontuários preenchidos pela instituição foram analisados quantitativamente. O "Prontuário Jurídico" traz informações referentes à vida penal da presidiária: os processos a que está respondendo, o histórico de entradas e saídas no sistema prisional, comportamento carcerário, levantamento de pena e outras. No "Prontuário de Saúde", há o histórico de todos os atendimentos e exames realizados pela interna, na área da saúde, incluindo a "Entrevista de Classificação do Preso", que é feita pela psicóloga ou pela assistente social quando a presidiária é transferida para o Centro de Referência. Nele há informes sobre os exames pré-natais realizados, relatório de medicamentos administrados e processo de indicação da guarda provisória do bebê, entre outras informações.

A intenção inicial era a de se estudar uma amostra representativa da população das detentas que passaram pela instituição ao longo dos cinco anos de sua existência. Mas, isso não foi possível. Apesar de o projeto haver sido discutido com a direção do Centro de Referência e ser do conhecimento da Superintendência de Atendimento ao Preso, pois foi necessária a aprovação desses órgãos para submetê-lo ao Comitê de Ética da PUC Minas, escapou a todos a constatação de que os documentos necessários para a exploração dos cinco anos não estavam disponíveis. De fato, a documentação da presidiária não permanece no Centro de Referência. Ela a acompanha para o presídio em que é transferida ou para outros setores do estado, após o término do período permitido para sua permaneça no Centro de Referência. Dessa forma, em vez de uma amostra, analisaram-se as informações dos prontuários de toda a população, ou seja, das 56 mulheres presentes no início da pesquisa.

A partir do exame cuidadoso de todos os prontuários oficiais preenchidos na instituição, foi construído um protocolo para facilitar a descrição quantitativa do perfil das detentas: um formulário cobrindo variáveis com entradas fechadas e abertas sobre dados de identificação, dados jurídicos, dados da vida pessoal e da vida da detenta no Centro de Referência. Esse instrumento foi testado no final do mês de maio de 2012, com base em dados relativos a dez sujeitos escolhidos aleatoriamente. Verificou-se a necessidade de ajustes que facilitassem as análises estatísticas. O novo protocolo, composto por 98 variáveis, foi concluído no mês de julho de 2012.

Como o Centro de Referência é um local onde as detentas permanecem temporariamente, nele há certo dinamismo na entrada e saída das mulheres e seus filhos. Assim, fez-se um levantamento de quantos sujeitos havia na instituição, na primeira semana em que as bolsistas de iniciação científica1 desta pesquisa iniciaram a coleta definitiva dos dados e informações. O setor administrativo da instituição lhes enviou a relação dos 56 sujeitos. A estratégia utilizada foi a de começar o estudo a partir dos prontuários das detentas com mais tempo de permanência, ou seja, da mais antiga para a mais recente, a fim de se evitar perder informações daquelas que saíssem, já que haveria mais tempo para o registro dos dados e informações sobre as novatas. Caso alguma detenta da lista deixasse o Centro de Referência antes da obtenção das informações a seu respeito, ela seria substituída pela próxima que ingressasse.

A coleta dos dados foi realizada pelas bolsistas e finalizada no mês de agosto de 2012. A partir daí, iniciaram-se as análises utilizando-se o programa informático Statistical Package for the Social Sciences, SPSS.

 

Perfil estatístico das detentas

As análises estatísticas foram feitas a partir das informações obtidas nos prontuários institucionais relativos à população de 56 mulheres. Transferidas para o protocolo criado para a pesquisa, possibilitaram a descrição quantitativa do perfil das detentas. Esses dados passaram inicialmente por estudo univariado, isto é, para cada uma das 98 variáveis, foram calculadas suas frequências absolutas e percentuais. Em seguida, utilizou-se análise bivariada, com dados sobre 55 mulheres, já que um dos protocolos foi desconsiderado por não conter a maior parte das informações. A análise bivariada investigou relações entre pares de variáveis, por meio de cruzamentos entre elas. Quando possível, dependendo das premissas do teste e do tamanho da amostra, foi feito o teste qui-quadrado para verificar a existência de diferenças significativas entre estratos da população.

Análise univariada

Os resultados obtidos com as análises estatísticas são, a seguir, apresentados quase sempre em forma de porcentagens, apesar do número reduzido de 56 sujeitos que constituíam a população total investigada e presente no Centro de Referência naquele momento da pesquisa. Considera-se que a opção por apresentar porcentagens favoreceu uma compreensão mais rápida dos dados. Convém, contudo, lembrar que 1,8% correspondem a um único sujeito e que, em alguns casos, esta porcentagem pode ser maior, dependendo da relação entre dados válidos e perdidos (estes por não existirem as informações completas nos prontuários) ou por se referirem a apenas a uma fração dos sujeitos; ou menor, dependendo da possibilidade de mais de uma resposta por sujeito a um mesmo tema.

A distribuição etária das 56 detentas estudadas mostra que 65,4% encontram-se entre 23 e 33 anos de idade. Na faixa etária de 18 a 23 anos estão 20,0% delas e, nas faixas superiores a 33 anos, 14,6% .

A distribuição conforme a cor mostra que a parda tem maior incidência, 49,1%, seguida da branca, 27,3%, e preta, 21,8%; a cor amarela aparece em 1,8%. Ressalta-se que as nomeações das cores seguem aquilo que consta nos documentos institucionais consultados; o protocolo criado para leitura dos prontuários não alterou a nomenclatura nem as informações contidas neles, mas somente as organizou de modo a favorecer a descrição do perfil.

Em relação ao estado civil, identificou-se que as casadas/amasiadas representam 49,1%, e as solteiras, 41,8%; as separadas e viúvas são, respectivamente, 7,3% e 1,8% do grupo estudado.

Quanto ao estado de origem, 92,9% das detentas são naturais do Estado de Minas Gerais. O Centro de Referência acolhe, no entanto, prisioneiras grávidas originárias de outros estados e que cometeram crime em Minas, desde que residentes nesse Estado. No período estudado havia 5,4% naturais do estado de São Paulo e 1,8% do Estado de Goiás. Ao localizar a naturalidade dessas mulheres, considerando as mesorregiões mineiras estabelecidas pelo governo de Minas Gerais em 2012, 53,8% delas são da região metropolitana de Belo Horizonte, 17,4% da Zona da Mata, Vale do Mucuri, Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba; as naturais da região do Sul/Sudoeste somam 15,4%, do Norte e Vale do Rio Doce 7,6%, e do Campo das Vertentes, Central e Noroeste, 5,7%.

O estudo do nível de escolaridade mostrou que 71,0% dessas mulheres cursaram o ensino fundamental, mas apenas 5,4% o concluíram. O ensino médio foi cursado por 23,6% delas, sendo concluído por 8,9%, e o ensino superior aparece na vida de somente 3,6%, mesmo assim incompleto. Na categoria das analfabetas há uma detenta (1,8%).

No que diz respeito à atividade laboral, identificou-se que a maioria das detentas (69,6%) a exercia sem carteira assinada. O trabalho com carteira assinada foi constatado em 17 (30,4%) dos casos. Utilizando-se a Classificação Brasileira de Ocupações, estabelecida pelo Governo Federal por meio do Ministério do Trabalho e Emprego (Brasil, 2002), verifica-se que, entre 14 detentas exercendo atividade laboral com carteira assinada e que forneceram informações para os prontuários, 7 (50,0%) pertenciam ao grupo de trabalhadores de serviços e vendedores do comércio, em lojas e mercados; 3 (21,4%) trabalharam em serviços administrativos e as demais 4 (28,5%) pertenciam aos grupos de ciências e das artes, trabalhadoras do meio rural e da produção de bens e serviços industriais.

Quando se analisam as atividades laborais informais, que já haviam sido exercidas por 47 detentas, verificou-se que 34 (61,9%) delas pertenceram ao grupo de trabalhadores dos serviços, vendedores do comércio em lojas e supermercados. As demais 13 (38,1%) encontram-se distribuídas nos grupos de trabalhadores de serviços administrativos, trabalhadores do meio rural e trabalhadores da área industrial, conforme a Classificação Brasileira de Ocupações.

No grupo de detentas pesquisadas foram identificadas 20 (39,2%) que contribuíram para a previdência social. Dentre estas, 10 (52,6%) contribuíram para a previdência social por mais de doze meses e 7 (35,0%) estavam contribuindo para a previdência social no último ano anterior à prisão. Ao considerar que 30,4% trabalharam com carteira assinada, essa porcentagem indica que uma minoria, 8,8%, contribuiu para a previdência social como autônomo.

A distribuição das detentas, considerando-se quem as criou, mostra que, em 79,7% dos casos, os pais as tinham sob a responsabilidade da criação. Em 11,8% a responsabilidade era dos avôs, em 6,8% de outros parentes e, criadas em instituições, 1,7% dos casos.

Ainda a esse respeito, identificou-se que 86,3% dessas mulheres foram criadas com os irmãos. Dentro dessa porcentagem, 51,9% delas tinham de 1 e 3 irmãos, 29,7% de 4 a 6, e 14,9% entre 7 e 9 irmãos. Houve também a ocorrência de uma detenta que não tinha irmãos e outra com 24 irmãos.

Ao dizerem sobre as condições materiais em que foram criadas, 46,3% das prisioneiras afirmam que as condições eram adequadas, 31,5% asseguram estado de pobreza, 16,7% condição de extrema pobreza e 5,6% condições muito boas.

Nos documentos consultados havia a afirmação, em 67,3% dos casos, de que as relações familiares eram boas. Boas com restrições aos pais/padrastos para 9,1%, conflitivas para 14,5%, e pouco envolvimento ou ausência de contato para 9,1% das detentas. Naquilo que se refere ao modo como se sentiam, na relação com os familiares, 67,3% delas se sentiam queridas; 17,3% abandonadas; 7,7% desamparadas; 5,8% ameaçadas; e 1,9% amparadas.

O recebimento de maus tratos na infância foi informado por 12 (21,8%) das detentas (físicos em 11 casos e sexual em um). O pai aparece como o maior responsável pelos maus tratos, correspondendo a 6 dos casos, enquanto a mãe surge em 3 e, ambos, em um. Padrasto, madrasta, outros parentes e patrões são mencionados, cada um como responsável por uma dessas situações.

Entre os sujeitos estudados, 9 (16,4%) manifestaram ter passado por sofrimento de abuso/violência sexual, após a infância. Em 4 (44,4%) dos casos, causado por conhecidos, em 3 (33,3%) por parente e, em 2 (22,2%) das situações, por desconhecidos.

Entre as 42 (75,0%) detentas que ingressaram no CRGPL durante a gestação, 81,0% tinham entre 7 e 9 meses de gestação, ou seja, estavam próximas do tempo de gravidez proposto pelo projeto que deu origem à instituição. Há abertura para que as grávidas possam ser acolhidas antes dos sete meses de gestação, dependendo de sua situação pessoal e da situação da criança em gestação, o que aconteceu em 19,0% desses casos. Dentre as 13 (23,2%) que ingressaram após o parto, os filhos estavam entre 1 dia de nascido e 1 mês e 7 dias de vida. Em um caso (1,8%), não houve informação quanto à idade do filho.

O levantamento do sexo dos filhos, presentes no CRGPL, mostrou que 53,1% deles eles eram do sexo masculino e 46,9% feminino. O estudo mostra, ainda, que 92,9% dessas mulheres já tinham outro filho quando ingressaram no Centro de Referência. O percentual daquelas que tinham 1 filho é de 32,1%, de 2 a 4 filhos 48,2%, mais de 4 filhos, 12,6%; aquelas que não tinham filhos antes de serem ingressadas correspondem a 7,1% dos casos.

Os cuidados com os filhos nascidos anteriormente à prisão cabiam, em 28 (35,0%) situações às avós maternas, em 18 (22,5%) a outros parentes, em 11 (13,8%) às avós paternas, em 9 (11,3%) aos pais das crianças, em 8 (10,0%) a outra pessoa como amiga, babá, cunhada e madrinha, em 4 (5,0%) a instituições que acolhem crianças; 1 (1,2%) filho vivia sozinho e 1 (1,2%) outro morava na rua.

Na busca de informações acerca das famílias das detentas, observou-se que em 68,5% dos casos havia membros da família que faziam uso abusivo de bebida alcoólica e, ou, drogas, na seguinte distribuição percentual: pai 31,7%; mãe 25,0%; outros parentes 41,0%; companheiro 2,3%. O álcool predomina em 58,3% das situações; outras drogas em 25,0%; álcool mais droga em 16,7%.

Identificou-se que 37 (67,3%) das detentas tinham algum membro da família que já estivera preso e, dentre esses casos, em 30,9% a pessoa presa foi o companheiro, em 54,5% outros parentes que não pai e mãe, em 10,9% pai ou mãe e em 3,6% dos casos, os filhos. O tráfico de drogas foi a maior causa das prisões ocorridas (44,2%), seguido de homicídio (20,8%), roubo (18,5%), furto (9,5%) e outras causas (7,0%), a exemplo de comércio ilegal de arma de fogo, sequestro ou cárcere privado.

Há registro, nos prontuários pesquisados, de que 11,9% dos sujeitos cometeram algum ato infrator quando ainda era menor de idade. E, naquilo que respeita às reações das famílias diante da prisão a que estavam submetidos, elas dizem que 35,4% reagiram com surpresa e 26,2% com indignação. Há, também, depoimentos dizendo que as famílias não se surpreenderam (18,5%) nem se indignaram (6,2%), além de 13,7% que não se manifestaram a respeito.

Na época do ingresso no CRGPL, 35 (63,6%) das detentas mantinham relacionamento com um companheiro. Esse relacionamento teve uma duração de até 2 anos para 33,4% das detentas, de 2 a 5 anos para 36,4% e mais de 5 anos para 30,2% delas. Dentre os companheiros, 19 (33,9%) tinham uma atividade laboral, sendo que 9 eram trabalhadores de serviços, vendedores do comércio de lojas e mercados, 9 trabalhadores da produção de bens e serviços industriais e um trabalhador agropecuário, conforme a Classificação Brasileira de Ocupações estabelecida pelo Governo Federal.

Em 31,1% dos casos estudados, essas mulheres moravam com o companheiro antes de ir para o CRGPL, 21,3% com os filhos, 18,0% com a mãe, 1,6% com o pai, 4,9% com pai e mãe, 14,7% com outros parentes, 8,2% sozinhas. A manutenção financeira da casa em que viviam, em 38,3% dos casos era feita pela mãe, em 23,3% pelo pai, em 13,3% pelo pai e mãe, em 20,0% por outros parentes, em 1,8% pelo companheiro e em 3,3 pela própria detenta.

O estudo mostrou que 83,9% das detentas faziam uso de bebida alcoólica e, ou, outras drogas antes da prisão. Entre elas, 38,3% usavam álcool mais outra droga juntos, 42,6% somente droga e 19,1% priorizavam o álcool. A frequência de uso foi relatada, por 56,8% delas, como uso diário, por 27,3% somente nos finais de semana e 15,9% afirmaram usar raramente.

Quanto à idade em que começaram a fazer uso de bebida alcoólica e a usar droga, 4,8% das pesquisadas se encontram na faixa de 6 a 10 anos, 19,0% com 10 a 14 anos, 40,5% na casa de 14 a 18 anos, 28,5% entre 18 e 26 anos e 7,1% acima de 26 anos. O motivo do uso é justificado por reação a situações conflitantes (25,5%), para a integração do grupo (23,6%), por prazer (21,8%), para descontrair (10,9%), para acalmar (12,7%) e 5,5% não souberam informar.

A existência de prisões anteriores foi informada por 64,2% das detentas pesquisadas. Nesses casos, 41,9% tiveram uma prisão, 38,7% duas prisões, 12,9% três prisões e 6,4% estiveram em 4 ou mais prisões. O que motivou essas prisões anteriores foi o tráfico (46,5%), o furto (23,3%), o roubo (14,0%), o homicídio e comércio ilegal de armas (4,7% cada) e outros crimes como omissão de cautela, contravenção e corrupção de menores (6,9%). Esses crimes aconteceram nas seguintes mesorregiões mineiras: região metropolitana de Belo Horizonte, 65,2%; Triângulo/Alto Paranaíba, 17,4%; Sul/Sudoeste, 8,7%; Noroeste e Campo das Vertentes, com 4,3% cada.

Os documentos consultados mostram que 51,4% das detentas estudadas relatam existência da condenação por crimes anteriores, assim distribuídos: tráfico (47,4%); roubo (15,8%); furto e receptação (10,5% cada); sequestro, quadrilha e extorsão (5,3% cada). Para 13,3% delas, a pena foi de menos de 2 anos; para 20,0%, entre 4 a 6 anos; 33,3%, de 6 a 8 anos; 13,3%, de 8 a 10; e, com sentença acima de 10 anos, são encontradas 20,0% dessas mulheres.

A respeito de prisões anteriores, verifica-se que 64,2% das mulheres já haviam estado encarceradas em outra situação. Dessas, 41,9% apenas uma vez, 38,7% duas vezes, 12,9% três vezes e 6,4% mais de quatro vezes. Os crimes cometidos por esse grupo de detentas, em 62,5% dos casos, foi tráfico de drogas; em 31,2% dos casos foi furto, em 18,8% roubo, seguido de homicídio e comércio ilegal de arma de fogo (6,2% cada), comunicação falsa de crime ou contravenção, omissão de cautela e corrupção de menor (todos com o percentual de 3,1%).

Calculou-se o tempo total em que as detentas viveram aprisionadas, até o momento da coleta de dados, agosto de 2012, considerando inclusive as prisões anteriores, quando havia. Os dados mostram que 26,5% delas tinham de 2 a 3 anos de prisão; 23,5% de 1 a 2 anos; 20,6% menos de 1 ano; 17,6%, entre 3 e 4 anos; e 11,8% acima de 4 anos.

As informações sobre a conduta dessas mulheres em presídios anteriores, dizem de boa conduta para 60,0% delas e má conduta para 40,0%. Já no CRGPL, a ênfase não recai em boa ou má conduta, mas no respeito às regras e modos de relacionamento. Registra-se que o respeito às regras foi observado em 38,2% dos casos e o não respeito às regras em 11,8% deles. A facilidade de relacionamento foi constatada para 17,6% dessas mulheres, bem como dificuldade de relacionamento para 32,4% delas.

A respeito da prisão atual, os crimes relatados foram: tráfico de drogas (61,5%), roubo (15,4%), homicídio (7,7%), furto (6,2%), comércio de armas (4,6%) e outras causas (4,5%), nas quais se inclui comunicação falsa de crime, formação de quadrilha e promoção ou facilitação na fuga de um detento.

Quanto ao crime que motivou a prisão atual, 55,6% das mulheres informaram que já foram julgadas e, nesses casos, a distribuição da pena a ser cumprida é a seguinte: menos de 2 anos para 7,1% delas; de 2 a 4 anos para 17,9%; de 4 a 6 anos para 35,7%; de 6 a 8 anos para 21,4%; de 8 a 10 anos para 10,7% ; e mais de 10 anos para 7,1% .

As mesorregiões de Minas Gerais, nas quais ocorreram os crimes que motivaram a prisão atual, aparecem na seguinte distribuição: região metropolitana de Belo Horizonte, 63,5%; Sul/sudoeste, 11,5%; Triângulo/Alto Paranaíba, 5,8%; Zona da Mata, 5,8%; Norte e Vale do Mucuri, 3,8% cada; Noroeste, Central e Campo das Vertentes, com 1,9% cada.

Antes do acesso ao Centro de Referência, as detentas estavam em presídios das seguintes mesorregiões mineiras: região metropolitana de Belo Horizonte, 56,4%; Sul/Sudoeste, 10,9%; Zona da Mata e Triângulo/Alto Paranaíba, 7,3% cada; Norte, Vale do Mucuri e Oeste, 3,6% cada; Central e Campo das Vertentes, 1,8% cada.

O reconhecimento, ou não, da responsabilidade pelo crime que motivou a prisão atual foi uma das informações consideradas. Dentre as detentas estudadas, 45,3% informaram reconhecer essa responsabilidade. Das 56, 33 (58,9%) apontaram os motivos para esse crime, dentre as quais 10 mencionaram necessidades básicas (30,3%), 10 o desejo de consumo (30,3%) e 4 acidentalidade (12,1%); em menor percentagem aparecem, para 3 delas (9,1%), os motivos de se protegerem; serem levadas por outros para 3 (9,1%); o dinheiro fácil para 2 (6,1%) e a traição por parte do companheiro para 1 (3,0%).

Em relação aos filhos, segundo os documentos, 58,1% das detentas relatam apresentarem facilidade nos laços afetivos. Ao chegar o momento de oficializar a guarda do bebê, 54,2% das pesquisadas indicaram quem elas gostariam que permanecesse com a criança, enquanto 27,1% não o fizeram (para 18,8% dos casos ainda não havia chegado o momento de fazê-lo, por isso não havia registro dessa informação). A indicação da guarda do bebê recaiu, em maior percentual, 37,0%, para a avó materna, seguida da indicação para outros parentes, 25,9%, para o pai da criança, em 14,8%, amigos em 7,4% dos casos e avô materno, patrões, sogra e conselho tutelar, cada um em 3,7% das situações.

O reconhecimento de paternidade dessas crianças foi informado por 36,4% das detentas. Outras 24,2% afirmam que o processo de reconhecimento está em andamento, enquanto 39,4% dizem de não reconhecimento. Há casos em que não se sabe quem é o pai.

Buscaram-se informações, ainda, a respeito de trabalho e estudo no CRGPL. Entre as pesquisadas, há informações de que 93,3% delas realizam trabalhos ali e 69,2% estudam. Os trabalhos se centram na área de serviços de faxina e cuidadora, visando à remição da pena, serviços de artesanato que é enviado à família, serviço geral em cozinha, também visando à remição da pena, ademais da remuneração de três quartos do salário mínimo vigente, bem como de confecções de móveis em fibras sintéticas e costuras em tecido, também com os mesmos propósitos. Sobre os estudos, são oferecidas possibilidades no ensino médio e fundamental para anos iniciais e finais.

Acerca do tema visitas, 28 (56,0%) afirmam terem recebido visitas no Centro de Referência. Dessas, 5 relatam já terem sido visitadas pela mãe; 13 por outros parentes, a exemplo de tios(as), irmã(os) e primo(as); os filhos aparecem em 11 casos e o companheiro, em 8. Outras pessoas - a sogra, o padrasto, os avós e ambos os pais - foram mencionadas, cada uma delas, em apenas um caso e o pai em 3. No total, 22 não receberam visitas e 6 não se manifestaram sobre o tema.

Análise bivariada

Diversos cruzamentos entre variáveis foram investigados, mas nem sempre as significâncias estatísticas puderam ser calculadas, em decorrência do tamanho reduzido da população pesquisada, ainda que envolvendo todas as detentas. As análises foram feitas no sentido de se explorarem possíveis correlações entre as variáveis. A lógica adotada foi abordar temas maiores, a exemplo de questões da vida pessoal, tais como relações familiares, maus-tratos na infância, relações conjugais, abusos sexuais, entre outros, e questões relacionadas ao crime: por exemplo, as relações entre grau de instrução e motivos que levaram à prisão e conduta carcerária.

Observou-se que, de maneira geral, as mulheres de cor clara tendem a ter um grau de instrução maior. Por exemplo: quando a mulher se declarou da cor negra, a maioria tinha, no máximo, o ensino fundamental incompleto (91,7%); já para as de cor branca, esse percentual se reduz para 46,7%. Mas o estudo realizado não encontrou relação entre o grau de instrução e a atividade laboral, bem como entre o grau de instrução das mulheres com a prisão e abuso de bebidas alcoólicas de seus familiares. Por outro lado, quanto maior o grau de instrução, melhor a relação relatada dessas mulheres com seus familiares.

Os cálculos de correlações envolvendo variáveis relativas aos tipos de relações familiares, associados às pessoas que criaram as detentas, o grau de surpresa dos familiares diante da prisão delas e o modo como elas se relacionavam com seus filhos na prisão, não apresentam diferenças significativas. Mas os dados indicam que, quanto melhor a relação familiar, menos ameaçadas e mais protegidas elas se sentem.

No caso dessas mulheres, não há relação direta entre maus-tratos na infância e sentimento de abandono, mas existe uma indicação de que, quando elas não sofriam maus-tratos, sentiam-se menos desamparadas e mais queridas. O uso de bebidas alcoólicas e, ou, drogas não se relaciona, nesses casos, aos maus-tratos. As mulheres que não sofreram maus-tratos na infância não apresentaram percentual menor de uso de bebidas alcoólicas e, ou, drogas. Os maus-tratos sofridos na infância não caracterizaram tipos específicos de relação mãe-filho, mas, quando se trata de abuso/violência sexual, essa mulher tem mais dificuldades de relações afetivas com os filhos, no Centro de Referência.

O estudo mostra que as mulheres que foram criadas em situação de extrema pobreza são as que dizem sentirem-se abandonadas, ameaçadas e desamparadas nas relações familiares. Não há evidência de que as condições materiais de suas vidas se relacionem com o uso de bebida alcoólica e, ou, drogas nem caracterizem tipo específico de relação com seu filho na prisão

Nos cruzamentos feitos entre variáveis, observou-se que, independentemente do estado civil, cor, grau de instrução, entre outras, o tráfico de drogas é preponderante nos problemas de vida dessas mulheres. E que predominam nessas mulheres o respeito às regras do presídio.

 

Discussões relativas a outro perfil das detentas

O discurso institucional, vivo nos formulários padrão dos prontuários e oferecendo-se ao uso e à leitura crítica e reflexiva, foi sempre preenchido por um profissional experiente, do quadro da instituição ou a ela associado. Como as entrevistadas já se encontravam aprisionadas, a conversa que se instaurou com elas se deu sob controle e, nessa situação, elas dificilmente poderiam se expressar de forma livre.

Preenchidos em situação de detenção, os próprios prontuários também limitaram e controlaram o que as detentas deviam e poderiam falar. Esperou-se delas respostas de ordem geral, universal, havendo pouca ou nenhuma abertura formal para enunciações subjetivas, individuais ou particulares. Mais ainda, os documentos seguem o modelo proposto para prisioneiros do sexo masculino.

A formalidade do preenchimento facilitou a quantificação de muitas respostas e a descrição estatística das detentas em termos de frequências, porcentagens e coeficientes de correlação. Acredita-se que o perfil estatístico apresentado neste artigo ficou claro e dispensa maiores discussões relativas a seu conteúdo e forma. Mas nada nele garante que se obteve o discurso das detentas. Chegou-se a um amálgama do que a instituição quis saber sobre elas, do que elas puderam ou quiseram responder e do que os pesquisadores conseguiram compor em números. Números, portanto, que exigem interlocução com outras informações e uma leitura que extrapola a quantificação.

A transformação em dados das informações registradas nos prontuários gerou novo discurso - quantitativo, acadêmico, de pesquisadores - que, contudo, não é o único possível: nestas discussões e considerações finais, ele passa por uma terceira transformação. Sabe-se que perguntas e respostas destinadas a preencher os prontuários trazem apenas fragmentos da fala institucional e da fala das detentas que, cotejadas a informações obtidas nas conversações e observações informais, permitem chegar a enunciações parciais relativas às questões do mal-estar na civilização atual, no caso específico o mal-estar no aprisionamento das mulheres e seus filhos. Falam também sobre questões diversas, incluindo as formas de laços sociais e os modos sintomáticos de vida que convocam as políticas públicas. Acima de tudo esboçam outro perfil das detentas, cuja apresentação requer algumas informações de contexto.

O Brasil se diferencia de outros países da América Latina por possuir um conjunto de leis para consagração de direitos dos prisioneiros, mas a violação a esses direitos é contínua. Essa denúncia pode ser lida no relatório final produzido pelo Grupo de Trabalho Interministerial criado por Decreto Presidencial s/nº, em 25 de maio de 2007 (Brasil, 2007b), e no Relatório sobre mulheres encarceradas no Brasil (Brasil, 2007a), de iniciativa do Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL) e entidades que constituem o Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas.

Essas duas publicações demonstram que as violações se dão, principalmente, em segmentos menos favorecidos da população, como esse das mulheres encarceradas, e, pior ainda, se elas estão grávidas ou com recém-nascidos. Os relatores enfatizam que o levantamento de dados sobre elas fora deixado a cargo de pesquisas acadêmicas, jornalísticas e de associações da sociedade civil. As detentas estavam submetidas à invisibilidade sintomática que legitima a desigualdade e violência de gênero.

Sobre o Centro de Referência à Gestante Encarcerada do Sistema Prisional de Minas Gerais (CRGPL) não se encontrou pesquisa anterior a esta. Durante o seu desenrolar, não raro, uma e outra encarcerada perguntava aos pesquisadores se as informações que forneciam chegariam mesmo às autoridades. Uma delas chegou a perguntar se o governador escutaria as gravações das conversações, torcendo para que isso acontecesse, pois crê que "para eles, elas são lixo".

O dia 28 de maio de 2009, entretanto, foi especial no sentido de ajustar um pouco as contas. A deputada Federal Fátima Pelaes (PMDB), do Amapá, teve sancionado seu projeto de lei garantindo maior assistência às detentas grávidas. O governo mineiro havia se adiantado inaugurando, para as gestantes privadas de liberdade, o Centro de Referência, em janeiro daquele ano.

Quando se lê o projeto criador desse centro (Minas Gerais, 2007), que nasceu com a intenção de ser unidade prisional diferenciada, cumprindo exigências de assistência às detentas, modelo para a América Latina, vê-se em sua justificativa (p.5) a ideia de que "ao promover o contato pele a pele" se fortalece o vínculo afetivo. E, consequentemente, favorece "o resgate de cidadania e responsabilidade das internas, uma vez que é reforçado o vínculo mãe-filho influenciando no perfil psicológico de ambos". Assim, nesse Centro de Referência objetiva-se "garantir o aleitamento materno essencial para a criança no primeiro ano de vida, garantir o contato físico da criança com a mãe, contribuindo para fortalecer o vínculo psicoafetivo". E isso, de forma generalizada, para todos.

O que se ouviu e se observou, no entanto, na maioria dos casos, e ainda que as histórias de vida se diferenciassem, mostraram outra cena e outro perfil das detentas, distintos do que se ouviu da diretoria da instituição e do que foi revelado nos dados estatísticos. A maioria das mães reivindicou, com frequência surpreendente, em todas as conversações realizadas, o direito de escolher estar ou não com seus filhos naquela instituição e o direito de serem ouvidas sobre o desejo de ficar ali, com o filho. Não faltaram críticas às demoradas decisões judiciais sobre a guarda da criança, alargando a convivência forçada e tornando o momento da separação mais difícil.

Nas conversações, algumas até disseram, para surpresa dos pesquisadores e bolsistas, que preferiam o regime fechado, pois no CRGPL a vida era mais difícil: não havia quem as ajudasse nos cuidados com os filhos, nelas "grudados" 24 horas por dia; em tudo as crianças só dependiam delas, em uma operação que as reduziam à condição de serem exclusivamente mães preocupadas com suas crias e não mais mulheres. Muitas tinham sérias dificuldades de estar nessa posição, por condição estrutural, história de vida, mal sabendo cuidar de si mesmas; logo após o parto tinham todos os trabalhos de mãe aguardando, ainda que estivessem com pontos ou outros problemas; estavam longe de casa, da família, de outros filhos; ademais de cuidado integral dos filhos, lhes eram exigidas atividades de cuidados com a instituição, para além do espaço físico que ocupavam, sem que isso contasse para remissão da pena; havia o constrangimento de ver os filhos passarem por procedimentos de revista, alguns até imitando o que as mães faziam; angustiavam-se com a ausência de pediatra e ginecologista na instituição e com os sofrimentos que isso acarretava: o clínico raramente aparecia, os deslocamentos para os hospitais dependiam de escolta e veículo disponível, o choro constante das crianças, a impossibilidade de acompanhá-las na consulta (as agentes é que o faziam), dificultando a comunicação com o profissional; os filhos não contavam com programas infantis na TV que não fosse a "Galinha Pintadinha" e nada de lazer lhes era favorecido; finalmente, depois de permanecerem com os filhos, por cerca de um ano, chegava a decisão do juiz sobre a guarda e a separação quase sempre era muito dolorosa.

 

Considerações finais

Como se constatou, não apenas o discurso do projeto criador do Centro de Referência como os prontuários institucionais desconsideram completamente as questões enunciadas pelas mães detentas, ao longo das conversações. Por isso, a descrição numérica do perfil delas, feita a partir dos documentos do Centro de Referência traz a aridez dos números que exige o diálogo com o drama humano que elas vivem. Elas não são apenas números, ainda que eles tenham algum valor elucidativo. E vale dizer que se o perfil estatístico construído as apresenta constituindo porcentagens que dizem de certo modo de funcionamento na vida, as exceções igualmente ali estavam, e procurou-se não ignorá-las no lixo que uma análise bivariada gera na busca de dados significativos.

Por outro lado, as formalizações psicanalíticas auxiliaram nas reflexões. Por meio delas se conhece que o nascimento de um bebê é um momento particular para uma mulher e, por isso mesmo, nada pode assegurar que ela acederá à maternidade, seja o filho desejado ou não. A gravidez, o parto e a amamentação não asseguram a maternidade, mesmo que isso seja legislado pela justiça comum ou por certas normas, pois não asseguram o desejo de ser mãe, que é diferente do querer ter um filho. Com a psicanálise sabemos que não existe instinto materno, nada na natureza das coisas diz como e o que é ser mãe, que paixões podem gerar o nascimento de um filho e o desamparo que pode surgir frente à presença real de uma criança.

O trabalho com a clínica e a vida cotidiana ensina que a abertura para o mundo exterior alivia mãe e filho do que nessa pesquisa tem se chamado de presença contínua. Filhos nelas "grudados", como disseram, mundo girando em torno deles, dia e noite, noite e dia; afinal, elas só estão naquela instituição porque são mães e contra isso não cabe recurso. Ao contrário, lhes e dito que se trata de privilégio. Mas, para a configuração da subjetividade da criança, abrir-se para a presença do pai, nesse caso raríssima, para a presença de outras pessoas, o que é difícil de acontecer na prisão, para objetos do mundo, seus ruídos, animais, cheiros e sabores, tudo isso favorece uma separação necessária entre mãe e filho.

Na instituição há pouca estimulação exterior funcionando como esse terceiro que favorece a separação, fazendo com que a mãe não esteja voltada unicamente para a criança e que ela possa encontrar novos atrativos para além do corpo dessa mãe. Há pouco estímulo externo para o alívio do sufoco de ser mãe 24 horas. E não sem razão uma agente comenta, em tom de censura, que certas mães gostam e até provocam que seus filhos adoeçam, contagiando-se, porque são levadas para o hospital e elas se livram deles por algumas horas ou dias. O que acontece com a televisão é bom exemplo da presença contínua: ela repete sempre o mesmo programa infantil, que também se reproduz em pintura pela instituição.

Os corpos grudados é imagem que se repete, contínua. Até quando a criança estava sob o cuidado de outra detenta, porque a mãe se ocupava de alguma tarefa, o usual é que estivesse enganchada na cintura da cuidadora, sendo sacolejada em seus braços ou continuamente com um mordedor na boca, segurado por aquela que a tem nos braços. Boca cheia, ocupada com o mordedor, movimentos de desconforto da criança que em alguns poucos casos segurava ela própria o mordedor. Silêncio! Crianças maiores andando atrás dos adultos, aonde eles vão. Silêncio! Nada ou poucas palavras lhes são dirigidas. E uma funcionária comenta que as crianças dali são bem nutridas, gordinhas, há até caso de obesidade infantil, mas elas demoram a falar!

É importante buscar ler, portanto, nos dados revelados, mais que as patologias, o certo ou errado, a posição ética que sustenta esses sujeitos e o ideal institucional. Não raro aí se encobrem práticas moralizantes. E nesse caso, não se trata de suprimir a possibilidade das mães estarem com seus filhos, mas, permitir-lhes o direito da palavra que decide, de modo que a palavra também circule pelo espaço em que estão. Trata-se da busca de possibilidades de reorganização institucional, já que o Centro de Referência, na flor de seus seis anos, distanciou-se da forma como se colocou em prática e ainda não atende à proposta do projeto que o criou.

 

REFERÊNCIAS

Brasil (2007a). Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional. Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas. Relatório sobre mulheres encarceradas no Brasil. Brasília: Presidência da República, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.         [ Links ]

Brasil (2007b). Decreto Presidencial s/nº, de 25 de maio de 2007. Institui o Grupo de Trabalho Interministerial com a finalidade de elaborar propostas para a reorganização e reformulação do Sistema Prisional Feminino. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 28 maio, n. 101, seção 1, p. 2.

Ferrari, I. F. (2008). A ignorância fecunda inerente à pesquisa-intervenção. In: Castro, L. R. ; Besset, V. L. (Orgs.) Pesquisa-intervenção na infância e juventude. Rio de Janeiro: Trarepa/FAPERJ, p.87-93.         [ Links ]

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Minas Gerais (2007). Secretaria de Estado de Defesa Social. Projeto: Centro de Referência para as Gestantes em Privação de Liberdade e Creche do Sistema Prisional de MG. Belo Horizonte: Diretoria de Saúde a Atendimento Social.         [ Links ]

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Recebido em: 19/08/2014
Reformulado em: 02/12/2014
Aprovado em: 03/12/2014

 

 

1 Bárbara de Morais Fam (FAPEMIG), Isabele Fernanda Sartori (FAPEMIG), Marília Alves de Souza (PIBIC/CNPq). Em substituição a Isabele entrou Natália de Fátima Santos Costa (FAPEMIG). A pesquisa contou, ainda, com a participação de dois bolsistas voluntários: Cláudio de Magalhães de Araújo e Pablo Ferreira Bastos Ribeiro.

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