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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.10 no.1 São João del-Rei jun. 2015

 

ARTIGOS

 

O trabalho psicossocial em rede: uma experiência no município de Cajamar

 

The psychosocial networking: an experience in the city of Cajamar

 

El trabajo psicosocial en red: una experiencia en el municipio de Cajamar

 

 

Soraia AnsaraI; Ingrid Matzembacher Stocker TaffarelloII

IDoutora em Psicologia Social. Docente do Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política (PROMUSSP), da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora do PNPD-CAPES. Docente do Centro Universitário Estácio Radial de São Paulo. Endereço: soraiansara@hotmail.com
IIPsicóloga. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política (PROMUSSP), da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP). Endereço: ingridstocker@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo refere-se a uma prática psicossocial comunitária na qual foi implantado o trabalho em rede, cuja metodologia teve por base o referencial da psicologia comunitária defendido por Montero (2004; 2006). Essa experiência de trabalho em rede foi realizada no Município de Cajamar durante dois anos (2007-2009), com a participação de diferentes atores sociais, dentre eles representantes do poder público (diretorias: cultura, esportes, saúde, assistência social, defesa civil) e da sociedade civil (associações de bairro, pastoral da criança, usuários da assistência social), fórum, representantes de empresas e comércio. A iniciativa dessa intervenção psicossocial visava introduzir uma prática comunitária desde a implantação dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), tendo em vista romper com aquelas práticas marcadas pelo assistencialismo e clientelismo. A experiência aqui relatada evidencia que as metodologias participativas, que envolvem a população destinatária dos Programas Sociais, promovem a construção de uma cidadania forte, consciente e crítica, como propõe Montero (2004), mas requer que a população assuma a direção dessas ações, não podendo ficar nas mãos do Poder Público.

Palavras-chaves: Trabalho em rede; Práticas psicossociais; Psicologia comunitária; Metodologias participativas; Fortalecimento da comunidade.


ABSTRACT

Based on the theoretical framework of Community Psychology, this article analyses, an experience of a networking held in the city of Cajamar for two years (2007 - 2009) with the participation of different social actors, including government representatives (directors: culture, sports, health, social welfare, civil defense) and civil society (neighborhood associations, child´s pastoral, users of social assistance), representatives of companies and of the commerce. The initiative of this work aimed to consolidate the deployment of Reference Centers for Social Assistance (CRAS) in order to break with practices marked by paternalism and clientelism. The experience reported here shows that participatory methodologies, which involve the target population of social programs, promote the construction of a strong, conscious and critical citizenship, as proposed by Montero (2004), but requires that people have the power of directing these actions, rather than letting them be in the hands of the government.

Keywords: Networking; Psychosocial practices; Community psychology; Participatory methodologies; Community empowerment.


RESUMEN

Este artículo analiza, con base en el referencial teórico de la psicología comunitaria, una experiencia de trabajo en red, realizado en la ciudad de Cajamar durante los años de 2007 a 2009, con la participación de diferentes actores sociales, como representantes del poder público (directores de cultura, deportes, salud, asistencia social, defensa civil) y de la sociedad civil (asociaciones de barrios, pastoral de los niños, usuarios de la asistencia social), fórum, representantes de empresas y del comercio. El objetivo de este trabajo en red era consolidar la implantación de los Centros de Referencia de la Asistencia Social (CRAS), afín de hacer una ruptura con prácticas marcadas por el asistencialismo y el clientelismo. La experiencia aquí presentada muestra que las metodologías participativas, que incluyen la población destinataria de los Programas Sociales, promueven la construcción de una ciudadanía fuerte, consciente y crítica, como propone Montero (2004), pero exigen que la población asuma la dirección de estas acciones, no la dejando en las manos del poder público.

Palabras-claves: Trabajo en red; Prácticas psicosociales; Psicología comunitaria; Metodologías participativas; Fortalecimiento de la comunidad.


 

 

Este artigo tem como objetivo relatar a experiência de uma prática psicossocial comunitária realizada entre 2007 e 2009, no Município de Cajamar, onde foi implantado o trabalho em rede, a partir dos serviços do Centro de Referência e Assistência Social (CRAS). Essa experiência teve por base o referencial da psicologia comunitária defendido por Montero (2004; 2006) e contou com a participação de diferentes atores sociais, dentre eles: representantes do poder público (diretorias: cultura, esportes, saúde, assistência social, defesa civil), sociedade civil (representantes de associações de bairro, pastoral da criança, usuários da assistência social), fórum, representantes de empresas e comércio.

A iniciativa do trabalho em rede foi apresentada pela Diretoria de Desenvolvimento e Assistência Social do Município de Cajamar, que buscava, em 2007, consolidar a implantação e implementação dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS). Tal iniciativa objetivava romper com as práticas marcadas pelo assistencialismo e clientelismo, caracterizadas por ações que se restringiam à entrega de benefícios.

Com o intuito de ampliar a abrangência das práticas psicossociais e atingir regiões que o Poder Público não alcançava, exceto quando realizava visitas domiciliares em situações pontuais e emergenciais, o trabalho em rede lançou mão de uma metodologia participativa envolvendo atores sociais que, até então, não tinham acesso às políticas públicas. Tal propósito visava questionar o trabalho dos profissionais não só dos CRAS, mas das diversas secretarias que planejavam os trabalhos, mas não contavam com a participação da população ou com a necessidade dos territórios que desenvolviam ações setorializadas, desconectadas da realidade, descontínuas e, na maioria das vezes, planejadas sem considerar as demandas locais, apresentando pouca adesão da população. A ausência de participação da população atendida era interpretada pela equipe técnica como uma característica de pouco interesse e falta de participação da comunidade, e não como ausência de estratégias mais participativas que considerassem a realidade e os interesses da comunidade, como sugere Montero (2004; 2004b). A atuação na comunidade, na perspectiva de Montero e de Martín-Baró (1998), foi realizada a partir da problematização da visão que culpabiliza a população atendida como acomodada e fatalista, criando tensões entre os profissionais que atuavam nos CRAS e desconheciam as metodologias participativas e que estavam acostumados a atuar de forma assistencialista.

A experiência de Cajamar, aqui relatada, permitirá ao leitor identificar as tensões, os limites e as possibilidades das ações desenvolvidas no campo das Políticas Públicas, especificamente no que tange à Proteção Social Básica. Para favorecer a compreensão de tais ações, o artigo será dividido em três seções: na primeira parte, trataremos de contextualizar e caracterizar as políticas públicas de assistência social nas quais se inserem os Centros de Referência e de Assistência Social (CRAS); na segunda parte, apresentaremos os referenciais teórico-metodológicos de Maritza Montero (2004) e Ignacio Martín-Baró (1998), que fundamentaram esta prática psicossocial; na terceira parte, descreveremos o trabalho em rede desenvolvido nessa política pública, destacando os aspectos que têm promovido o fortalecimento e a emancipação das populações atendidas e, ao mesmo tempo, questionando as práticas assistencialistas que têm legitimado a exclusão social e, nesse sentido, apontando as contradições que emergiram a partir de uma prática mais participativa.

 

As políticas sociais de assistência social

A proteção social no Brasil, mais especificamente no âmbito da política da assistência social, surge atrelada à caridade, com ações voltadas a uma parcela da população desprovida de seus direitos sociais. Nesse contexto, ela se configura sob a lógica da tutela, do favor e do clientelismo, fornecendo a base para o desenvolvimento das ações assistenciais no País. Historicamente, a proteção social assume um caráter de urgência, de bondade, de pessoalismo, de ações que representam segmentação, focalização e culpabilização do indivíduo pelo Estado, em vez de representar a garantia e a promoção do acesso aos direitos sociais ou a responsabilidade do Estado pelo bem-estar dos cidadãos.

Não obstante, o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), criado em janeiro de 2004, tem buscado consolidar a importância da proteção social como política de direito na defesa, garantia e promoção de suas ações com abrangência em todo território nacional, representando um avanço significativo no desenvolvimento das políticas sociais do País nos últimos anos. Dessa forma, a política de proteção social visa à institucionalização e ao reconhecimento de um sistema que legitime as demandas sociais por meio da ampliação e promoção do protagonismo das famílias e indivíduos usuários de seus serviços. O MDS é o órgão que coordena a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e o Sistema Único da Assistência Social (SUAS) que visa operacionalizar tal política.

O SUAS está organizado por níveis de complexidade: proteção social básica (que tem um caráter preventivo) e proteção social especial (que tem um caráter protetivo), diferenciando-se de acordo com os níveis de complexidade e conforme a situação vivenciada pelo indivíduo e a família. Os Serviços de Proteção Social Especial têm uma gestão compartilhada com o Poder Judiciário, Ministério Público e outros órgãos do Executivo. Sua atuação é operacionalizada por meio do Centro de Referência Especializada em Assistência Social (CREAS), que atende famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos.

Os serviços de Proteção Social Básica têm por objetivo a prevenção das situações de risco pessoal e social por meio do desenvolvimento de ações que promovam o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, prestados pelo Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), que em seu documento oficial define:

[o CRAS] é uma unidade de Assistência Social, responsável por prestar um serviço municipal de atendimento psicossocial às famílias vulneráveis em função da pobreza e de outros fatores de risco e exclusão social. Deve, portanto, ter [...] como base territorial comunidades, regiões, bairros, onde há maior concentração de famílias nessas condições. (Brasil, 2009, p. 7)

Esses Centros de Referência de Assistência Social, considerados como porta de entrada da assistência social, promovem, por meio do Programa de Atenção Integral à Família (PAIF), o acompanhamento psicossocial das famílias participantes dos Programas de Transferência de Renda, buscando propiciar, a partir do cumprimento de condicionalidades nos campos da saúde, da educação e da assistência social, condições de autonomia aos indivíduos e a suas famílias, visando a potencializá-los para um rompimento com o ciclo de vulnerabilidade social.

Dessa forma, a política de proteção social básica tem como princípios: a matricialidade sociofamiliar e a territorialidade. A matricialidade sociofamiliar se caracteriza pela centralidade da família no desenvolvimento das relações de socialização de seus membros e pela formulação e execução da política de assistência social, por meio de ações psicossociais desenvolvidas pelo Programa de Atenção Integral à Família (PAIF), que tem como foco trabalhar as necessidades, potencialidades, objetivos e experiências da família e da comunidade, tendo em vista contribuir com um processo coletivo de autonomia e fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, estreitando as relações entre ambas.

Ao privilegiar o foco das intervenções na família, essa concepção se ampara estritamente no pressuposto de que é imprescindível o fortalecimento, a defesa, proteção e promoção de seus vínculos familiares e comunitários para que a família crie condições de autonomia, respeito e dignidade de seus membros. Assim, a família atua como "mediadora das relações entre os sujeitos e a coletividade, delimitando, continuamente, os deslocamentos entre o público e o privado, bem como geradora de modalidades comunitárias de vida" (Brasil, 2004, p. 35).

Percebemos que a família tem se configurado como alvo preferencial de intervenção no desenvolvimento de programas e políticas promotoras de "inclusão social", sendo compreendida tanto como "origem" das situações de vulnerabilidade quanto constituindo um espaço resolutivo de problemas sociais e econômicos de países pobres e em desenvolvimento. Alguns autores como Nery (2009), Campos (2004), Mariano (2008), Campos & Mioto (2003), Mioto (2006) e Meyer, Klein & Fernandes (2012) têm problematizado essa questão, apontando que ao centrar o foco das intervenções psicossociais na família, busca-se superar o olhar fragmentado da culpabilização e responsabilização do indivíduo, a fim de romper com as situações de vulnerabilidades às quais a família está submetida. Entretanto, ao transferir o foco do indivíduo para as famílias, passa-se a compreendê-la como "núcleo determinante das vulnerabilidades, ou ainda, como um espaço resolutivo das demandas sociais" (Nery, 2009, p. 127), recaindo e reproduzindo sobre a mesma, a lógica de responsabilização.

Embora a matricialidade sociofamiliar represente uma dimensão significativa a ser considerada na prática cotidiana e profissional dos trabalhadores do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), esta por si só não abarca o conjunto das relações sociais ou não nos desafia a ampliar a compreensão dos determinantes relacionados ao espaço público (Nery, 2009).

No que tange ao princípio de territorialidade, este efetiva a necessidade de intervenções locais que compreendam a singularidade e as especificidades da realidade de cada comunidade envolvida no processo de intervenção, considerando a dimensão subjetiva das famílias e sua constante interação com o contexto histórico-cultural em que estão inseridas e com o qual se constituem. O território, nesse processo, se apresenta como um espaço privilegiado de fortalecimento da relação protetiva da família num contexto de vulnerabilidade social. A sua significação social é o alicerce para o exercício da cidadania, pois a cidadania é a expressão da vida ativa no território, cujas famílias e indivíduos concretizam as suas relações sociais de vizinhança e de solidariedade.

Portanto, como preconiza o documento: "[...] a descentralização político-administrativa/territorialização pretende superar práticas segmentadas, fragmentadas e focalizadas, buscando 'olhar para a realidade', considerando os novos desafios colocados pela dimensão do cotidiano [...]" (Brasil, 2004, p. 38).

Alguns paradoxos, do que se preconiza nos documentos oficiais dessa Política Pública, no entanto, não podem deixar de ser apontados: o primeiro deles se refere à heterogeneidade das múltiplas realidades no País, que reflete as ambiguidades e contradições das ações marcadas pelo processo histórico das políticas sociais sustentadas por concepções assistencialistas e caritativas, ainda predominantes nas políticas de assistência social; o segundo paradoxo se refere à compreensão que se tem das famílias atendidas. Enquanto os documentos as apresentam como sujeito constituído de potencialidades e capacidades a serem desenvolvidas com vistas à autonomia, observa-se que as ações teórico-metodológicas desenvolvidas pelos CRAS têm se convertido, muitas vezes, em estratégias refinadas de controle e de desqualificação da população "assistida".

Nosso desafio no trabalho em rede foi enfrentar esses paradoxos, bem como as contradições vivenciadas pelos próprios profissionais que apresentaram, ao longo de todo o processo, resistências evidenciadas pela participação e frequência das mesmas pessoas. Nesse sentido, um dos desafios era o de manter o comprometimento daqueles que já participavam, além de buscar ampliar a participação de outros profissionais, que conheciam o trabalho, mas que não tinham aderido às iniciativas e encaminhamentos propostos pela rede. Embora muitas pessoas comparecessem às reuniões, muitas delas, representantes de algumas diretorias do Poder Público, votavam e opinavam sobre as propostas levantadas sem, no entanto, representar o poder de decisão dos setores dos quais faziam parte, poder esse conferido apenas às pessoas que ocupavam cargos de chefia dentro das Diretorias Municipais. Tal fenômeno contribuiu para desqualificar as reuniões de rede que pejorativamente passaram a ser compreendidas por alguns profissionais como "perda de tempo", ou como ações que exigem muitas reuniões e pouco trabalho.

 

Fortalecimento da comunidade: aspectos teórico-metodológicos

Nesta seção, trazemos as contribuições teóricas de Martín-Baró (1998) e da psicologia comunitária de Maritza Montero (2004; 2004b; 2006) para compreendermos e problematizarmos as ações socioassistenciais desenvolvidas pelas políticas públicas no âmbito da proteção social. De tradição histórico-dialética, a perspectiva desses autores é fundamental para a reflexão crítica sobre a naturalização e cristalização de discursos e práticas excludentes das maiorias populares que vivem experiências de negação e reconhecimento dos direitos e que vivenciam formas perversas de inclusão/exclusão.

A partir da contribuição de Demo (2002), entendemos que o enfrentamento da pobreza é um enfrentamento político que diz respeito ao reconhecimento da ausência de cidadania. Para esse autor, "a carência material é a casca externa da desigualdade social, cujo cerne está na pobreza política" (p. 35). Tal reconhecimento seria suficiente para perceber que o combate à pobreza não passa em primeiro lugar pela assistência, mas pela reinvenção da cidadania do excluído (Demo, 2002, p. 35). Isso significa conhecer a realidade de desigualdade social, compreender as contradições da sociedade que está em permanente processo de transformação e tornar-se sujeito de suas próprias ações, pressupostos fundamentais da perspectiva histórico-dialética que fundamentou este trabalho em rede. Reinventar a cidadania significa ir além das ações estritamente assistenciais, o que implica reconhecer que a pobreza é fruto da desigualdade social e é evidenciada pela falta de distribuição de renda e da diminuição da ação do Estado, e, para tanto, deve ser enfrentada com ações que possibilitem a desnaturalização do processo de exclusão e que garantam o exercício da cidadania para todos; a promoção de intervenções/ações que levem ao fortalecimento da comunidade, à constituição de sujeitos com história própria individual e coletiva e, consequentemente, à transformação social.

Para garantir a efetiva participação dos sujeitos no processo de investigação/ação Montero (2004, 2006) argumenta que os destinatários das ações, em nosso caso, dos CRAS, devem estar ativamente presentes em todo o processo, desde o levantamento das suas necessidades e aspirações até as decisões que serão tomadas em conjunto para a solução de seus problemas. Assim, a intervenção/ação tem por objetivo a transformação das condições de vida das pessoas e o compromisso político que visa à autonomia, à emancipação e ao fortalecimento da comunidade.

La Psicología Comunitaria propone una participación, cuyo carácter político se muestra en la función desalienante, movilizadora de la conciencia y socializadora, que puede tener la praxis llevada a cabo. Desalienar y concientizar se plantean como procesos que forman parte de la reflexión que busca contrarrestar los efectos ideológicos de estructuras de poder y de dependencia. Y esa participación no busca solo remediar algún mal, cumplir algún deseo, sino además generar conductas que respondan a una proyección activa del individuo en su medio ambiente social, así como una concepción equilibrada de ese medio y de su lugar en el. (Montero, 2004, p. 106)

Qualquer mudança na consciência supõe um processo dialético de desideologização que, como sugere Martín-Baró (1998), significa desconstruir o senso comum que encobre os obstáculos e impede o desenvolvimento da democracia, fazendo com que as pessoas aceitem como natural a sua condição de vida. O trabalho de desideologização exige que os profissionais assumam a perspectiva da população atendida, aprofundem o conhecimento de sua realidade e comprometam-se criticamente com um processo que possibilite a essa mesma população ter o poder de decidir sobre sua própria existência e destino. Portanto, a desideologização da realidade cotidiana consiste em desmontar os discursos ideológicos, capazes de justificar o sistema social e legitimar condutas como a passividade, a resignação e o fatalismo.

A fim de superar as relações de dependência e de clientelismo, historicamente impregnadas nas práticas assistencialistas, as políticas sociais precisam promover o fortalecimento da comunidade, garantindo que as populações atendidas desenvolvam uma cidadania forte, consciente e crítica. O fortalecimento da comunidade é definido por Montero (2004b)

[] como el proceso mediante el cual los miembros de una comunidad (individuos interesados y grupos organizados) desarrollan conjuntamente capacidades y recursos para controlar su situación de vida, actuando de manera comprometida, consciente y crítica, para lograr la transformación de su entorno según sus necesidades y aspiraciones, transformándose al mismo tiempo a sí mismos. (p. 72)

Para que as práticas psicossociais comunitárias promovam estratégias fortalecedoras e emancipatórias, os profissionais precisam trabalhar de forma crítica e reflexiva a desnaturalização de noções generalizadas da lógica dominante, que pressupõe o pobre como incapaz, preguiçoso, sem vontade de vencer.

A dimensão metodológica, para Montero (2006), é um dos aspectos fundamentais da prática comunitária proposta e defendida pela autora, que sugere a utilização de estratégias e métodos capazes de produzir perguntas e respostas diante da realidade, suas transformações e diante das perspectivas de ação que essas provocam. A pesquisa-ação-participativa - uma das metodologias mais utilizadas pela psicologia comunitária e da libertação, para proporcionar o fortalecimento e emancipação da comunidade - foi a metodologia utilizada no processo de implantação do trabalho em rede.

Tal metodologia propõe como ponto de partida dos profissionais, que atuam nas políticas sociais, a identificação das reais necessidades dos beneficiários dos programas sociais, o levantamento dos problemas que enfrentam e dos recursos de que dispõem em suas comunidades, buscando seu desenvolvimento e fortalecimento, centrando neles a origem da ação. Ao considerar as reais necessidades e os recursos da população atendida, esta tem a possibilidade de participar ativamente no planejamento e execução de estratégias de enfrentamento de suas demandas sociais, econômicas e políticas e, portanto, deixa de ser sujeito passivo (sujeitado) da atividade dos psicólogos, assistentes sociais e educadores para ser sujeito que constrói a realidade e que protagoniza a vida cotidiana, sendo reconhecido como ator social e construtor da sua realidade. Esses atores sociais, que são sujeitos ativos e não apenas "assistidos", têm o direito e a capacidade de tomar decisões sobre o que lhes diz respeito e, ao mesmo tempo, têm o compromisso de agir sobre a sua realidade. O papel dos profissionais, nessa perspectiva, não é o de interventor-especialista (alguém de fora que define o que deve e como deve ser feito), mas de um "catalisador" das transformações sociais.

Nessa perspectiva, os aspectos éticos e políticos são basilares para se promover a cidadania ou, como sugere Demo (2002), "reinventar a cidadania", uma vez que se almeja garantir efetivamente a inclusão, respeitando as diferenças individuais, em lugar de excluí-las ou afastá-las. A dimensão ética, segundo Montero (2006), diz respeito à relação com o outro em termos de igualdade e respeito, incluindo a responsabilidade que cada um tem em relação ao outro. Isso implica em considerar o outro não como um objeto criado por quem controla os recursos na relação - como é o caso dos Programas de Renda Mínima -, mas reconhecer a existência independente da comunidade, respeitando a sua singularidade e seu caráter de autoria de uma história própria, construída pela comunidade, antes da intervenção e posterior a ela.

A dimensão política, por sua vez, diz respeito às finalidades das práticas desenvolvidas com a população e seus efeitos sociais, às questões concernentes à cidadania e ao caráter político da ação comunitária, que permite a todo sujeito participar ativamente, expressando-se e fazendo-se ouvir publicamente, criando espaços de diálogo nos quais aqueles que são silenciados cotidianamente possam falar e ser escutados. A metodologia participativa, como assinalam Ansara e Dantas (2010), possibilita

[...] um movimento permanente, dialético e coletivo que envolve a participação dos agentes internos e externos na esfera pública e se configura na criação de espaços sociais de luta por direitos, o que proporciona às pessoas que trabalham em Psicologia Comunitária construir, junto com as comunidades, intervenções/ações que levem efetivamente ao fortalecimento comunitário e à transformação social. (Ansara & Dantas, 2010, pp. 99-100)

Por isso, as práticas desenvolvidas pelos CRAS não podem ser reduzidas às ações nos moldes de um modelo clínico, individual ou às simples atividades pontuais. Ao contrário, suas ações devem ser convertidas em práticas cidadãs, que traduzem para linguagem dos direitos, necessidades sociais e coletivas, propiciando a construção de suas identidades e seu lugar de pertencimento (Telles, 1999).

 

O trabalho em rede: reinventando a cidadania

O trabalho em rede desenvolvido no município de Cajamar utilizou as referências teórico-metodológicas de Martín-Baró (1998) e Montero (2004), visando incentivar a participação da população atendida pelo CRAS. Tal trabalho iniciou-se com a realização de reuniões quinzenais, com a participação de apenas alguns atores do poder público, como representantes das secretarias de cultura, saúde, defesa civil, do conselho tutelar, da diretoria de esportes, da equipe técnica do CRAS e da Diretoria de Assistência e Desenvolvimento Social. Num primeiro momento, essas reuniões tinham como objetivo sensibilizar mais parceiros para aderirem à proposta de implantar um trabalho articulado em rede. Respaldado por essa metodologia participativa, contava-se com a parceria de diferentes atores a fim de se realizar uma identificação das necessidades das famílias atendidas no Município de Cajamar. Ao identificar as demandas locais de cada território, a rede objetivava realizar o planejamento e a execução de projetos, programas e serviços, respeitando as especificidades de cada região.

Observamos inicialmente que a apresentação da proposta de trabalho em rede gerou resistências por parte dos representantes do Poder Público, que questionavam a pertinência desse tipo de trabalho em Cajamar, julgando, a priori, sua inoperância. Alguns participantes argumentavam que parecia que as diretorias competiam entre si, em vez de trabalharem em conjunto. Outro elemento que levantaram para justificar a inoperância do trabalho em rede foi a falta de participação da população, uma vez que, segundo esses representantes, a comunidade não demonstrava interesse. Outra justificativa apontada por um dos participantes foi o fato de Cajamar ter muitos moradores migrantes, vindos de diversas regiões do Brasil, principalmente dos estados do Nordeste e de Minas Gerais, que não demonstravam sentimento de pertencimento ao município de Cajamar. Além disso, também se enfatizou que o assistencialismo é um traço característico no município, o que resultaria na expectativa de uma população que apenas quer "ganhar tudo pronto". Essas afirmações traziam consigo uma visão negativa e preconceituosa da população assistida pelos programas sociais. Entretanto, apesar dessas resistências, todos os participantes concordaram em iniciar o trabalho em rede e se propuseram a incentivar a participação de outras diretorias, criando um espaço para que todos pudessem apresentar os trabalhos que desenvolviam e, posteriormente, estendê-los à sociedade civil.

Com o objetivo de descentralizar as ações da rede, outro encaminhamento importante foi a definição de que cada reunião seria em um local diferente para facilitar a participação de todos e para não privilegiar nenhum dos dois distritos: Polvilho e Jordanésia ou até mesmo outras regiões do município.

Ao longo de todo o trabalho em rede, os representantes das diferentes diretorias ainda demonstravam resistência em chamar a sociedade civil para participar, revelando uma atitude de distanciamento e de desconfiança em relação às pessoas que se mostravam mais participativas e críticas às ações do governo. Contudo, aos poucos, as instituições sociais, os representantes de ONGs e dos Conselhos da Cultura, da Criança e do Adolescente, da Assistência Social e as Associações de bairros foram se inserindo nas reuniões.

 

Ações desenvolvidas: avanços, limites e contradições

No início, o trabalho em rede consistiu na elaboração de um diagnóstico do município, no qual foram levantados os principais problemas e demandas, destacando-se os bairros de difícil acesso. Nas reuniões que aconteceram entre 2007 e 2009, o grupo discutiu a respeito dos principais problemas encontrados no município, tais como, o alto índice de dependência química; a falta de políticas públicas referentes à saúde mental; a gravidez na adolescência; a falta de atividades de esporte, lazer e cultura; a centralização das políticas públicas que não atingem a maioria da população com alta vulnerabilidade. A partir da identificação desses problemas, criaram-se comissões compostas pelos diferentes participantes para realizarem ações específicas.

Dentre os problemas identificados, estava a necessidade de implantação de um Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS) no município; para encaminhar essa discussão, foi criada uma comissão para estudar e elaborar uma proposta de CAPS para Cajamar. Essa comissão foi constituída por dois representantes do CRAS, um representante da Saúde Mental do Município, um representante da Instituição Sítio Agar, um representante do Conselho Tutelar e um representante da sociedade civil. Esse grupo apresentou a proposta para a rede e, uma vez aprovada, encaminhou-a para o Diretor da Saúde. A proposta de criação do CAPS foi engavetada, mas a partir da demanda identificada, o município fez um convênio com o CAPS de Santana de Parnaíba - município vizinho - para atender essa necessidade, criando um CAPS regional e disponibilizando transporte para a população. Vale ressaltar que essa discussão sensibilizou a juíza local, que começou a cobrar a implantação do serviço no município.

A rede também mobilizou um protocolo de atendimento para pessoas em situação de rua e com dependência química. Tal protocolo foi construído em conjunto com os atores que compunham a comissão: representantes do CRAS, Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS), Defesa Civil, Conselho Tutelar, Saúde Mental, comunidades terapêuticas locais e do Fórum Distrital de Cajamar.

Esse protocolo buscava definir os procedimentos para a realização dos atendimentos e encaminhamentos relacionados às situações específicas de dependência química e de pessoas em situação de rua. A construção desse protocolo facilitava a ação, uma vez que todos os participantes da rede haviam contribuído para a sua elaboração e ajudavam a divulgá-la. Participaram desses encaminhamentos representantes da comunidade terapêutica, um representante da defesa civil e pessoas que não eram profissionais ou estavam presentes na realização das reuniões de rede. O fato de o Fórum Distrital de Cajamar participar da rede conferiu um caráter mais institucionalizado para essas ações, pois mesmo quando algumas pessoas não aderiam aos encaminhamentos previstos, estes eram efetivados. Essa legitimidade conferida pelo apoio e participação da assistente social do Fórum, e algumas vezes até da juíza, caracterizava o processo como iniciativa oficial que não necessariamente vinha da população, mas dos profissionais do Poder Público, que levantavam algumas demandas ao longo de suas intervenções na comunidade e que, com a rede, tentavam encontrar estratégias para enfrentar os problemas identificados.

A criação das comissões surgia a partir da identificação dos principais problemas levantados no grupo. Tais comissões eram constituídas por pequenos grupos que incluíam profissionais e pessoas da comunidade interessadas em debater os temas e buscar alternativas para solucioná-los. Cada comissão ficava responsável por definir e organizar as ações relacionadas a cada demanda específica.

Com relação à comissão de pessoas em situação de rua, utilizando a metodologia proposta por Montero (2006), foi realizado um levantamento sobre quem eram essas pessoas e de onde vinham. Os integrantes dessa comissão (técnicos do CRAS, técnicos do CREAS, representante de uma comunidade terapêutica local, assistente social do fórum distrital, defesa civil e conselho tutelar) organizaram um dia de abordagem, saindo às ruas para procurar, conversar e conhecer quem eram essas pessoas em situação de rua. A comissão elaborou uma ficha de triagem que foi utilizada para registrar as informações durante as conversas com as pessoas abordadas. A maioria delas já conhecia as práticas desenvolvidas pelos profissionais da área da assistência social e demonstrava certa familiaridade com o que lhe era perguntado. As perguntas versavam sobre: dados pessoais, composição familiar, usos e abusos de substâncias psicoativas, se já havia participado de tratamentos ou se aceitaria participar, último emprego, tempo e período em que está na rua, dentre outras. Quando se identificava que a pessoa queria sair da rua, era oferecido tratamento contra a dependência química, respeitando aqueles que preferiam continuar na rua.

Ao longo das ações propostas por essa comissão, percebíamos que a maioria da população de rua demonstrava conhecer as abordagens dos profissionais da área da assistência de diferentes municípios. Isso pode ser evidenciado no discurso de um deles ao responder à triagem: "mas você não vai me perguntar se quero me tratar? Você sabe que sou usuário, né? Não vai querer chamar minha família? Que estranho! Gostei, você é legal!"

Percebemos também que as respostas eram muito parecidas entre si, a maioria dizia que tinha interesse em se internar, que gostaria de retornar à família ou ao trabalho, e para tanto precisaria de dinheiro para comprar a passagem e retornar à sua cidade. De certa forma, seus discursos traziam elementos alinhados com as expectativas dos técnicos. Entretanto, foram muitas as atitudes de resistência manifestadas, sobretudo quando aceitavam uma internação ou tratamento para dependência química, mas não voltavam ao CRAS no dia seguinte ou, ainda, quando diziam aceitar retornar à família, mas passavam o número de telefone errado para a realização do contato.

Embora os profissionais, na identificação das necessidades, utilizassem estratégias propostas por Montero (2004), predominavam as demandas levantadas e priorizadas por um conjunto de pessoas motivadas a proporcionar melhores condições de vida às pessoas em situação de rua, e não aquelas apresentadas por elas.

Dentre os desafios apresentados por essa população, a comissão elegeu como prioridade os que tinham maior adesão da pessoa em situação de rua, o que exigia a ampliação dos espaços de participação dessa população. Além disso, outro desafio presente e urgente era criar estratégias que buscassem romper com as alternativas meramente assistenciais que o CRAS oferecia, que se reduziam quase sempre a conceder o cobertor, o alimento, o banho, a roupa limpa e a passagem para seguirem viagem até o próximo município. Após esse dia de abordagem, os participantes da comissão iniciaram um processo de familiarização, organizando um café da manhã para receber as pessoas que estavam na rua, com o objetivo de estabelecer um vínculo com elas.

Contudo, percebemos que, ao longo de dois anos, poucas foram as contribuições da rede para essa população no campo das políticas públicas e na garantia de direitos. Embora a comissão estivesse disponível para atender às especificidades demandadas por essas pessoas, identificadas no diagnóstico e efetivadas por meio dos encaminhamentos assistenciais, ao analisarmos tais ações a partir de uma perspectiva dialética, percebemos as contradições e os limites presentes nas intervenções, que ainda carregam resquícios de uma prática assistencial.

Dessa forma, apesar dos encaminhamentos serem definidos pela rede, propondo uma metodologia mais participativa no planejamento e execução das ações, estas não incluíam os sujeitos da própria ação nas suas definições e diretrizes, provocando a baixa adesão dessa população às ações oferecidas no município, limitando a participação das pessoas em situação de rua e deixando de contribuir para intervenções comprometidas com uma efetiva transformação da realidade dessas pessoas. Nesse sentido, cabe-nos problematizar: a serviço de quem estava a rede? A quem beneficiava? Embora assumisse um discurso que buscava contar com a participação de todos na elaboração e execução de práticas comprometidas com as demandas dos territórios no Município de Cajamar, suas decisões se restringiam aos profissionais que atuavam no poder público. Parece-nos que alguns grupos, como as pessoas em situação de rua, não se sentiam representados e continuavam sem voz na luta por seus direitos.

Entre as demandas do município, foram identificados muitos casos de violência contra a mulher. Para atender a essa necessidade, foi criada uma comissão que avaliou que os próprios profissionais não sabiam trabalhar com o problema ou não conheciam quais encaminhamentos deveriam ser realizados, carecendo, inclusive, do conhecimento das políticas públicas. Essa discussão apontou a necessidade de se criar outro protocolo de atendimento no município, organizado por um grupo de participantes da rede que formou uma nova comissão para organizar ações relacionadas ao tema.

Tal comissão elaborou uma ficha de triagem para ser utilizada nas diversas redes de serviços, principalmente nas Unidades Básicas de Saúde, a fim de identificar as situações de violência contra a mulher. Uma vez constatada tal situação, o profissional realizava um trabalho de sensibilização para denúncia e encaminhamento da vítima ao CREAS. Com o objetivo de fortalecer os serviços do CREAS, que até então era visto como um serviço especializado de atendimento aos dependentes químicos (o CREAS chegava a receber encaminhamentos realizados por médicos e/ou psicólogos do hospital e postos de saúde, com pacientes em surto que eram trazidos de ambulância), promoveu-se uma capacitação para os atores sociais (participantes da rede), tendo em vista sensibilizá-los sobre a questão. As capacitações eram frequentes no trabalho em rede, uma vez que se configuravam como uma das estratégias para atingir efetivamente a população participante.

Outra ação da rede surgiu a partir do levantamento de dois bairros: São Benedito e Lago Azul, bairros mais distantes e sem acesso às políticas públicas. Esse levantamento foi realizado pelo CRAS, que identificou que essas regiões eram as que realizavam o maior número de entregas de cestas básicas às famílias acompanhadas pela assistência social. Nesse contexto, os profissionais dos CRAS deslocavam-se para esses bairros mais periféricos do município - muito afastados territorialmente de Cajamar - cerca de 9 km - sem saneamento básico, transporte, atendimento à saúde ou educação, para desenvolver trabalhos socioeducativos com os moradores que apresentavam queixas semelhantes: abandono do Poder Público e falta de políticas públicas. O bairro Lago Azul localiza-se na divisa entre Cajamar, Pirapora e Santana de Parnaíba, enfrentando o problema de descaso dos três municípios. A equipe do CRAS organizava grupos socioeducativos, mas não tinha uma metodologia comum, nem objetivos claros e definidos coletivamente. Dessa forma, os profissionais desenvolviam diferentes ações, com características distintas, mas denominadas socioeducativas. Dentre essas ações, era frequente a realização de palestras ou orientações em grupo, que buscavam fiscalizar o cumprimento das condicionalidades dos programas de transferência de renda. Tais ações não eram debatidas em rede, ficando a critério do profissional o desenvolvimento metodológico de tais práticas. Nessa perspectiva, pouco se discutia a respeito das práticas teórico-metodológicas, evidenciando uma dificuldade dos profissionais em efetivar ações participativas que considerassem os sujeitos ativos e protagonistas de sua história.

No entanto, dentre essa diversidade de ações, que contou com a participação de múltiplos profissionais, uma das práticas, respaldada pela metodologia de Montero (2004, 2006), se destacou. Essa prática se desenvolveu no bairro de São Benedito, a partir da realização de vários encontros com os moradores do bairro para apontarem suas necessidades e problemas que enfrentam. A partir desses relatos, foi feito um diagnóstico do território, organizando espaços de discussão relacionados às demandas identificadas nas famílias participantes, buscando, com elas, elaborar propostas de solução para as demandas apresentadas.

Vale ressaltar que, conforme Montero (2006), o desenvolvimento de um trabalho comunitário se dá a partir da promoção de uma prática transformadora, que considera o sujeito como um ser ativo, dinâmico, construtor de sua realidade e conhecedor de suas demandas e expectativas. Nesse sentido, as ações desenvolvidas no grupo de moradores eram elaboradas e planejadas em conjunto, compreendendo o sujeito como protagonista de sua própria história, capaz de aprender e atuar no movimento dinâmico de sua realidade por meio de sua participação ativa no planejamento e execução de estratégias de enfrentamento de suas demandas sociais, econômicas e políticas.

Dentre os desafios encontrados, podemos destacar a dificuldade dos moradores em se identificar como protagonista. Tal processo pode ser evidenciado no próprio levantamento dos problemas, quando apontavam, dentre as soluções, a necessidade de se vincularem a algum vereador, pois só uma personagem pública teria o poder para mudar as situações precárias em que eles viviam, tais como, a falta de coleta de lixo, falta de saneamento básico, o ônibus que não chegava à determinada região do bairro, falta de água e falta de escola na região, dentre outros. Observamos que essa "crença" no personagem público reproduz uma prática antiga nessa região, o que evidencia as relações clientelistas e de favor comuns numa concepção que desconsidera a questão dos direitos e da efetivação das políticas públicas em Cajamar.

A experiência, nesse grupo, como protagonista, com pessoas capazes de exigir do Poder Público uma solução que melhore as condições de vida dessa população, sem entendê-la como favor e sim como dever do Estado, foi algo extremamente novo e por isso mesmo extremamente desafiante, sobretudo porque se contrapunha às expectativas pontuais que alguns participantes traziam com respeito à oferta de cursos como de artesanato, já que a maioria desses participantes eram mulheres e que, por conta da distância, não tinham acesso a tais iniciativas. Nesse contexto, foram oferecidos cursos de artesanato, ministrados por uma monitora que era moradora da região e, quinzenalmente, os profissionais (assistente social e psicólogo) compareciam para realizar o grupo socioeducativo. Observamos que tal estratégia contribuiu para um maior reconhecimento e participação da comunidade local.

Nesse aspecto, os trabalhos desenvolvidos pela equipe do CRAS buscavam privilegiar o conhecimento que a população trazia a respeito da história do bairro e dos problemas enfrentados pelos moradores. Dentre os problemas apontados, os moradores relataram que a prefeitura chegou a disponibilizar um ônibus da saúde para atender à população, mas havia um tempo que não aparecia. O representante da saúde, que estava presente, justificou que o ônibus fora cancelado por falta de adesão e participação da população aos serviços oferecidos pela equipe do ônibus. Em uma das reuniões com os participantes do grupo socioeducativo, a equipe do CRAS interpretou que a população não entendia como importantes as ações de prevenção à saúde realizadas pela equipe do ônibus, e apenas a procuravam em situações de emergência; contudo, o atendimento prestado no ônibus não dava conta de demandas de pronto-socorro, o que para a população o tornava dispensável. O órgão responsável pela saúde não voltou a disponibilizar o ônibus para a região. Notadamente, esse tipo de ação era muito pontual e não visava articular a comunidade local em torno da discussão, reflexão crítica e busca de soluções.

No bairro São Benedito, onde havia algumas políticas públicas como o Programa de Saúde da Família (PSF) e a Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI), a comunidade era bastante atuante e participava das reuniões da rede, apesar da localização geográfica afastada e das dificuldades com o transporte, bastante ineficaz. As principais queixas da população desse bairro eram o alto índice de consumo de drogas, a gravidez na adolescência, a falta de segurança pública, de lazer, de transporte e de escola de ensino fundamental.

O trabalho em rede abriu espaço para discussão dos problemas enfrentados pela população, sendo criada uma comissão que reunia as famílias desse bairro que vivem em situação de vulnerabilidade. As demandas foram levantadas principalmente pela diretora da escola e pelos profissionais do PSF, que acompanhavam de perto tais famílias. A comissão reivindicava a implantação de ações de esporte, cultura e lazer para crianças e adolescentes na região, reivindicação essa que culminou, alguns anos mais tarde, com o investimento do Conselho da Criança e do Adolescente do município em um projeto social, assumido por uma ONG, que desenvolve até hoje ações socioeducativas com os adolescentes no bairro.

A rede criou uma comissão que objetivava prevenir a reincidência de institucionalização de crianças e adolescentes em situação de risco e tratar de questões relativas à Casa de Ismael (um abrigo que pertence ao Sítio Agar e atende crianças e adolescentes afastados de suas famílias). Nesse sentido, a comissão promovia a discussão de casos com os participantes do conselho tutelar, fórum, CRAS, CREAS, profissionais do abrigo e psicólogas do posto de saúde, a fim de estudar e definir os encaminhamentos a serem realizados e compartilhar responsabilidades no acompanhamento das famílias. Nesse contexto, identificou-se a necessidade de um trabalho socioeducativo com os familiares das crianças e adolescentes institucionalizados. Dessa forma, organizaram-se reuniões socioeducativas, quinzenais, a fim de se efetivar o acompanhamento dessas famílias. Houve uma boa adesão no desenvolvimento desse trabalho, porém, paradoxalmente, tratava-se de uma ação que começou a ser condicionada pelo Poder Judiciário do Município como um dos critérios para que houvesse a desinstitucionalização das crianças e adolescentes abrigados.

Se, por um lado, essas reuniões socioeducativas surgiram objetivando contribuir com o fortalecimento familiar, por outro lado, ao longo do tempo, configurou-se como uma estratégia de fiscalização e controle das famílias, já que a participação das famílias estava diretamente vinculada a um acompanhamento do Poder Judiciário que era compartilhado nas reuniões de rede e encaminhado para decidir pela permanência ou não do abrigamento dos adolescentes.

Pudemos perceber que o trabalho em rede, em muitos processos de intervenção nas comunidades, reproduziu formas naturalizadas de se estabelecer relações, reforçando a concepção de famílias pobres e excluídas como destituídas de poder e de direitos. Tal concepção considera esses grupos sociais como incapazes ou acomodados, naturalizando e reiterando que se trata de famílias e/ou sujeitos que não conseguem transformar a própria vida e, consequentemente, não conseguem transformar sua própria realidade, legitimando práticas psicossociais que propiciam a manutenção do status quo. Assim sendo, muitos projetos, programas e serviços foram desenvolvidos sem a participação da população, que é considerada por seus agentes incapaz de construir, com o Poder Público, as ações necessárias para melhorar suas condições de vida.

Contudo, percebemos também que o trabalho em rede, por meio da organização em comissões, possibilitou a articulação entre os diferentes atores sociais que atuam no município de Cajamar, garantindo um encaminhamento mais efetivo para a população atendida. É importante ressaltar que, sendo a mesma família atendida nos diferentes espaços, como a assistência social, a escola, a saúde, o fórum, o conselho tutelar, dentre outros, o trabalho em rede possibilitou um acompanhamento articulado com as famílias, evitando ações repetidas e inoperantes. Além disso, essa experiência também propiciou um enriquecimento nas discussões e nos encaminhamentos ao promover intervenções intersetoriais e interdisciplinares.

Para além das ações desenvolvidas, a rede foi se caracterizando como um espaço de contestação, uma vez que trazia à tona problemas e dificuldades que precisariam ser solucionadas pelo Poder Público do município, configurando-se assim como oposição política.

O trabalho em rede se prolongou até 2009, quando mudou a gestão municipal e a irmã do novo prefeito assumiu a diretoria da Assistência Social, decidindo, sem uma discussão coletiva, coordenar as reuniões de rede. Nesse contexto, a principal articuladora da rede foi dispensada de seu cargo e muitas pessoas que participavam das ações desenvolvidas pela rede deixaram de comparecer. Aquelas que continuaram a participar relataram que não aguentavam mais tantas reuniões, sem os propósitos que mobilizavam esse trabalho e começaram a desqualificar os encontros, que foram se espaçando até serem totalmente extintos.

Até hoje, alguns participantes da sociedade civil perguntam se a rede será retomada, mas, infelizmente, eles mesmos não se sentem fortalecidos para iniciar um movimento como a rede novamente. Assim como o movimento foi iniciado pelo Poder Público, o próprio Poder Público o encerrou e não a população, o que, de alguma forma, denota que a população não se fortaleceu efetivamente, no sentido defendido por Montero (2004; 2004b). Cabe questionar se o período de dois anos foi insuficiente para um trabalho de fortalecimento ou se as estratégias utilizadas, apesar de promoverem maior participação, ainda carregam consigo características assistencialistas.

O trabalho articulado continuou entre alguns atores como o fórum, o conselho tutelar, algumas instituições sociais, os profissionais do Programa de Saúde da Família e os técnicos do CREAS, que se identificaram com a ação em conjunto, mas já não se fala mais em trabalho em rede no município de Cajamar.

 

Considerações finais

A experiência aqui relatada mostra que as metodologias participativas que envolvem a população destinatária dos Programas Sociais permitem uma maior participação, mas a organização das ações de interesse das comunidades não pode ficar nas mãos do Poder Público, nem nas dos profissionais. É preciso que a própria população assuma a direção dessas ações, superando, como apontamos anteriormente, as relações de dependência e clientelismo que foram construídas historicamente e ainda estão impregnadas nas práticas que são desenvolvidas nas e pelas políticas públicas.

O trabalho em rede, desenvolvido no município de Cajamar, ao longo de 2007 a 2009, deixou claro a importância das metodologias participativas para promover a participação da comunidade e dos beneficiários das políticas sociais, tornando-os sujeitos que buscam, com o Poder Público, o encaminhamento e a solução de suas demandas. No entanto, as propostas empreendidas pela rede mesclaram ações em que a comunidade tinha efetiva participação e ações que ainda foram muito pontuais ou se reduziam ao atendimento das necessidades da população em seu aspecto mais imediato, o que de alguma forma não permitiu o rompimento com a prática assistencialista. Evidentemente, uma ruptura com essa cultura assistencialista, com a forma tutelada de ação do Poder Público, não se faz de um dia para o outro, mas se constrói com mais experiências participativas e democráticas, exigindo um mais tempo e um trabalho intenso e contínuo que leve ao fortalecimento comunitário, a ponto de as famílias e as comunidades desenvolverem suas ações independentemente das iniciativas do Poder Público.

As experiências participativas ainda têm como principal obstáculo o poder político, que não dá continuidade às políticas sociais, que são interrompidas pela mudança de governos. A construção de uma cidadania forte, consciente e crítica, como propõe Montero (2004), requer tempo, compromisso e fundamentalmente práticas que fortaleçam a comunidade que, independentemente de seus agentes externos ou dos representantes do Poder Público, possa dar continuidade aos trabalhos que ocorrem por iniciativa do Poder Público: "Para que las políticas sociales puedan lograr máxima efectividad y generar desarrollo, es necesaria una ciudadanía fuerte, consciente y crítica, de lo contraria, lo que tiende a predominar es el clientelismo y la dependencia" (p. 71).

 

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Recebido em: 16/08/2014
Reformulado em:01/04/2015
Aprovado em: 30/04/2015

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