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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.10 no.1 São João del-Rei jun. 2015

 

ARTIGOS

 

Inserção profissional de travestis no mundo do trabalho: das estratégias pessoais às políticas de inclusão1

 

Professional insertion of transvestites in the world of work: from personal strategies to inclusion policies

 

Inserción profesional de travestis en el mundo del trabajo: de las estrategias personales a las políticas de inclusión

 

 

Lincoln de Oliveira RondasI; Lucília Regina de Souza MachadoII

IGraduado em Letras (UFMG) e Mestre em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local (UNA). É professor da rede estadual de educação de Minas Gerais. Endereço: rondaslincoln@gmail.com
IISocióloga (UFMG), Mestre em Educação (UFMG), Doutora em Educação (PUC-SP) e Pós-doutora em Sociologia do Trabalho (IRESCO-CNRS, Paris). É professora do Programa de Pós-graduação em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local do Centro Universitário UNA. Endereço: lsmachado@uai.com.br

 

 


RESUMO

Busca-se, neste artigo, analisar resultados de uma pesquisa sobre a inserção de travestis no mundo do trabalho. Em diálogo com a literatura especializada e a partir de doze depoimentos colhidos, são focalizados aspectos da relação entre travestis e o mundo do trabalho, especialmente os embaraços, estorvos ou impedimentos às suas aspirações e realizações profissionais. Foi dada atenção às estratégias pessoais que elas desenvolvem para a superação desses obstáculos. Dois modelos teóricos de estratégia de inserção profissional serviram de referência, o paradigma defensivo e o ofensivo. Pretendeu-se, assim, dar visibilidade às dificuldades que esse segmento sociocultural encontra frente ao mercado de trabalho na busca da realização das suas aspirações profissionais e discutir ações de políticas públicas que possam promover seu acesso à capacitação, ao emprego, fortalecendo sua aceitação social pela sociedade.

Palavras-chave: Travestis; inserção profissional; inclusão social.


ABSTRACT

This study proposes to analyze the social conditions that prevent some tranvestites from obtaining professional insertion. Based on some of the their own accounts an effort was made to try to identify what sort of impediments have kept tranvestites from being inserted in the job market as well as to identify their own personal strategies to overcome such obstacles. Twelve tranvestites took part in an interview where their social-economic, educational and present work status were analyzed. Positive attitudes towards professional assertiveness and engagement in affirmative actions as a means to be recognized by the job market and society as a whole were also object of analyses. Offensive and defensive theoretical methodologies were used as a reference to identify their professional aspirations and to discuss political policies that may promote access to qualification and jobs and the reinforcement of their acceptance by society.

Key-words: Transvestites; profesional insertion; social inclusion.


RESUMEN

Se busca, en este artículo, analizar los resultados de una encuesta sobre la inserción de travestis en el mundo del trabajo. En diálogo con la literatura y basado en doce testimonios recogidos, se abordan aspectos de la relación entre travestis y el mercado de trabajo, sobre todo los obstáculos o impedimentos a sus aspiraciones y logros profesionales. Se prestó atención a las estrategias personales que desarrollan para superar estos obstáculos. Dos modelos teóricos de estrategia de inserción profesional sirven como referencia, el paradigma defensivo y ofensivo. Se pretendía así a dar visibilidad a las dificultades que este segmento socio-cultural se ha vivido en la cara del mercado de trabajo en la búsqueda de la realización de sus aspiraciones profesionales y discutir acciones de política pública que pueden promover su acceso a la formación, al empleo, pemitiendo fortalecer su aceptación social por la sociedad.

Palabras clave: Travestis; inserción profesional; inclusión social.


 

 

Introdução

Este artigo focaliza estratégias de inserção profissional de travestis, compreendidas em duas perspectivas. A primeira se refere a ações pessoais de travestis com o propósito de tornar suas forças de trabalho mais valorizadas e ao mesmo tempo obter o reconhecimento e a aceitação do seu modo subjetivo e diverso de ser pela sociedade. A segunda diz respeito a políticas sociais de qualificação profissional que promovam a inclusão social e a aceitação da diversidade sexual de travestis pela sociedade por meio da inserção qualificada e da permanência desse grupo social no mundo do trabalho.

Este estudo foi motivado pela observação da existência de um número pequeno de travestis no mercado de trabalho formal e do seu confinamento a áreas restritas de atuação (entretenimento noturno, moda, estética e beleza). A sociedade se mostra menos intolerante à aceitação da atuação das travestis nesses segmentos.

Em razão dos problemas relacionados à sua aceitação pela sociedade, as travestis desenvolvem estratégias de inserção profissional, que podem ser mais defensivas ou mais ofensivas. São defensivas quando a opção é pela adaptação ou adequação da trajetória ocupacional ao padrão tradicional de aceitação social das suas atividades de trabalho ou porque são situações de menor risco de insucesso. São ofensivas quando há o enfrentamento da estigmatização e se busca a construção de outros padrões de inserção, inclusive os mais qualificados e que possibilitam maior permanência no mundo do trabalho.

Pretende-se com este estudo contribuir com todos os que, na educação ou por meio de outras políticas sociais, buscam formar opiniões, promover atitudes, desenvolver ações de superação de preconceitos e de exclusão social. Ele teve natureza exploratória em razão do número de entrevistas realizadas sobre o tema e por visar o estímulo de mais pesquisas nesse campo. Com foco em discursos de militantes sobre diferenciação entre identidades coletivas de travestis e transexuais e as políticas públicas de saúde, é importante registrar aqui as contribuições de Carvalho (2011) sobre o histórico do movimento de travestis e transexuais no Brasil.

 

A identidade travesti

A identidade de gênero se refere ao conceito que alguém tem de si próprio com respeito às suas características biopsíquicas e culturais, se masculinas, femininas ou ambivalentes. Assim, as travestis são, nos dizeres de Borba e Ostermann (2008, p. 410), "indivíduos biologicamente masculinos que, através da utilização de um complexo sistema de techniques du corps, moldam seus corpos com características ideologicamente associadas ao feminino". Ou seja, indivíduos do sexo masculino que se vestem de mulher durante todo o dia, adotam nome, roupas, penteados, maquiagem, pronomes de tratamento femininos e moldam o corpo com o objetivo de adquirir aparência física feminina (Benedetti, 2005; Irigaray, 2007; Kulick, 2008; Silva, 2009). São pessoas às quais se atribuem formas de identificação baseadas em noções sobre o que se considera normalidade, para infligir níveis diversos de depreciação. Além disso, são pressionadas à invisibilidade, processo de redução ou nulificação das possibilidades de interlocução com a sociedade em função dessas diferenças (Saraiva, 2012). Até mesmo as empresas que possuem políticas de combate à discriminação preferem que o indivíduo permaneça oculto, revelando o preconceito velado das organizações que temem ver suas marcas associadas a indivíduos não aceitos pela sociedade, receando acarretar prejuízos financeiros e de imagem (McNaught, 1993). São pessoas que tendem a ter dificuldades para estabelecer uma relação afetiva estável, consideradas cidadãos de segunda categoria (Andrade, 1998), discriminadas tanto pela sociedade como pelos próprios gays. É-lhes negado - ou severamente limitado - o acesso aos espaços públicos (Kulick, 2008).

A sociedade considera as travestis como transgressoras, elas se deparam com barreiras apresentadas de várias formas e em vários ambientes. Vale lembrar que o tratamento preconceituoso dado às travestis no ambiente escolar e nas unidades do serviço público de saúde, muitas vezes, desestimula a adesão delas à escolarização e aos cuidados médicos.

Quando a hostilidade e a rejeição provêm também da família, a travesti é empurrada para a rua, às formas tidas como não convencionais de ganhar a vida, ao tráfico e ao uso de drogas, a situações que lhes acarretam doenças e morte social e física. A rejeição às travestis também vem do mundo do trabalho, sob a justificativa da aparência física inadequada (Irigaray, 2007). Quando em empregos formais, a maioria das travestis tem contato com pessoas que costumam tratá-las de modo derrisório, desrespeitoso e humilhante (Kulick, 2008).

Travestis têm sido particularmente vulneráveis aos crimes de execução e isso se deve, em muitos casos, ao seu envolvimento com situações de risco social e ao modo pelo qual a transfobia as atinge (Carrara & Viana, 2006). São frequentemente relacionadas à violência, tráfico de drogas e a outras situações consideradas anômalas graças à influência de noticiários sensacionalistas que se nutrem dos destaques dados às prisões, assassinatos e escândalos em que são envolvidas.

Aquelas que são profissionais do sexo, profissão já reconhecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego e inserida na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), sofrem por se identificarem como travestis e por exercerem essa profissão.

Para se harmonizar com a sociedade o indivíduo visto como fora da norma é pressionado a se adequar ao padrão de gênero hegemônico. O preço dessa adequação é altíssimo, pois envolvem custos significativos de privação do exercício de direitos. Assumir a diferença é estar condenado aos espaços marginais da sociedade, é considerar a marginalidade como normalidade (Saraiva, 2012).

Em geral, as travestis possuem baixa escolaridade em razão da evasão escolar precoce a que são levadas por não tolerarem o bullying, as zombarias ou agressões vividas na escola. A falta de formação profissional reforça as barreiras existentes no mercado de trabalho e aumenta as dificuldades para encontrar emprego fora das esferas tradicionais de atividade profissional em que são aceitas (Teixeira, 2000).

Desde 1992, as travestis brasileiras vêm promovendo encontros com o objetivo de obter articulação política e visibilidade nacional. Do primeiro encontro nacional de travestis em 1992 até os dias de hoje houve muitos esforços nesse sentido. Uma das mais significativas reivindicações das travestis se refere ao uso do nome social, aquele pelo qual essas pessoas se identificam e são identificadas pela sociedade. Já existem situações que permitem o uso do nome social adotado por elas. O Ministério da Saúde garante aos usuários do Sistema Único de Saúde o uso do nome social no cartão de identificação de usuários, conforme Portaria 1820, de 13 de agosto de 2009. O Ministério da Educação por meio da Portaria 1602, de 18 de novembro de 2011, assegura o direito de escolha de tratamento nominal a servidores e usuários no seu âmbito de atuação.

Durante a audiência pública sobre os assassinatos de LGBT, realizada em 24 de novembro de 2010, na Câmara dos Deputados, em Brasília, a presidente da Rede Nacional de Pessoas Trans, a travesti Liza Minelly, informou que "entre travestis e transexuais, cerca de 70% já sofreram algum tipo de violência". Seu estado, Paraná, segundo ela, teria sido o que apresentou "maior número de assassinatos de travestis em 2009". Ela reafirmou as análises e denúncias de que "quase sempre o preconceito afasta as travestis do ensino e dos empregos formais, e muitas vezes as empurra para a prostituição e as drogas". Cabe ressalvar, aqui, a não ilegalidade da atividade de prostituição no Brasil seja para as pessoas que se prostituem ou para seus clientes. O que se considera crime é o seu fomento e a exploração sexual de pessoas agenciadas por terceiros para a exercerem. O que a depoente buscou expressar, além disso, é a falta de proteção e os riscos no exercício dessa profissão nas situações de marginalidade social que alguns dos seus praticantes se encontram. Ela acrescenta um aspecto importante que deve ser lembrado: "Também assistimos com frequência à morte moral da travesti, quando negam a ela um emprego para o qual teria todas as qualificações necessárias".2

Aceitação social consiste em garantir o tratamento das travestis em igualdade de condições com qualquer outra pessoa igualmente qualificada, em entrevistas para emprego e no exercício de atividades profissionais. Porém, um dos grandes entraves a essa aceitação é a crescente transfobia a que se assiste atualmente, inclusive com a associação do termo travesti a forte apelo erótico e fetichista, a transtornos patológicos, à imitação, engano ou fingimento com relação a ser alguém que não se é. Vale (2007, p. 55) é enfático ao dizer que "a injúria em relação a travestis e transgêneros aproxima-se da injúria racista". Trata-se de uma questão de identidade de pessoas associada às suas vivências sociais e culturais de um gênero diferente daquele que lhes foi atribuído quando nasceram e que requer aceitação social.

 

Metodologia

Tendo obtido parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário UNA, foram realizadas, em 2011 e 2012 e com a duração média de 45 minutos, entrevistas com 12 travestis residentes em Contagem, Belo Horizonte e Betim. Seus nomes verdadeiros não foram revelados neste artigo. Quatro partes compunham as entrevistas. Na primeira, foram buscados dados sobre o perfil social, cultural, educacional e profissional das entrevistadas. Na segunda, elas foram convidadas a discorrer livremente sobre questões relacionadas à inserção e permanência no mercado de trabalho, tais como as dificuldades encontradas. Na terceira, pediu-se que relatassem o que já haviam feito ou estavam fazendo para se qualificarem profissionalmente. Na última, foram abordadas questões sobre ações coletivas de valorização de travestis no mercado de trabalho e na sociedade.

 

Características da amostra pesquisada

Não foram encontrados dados demográficos sobre travestis nestas localidades. Para compor a amostra, localizar e convidar as travestis a participarem da pesquisa, utilizou-se a técnica da imputação social, que consiste da indicação de nomes e meios de contato de possíveis participantes por pessoas confiáveis com base na atribuição do perfil de interesse da pesquisa.

Das 12 travestis entrevistadas, a metade tinha idade até 29 anos, pessoas jovens. Apenas uma tinha idade superior a 40 anos. Três se identificaram como brancas, quatro como morenas, uma como morena clara, uma como morena escura, uma como parda, uma como mulata e uma como negra. Quanto à religião, cinco se declararam católicas, duas espíritas, duas pertencentes à religião dos orixás, uma evangélica e duas sem qualquer filiação religiosa. Sobre a escolaridade, três disseram ter o ensino fundamental completo; quatro, o médio incompleto; quatro, o médio completo e uma, o superior incompleto. Ou seja, apenas cinco haviam completado a escolarização básica.

Quatro eram filiadas a entidades de defesa dos interesses de travestis, duas delas ocupavam cargos numa dessas associações. Uma se disse simplesmente participante e sete se declararam sem vínculo a movimentos relacionados ao gênero.

Uma era cozinheira em restaurante especializado em culinária japonesa, uma era faxineira, quatro eram profissionais do sexo, uma era profissional do sexo e também massagista e fotógrafa free-lancer, uma era funcionária pública e exercia a função de guarda patrimonial, uma era ao mesmo tempo operadora de telemarketing, manicure, depiladora e cabeleireira, uma era processadora de alimentos e duas eram proprietárias de salão de beleza.

Quatro não revelaram com que idade se iniciaram na atividade remunerada de trabalho, uma disse que foi aos dez anos; duas, aos 16; quatro, aos 18 e uma, aos 21. Quatro não apresentavam qualquer registro em carteira profissional; duas, dois registros; duas, três; uma, cinco e uma, nove.

Apenas cinco eram assalariadas. Nesta condição, realizavam atividades pouco valorizadas socialmente, pouco exigentes de qualificação profissional e que lhes conferiam renda relativamente baixa. Dentre elas, apenas uma apresentava possibilidade de maior estabilidade no emprego, pois ocupava cargo conquistado mediante concurso público. Com a exceção da cozinheira em restaurante especializado em culinária japonesa, em exercício há 15 anos, e a de guarda patrimonial, há quatro, as outras ocupações assalariadas eram exercidas há menos de um ano.

As proprietárias de salão de beleza se destacaram por períodos longos na mesma atividade, mais de 20 anos. As cinco que eram profissionais do sexo assim se distribuíam por tempo nesta atividade: duas até três anos; duas, há seis anos e uma, há dez anos. Algumas entrevistadas declararam que atuam como profissionais do sexo eventualmente, embora tenham outra ocupação. Uma das que se declararam profissionais do sexo considerava ser esta sua atividade principal, mas realizava "bicos" como fotógrafa e massagista.

As entrevistadas apresentaram relativa diversidade com relação às atividades já exercidas. Verificou-se maior concentração nas atividades de comércio e serviços. As atividades que implicaram relacionamento direto com um público mais amplo foram as de vendas (lojas de roupas, restaurante, lanchonete e supermercado), de limpeza urbana e de serviços gerais. As que demandaram contato com um público mais restrito foram as de serviços pessoais (salões de beleza, empregada doméstica, faxina). As atividades sem muito contato com público externo, foram as de operação em telemarketing, gerência de estoque, auxiliar administrativa. Houve quem tivesse se dedicado anteriormente aos serviços sociais (entidade voltada à profissionalização de jovens) e a funções públicas (guarda municipal, chefia de cerimonial, supervisão no setor de cultura e assessora a governo municipal de cidade do interior). Uma delas havia tido experiências no estrangeiro, no campo do entretenimento (shows em televisão e boates nas Ilhas Canárias). Foram mencionadas experiências no campo da alimentação (auxiliar de cozinha e processamento de alimentos). Foram citadas também atividades anteriores no setor da indústria (assistente de produção em empresa de cosméticos e auxiliar de produção em abatedouro de frango).

As travestis entrevistadas apresentaram experiências de trabalho tanto no setor privado quanto público. Em sua grande maioria, no privado, que incluía empresas de pequeno porte (salões de beleza, lojas, restaurante, lanchonete), mas também de médio e grande porte (de telemarketing, automobilística, engenharia, universidade, supermercado, indústria de cosméticos, abatedouro, hospital). No setor público, as travestis estiveram a serviço de prefeituras.

 

Coleta e sistematização dos dados

Diversos problemas foram encontrados, principalmente para contatar as entrevistadas. Paciência e tempo para a verificação de cada indicação, superação de resistências e obtenção de confiança se tornaram indispensáveis. De todas entrevistadas se obteve a assinatura no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As entrevistas individuais e semi-estruturadas foram realizadas em horários e ambientes indicados pelas entrevistadas: residências pessoais, locais de trabalho e shoppings. Elas foram gravadas com o assentimento expresso de cada uma e conduzidas com abertura, respeito e valorização da expressão, liberdade e espontaneidade pessoais.

As informações obtidas foram ordenadas por categorias de respostas guiando-se pela sua relação com o contexto pessoal das entrevistadas, composto por elementos sócio-culturais, trajetórias ocupacionais, motivações, planos e estratégias visando a melhorias profissionais. Procedeu-se, assim, ao emprego da metodologia da análise de conteúdos.

 

As estratégias de valorização profissional utilizadas pelas travestis

Estratégias para obtenção de emprego ou trabalho

As formas usadas pelas travestis entrevistadas para a obtenção de emprego ou constituir um empreendimento têm sido os contatos pessoais, as influências de amigos, as referências de antigos empregadores e as associações entre amigas. Apenas uma entrevistada procurou e conseguiu emprego a partir de anúncio classificado de jornal. Outro caso diferenciado foi o da estratégia de uma entrevistada de buscar aprovação em concurso público.

Os casos das duas proprietárias de salão de beleza e o da cozinheira mostram longevidade na ocupação. Junto com o da guarda patrimonial, tem-se que quatro gozavam de certa estabilidade profissional. As oito restantes apresentaram instabilidade profissional, de ocupação ou de emprego.

Estratégias para se sentir satisfeita com a atividade profissional exercida

As entrevistadas consideraram que a satisfação com a ocupação que exerciam era pautada por sete critérios: independência financeira (maior número de menções), respeito adquirido e fazer o que gosta (segundo lugar nas citações), carteira assinada, reconhecimento profissional e oportunidade de socialização (terceiro lugar) e flexibilidade de horário (uma única menção).

Das travestis entrevistadas, oito demonstraram satisfação com a atividade de trabalho que estavam exercendo. Daianna cozinheira conta que não liga para eventuais brincadeiras dos colegas de trabalho: É zoação, não levo ao pé da letra. Segundo Hilda Vaskilis, operadora de telemarketing, eu gosto muito do meu trabalho e sei lidar com clientes difíceis ou pouco gentis. Quanto aos colegas, eu sei me impor.

A insatisfação com a atividade profissional/ocupacional exercida deve-se, em primeiro lugar, à baixa remuneração recebida. Em segundo lugar, à incompatibilidade de horários (horário de trabalho diurno conflitando com o horário de exercício de garota de programa). Em terceiro lugar foi citada a estagnação profissional e, em último lugar vieram o trabalho extenuante, desgosto e preconceito. Millena não vê possibilidade de crescimento dentro da empresa em que trabalha: Recentemente precisaram de uma pessoa com experiência em computação e a empresa não procurou entre os funcionários efetivos alguém apto para fazer o serviço. Paulette estava insatisfeita em seu emprego: Eu tinha uma carga de trabalho muito pesada. Eu era pau para toda obra. Cobria o trabalho de outros que faltavam e eles pagavam somente um salário mínimo.

Estratégias para enfrentar dificuldades vivenciadas

A maioria das entrevistadas declarou não se sentir à vontade com o fato de ser travesti. Relataram sofrer de insegurança, receio de se expor e de chamar atenção, temores com relação aos preconceitos (sobretudo na empresa em que trabalham), necessidade de afirmação profissional e pessoal, receio de acomodação, dificuldade para assumir a profissão exercida, receio de ter que abrir mão das mudanças na aparência física. É importante lembrar que violações de direitos humanos de caráter homofóbico têm ocorrido em locais como a casa, a rua, o trabalho e a escola segundo o I Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República, de 2012.

Para as travestis entrevistadas, o ambiente social menos conflituoso é o familiar. A metade delas declarou não ter tido dificuldades com seus familiares com relação à sua condição de travesti. Paulette diz que se sente respeitada e que nunca sofreu preconceito em casa: Meus pais e meus irmãos brigam para ter o privilégio de passar o Natal comigo. Meire Ellen alega ter uma ótima relação com pais e primos: Eu sempre fui acolhida pela família. Millena conta que sua mãe nunca a discriminou: Ela só me pediu que eu respeitasse o ambiente familiar.

As que passaram por conflitos nessa esfera citaram a intolerância paterna, o sofrimento materno e a rejeição de irmãos como motivos para o afastamento do convívio familiar. Essa situação é descrita por Zambrano (2008) quando afirma que as travestis são frequentemente rechaçadas e/ou abandonadas e muitas vezes obrigadas a se afastar da casa dos pais e, em função disso abandonar a escola. Hilda Vaskilis, uma das entrevistadas, relata sua relação com o pai: Sofri muito, meu pai me batia de forma muito homofóbica3. Meu pai não é ninguém. Ele, para mim, não existe.

É muito interessante a visão de Kulick a respeito das relações entre as travestis e suas famílias. Segundo ele, as travestis procuram enviar dinheiro e presente aos parentes, sempre que possível: "trocam-se bens materiais por afeto e reconhecimento" (2008, p.194). A maioria das travestis presta apoio financeiro à família em maior ou menor escala e têm a mãe como referência, dando-lhe maior valor que ao pai. O dinheiro lhes trouxe o respeito que tanto lutaram para conseguir em casa. Uma das que foram entrevistadas pela pesquisa da qual trata este artigo, Millena, contou sobre sua participação nas despesas da casa dos pais: Eu modifiquei a casa da minha mãe todinha. Meus irmãos, todos, eu já ajudei. Eu vou lá para minha mãe, a única pessoa no mundo que eu tenho é ela. Eu faço tudo por ela. Daianna relatou sua relação com os pais idosos: A gente é assim: é uma assistência, um tanto familiar e às vezes material também. Ermelina Mercury contou: O respeito também foi por causa do estudo e do trabalho. Eu me senti mais dignificada e respeitada. E os filhos, a prole deles também, hoje são respeitadores como os meus próprios pais.

Nas relações com outras pessoas fora do circulo familiar, a aceitação se mostrou menor, pois apenas um terço das entrevistadas disse não ter esse problema. Das que relataram sua vivência, uma delas disse ter sido esse o fator que a levou a restringir sua atuação profissional à área da beleza. Outra disse que saiu da sua cidade natal, situada no interior do estado, devido ao preconceito acentuado da população local. Outra disse que sofreu duplo preconceito, devido à atividade de trabalho como gari e ao fato de ser travesti. Duas disseram que as aversões estão relacionadas à sua transformação física e mental, sendo que uma destacou o constrangimento que sente quando precisa apresentar um documento com foto. Outra mencionou as dificuldades associadas ao não reconhecimento de seu nome social. Por fim, foram mencionadas as ameaças vindas de chacotas ou da exposição a riscos de violência. Lucimares alerta para o fato de que as travestis têm preconceito contra elas próprias: A maioria nem sai de dia, de casa, principalmente as profissionais do sexo. É muito complicado. Elas já saem de casa com medo de sofrer preconceito. Esse preconceito também foi sofrido no ambiente escolar, o que motivou a evasão e consequente não qualificação. Para as entrevistadas, a discriminação contra travestis e transexuais nas escolas é generalizada. A instituição escolar ainda é muito heteronormativa. O preconceito está nas pessoas, na instituição como um todo.

Dos ambientes de vivência social apresentados às entrevistadas, o do trabalho foi o que apresentou um maior número de problemas relacionados à aceitação de travestis. Apenas duas das entrevistadas disseram não ter sofrido nesses contextos dificuldades relacionadas à sua condição de gênero. As expressões utilizadas pelas dez que disseram sofrer tais dificuldades foram: hostilidade, aversão, intolerância, chacota, preconceito, assédio sexual, esperas demasiadamente prolongadas em listas para emprego, não poder se destacar no ambiente de trabalho, impossibilidade de promoção, remuneração aquém das funções exercidas, acúmulo de funções, baixa valorização, trabalho extenuante, trabalho estressante. Na relação com colegas de trabalho, foram mencionados o abuso de autoridade, desentendimentos e boicotes. Além da condição de gênero, algumas travestis relataram que as dificuldades sofridas no ambiente do trabalho estão também relacionadas à falta de qualificação profissional e à baixa escolaridade. Uma mencionou que o preconceito também advém do fato de ser negra e profissional da limpeza.

De acordo com Pelúcio, a carência de alternativas "tem feito da prostituição um destino, mais que uma possibilidade de escolha" (2008, p.2). Kulick (2008) destaca que é importante dizer que nem todas as travestis se prostituem e muitas exercem outras profissões e atividades. Constata que o destino da prostituição nem sempre está associado a sofrimento constante e faz referência a dois tipos de motivos para a prostituição: dinheiro e prazer. É uma observação importante, afirma Kulick (2008), pois a prostituição geralmente é associada a uma única ou última opção. Haveria, assim, a perspectiva da auto-realização profissional quando essa profissão é escolhida pelo prazer que proporciona. O prazer e a satisfação de serem admiradas, elogiadas, cortejadas, aplaudidas e realizadas pelos homens, reafirmando sua condição de quase-mulheres. Ainda segundo Kulick (2008), travestis se vêem obrigadas a reafirmar a cada instante seu direito de ocupar o espaço público. Elas sabem que o simples fato de existirem e estarem presentes nessa esfera pode desencadear episódios de agressão verbal e violência física.

A questão do dinheiro é crucial para as travestis entrevistadas. Alegam que suas despesas são enormes. Citaram as roupas, sapatos, maquiagem, silicone, perucas, cuidados pessoais, aluguel, alimentação, eventual ajuda à família e/ou ao namorado. Para aquelas que exercem a prostituição, é com rapidez que conseguem dinheiro, o que torna difícil resistir a essa atividade. Grande parte das travestis entrevistadas tem no sexo comercial sua única alternativa de obtenção de renda para sua sobrevivência e de seus familiares.

Hilda Vaskilis afirma ser louca para trabalhar com carteira assinada, mas adiou a procura por um emprego formal por temer ter que abrir mão de sua maneira de ser: Eu vou ter que fazer isso, vou ter que fazer aquilo? Ah, uma coisa que prezo muito é o meu cabelo. Nossa! Eu vou ter que cortar o cabelo para entrar? Aretuzza T. confirmou a fala de Hilda Vaskilis: Se você não abrir mão de alguma coisa, da sua vaidade, do seu estilo, você não consegue. Tem que abrir mão de alguma coisa e elas não querem abrir. Entende-se que elas não queiram abrir mão de sua aparência, pois conforme Benedetti: "O corpo das travestis é, sobretudo, uma linguagem; é no corpo e por meio dele que os significados do feminino e do masculino se concretizam e conferem à pessoa suas qualidades sociais. É no corpo que as travestis se produzem enquanto sujeitos" (2005, p.55).

Lucimares afirmou que a maioria das travestis sofre preconceito: Elas eram gays masculinas antes de virar travesti. Trabalharam de carteira assinada e tudo, depois, como viraram travestis, não puderam trabalhar mais, porque a empresa não aceita.

Pode-se observar pelos relatos de sete das doze entrevistadas, que a prostituição geralmente é exercida antes de conseguirem um emprego, concomitantemente ao exercício de outra profissão e até mesmo, em vez do emprego. Esta pesquisa indica que muitas travestis deixam de buscar um emprego formal ou se demitem, caso já o tenham, para terem condições de exercer a prostituição. Aretuzza T comentou: Acabam caindo no mundo das drogas..., é um mundo cruel. Então elas acabam se viciando. Acabam caindo no mundo da marginalidade e a coisa da noite, da prostituição, do sexo rápido, do dinheiro e da droga, é tudo fascinante... Kulick (2008) menciona o fascínio exercido pela prostituição. Segundo ele existe também outro olhar que não inclui obrigatoriedade ou sofrimento. A prostituição também pode ser fascinante, trazer status, reconhecimento do enorme trabalho que as travestis têm para se "montarem", construir seus corpos e identidades.

A questão financeira é central com relação às estratégias escolhidas. Quando se comparam os salários de diversas profissões às quais as travestis têm tido acesso e a quantia que os programas lhe proporcionam, não há dúvidas: elas tendem a ficar com os programas. Nadja explicou que as travestis saem do emprego também pela questão da baixa remuneração: As meninas saíram todas porque é chato trabalhar de carteira assinada e saber que você vai ganhar só aquele tiquinho no mês, tá osso! Eu saí por vontade própria. É porque eu estava intercalando os dois, eu trabalhava de dia lá na universidade e de noite eu descia para trabalhar de programa. Só que aí, sei lá, o programa dá muito mais. Eu estava ficando muito cansada. Paulette também acredita que o salário é um fator definitivo: Muitas travestis não gostam por causa do salário. Uma travesti tem um gasto maior do que o de uma mulher. Então, o salário mínimo não dá para sobreviver... Então, a maioria cai para a prostituição porque é um dinheiro que vem mais fácil.

Estratégias para realizar sonhos, desejos e aspirações profissionais e pessoais

Para Kulick (2008), as travestis têm dois sonhos: o primeiro, comprar a casa própria para a mãe e, depois, um imóvel para si mesmas. Dificilmente esses sonhos se realizam com o dinheiro auferido de salários vindos de empregos formais ou ocupações autônomas. A permanência na Itália também traz à travesti certo status e glamour. Diante das dificuldades, surge, entre elas, a representação de que só a prostituição - e especialmente aquela praticada na Europa - poderia lhes trazer os ganhos necessários.

Apenas uma das entrevistadas disse não alimentar quaisquer planos pessoais ou profissionais futuros. As proprietárias de salão de beleza desejariam ampliar o estabelecimento e aumentar o número de funcionários. Uma delas gostaria de especializar seu salão no atendimento a noivas e debutantes. A profissional do sexo que também é fotógrafa manifestou interesse em transformar essa sua atividade em principal. As oito travestis restantes desejariam tomar rumos profissionais diferentes dos atuais. Para seis, as aspirações estavam associadas à realização ou retomadas de estudos. As áreas de conhecimentos citadas foram: Informática, Letras, Inglês, Direito, Gestão Ambiental, Jornalismo e Design de Jóias. Das oito que estavam querendo mudar de atividade, três mencionaram o desejo de ter o próprio negócio, duas se referiram a estabelecimentos de beleza e a terceira, à área do design de jóias. Três gostariam de desempenhar atividades assalariadas de serviços. Foram citadas as áreas de telemarketing, administrativa e de jornalismo. Uma disse sonhar em prestar concurso público para a função de fiscalização sanitária. Houve também quem apresentasse o sonho de exercer a profissão do sexo na Europa.

Dentre os sonhos em comum, como o de ter a casa própria, as travestis enfatizaram a retomada dos estudos, a qualificação profissional, sobretudo para ter o próprio negócio. Hilda Vaskilis contou que seu maior desejo é ter um lugar próprio para morar: Nossa, o mais urgente é ter minha casa. Nem que seja um comodozinho que divide sala, sabe, mas eu preciso ter meu canto. Eu preciso do meu espaço. Meire Ellen mostrou-se consciente de que, para realizar seus sonhos, precisará conseguir um emprego: ...porque, se eu não arrumar um serviço primeiro, como é que eu vou alugar uma casa? Aí eu vou ter que estudar. Não tem como. Sair da casa do meu pai... Quero só minha casa. Ficar de boa. Daianna contou que, se tivesse condições, gostaria muito de se qualificar: Eu acho que nessa minha área se eu tivesse oportunidade de me qualificar... oportunidade de crescimento na minha área.... Ermelina Mercury disse planejar seu futuro cuidadosamente: ... retomar a faculdade... Letras, porque eu quero ter o curso de Letras como uma base para o curso de Direito que precisa de uma habilidade, um volume de leitura muito intensa. Melina oscila entre estudar ou apostar alto no exercício da profissão do sexo na Europa.

Apenas uma das travestis não buscou realizar cursos que permitissem melhorar suas condições de inserção e permanência no mercado de trabalho. Entretanto, os cursos profissionais realizados pelas travestis entrevistadas foram poucos. As áreas destes cursos foram: culinária japonesa; telemarketing; fotografia; informática; cabeleireira; pedicure e manicure; assessoria de governo. Qualificações em curso superior foram também buscadas, embora não concluídas. Sobre atualização profissional, algumas mencionaram as consultas por internet, revistas e contatos com amigas.

Estratégias para defender interesses coletivos

Há, atualmente, várias instituições, associações e iniciativas públicas e privadas, que trabalham em prol dos direitos da comunidade LGBT: a ABGLT, ALEM, ASSTRAV, ELLOS, CELLOS, CRLGBT, GUDDS, MGB, MGM, MOOCAH, Parada Gay de BH, UNA-se e outros afins4. Metade das entrevistadas apresentou uma avaliação positiva com relação ao trabalho realizado pelas entidades que congregam e buscam defender a comunidade LGBT. Assim se pronunciaram:

- Acredito que a ASSTRAV pode auxiliar a travesti a buscar qualificação profissional.

- Reconheço e valorizo o trabalho feito pela ASSTRAV.

- Constato o bom resultado das ações afirmativas da ASSTRAV.

- As participações em ações coletivas me fizeram sentir mais segura.

- Acredito que os diferentes devem ser tratados de forma diferenciada para que possam se igualar em direitos aos demais. As políticas públicas que beneficiam os negros podem servir para beneficiar as travestis.

Uma das entrevistadas não mencionou seu posicionamento a esse respeito. O restante se dispersou pelas seguintes posições: não sabe avaliar, não acredita nesse trabalho, não tem um posicionamento definido, não prioriza esse tipo de trabalho, tem um posicionamento crítico sobre ele:

- Não sei avaliar a repercussão do trabalho feito pelas ONGs pró-travestis.

- Compareci a apenas uma reunião de uma ONG pró-travestis.

- Não tenho um posicionamento, mas estive presente no Dia da Visibilidade Trans em Contagem do qual fiquei sabendo por meio do Facebook.

- Não acredito no trabalho feito pelas ONGs, exceto as direcionadas às vítimas de AIDS e câncer.

- Sou filiada à ASSTRAV, mas acredito que o trabalho feito pelas ONGs prioriza interesses particulares.

Percebe-se que há desafios importantes às organizações interessadas na defesa dos direitos e interesses das travestis e na sua organização tendo em vista a valorização profissional e a realização de seus direitos sociais e de cidadania.

Algumas entrevistadas mencionam várias dificuldades em relação às entidades pró-LGBT. Algumas delas reconhecem o trabalho feito pelas entidades e enfatizaram que as travestis têm que participar ativamente para saírem da situação marginal em que se encontram. Paulette afirma: Sabe por que eu não participo de nenhuma ONG? Porque, hoje em dia, o homossexualismo está virando mais um comércio... Eu prefiro ajudar uma ONG, que trabalha contra o câncer. Melina é ainda mais contundente: Eu não acredito em ONG não! Porque não acontece... Enquanto eles não fizerem alguma coisa para eu acreditar, não acredito! ONG é política.

 

Considerações Finais

Com este estudo, buscou-se analisar as condições sociais que envolvem a inserção profissional de travestis; conhecer, por meio de depoimentos de 12 delas, o que tem lhes servido de embaraços, estorvos ou impedimentos para que se situem no mundo do trabalho conforme almejam; identificar suas estratégias pessoais para a superação desses obstáculos e realizar a inserção e a permanência no mundo do trabalho.

As estratégias de inserção profissional de travestis revelam as perspectivas de profissionalização que essas trabalhadoras identificam, valorizam e selecionam.

As travestis entrevistadas, em sua maioria, buscam qualificação profissional em áreas tradicionalmente ocupadas por elas e que têm a aceitação da sociedade: beleza e estética. Apenas três delas se dispuseram a investir em um curso superior e concurso público, de áreas profissionais diferentes dessas. É difícil dizer se o que leva as travestis ao trabalho de beleza e estética é, de fato, uma seleção pessoal ou uma acomodação ao socialmente aceitável. É importante enfatizar que a área de beleza e estética faz parte da vida e identificação subjetiva das travestis e é muito valorizada por elas.

Como o discurso de inclusão voltado aos integrantes de grupos da diversidade sexual pouco tem incluído as travestis, essas trabalhadoras se mostram mais propensas a desenvolverem estratégias de qualificação profissional ou perspectivas de tipo defensivo, orientadas pelo princípio da economia de esforços.

A maioria das travestis quando empregadas exercem ocupações consideradas "femininas" pela sociedade. A discriminação no mercado de trabalho formal em relação a elas apareceu, de forma contundente, nas entrevistas. Suas chances de conseguirem emprego junto a empresas que priorizam o contato com o público são menores exceto no caso de empresas de telemarketing em que o contato não é visual. A história de vida das travestis é cheia de episódios de rejeição, o que gera obstáculos muitas vezes intransponíveis. Ainda é minoria entre as entrevistadas aquelas que, apesar dos obstáculos, procuram crescimento pessoal e profissional, conhecendo e exigindo seus direitos, e enfrentando as fortes reações da sociedade.

As importantes lutas que as várias organizações pró-LGBT vêm travando visando ao conhecimento e ao respeito aos direitos de todos e à diversidade não são amplamente divulgadas e conhecidas pelas travestis entrevistadas. A participação das entrevistadas nessas organizações e movimentos é pequena. Parte significativa não se mostrou confiante nessas organizações, sente-se rejeitada pelos grupos LGB e algumas não sabem para que essas entidades servem e como elas funcionam. Além disso, existe uma desconfiança de que essas instituições sejam um palco de disputas de poder. Nem todas as travestis entrevistadas estão convencidas da necessidade de uma participação ativa para serem reconhecidas como cidadãs. A inclusão das travestis como tema de seminários, discussões, mesas-redondas e congressos tem crescido, o que pode levar à mudança desse quadro. Todas as entrevistadas desejam ser chamadas pelo seu nome social em todas as instâncias. Segundo elas, a não legitimação do nome social é um dos motivos de maior constrangimento por que passam.

Como o direito à diversidade sexual tem crescido, ainda que de forma lenta, gradual e conflituosa, algumas travestis já lançam mão do princípio da liberdade de ação e de independência na determinação de suas estratégias de valorização profissional em contraposição à pressão desfavorável do ambiente social e ou de empregadores.

O número das travestis que foram entrevistadas para a presente pesquisa que utiliza estratégias ofensivas buscando caminhos diferentes dos preconizados pela sociedade para esse grupo social se mostrou pequeno. Pôde-se observar que as travestis mais conscientizadas de seus direitos sociais são as que insistem em abrir o caminho para alcançar seus objetivos. O acesso à informação é essencial para que as travestis possam se beneficiar das oportunidades que já existem (mas são desconhecidas por elas) ou pleitear outras.

Existem fontes de informação que nem sempre são consultadas. Um exemplo é o NIAT (Núcleo Integrado de Atendimento ao Trabalhador) da Prefeitura de Belo Horizonte ao qual o Centro de referência LGBT pode recorrer para obter informações e ter acesso à oferta de cursos, bolsas e vagas de emprego.

Leis também facilitam esse acesso e só serão eficazes se acompanhadas por um trabalho pedagógico (Borrillo, 2010). A conquista dos direitos não significa a diminuição da violência; a declaração de um direito não implica a efetivação desse direito. Segundo Irigaray (2007), os pesquisadores podem contribuir com seus estudos e discussão das realidades das cidadãs travestis, resgatando-as da invisibilidade e silêncio que lhes são impostos. As empresas precisam se abrir a políticas que viabilizem a inclusão das travestis e transexuais em seus quadros de funcionários, bem como sua ascensão organizacional.

Quanto maior o número de alternativas que as travestis encontram para traçar suas estratégias de inserção profissional, maior sua percepção com relação à liberdade pessoal de agir em face das pressões do ambiente social e de empregadores.

Uma das entrevistadas decidiu fazer curso superior e tomou tal decisão porque ao trabalhar numa universidade como auxiliar administrativo vislumbrou essa chance. Essa circunstância proporcionou-lhe o acesso à informação sobre a oferta do curso de seu interesse e a possibilidade de se inscrever. O acesso à informação é essencial, ele é um dos recursos que podem propiciar às travestis a condição de fazer escolhas. Há, atualmente, ofertas de qualificação profissional e cursos que precisam ser mais divulgados entre elas.

O fenômeno educativo não está restrito à educação formal. A educação é um ato político. A afirmação das diferenças pode, assim, ser entendida como um ato educativo (FREIRE, 1996). Limitar o trabalho das travestis às categorias profissionais convencionadas socialmente como apropriadas a elas ajuda a evitar a explicitação das diferenças da sociedade, "dá" a elas um determinado local onde ficam marginalizadas e deixa a sociedade livre da obrigação de lidar com esse grupo de modo diferente do sancionado pela tradição. O espaço onde elas podem ser bem sucedidas é definido, então, não por elas, travestis, mas pela norma dominante: o lugar em que o estigma possa ser uma vantagem.

Considerando-se estritamente a amostra estudada, verificou-se que as travestis tendem a ficar restritas às áreas de atuação profissional em que são aceitas ou menos rejeitadas pela sociedade. Foi pequeno o número encontrado das que vêm buscando alternativas mais ofensivas de atuação. As travestis afirmaram que ainda vêm enfrentando muitos preconceitos manifestados por intolerância e pela resistência por parte dos empregadores em aceitá-las nos seus quadros de funcionários. Terceiro, as travestis consultadas parecem não estar diversificando e melhorando sua qualificação profissional para atuar no mundo do trabalho. As travestis têm desenvolvido posições mais defensivas com medo de se exporem à frustração de serem preteridas. Quarto, as travestis, quando se mostraram investindo em qualificação profissional em áreas diferenciadas das que constituem o campo tradicional de sua atuação, não explicitaram claramente se o faziam conscientemente como forma de conter e combater as discriminações das quais se disseram vítimas. Quinto, os recursos e meios que elas têm buscado acionar para se afirmarem como cidadãs de direito no campo das suas opções profissionais se revelaram ainda muito individuais.

Este estudo focalizou um dos aspectos mais dolorosos da discriminação contra elas: a falta de livre acesso às oportunidades para realização profissional. Pretendeu-se, assim, dar visibilidade às dificuldades que esse segmento sociocultural encontra frente ao mercado de trabalho na busca da realização das suas aspirações profissionais e contribuir para que realmente se efetivem ações de políticas públicas, a exemplo das iniciativas POT e Projetos Damas já adotadas nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Todas essas medidas com o objetivo de promover seu acesso à capacitação, ao emprego, viabilizando sua aceitação social pela sociedade.

Em julho de 2013, foi instituído, por determinação da Portaria nº 767, o Sistema Nacional de Promoção de Direitos e Enfrentamento à Violência contra Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT e o Comitê Nacional de Políticas Públicas LGBT, no âmbito da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. O Sistema foi criado com caráter interfederativo e interdependente, visando incentivar a instalação de conselhos estaduais, distrital e municipais LGBT; a instalação de coordenadorias estaduais, distrital e municipais LGBT e as políticas públicas de promoção da cidadania e direitos de LGBT, como forma de enfrentamento à violência. Ao Comitê foram atribuídas as seguintes competências:

I - Articular o cumprimento das ações e medidas constantes no Sistema Nacional Enfrentamento a Violência Contra LGBT e Promoção de Direitos;

II - Debater políticas públicas de promoção dos direitos humanos de LGBT;

III - propor ações a serem desenvolvidas junto a Estados, Distrito Federal e Municípios referentes à política pública LGBT;

IV - Debater e propor diretrizes, de âmbito nacional, estadual, distrital e municipal, a respeito da organização das redes de ações e serviços em direitos humanos LGBT, principalmente no tocante à sua governança institucional e à integração das ações e serviços dos entes federados;

V - Propor diretrizes para o enfrentamento da homo-lesbotransfobia, buscando integrar as ações federais, estaduais, distrital e municipais; e

VI - Elaborar e aprovar o seu regimento interno.

Trata-se da criação de um sistema e um espaço de interlocução, articulação e mobilização, que poderão trazer avanços nas políticas públicas de promoção social das travestis no país. A instalação desse Comitê se deu em julho de 2014 e foi composto por gestores indicados por estados e municípios.

No âmbito específico do Governo Federal, foi instituída, pela Portaria Interministerial nº 1, de 6 de fevereiro de 2015, a Comissão Interministerial de Enfrentamento à Violência contra Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CIEV-LGBT). Foram consideradas para tanto as determinações sobre os direitos da pessoa humana estabelecidos pelo art. 5º da Constituição da Republica Federativa do Brasil, de 1988; pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Organização das Nações Unidas em 1948; Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, adotada pela Organização dos Estados Americanos em 1948; Resolução da Organização das Nações Unidas "Direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero" de 17 de junho de 2011; Resolução da Organização dos Estados Americanos - AG/RES-2435 (XXXVIII-O/08) "Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero"; o recém criado Sistema Nacional de Promoção de Direitos e Enfrentamento à Violência contra Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT; a Diretriz 10, Objetivo Estratégico V, Ação Programática A,G, I e H do Programa Nacional de Direitos Humanos 3- PNDH3, de 2009 e as diretrizes aprovadas na II Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos de LGBT.

Essas iniciativas de criação de um sistema e de um comitê, ambos de articulação federativa, e de uma comissão interministerial têm, principalmente, a finalidade de proteger a população LGBT contra a violência, um importante passo. Ressalta-se a compreensão, na criação desses dispositivos, de que o combate à violência passa necessariamente pela promoção da cidadania e dos direitos da população LGBT, na qual se incluem as travestis, por políticas e programas que focalizem, sobretudo, a oferta de formação profissional e os incentivos à inserção qualificada no mercado de trabalho.

 

Referências

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Recebido em: 30/06/2014
Reformulado em: 10/05/2015
Aprovado em: 30/06/2015

 

 

1 Este artigo apresenta resultados de pesquisa realizada para a conclusão de curso de mestrado no Programa de Pós-graduação em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local do Centro Universitário UNA.
2 Disponível em: http://global.org.br/agenda/?event_id=87. Acesso em: 23 fev. 2011.
3 Termo utilizado pela entrevistada.
4 LGBT - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros; ABGLT - Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Lésbicas e Travestis; ALEM - Associação Lésbica de Minas; ASSTRAV - Associação de Transexuais e Travestis de Minas Gerais; ELLOS - - Grupo Ellos Pela Livre Orientação Sexual; CELLOS - Centro de Luta Pela Livre Orientação Sexual; CRLGBT - Centro de Referência pelos Direitos Humanos e Cidadania LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) da PBH/MG; GUDDS - Grupo Universitário em Defesa da Diversidade Sexual; MGB - Movimento Gayde Betim; MGM - Movimento Gay de Minas; MOOCAH - Movimento Organizado de Combate à Homofobia; Parada Gay de BH; UNA-se pelo fim da violência contra as mulheres.

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