SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.10 número2Desafios éticos na prática em comunidade: (des)encontros entre a pesquisa e a intervençãoMangueira: a cultura comunitária e o centro cultural cartola índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.10 no.2 São João del-Rei dez. 2015

 

DOSSIÊ PSICOLOGIA COMUNITÁRIA

 

Cidade com comunidade

 

Town with the community

 

Ciudad con la comunidad

 

 

Lúcia Ozório

Pesquisadora no Laboratório EXPERICE - Universidades Paris 8 - Paris 13, França; Laboratório LIPIS - PUC-RJ. Rio de Janeiro, RJ. Membro do GT de Psicologia Comunitária-ANPEPP. E-mail: lozorio@gmail.com

 

 


RESUMO

Buscamos dar visibilidade às lutas cotidianas através das experiências de vida das comunidades pobres, uma diferença na cidade. Temos uma preocupação: criticar o ato de silenciar as diferenças, buscando responder a uma questão: como ressignificar a diferença vista como negativa? Apostamos num poder comum de agir, trabalho - arte das comunidades pobres que maquinam por um constante vir a ser da cidade. Este trabalho mostra submissões, mas também mostra resistência e liberdade como seus fundamentos materiais que implicam numa produção de subjetividades.

Palavras-chave: Comum; Experiência de Vida; Subjetividades; Cidade.


ABSTRACT

We seek to give visibility to the daily challenges through the life experiences of poor communities, a difference in the city. We have a concern: to criticize the act of silencing the diversity, trying to answer a question: how to reframe the difference, viewed as negative? We believe in a common power to act, working - the art of the poor communities that plot a constant state of "will be" of the city. This work shows subjections, but it also shows resistance and freedom as its material bases that imply a production of subjectivities.

Keywords: Common; Life experience; Subjectivities; City


RESUMEN

Buscamos dar visibilidad a las luchas cotidianas a través de las experiencias de vida de las comunidades pobres, una diferencia en la ciudad. Tenemos una preocupación: criticar el acto de silenciar las diferencias, tratando de responder a una pregunta: ¿cómo replantear la diferencia, visto como algo negativo? Creemos en un poder común para actuar, trabajar - el arte de las comunidades pobres que conspiran por una ciudad-devenir. Este trabajo muestra el sometimiento, pero también muestra la resistencia y la libertad como sus materiales fundadores que implican una producción de subjetividades.

Palabras clave: Común; Experiencia de Vida; Subjetividades; Ciudad.


 

 

Introdução

Como funciona um artigo? Há uma temporalidade que atravessa os textos que faz pensar em modos de experimentar o tempo. Não se trata da predominância do tempo cronológico, da seta do tempo, ou de um aplainamento do tempo, ou do esvaziamento da sua historicidade, ou de uma estrutura do antes e do depois (Pélbart, 1998).

Há uma perspectiva transformadora do tempo que atravessa um texto, ou seja, a multiplicidade à qual este se abre: o tempo do devir. Trata-se de rede temporal, aberta aos fluxos, nas mais diversas direções. Um tempo que rizoma, aberto aos devires, como diz Deleuze (1980). É o tempo do acontecimento.

Um texto precisa se conectar com a vida, ou seja, não pode perdê-la de vista na sua capacidade de devir. Qual nossa experiência cotidiana com o tempo?

Os acontecimentos de novembro, em 2010, no Rio de Janeiro, que a mídia chamou de "a guerra do Rio" fornecem pistas para essa problemática. A grande imprensa, porta-voz oficial das classes e grupos dominantes, mesmo os meios independentes e redes sociais, aceitam os informes oficiais e oficiosos da polícia no seu enfrentamento contra os assim chamados meninos do tráfico, agentes da quadrilha dos sem-colarinhos - prisioneiros da droga do varejo - transferidos como dizem, por sua alta periculosidade, para o presídio de Catanduvas. Carros e ônibus queimando, arrastões nas ruas do Rio de Janeiro são considerados limites que justificam o Estado brasileiro assumir sua característica policialesca, como diz Soares (2010). Segundo esse autor, com o qual concordo, o Jornal Nacional, da TV Globo do Rio de Janeiro, ao definir no dia 25 de novembro de 2010 o caos no Rio de Janeiro, entrecortado por cenas de guerra e morte, pânico e desespero, como um dia histórico de vitória, dia da ocupação policial da Vila Cruzeiro, comunidade pobre no Rio de Janeiro, está considerando os milhões de telespectadores como "contumazes e incorrigíveis idiotas". Vale perguntar: que vitória?

A complexidade da situação, embora suscite a emergência de explicações e informações simples, expõe uma crise. Questões aparentemente marginais, como incerteza, desordem, contradição, paradoxos, diversidade, as tensões não são levadas em conta para que se compreenda um constante vir a ser da cidade que não está divorciado da complexidade de sua realidade político-social. No dia 27 de novembro deste ano, polícia e forças armadas cercam o chamado Complexo do Alemão, rede complexa de comunidades pobres, com suas texturas, dobras e redobras, para onde os chamados "bandidos" fugiram, com o cerco da Vila Cruzeiro, comunidade pobre do Rio.

 

O Complexo do Alemão e sua complexidade

A denominação "complexo" foi dada na época da ditadura ao conjunto dessas comunidades da "guerra do Rio". É denominação bastante difundida e dada anteriormente a conjunto de prisões no Rio de Janeiro: os complexos penitenciários. Os habitantes dessas comunidades têm uma certa rejeição a essa nominação, reconhecendo a discriminação e criminalização que sofrem. Seriam prisioneiros em potencial? A maioria destes chama esse conjunto de comunidades de Favela da Maré ou Maré (Ozório, 2014). Uma espécie de cooperação linguística acontece ao nominarem o lugar em que habitam, modo de contestar a discriminação desses lugares midiatizados como lugares do crime. A complexidade apresenta-se como dificuldade e incerteza, não como clareza e respostas prontas.

A denominação Maré ou a que associa Maré à historicidade do termo Favela denotam forma de produção pós-moderna, em que, pela linguagem, novas forças e formas de cooperação, a força de um comum (Negri, 2003) potencializa processos, trabalha e busca caminhos não desenhados pelas forças e formas da dominação. A complexidade da Favela da Maré ou da Maré não pode ser explicada simplesmente pelas tendenciosas leituras imputadas à denominação Complexo do Alemão.

A Maré e sua geografia singular, imenso aglomerado de casas, becos, ruelas, comércio característico e vidas que pulsam, poderiam suscitar reflexões sobre essa complexa realidade político-social brasileira informada como "guerra do Rio". O Estado policial com orquestração da mídia desloca olhares, invisibilizando a luta existente, não apenas nessas comunidades, mas em muitas outras na cidade do Rio de Janeiro.

Aliás, há lutas em que a comunidade pobre como diferença é midiatizada como negativa. Vale perguntar: como ressignificar a diferença, vista como negativa?

Este artigo tem um interesse: trabalhar uma nova compreensão da cidade, um devir-cidade, que trabalha pela centralidade das periferias. É compreensão das cidades como virtualidade sempre se fazendo, com linhas animadas por forças que se anunciam e fazem frente à ordem impositiva ou à desordem entendida como indiferenciação. É luta árdua, cotidiana, que expõe insistências-resistências que esmiúçam o humano de modo outro, inclusive contra a morte impetrada por um Estado altamente desigual, que reforça uma tendenciosa dicotomia cidade/favela-comunidade. As cartografias múltiplas, intensas dessas comunidades lembram a arte de fazer, quotidiana, emergente dos interstícios desses lugares de mundo (Certeau,1990; Ozório, 2007; 2008; 2014).

Algumas análises desse acontecimento começam a aparecer (Soares, 2010). Esse autor fala em crise. Crise que denuncia a atenção que se dá à segurança nas crises, sem investimento reflexivo e informativo realmente denso e consistente, nos períodos entre as crises; crise da recusa da sociedade, da mídia e dos governos a pensar a complexidade dessa situação; crise do Estado, que repete o modelo ditatorial, em vez de se constituir como Estado democrático de direito; crise das polícias, instituições do Estado cuja reforma radical dificultaria a incubação, justo do que pretendem combater, como milícias, tráfico de armas e drogas; crise do tráfico e seu modelo anacrônico face à dinâmica varejista nômade, clandestina, discreta, desarmada e pacífica.

As análises que se preocupam com a produção ético-política do conhecimento devem levar também em conta a complexidade do acontecimento que é da ordem do devir. A história capta, do acontecimento, sua efetuação em estados de coisas, sendo condição para a experimentação de algo que, no entanto, lhe escapa. Assim o acontecimento não se explica por esses estados de coisas que o suscitam ou nos quais ele torna a cair (Ozório, 2014a).

Como fazer para não perder o mundo? Como engendrar espaços-tempos que prolonguem, na história, a intensidade do acontecimento que esses últimos dias de novembro de 2010 podem suscitar?

Antonio Negri já fez essa pergunta a Deleuze (Pélbart, 1998, p. 114), interrogando-o sobre a arte fina de engendrar espaços-tempos que prolonguem na história a intensidade do acontecimento. Este texto marca também interesse por captar a arte das comunidades pobres que maquinam por um constante vir a ser da cidade (Ozório, 2014a). Para tal, inspiro-me no trabalho que venho desenvolvendo como pesquisadora com as comunidades pobres desde 1990.

 

O poder comum de agir

Como fazer para que a cidade possa reinventar novas coordenadas de enunciação inspiradas nos modos de vida das comunidades pobres, na sua arte de viver, que se aliem às urgências da práxis de um comum no presente? Como problematizar um tempo que concebe um futuro único para todos, um único mundo possível e suas óbvias segmentações? Como se subtrair ao domínio de um suposto sentido da história, de um teleologismo(Ozório, 2014; Negri, 2003)?

Para adentrar nesses debates, os textos de Negri (2003, 2006) contribuem para a compreensão do comum como potência produtiva, potência que trabalha, ativa processos com efeitos os mais inusitados. Como diz, com a passagem da modernidade à pós-modernidade, se há submissão real ao capital há também a construção de uma resistência desde seu interior. Em termos práticos: podemos pensar, enfim, em saídas, contornos, subversões face ao controle e suas malhas cada vez mais sutis e abrangentes?

O comum como potência trabalha e explicita uma trama. Como trabalho produtivo, antagônico, autônomo, não necessariamente passa pela relação salarial, ordem disciplinar da escola, do hospital ou da fábrica. É trabalho em que se releva a potência de processos de subjetivação que se agenciam, comumente, a partir de modos de vida, individuais e coletivos. São composições inusitadas que explicitam um poder comum de agir cuja prioridade é a vida no seu poder político de (se) criticar, de transformar. É a vida na sua potência, seu poder político de convocar novas linhas de enunciação, com antagonismos, resistência, capital e liberdade. O poder comum de agir, trabalho vivo com matriz conflituosa, descontínua, está voltado para resistências, inovação social versus novos cerceamentos, controles e (re)apropriações, com contradições a analisar, linhas de fuga a considerar e produção de subjetividades. Esta é, pois, compreendida como composições do comum. São processos de afetação recíproca, criação e recriação biopolítica que têm, nos modos de vida, uma experimentação de mundos possíveis, em que novas subjetivações se fazem. Para Negri (2006), a subjetividade encontra modos de não se perder ou dissolver, explicitando a invenção de novos sentidos, de inteligência e cooperação. O autor retoma uma compreensão marxista do comum. "O comum diferencia" (Negri, 2003, p. 226), lembra ao revisitar Marx. Como campo da heterogênese, forças e formas hegemônicas e forças e formas constituintes da não conformidade trabalham pela invenção de novos signos, objetos, subjetividades. A multiplicidade e pluralidade dessa reinvenção desenham a crise da unificação e permitem que se tenha acesso às diferenças como elementos criativos do comum. Importante pensar a trama do comum como modo único de agenciar diferenças, sem hierarquizações, hipertrofias ou indiferenciações. O comum porta crítica ao silenciamento/esvaziamento da potência da diferença. Há desconstrução do comum como homogeneidade, interioridade, identidade, problematizando-se as lógicas identitárias, essencialistas, que buscam lidar hegemonicamente com as diferenças. Com essa perspectiva do comum como heterogênese, abre-se um horizonte de possibilidades, uma tentativa de captar o mundo segundo o registro da criação.

Nessa problemática, as diferenças como potência desarrumam os sistemas constituídos. Podemos falar de um comunismo de potências tecendo novas subjetivações? Nesse processo é importante redirecionar nossa atenção para aquilo que não visa à transformação, melhor dizendo, é o próprio movimento de transformação.

...Como podem falar de paz? Na paz todos falam. Não é o que estamos vendo. As comunidades precisam falar (Celso dos Reis; In: Ozório, 2012, p. 65).

Costumo dizer que quem trabalha com comunidade tem como compromisso deixar a comunidade como diferença na cidade, como espaço-tempo de devires, para acontecer, falar, se expressar. Nesse compromisso, afetos afirmam o trabalho comum em que pesquisador e comunidade são diferenças que se agenciam, trocam perspectivas, que respondem às demandas contemporâneas de comunidade (Ozório, 2014).

Esse comentário de Celso, no dia 30 de novembro de 2010, morador da comunidade da Mangueira, não aceita as informações midiáticas que forjam uma paz que discrimina/criminaliza as comunidades pobres. Celso quer que as comunidades pobres falem.

Essas comunidades têm seus modos de responder às desterritorializações capitalistas, fazendo alianças entre a vida e uma certa ética-estética da existência, a ética-estética do comum com seus modos únicos de viver. São modos que afirmam sua validade expondo vicissitudes de concordâncias e năo concordâncias aos poderes instituídos, rompendo com o telos sociopolítico estatista de tutela e cooptaçăo.

A ética-estética do comum introduz outro elemento nessa discussão: conexões do comum com a problemática intercultural. O que são os modos de vida que não experiências cotidianas, culturas que se engendram e se agenciam comumente?

Como dar visibilidade à experiência? Criamos mundos que não têm existência extrínseca à experiência, cuja trama dá visibilidade às potências do comum com seus modos diversos de expressão (Ozório, 2008, 2012, 2014). O lugar, a comunidade pobre, como espaço-tempo de devires, assume assim seu valor (Santos, 1998). A potência da práxis entre-experiências-culturas mostra diversos modos de ser, estar, pensar, agir se engendrando, comumente. Pode-se falar de atos insurgentes da tradução cultural que expõe seu caráter híbrido, antropofágico com os agenciamentos entre-experiências, o que permite alcançar sua variada produção. Urge conhecer a cidade pelos seus desejos, pelo contato-experiência-cultura, testemunhos de um tempo e de modus vivendi no tempo (Ozório, 2007; Vilhena et al., 2005).

 

A comunidade pobre e suas histórias surpreendentes

Sábado, dia 27/11/2010, dia em que há o cerco policial do Alemão, a cidade está num estranho silêncio. Penso nas cidades... invisíveis, como diz Calvino (1990). Dá pesar ver os cercos à comunidade pobre. Mas há que se pensar na riqueza das suas lutas, com suas experiências de vida, que o autoritarismo da informação midiática, tão criticada por Benjamim (2000) e Santos (1998), desconhece. Segundo Benjamin (idem), a informação é responsável pelo declínio do interesse pelas "histórias surpreendentes".

Paul Veyne (1992) diz que a história é a que escolhemos. Sua afirmação dá novo ímpeto para apostar na história, ou melhor, nas histórias surpreendentes que mostram a potência das experiências comunitárias. O autor me dá pistas para escolher a história.

Conheci, no meu trabalho com Mangueira, um dos lugares com quem pesquisei e ainda pesquiso o mundo, o Buraco Quente. Esse nome-acontecimento, dado pelos seus moradores, é nome que guarda relação com experiências que "esquentam" a comunidade, explicitando relações de força que ali se invertem. Poderes confiscados (Foucault, 1982) mostram insurgências e linhas de fuga. Interessante essa composição entre buraco e quente. Nesse buraco, muitos falcões, estes meninos do tráfico (Bill e Athaíde, 2006) se encontram numa estranha e difícil luta pela sobrevivência, como os meninos cercados no Complexo do Alemão. O BuracoQuente mostra o calor de algo que se processa no rizoma do tempo (Ozório, 2008).

Pertinho do Buraco Quente mora D. Mena, na Olaria, outro território da Mangueira. Com ela e muitos moradores, nos reunimos nos Papos de Roda, um espaço-tempo que Mangueira inventou para narrar suas experiências de vida (Ozório, 2005, 2007, 2008, 2012). É um, dentre tantos modos, que essa comunidade encontrou para atualizar seu poder comum de agir. O Papo de Roda, dispositivo de pesquisa que já se comunizou por aí afora, agencia as histórias surpreendentes comunitárias, construindo uma memória comum, como extensão da política (Portelli, 2010). O Papo de Roda é práxis de um comum que se faz no momento da narração de histórias de vida.

Escutemos D. Mena:

...comi o pão que o diabo amassou com o rabo... Tinha dia que a minha tia não tinha nada pra dar pra gente, a gente comia só o pó do fubá cozido na água... Sem sal, sem tempero, sem nada... Hoje, tem arroz, tem feijão, tem às vezes uma carne... (Mena In: Ozório, 2012, p. 70).

A irmã de D. Mena, D. Esmediária, que a escutava, no Papo de Roda, lembra que Mena faz um trabalho com as crianças da Mangueira do Amanhã: "...Mena é diretora da Mangueira do Amanhã, movimento na comunidade que congrega quase duas mil crianças..." (Esmediária In: Ozório, 2012, p. 71).

Mena acrescenta:

É muita criança! A quadra fica assim... Colocamos as crianças pra sambar e ensaiar... É muito bonitinho! Crianças pequenininhas até de seis anos... É legal porque evolui as crianças. Tem criança da Mangueira do Amanhã que já é compositor, passista adulto... Uns estão viajando. É uma Escola mesmo!" (Mena In: Ozório, 2012, p. 71)

Mena e Esmediária contam uma história surpreendente, mostrando os itinerários (im)possíveis no rizoma do tempo comunitário. Do "pão que o diabo amassou com o rabo", pertinho do Buraco Quente, Mena faz a Mangueira do Amanhã. Pode-se falar num futuro comum? Percebe-se que a cidade se movimenta com as experiências de vida narradas. Mangueira, Mena, Esmediária, Celso e muitos dos seus habitantes ensinam como intervir na historicidade de nossos dias, muito beligerante. Ao cerco, pois não só o Alemão sofre um cerco, respondem, abrindo-se à multiplicidade e a novo vigor de forças e formas que compõem as vidas com comunidade.

 

In(conclusões)

A potência da experiência intervém nas subjetividades fascistas que discriminam e criminalizam a comunidade pobre. A potência da experiência forja novas subjetividades na cidade e levam a indagar, parafraseando Negri (Pelbart, idem): - Como prolongar na cidade o esplendor da comunidade?

Como pesquisadora com comunidades pobres, já me deparei com muitas perguntas, exigências acadêmicas sobre conclusões/resultados das minhas pesquisas. Acho, assim, importante relevar que é trabalho com comunidade, ou seja, é trabalho que necessita compartilhar uma comunidade de destino (Loew, 1959) que torna possível uma compreensão da condição humana, difícil de ser captada pela sociedade de resultados, como disse Milton Santos, em 1994, numa conferência proferida no Instituto de Medicina Social, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Algumas vezes, extenuada, ínfima, me pergunto o que faço nesses caminhos traçados pela pesquisa comunitária e biográfica. Afinal, trata-se de trabalho com histórias de vida em comum, no Papo de Roda, dispositivo que explora a potência da vida que pulsa com suas histórias e faz desarranjar muitos sistemas constituídos. Inclusive a historiografia do poder. Trata-se de trabalho que dá muita importância ao ínfimo. Caminho estranho este. Pleno de sentidos que mostram minhas insuficiências em compreender as texturas do mundo, com suas dobras e redobras. Pesquisar com comunidade é uma arte mas a arte, como diz Elodie Vitale (2000), não se ensina. É preciso vivê-la. E eu diria: é preciso viver a vida com comunidade.

Sobre o ínfimo, é importante lembrar Manoel de Barros, cuja bela obra traz para a cena a nobreza das coisas ínfimas. O comunitário e o biográfico, ínfimos neste mundo de pesquisas com os poderes dos resultados, comunizam a vida, apresentam-na como interregno. Manoel de Barros (1997) soube bem ensinar que a importância de uma coisa é medida pelo encantamento que ela provoca.

O trabalho comunitário e biográfico provoca encantamentos. Estes estão mais para a ordem das intensidades do que para as equações dos resultados, medidas e modelos. Aliás, o que aprendi com as comunidades pobres é que suas histórias não têm compromisso com a verdade dos resultados. Vale o que é vivido e dito. São artimanhas do comum, expondo alianças com um tempo múltiplo, rizomático, que age por meio das experiências contadas nas histórias de vida. Se há a reconstrução de um passado como ficção de um presente saturado de agoras, há um devir que se processa não inspirado em objetos técnicos, e que se contrasta com a vida trepidante da economia do mercado e suas discriminações e criminalizações.

Voltando à nossa pergunta, pensamos mais nos debates que pode suscitar. Como diz Deleuze (2003), embora o velho fascismo exista ainda em muitos lugares, e um neofascismo tente, nos tempos atuais, se apresentar como gestão da "paz", buscando organizar os medos, esquadrinhar a cidade, deslocar as angústias, sufocar a potência da diferença, estimular subjetividades fascistas, há algo que trama, que trabalha na cidade, em nós, algo comum, que busca uma transformação radical da realidade social, política por meio de novas figuras, modos diversos de lutas cotidianas, experiências ínfimas que nos levam a apostar na reinvenção de uma perspectiva comum - ista para os tempos que hão de vir.

 

Referências

Athayde C. e MV Bill (2006). Falcão. Meninos do tráfico. Rio de Janeiro: Objetiva.         [ Links ]

Barros, M. (1997). O livro das ignorãças. Rio de Janeiro : Editora Record        [ Links ]

Benjamin, W. (2000) Oeuvres III. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Calvino, I. (1990). As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Certeau, M. ( 1990) L'invention du quotidien 1. arts de faire. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Deleuze, G. e Guattari, F. (1980). Mille Plateaux. Paris: Les Editions de Minuit.         [ Links ]

Deleuze, G. ( 2003). Deux Régimes de Fous. Paris: Les Editions de Minuit.         [ Links ]

Foucault, M. (1992). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.         [ Links ]

Loew, J. (1959). Journal d'une mission ouvrière. Paris: Ed. Du Cerf.         [ Links ]

Negri, A. (2003). Cinco lições sobre Império. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003.         [ Links ]

Negri,A. (2006). Fabrique de porcelaine. Paris: Editions Stock.         [ Links ]

Ozório, L. (2005). Les histoires (orales) de vie: un éloge des résidus. Revue Chemins de Formation au fil du temps... Les bascules de la vie. Association des Éditions du Petit Véhicule et Université de Nantes, 8, 163-171.         [ Links ]

Ozório, L. (2007). Perspectivas da pesquisa comunitária: Comunidade como práxis e seus diálogos com as histórias orais de vida. Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia, 7 (1), 28-41.         [ Links ]

Ozório, L. (2008). História e memória: comunidade, interculturalidade, relatos de vida em comum.Revista de História Oral- ABHO, 11 (1 e 2), 191-211.         [ Links ]

Ozório, L. (2012). Papo de Roda: o idoso conta sua história para o jovem, para que este conte a sua. Relatório final de pesquisa. Rio de Janeiro: FAPERJ-UERJ.         [ Links ]

Ozório, L. (2014). Penser les périphéries: une expérience brésilienne. Pour un nouveau type de politique publique de construction du commun. Paris: L'Harmattan.         [ Links ]

Pélbart, P. P.(1998). O tempo não reconciliado. São Paulo: Perspectiva, FAPESP.         [ Links ]

Portelli, A. (2010). Ensaios de história oral. São Paulo: Letra e Voz.         [ Links ]

Santos, M. (1998). Técnica Espaço Tempo. Globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Soares, L. E. (2010). A crise no Rio e o pastiche midiático. Recuperado em 12 de maio de 2011 de http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/luiz-eduardo-soares-a-crise-no-rio-e-o-pastiche-midiatico.html.

Veyne, P. (1992). Como se escreve a história. Lisboa, Portugal: Edições 70.         [ Links ]

Vilhena, J. et al. (org.) (2005). A Cidade e as Formas de Viver. Rio de Janeiro: Museu da República.         [ Links ]

Vitale E. et al. (2000). L'art au XXème. siècle et l'utopie. Paris : L'Harmattan.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 21/08/2014
Aprovado em: 18/09/2015

Creative Commons License