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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.10 no.2 São João del-Rei dez. 2015

 

ARTIGOS MULTITEMÁTICOS

 

"A graça entre os homens": discutindo a (des)aparição feminina nas capas de você s/a

 

"graça among men": discussing the (dis)appearance of women on the covers of voce s/a

 

"graça entre los hombres": discutiendo la (des)aparición de las mujeres en las portadas de voce s/a

 

 

Fabiane Langon LorenziI; Inês HenningenII

IMestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
IIProfessora do Departamento de Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e docente do PPG em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. E-mail: ineshennigen@gmail.com

 

 


RESUMO

Neste artigo, a partir do desconforto gerado pela constatação da quase inexistência de mulheres em capas da revista de negócios Você S/A (entre janeiro de 2012 e julho de 2013, somente uma traz uma especialista mulher), busca-se problematizar as discursividades relacionadas à forma como a mulher é apresentada como executiva, articulando a discussão à questão de gênero. Percebe-se, a partir de uma análise de discurso na perspectiva foucaultiana, que a ideia de "natureza feminina" permanece sendo colocada em pauta, indicando que mulheres e homens possuiriam características diferentes, inatas. Operando com base nesse pressuposto, nessa revista a medida de comparação das ditas características femininas passa pelo homem e posiciona a mulher entre lugares de fragilidade, sensibilidade, falta e sedução. Tecemos considerações sobre a importância política de seguir discutindo as "novas-velhas" roupagens das construções midiáticas sobre as mulheres.

Palavras-chave: Gênero; Mídia; Subjetividade; Análise de Discurso; Foucault.


ABSTRACT

In this article, from the discomfort caused by the near absence of women on the covers of business magazine Você S/A (from January 2012 to July 2013, only one cover shows a woman expert), we seek to discuss the discourses related to how women are presented as executives, articulating the discussion on gender. It is noticed, based on a discourse analysis from Foucault's perspective, that the idea of "female nature" remains on the agenda, indicating that women and men have different innate characteristics. Operating on the basis of this assumption, in this magazine, the comparison measure of such female characteristics goes through men and position women among places of fragility, sensitivity, lack, and seduction. We have made observations about the political importance of continuing discussing the "new-old" garments of media constructions about women.

Key-words: Gender; Media; Subjectivity; Discourse analysis; Foucault.


RESUMEN

Este trabajo parte de la incomodidad y constatación de la ausencia casi total de mujeres en las portadas de la revista de negocios Você S/A (entre enero de 2012 y julio de 2013 solo una tapa trae a una especialista mujer). Desde esta rareza, se busca problematizar las discursividades relacionadas con la manera cómo se presenta a la mujer como ejecutiva, articulando la discusión con el tema del género. Se puede observar a partir de un análisis del discurso en la perspectiva de Foucault que la idea de "naturaleza femenina" sigue poniéndose en el orden del día, lo que indicaría que mujeres y hombres poseerían diferentes características innatas. Operando desde esta presuposición, en dicha revista la medida de comparación de estas características femeninas pasa por el hombre y sitúa a la mujer entre lugares de fragilidad, sensibilidad, falta y seducción. Consideramos la importancia política de seguir discutiendo las "nuevas-viejas" construcciones de medios de comunicación sobre las mujeres.

Palabras clave: Género; Medios de Comunicación; Subjetividad; Análisis del Discurso; Foucault.


 

 

Introdução

A escrita deste artigo começou mergulhada em materiais de análise e fluiu com naturalidade e espontaneidade. Esse mergulho nos levou a flutuar em diferentes ondas, pisar em diversos buracos, experimentar graus de salinidade no céu da boca. Uma pesquisa se faz de uma certa sensorialidade, daquilo que toca e afeta. Assim, emergem temas mais ou menos imprevisíveis da vastidão deste mar. Então, de uma pesquisa que visava discutir a construção de um sujeito (e de uma cultura) empreendedor(a), focalizando a racionalidade política que constrói e desenvolve a importância dessa figura, surgiu a necessidade de problematizar também as posições construídas e reforçadas às mulheres na revista de negócios Você S/A.1

Na pesquisa em questão, analisamos, com base na perspectiva foucaultiana da análise de discurso (Foucault, 2012), as capas e as reportagens de capa da revista Você S/A do período de janeiro de 2012 a junho de 2013. Cabe observar que, em geral, tal revista traz, estampadas nas capas, fotografias de pessoas já (re)conhecidas como especialistas em negócios ou personagens anônimos que ilustram a proposta de reportagem e o título de capa. Por isso, chamou-nos bastante atenção que, nesse período, havia somente uma capa de Você S/A (edição de abril de 2013) que tinha como personagem principal uma mulher. Nesse mesmo recorte temporal, contabilizam-se doze capas com personagens masculinos, uma capa com dois homens e uma mulher (edição de junho de 2013) e mais quatro capas que ostentam somente títulos ocupando todo seu espaço. Um jogo de in-visibilidades a problematizar.

A partir do estranhamento primeiro, parece-nos bastante pertinente e profícuo construirmos algumas análises dessa solitária aparição feminina em capa e de sua reportagem correspondente, buscando tensionar as produções de verdade sobre e para os sujeitos, especificamente, o sujeito mulher. Afinal,

Na mídia de nossos dias, os modos como se constroem representações da afetividade, do corpo, da sexualidade da mulher de todas as faixas de idade e de todas as condições sociais indicam uma tensão entre as inúmeras conquistas das lutas feministas e aqueles universais que, entre outras posições, colocam a mulher entre a falta e a sedução... (Fischer, 2001, p. 592)

 

Norteadores conceituais

Há, na Psicologia e nas Ciências Humanas em geral, uma multiplicidade de entendimentos relativos ao conceito de subjetividade.

Em verdade o conceito de subjetividade passa do campo da psicanálise para os domínios das psicologias na primeira metade do século passado, mas é somente no seu final que ele se despe de um sentido naturalizado e substancializado de interioridade, passando a ser pensado em termos históricos, sociais e políticos - como produção de subjetividade - .... (Prado Filho & Martins, 2007, p. 16)

Entendemos subjetividade não como algo previamente existente à espera de ebulição, essa não é uma essência, um escondido esperando um cutucar para tomar corpo, ou uma espécie de gene que programa a forma como vemos ou nos portamos no mundo. Ao contrário, concebemos a subjetividade como produção que não para de se engendrar, que se produz a cada encontro (Mansano, 2009). Encontros que se dão com um(a) colega na escola, com uma vizinha no corredor do prédio, com transeuntes nas calçadas. Também com o calor do asfalto em um dia escaldante de verão ou com o frio da geada nos idos de julho. Esses encontros ocorrem, igualmente, com os discursos midiáticos e publicitários, com as imagens, sons, reproduções, textos, que, portanto, também são produtores de subjetividade. Eles não determinam ou impõem, mas prescrevem. Prescrevem comportamentos, opiniões, valores.

A prescrição moral, com pressuposições lógicas (aja de tal modo, porque é "moderno", porque é o "melhor", etc., segundo a lógica da inserção social na contemporaneidade), está de fato implícita no discurso midiático. Inexiste sanção externa ou explícita para a falha na observância dessa prescrição, mas fica implícita a vergonha (fato interno), consequente à autodesvalorização estética, à inadequação pessoal a um padrão. É o padrão identitário valorizado que vai permitir ao indivíduo atingir um optimum de reconhecimento social. (Sodré, 2012, p. 53)

Como analisa Sodré (2012), a mídia ilumina determinados aspectos, o que implica deixar alguns fatos na obscuridade. A partir de então, podem ser construídas decisões políticas, repasse de investimentos para essa ou aquela pesquisa, mudança no planejamento das cidades, etc. O agendamento midiático de pautas muda frequentemente, as iluminações mudam, "valores extremamente voláteis, na dependência dos interesses empresariais do momento" (Sodré, 2012, p. 66). Inês Hennigen (2006) coloca que a mídia é produtora de verdades sobre quem somos, o que queremos e sobre o mundo que nos cerca. Dessa forma, o discurso "escolhido" pela mídia e pela publicidade pode servir de base para a atribuição de valores e sentidos ao nosso viver cotidiano.

Não se pode esquecer a possibilidade do(a) telespectador(a)/leitor(a)/ouvinte aderir ou não à verdade que se veicula/vende, pois não se trata de manipular fios de marionetes, mas fios de tensionamento, em alguns momentos mais para a direita, em outros, mais para a esquerda. Os jogos de poder se estabelecem, os fios desenham uma rede de tensões. Poder concebido, portanto, não como repressão, esmagamento ou alienação daqueles que não o deteriam, mas como positividade e produção, entendimento bastante diferente do usualmente atribuído à expressão poder. Michel Foucault, com quem dialogamos, entende poder como condução de condutas de uns sobre outros; alguns, dada sua posição atual, exercendo essa possibilidade com mais facilidade e alcance, mas todos envolvidos nesse jogo. Então, não se trata de simples repressão, mas da produção de lugares possíveis de sujeito, mas sempre (em potencial) em constante mudança (Foucault, 2010). Tendo em vista a mobilidade e o teor positivo do poder em Foucault, fica mais claro seu entendimento de que há tensões e resistências envolvidas em um certo jogo de "puxar cordas". Quando a corda é muito puxada para um lado, o outro lado resiste e busca produzir (mais ou menos intensamente, face às condições) uma reação que movimente a corda em outra direção. Por isso, relações de poder, pontos espalhados em uma rede, em constante luta que os transformam, reforçam, invertem, fragilizam, empoderam.

Partindo dessas ideias, podemos entender que o "ser mulher" também passa por um processo produtivo social que estabelece determinadas regras e conduz condutas. Há jogos de poder acontecendo que produzem verdades e saberes sobre o feminino (e também o masculino), seus possíveis comportamentos exclusivos, algo como sua "essência", o que mulheres podem (ou "deveriam") ou não fazer. Foucault (2010) entende que poder e saber estão intimamente conectados, imbricados em uma dança contínua de produções. Poder produz saberes e vice-versa.

É justamente no discurso que vêm a se articular poder e saber. E, por essa mesma razão, deve-se conceber o discurso como uma série de segmentos descontínuos, cuja função tática não é uniforme nem estável. Mais precisamente, não se deve imaginar um mundo do discurso dividido entre o discurso admitido e o discurso excluído, ou entre o discurso dominante e o dominado; mas, ao contrário, como uma multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes. (Foucault, 2010, p. 111)

Sendo assim, os discursos que se produzem em relação às mulheres (ou aos homens, aos loucos, às crianças) dançam de rosto colado com as relações de poder, que, por sua vez, produzem (reproduzem, reinventam, modificam, fazem desaparecer) discursos, saberes, verdades. Os discursos, segundo Foucault, são "práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam" (2012, p. 56).

Ao tomarmos como objeto de análise certa revista de negócios, não imaginamos ser nem sua instituição editora nem as pessoas que a compõem as "inventoras" dos discursos e ideias que ali são veiculados - que serão discutidos mais adiante. Essa revista específica - e a mídia em geral - configura-se como ponto de produção, mas também de cruzamento, articulação e refração de discursividades tecidas no e que tecem o tramado social. Além disso, os discursos são sempre históricos, tanto no que diz respeito àquilo que possibilita sua emergência quanto ao status de verdade que podem ou não adquirir. Algo que se entende como verdadeiro e imutável, em determinado período histórico, pode passar a ser visto de outra forma em outros momentos, o que abre possibilidade de contradições, já que os discursos não formam um texto ideal, contínuo (Foucault, 2012).

Em termos metodológicos, ter como base os escritos de Michel Foucault para produzir uma análise de discurso implica um posicionamento diferente. Afinal, sua intenção nunca foi a de enrijecer um método que pudesse ser replicado incessantemente, muito menos o de construir um a partir dos parâmetros desenvolvidos pelo pensamento moderno. Utilizamos, então, um método que conduz a uma certa forma de interrogação e a uma crítica contundente de tudo aquilo que nos cerca e perpassa. Nunca restritivo, mas sempre rigoroso (Veiga-Neto, 2011). Foucault ressalta, em entrevista dada a Hubert Dreyfus e Paul Rabinow (2013), que não pretende produzir uma história das soluções, mas sim dos problemas. Ou seja, buscar as problematizações. Pois "nem tudo é ruim, mas tudo é perigoso... Se tudo é perigoso, então temos sempre algo a fazer. Portanto, minha posição não conduz à apatia, mas ao hiperativismo pessimista" (Dreyfus & Rabinow, 2013, p. 299).

 

A Graça entre os homens: a aparição de Graça Foster em uma capa de Você S/A

A capa, em fundo azul, destaca uma mulher vestida de vermelho, jaqueta quase militar, postura um tanto rígida. Há um meio sorriso; uma pequena tentativa de descontração? Ao contrário do que acontece com homens como Abílio Diniz (empresário do Grupo Pão de Açúcar e capa na edição de fevereiro de 2012) e Roberto Setubal (presidente do Banco Itaú e capa na edição de maio de 2012), que figuram como especialistas em liderança ou associados a uma atitude vencedora, Graça Foster (presidente da Petrobrás e capa na edição de abril de 2013) aparece, literalmente, como representante feminina. Em questão na reportagem correspondente não estão suas qualidades administrativas ou possíveis segredos financeiros a compartilhar, mas unicamente a discussão de sua presença em um posto de presidência de uma grande empresa estatal. Transparece a necessidade de marcar - mas, talvez, também circunscrever - um espaço que não se encontra garantido no interior das grandes corporações às mulheres. Ainda mais em se tratando de altos postos de comando. Podemos pensar, em termos de atravessamentos, que esse aparecimento solitário diz de um domínio masculino; sendo visto como natural (pois naturalizado) que homens ocupem presidências ou gerências, enquanto uma mulher causa estranhamento e sua competência precisa ser atestada.

A pose escolhida (orientada?) para a fotografia sugere certo constrangimento. As mãos se juntam em frente ao corpo, escondendo-o, segurando-o. A gola mais alta do casaco, seu corte reto e seco, lembram vestimentas militares. No contraponto, as fotografias de Abílio Diniz e Roberto Setubal remetem a posições claramente mais descontraídas. Eles ocupam um lugar que não os constrange. Abílio está de braços erguidos, como que conversando, tratando de assuntos amenos, trazendo suas dicas de especialista com muita facilidade. Roberto está sentado, pernas abertas, braços apoiados nos joelhos, sorriso largo. Seu corpo inclina-se para frente, aproximando-se de um alguém que poderia estar ao seu lado, para "bater um papo", "papo" de vencedor, de alguém bastante confiante. Sua roupa não é casual, é até mais formal do que as de Graça, no entanto parece garantir muito mais movimento; o terno é maleável, está aberto, gravata ultrapassando os limites da calça; o corpo estica-se com mais facilidade.

É possível perceber entrelaçamentos entre imagem e texto. Os dois, estampados juntos, lado a lado, estabelecem manobras que levam de um a outro e de volta a um. Imagem também é texto, linguagem; frases e letras também são imagens. Foucault(2008b), ao adentrar os quadros de Magritte, especialmente a obra intitulada "Isto não é um cachimbo", busca tecer relações entre figura e texto e assinala: "É preciso, portanto, admitir entre a figura e o texto toda uma série de cruzamentos" (Foucault, 2008b, p. 29). O atestado de competência feminina parece estar associado à postura na fotografia (rígida, sisuda, militar) e à comparação masculina. Ao lado de seu rosto, uma frase proferida pela própria Graça Foster está em destaque. Os dizeres são os seguintes: "Graça Foster, presidente da Petrobras: 'Não conheço homens tão firmes quanto a vida me fez ser'" (Você S/A, abril de 2013, capa).

Dentre inúmeras falas da Presidente da Petrobrás, um grande rol de possibilidades, essa é a escolhida. Uma "certificação" de suas qualidades e competências passa pelo comparativo com o homem. Firmeza transparece como característica masculina, como se fosse algo natural e inato. Todos os homens são firmes. E para que se descubra se uma mulher o é também, deve-se tomar como base e medida de comparação o homem. Na continuidade da fala, Graça Foster afirma "tão firmes como a vida me fez ser". Mais uma vez, firmeza não é algo natural às mulheres, mas sim produto de acontecimentos difíceis e de uma vida de duras penas. Essas últimas não são palavras de Graça Foster, mas são ideias que podemos captar a partir de outra parte do texto que faz questão de apelar às dificuldades vividas por ela, talvez os motivos para que tenha se produzido uma mulher firme. Tal comportamento, portanto, estaria na contramão de sua "natureza", de sua "essência".

Se a presidência da Petrobrás é um posto inalcançável para a maioria dos profissionais, o que dizer de Graça Foster, que passou a infância na pobreza, no Morro do Adeus, dentro do Complexo do Alemão no Rio de Janeiro? Que trabalhou na adolescência para comprar material escolar e com sacrifício conseguiu formar-se engenheira química na Universidade Federal Fluminense. (Você S/A, abril de 2013, p. 30)

Graça Foster, na reportagem interna da revista Você S/A, traça algumas características que acredita estarem relacionadas à sua personalidade e que lhe auxiliaram a galgar posições até a presidência da Petrobrás. São elas: "conhecimento", "capacidade de comover e entusiasmar as pessoas", "persistência" (Você S/A, abril de 2013, p. 39). Atributos interessantes, porém não são eles que estampam a capa da revista. Lembremos a ideia de "iluminações", de Muniz Sodré (2012), trabalhada no início deste artigo. A mídia seleciona aquilo que (entende que) deve receber um foco mais intenso de luz, por isso, também produz discursos, saberes, verdades, comportamentos. Nesse caso, o holofote foi direcionado a uma pequena parte da entrevista onde ocorre a comparação masculino/feminino - e, assim, a já tão surrada firmeza masculina recebeu generosa iluminura. Por que não estampar a capa com aqueles outros atributos que a própria executiva associou a si mesma? Será porque, se assim fosse, a referência comparativa não ficaria evidenciada? É interessante pontuar que na única capa em que uma mulher aparece sozinha em Você S/A, no período sob análise, ela acaba acompanhada pela figura masculina - não em imagem, mas em referência/contraponto. Jogos entre imagem e texto. Sua composição costura discursos.

A "natureza feminina" deixa suas marcas no texto: questionamentos e resistências

O conceito de gênero foi articulado (e, posteriormente, contestado e problematizado) em meio às lutas feministas do pós-guerra. Instala-se com a pretensão de fazer resistência à visão demarcada de "sexo", entendido como algo natural e inato, e inteiramente ligado a questões anatômicas. A proposta, vinda com a constituição do conceito de gênero, era produzir um afastamento (e uma contestação) de uma noção determinista biológica. Robert Stoller (1963, citado por Haraway, 2004), em um Congresso de Psicanálise em Estocolmo, em 1963, apresenta o conceito de "identidade de gênero", associando a palavra sexo à biologia (anatomia) e a palavra gênero à cultura.

Logo surgiram as primeiras críticas a uma leitura binária que afastava natureza e cultura como polos opostos (Haraway, 2004). Também, a partir da chamada segunda onda do feminismo, o conceito de gênero passa a ser trabalhado como construção cultural, funcionando em meio a normas e prescrições duras. Dá-se a produção de questionamentos à naturalização das diferenças sexuais, à prescrição de lugares pré-determinados de ocupação para homens e mulheres (Mayorga, Coura, Miralles & Cunha, 2013).

Monique Wittig (citado por Butler, 1987) é uma das estudiosas que produz uma recusa a doutrinas mais essencialistas da feminilidade e problematiza a própria ideia de natureza, profundamente arraigada em nossa sociedade e que nos compele a corresponder àquilo que é designado como norma para cada um(a). Para ela, que nos vejamos e nos vivenciemos como "homens" e "mulheres" não significa que esses lugares sejam naturais, mas sim construções culturais que nos atravessam todo o tempo. Indicando linha similar de pensamento, Judith Butler (1987) levanta questionamento acerca das "normas" instituídas a homens e mulheres e entende a profundidade com que todos nós somos interpelados(as) e produzidos(as) inseridos(as) nessa lógica binária e essencialista, levando-nos ao ponto de nos sentirmos feridos quando nos é dito que exercemos nossa masculinidade ou feminilidade inadequadamente.

O conceito de gênero, contemporaneamente, vem sendo criticado como a tentativa de abarcar todo tipo de vivência do feminino e produzir um grande "guarda-chuva" teórico. A crítica que surge diz respeito a vivências que extrapolam a mera questão de gênero e produzem outras problemáticas e possibilidades. Categorias como o racismo, colonialismo e política heterossexual que engendram outras formas de vivenciar o feminino e outras formas de opressão, têm sido colocadas em relação com a questão de gênero (Mayorga et al., 2013).

Donna Haraway (1992, citado por Goulart, 2012) aposta na multiplicação de modos de viver e perceber-se, não reunidos em sistemas hierárquicos nem sujeitos a formatações estanques. Uma pluralidade em vistas a desconstruir a ilusão de uma constituição de sujeitos homogênea e natural. Concordamos com essa perspectiva e entendemos que as chamadas "qualidades" ou "características" (ainda) associadas à bipartida concepção de homens/mulheres, são construções realizadas diferentemente em sociedades diversas. Judith Butler (1999) também argumenta, nessa mesma linha, que as identidades de gênero seriam construídas e reforçadas socialmente de tal forma que passam a parecer inatas.

Além do mais, todo esforço teórico por descobrir, manter ou exprimir uma feminilidade essencial deverá enfrentar o seguinte problema moral e empírico: que acontece quando mulheres individuais não se reconhecem nas teorias que lhes explicam suas essências insuperáveis? Quando o feminismo essencial é finalmente expresso, e o que temos chamado de "mulheres" não possam se ver nesses termos, que deveremos concluir? Que estas mulheres estão enganadas ou que não são absolutamente mulheres? (Butler, 1987, p. 154)

Além da questão do sexo - ao nascer devemos ser nomeados(as) como machos ou fêmeas - e da exigência que assumamos um gênero - masculino ou feminino -, há uma expectativa de que, a partir da escolha de gênero, experimentemos desejo pelo sexo oposto. Assim, insistentemente, acabamos reiterando a norma heterossexual, ou seja, esperamos que todos e todas sejam heterossexuais. Deixando claro que quando utilizamos a expressão "escolha de gênero", isso não significa que estejamos afirmando uma possibilidade de escolha livre e desencarnada, pelo contrário. Como já dissemos, a escolha de gênero está imersa em normas, pressões, construções sociais, estereótipos (Louro, 2010).

É preciso questionar essa naturalização de lugares sociais que devem ser ocupados por homens e mulheres e as formas aceitáveis para que se comportem. Como dizíamos anteriormente, há entendimentos diversos acerca da subjetividade, como "essência", ou como produção. A ideia de uma subjetividade interna pré-existente (ou seja, a dita "essência") tem muita força nas discursividades contemporâneas. Inúmeras teorias psicológicas baseiam-se nessa premissa2 e servem como pano de fundo para uma diversidade de afirmações que posicionam a ideia de "essência" como uma verdade incontestável. A partir da análise da capa e reportagem de capa já citada, foi possível perceber a reverberação desse mesmo discurso essencialista. Diversas afirmações que posicionariam a reportagem da revista em um viés determinista biológico, ou seja, partindo de um pressuposto de que cada um de nós nasce com determinadas características.

A reportagem de capa em foco até aqui é a edição de número 179 da revista Você S/A (referente a abril de 2013) e desenha o perfil de Graça Foster e outras executivas - todas mulheres. A matéria se dispõe a refletir sobre o tema das mulheres ocupando altos cargos executivos em grandes empresas brasileiras e se pergunta se elas serão responsáveis por uma nova revolução do trabalho. Além de Graça Foster, presidente da Petrobrás, outras seis executivas brasileiras foram entrevistadas.5 O texto se alterna entre a fala dessas diversas mulheres - muitas das quais apresentaremos no decorrer deste artigo - e uma série de gráficos indicando o aumento do número de mulheres em cargos entendidos como de "alto escalão". Além disso, outras especialistas pontuam ideias ao longo do texto - como Rosiska Darcy, pesquisadora e escritora feminista; Irene Azevedo, que presta consultorias em transição de carreira a executivos(as); Mirian Goldenberg, antropóloga e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, entre outras (Você S/A, abril de 2013, p. 33). A reportagem vai costurando histórias de executivas mulheres, o que instaura uma clara separação, homens de um lado, mulheres de outro. E, como já afirmamos anteriormente, utiliza-se de um viés essencialista para demarcar ainda mais essa separação.

Só a partir de tal entendimento é que é possível para a revista fazer afirmações como a seguinte: "um erro que as primeiras gerações de executivas cometeram: comportar-se como homens. 'O problema é que não fica natural', diz a consultora Irene Azevedo..." (Você S/A, abril de 2013, p. 40). Fica clara a tentativa da reportagem em estabelecer uma lista de comportamentos que "revelam" a "natureza" dos sujeitos em questão. Há lugares possíveis para homens e mulheres. E não só isso, mas uma mulher que possui características associadas à "essência" do homem, é percebida como "imitadora", como alguém que erra ao comportar-se de forma contrária à sua "natureza" feminina.

Apesar de todos os movimentos de resistência engendrados em tantos anos de luta feminista, a reportagem em questão, do ano de 2013, afirma em diversos momentos a subjetividade como essência inata. Assim, permite o posicionamento de homens e mulheres em lugares diferentes, com características diferentes que "afloram" de um interior pré-determinado. Não há lugar para escolhas ou produções ou invenções - ou, ao se optar pelo inusual, um custo existirá.

Ainda, a partir da fala de Fernanda Terracini, superintendente financeira do Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo, a ideia de uma "natureza feminina", com suas peculiaridades sempre reforçadas (como a capacidade multidisciplinar), vem à tona. Para ela, as mulheres são multidisciplinares por natureza, mas subestimam suas capacidades. "Não me sinto inferior aos meus colegas homens e sei que eles não se sentem superiores a mim", afirma Fernanda (Você S/A, abril de 2013, p. 38).

Inseridas nessa mesma ideia de "natureza", as mulheres aparecem sempre em interligação com suas famílias. A maternidade é percebida como vontade geral e ligada à essência feminina, sendo assim, a principal preocupação das entrevistadas é a conciliação entre família e trabalho. O grande drama existencial das mulheres parece estar indicado como a adequação dos horários de trabalho com os horários dedicados à família e a culpa que sentem (ou a sociedade as faz sentir) em passar boa parte do seu dia em um outro espaço que não o "lar". Sendo entendida esta como a grande questão, a reportagem se coloca em uma posição de conselheira para evitar que as mulheres desistam de suas carreiras. Para isso, os depoimentos retratam mulheres que ascenderam profissionalmente sem abrir mão de ter filhos/filhas e manter um casamento.

Sobre Maria Eduarda Kertész, presidente da divisão de consumo da Johnson & Johnson Brasil, é dito que "a carreira bem-sucedida não impediu que ela pudesse exercer o papel de mãe. Entre 2002 e 2003, quando vivia um momento de ascensão profissional rápida, Duda, como é chamada, não se intimidou em ter dois filhos" (Você S/A, abril de 2013, p. 30). Já a respeito de Marise Barroso, presidente da Masisa, ficamos sabendo que "ela entendeu que, para ter tudo o que queria - carreira, casamento, filhos -, precisaria de um marido que enxergasse como um par e tivesse necessidades parecidas" (Você S/A, abril de 2013, p. 36).

O fato de as luzes apontarem na direção de uma necessidade de conciliação família/trabalho, quando as entrevistadas são mulheres, reforça um lugar possível de ser ocupado, um lugar que exige a maternidade e o casamento. Há a construção de uma normatização, de um roteiro de vida que deve ser querido e seguido. Questionamos a certeza de que esse é o sonho e a necessidade de toda mulher e que a grande dúvida existencial esteja ligada à procriação e ao casamento versus trabalho e carreira. Esses discursos produzem corpos grávidos, instintivamente maternos, corpos que precisam do suporte de um "companheiro" (Foucault, 2007, 2010, 2012).

...acreditar na igualdade significava crer que, conforme as mulheres ocupassem espaço no mercado de trabalho, haveria uma divisão de tarefas familiares com os companheiros, por um lado, e flexibilidade das empresas para permitir que elas cumprissem sua metade das responsabilidades pessoais, por outro. No entanto, não foi assim que aconteceu. [...] O resultado são gerações mais novas de mulheres que se veem obrigadas a optar por carreira ou família. (Você S/A, abril de 2013, p. 33)

A questão da igualdade aparece deturpada nessa leitura que a reportagem faz do que escreveu Sheryl Sandberg - COO do Facebook4 - em seu livro "Faça acontecer: mulheres, trabalho e a vontade de liderar". A deturpação passa pela afirmação de que a igualdade será garantida a partir de uma flexibilização das empresas para com as mulheres para que elas deem conta de "sua metade das responsabilidades pessoais". Há uma reclamação de inadequação das empresas à "realidade feminina" e, assim, mulheres passam a ser obrigadas a optar por carreira ou família. Mais uma vez, a mulher é colocada como "mestra" responsável por toda a família e obrigações da casa, como se isso fosse algo "natural". Se as tarefas e obrigações da casa são responsabilidade das mulheres (elas nascem imbuídas dessa necessidade), então elas reclamam da falta de flexibilidade das empresas e precisam optar pela casa ou trabalho. Claro que se a reportagem parte do pressuposto de que é da "natureza" da mulher ser a "cuidadora" familiar é também papel dela exigir mais flexibilidade para que haja tempo de exercer essa função.

Porém, se lutamos por igualdade, precisamos reformular diversos "lugares comuns" que habitamos e reproduzimos. Por que não imaginar uma criação conjunta, que mobilize as figuras parentais responsáveis? Por que não pensar em uma administração conjunta da casa e de suas tarefas? A luta é por uma sociedade que funcione de uma forma inteiramente nova. Perguntamos, ainda, por que as empresas flexibilizariam horários às mulheres e não aos homens? A luta deveria ser por um ritmo de trabalho que permita a todos e todas exercerem outros papéis que não o de trabalhadores e trabalhadoras. Se a luta é por igualdade, como afirmado pela matéria, precisamos produzir resistências que rachem a noção de "instinto maternal", "mulher, a rainha do lar", e integrem parceiros e parceiras nos cuidados diários com os filhos/filhas e com a casa. Isso é buscar igualdade e não exigir horários diferenciados.

Entre a falta e a sedução: esmaltes derramados, fragilidades inerentes

Assim como afirma Fischer (2001), a mulher é posicionada entre a falta e a sedução. Em se tratando da falta, cabem falas como a de Fernanda Terracini, superintendente financeira do hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo, que entende que as mulheres "subestimam suas capacidades" (Você S/A, abril de 2013, p. 38); ou então, como traz Sheryl Sandberg, COO do Facebook: "Nós nos refreamos de várias maneiras, em coisas grandes ou miúdas, por falta de autoconfiança, por não levantar a mão, por recuar quando deveríamos fazer acontecer" (Você S/A, abril de 2013, p. 38). A fragilidade feminina vem acompanhada de afirmações referentes à falta de confiança e à insegurança, características que mulheres teriam em profusão. A reportagem coloca-se em uma posição de "ajuda" e de "incentivo", dizendo às mulheres que elas não devem se sentir inferiores, devem ser mais ousadas, devem saber que são competentes. Em um primeiro momento, podemos imaginar que são frases motivacionais interessantes, porém o que elas constroem? Que sujeitos-mulheres são produzidos? São essas as perguntas que nos interessam. Continua ocorrendo um reforço de uma posição rebaixada e insegura. As mulheres são colocadas nesse lugar, apesar do discurso marcar a necessidade que saiam dessa posição. Se devem mudar é porque se considera que têm dificuldades de autoestima e autoconfiança. São "essencialmente" frágeis.

Já a questão da sedução talvez não fique tão evidente em uma matéria de negócios, porém está ali também. Existe uma necessidade de reafirmar que, apesar de ocupar a presidência da Petrobrás - o que se entenderia como uma função essencialmente masculina -, Graça Foster mantém um vidro de esmalte sobre a mesa de trabalho - algo da essência vaidosa e sedutora feminina. Há um contraponto interessante entre o fato de Graça ser considerada uma mulher "poderosa", estar entre pilhas de relatórios e, por outro lado, manter sua natureza feminina frágil e sedutora, ostentando vidros de esmalte, remédios para gripe e DVDs de música romântica.

Na mesa de trabalho da vigésima mulher mais poderosa do mundo (segundo a lista da revista americana Forbes), entre pilhas de relatórios, balanços financeiros e planilhas de resultados também figuram esmalte, remédio para gripe e um DVD do músico inglês Phil Collins. (Você S/A, abril de 2013, p. 30)

No entanto, o que chamou muito nossa atenção, foi a produção de algumas publicidades colocadas em meio a uma matéria sobre executivas mulheres. Fizemos uma busca em todas as revistas Você S/A que temos e não encontramos essas mesmas publicidades em mais nenhuma outra edição. Isso significa que foram publicidades encomendadas e produzidas com o único fim de se instalarem em meio a uma reportagem que se coloca como disposta a refletir sobre as mulheres no mercado de trabalho e, principalmente, nos altos cargos e nas grandes corporações. Em meio a uma revista que se volta à leitura de homens e mulheres, essas publicidades não estão dispostas somente a vender produtos, mas, sim, estão interessadas em (re)produzir um jeito de ser mulher que passa a interagir com leitores e leitoras. Assim se pulverizam e se espalham.

Na primeira delas, uma publicidade da Central Nacional da Unimed, há uma mão que desenha linhas em um gráfico, presença constante no dia a dia de mulheres executivas e homens executivos. Uma grande frase, posicionada acima do gráfico, já nos diz que há algo de diferente: "Fazer orçamentos, cuidar de vidas, otimizar custos, comandar uma equipe e ainda ser feminina. Haja mulher" (Você S/A, abril de 2013, p. 35). Ou seja, gráficos não fazem parte do "feminina", muito menos otimizar custos ou comandar uma equipe. Para que haja espaço à feminilidade, o gráfico nos responde o que a mulher precisa fazer. Em vez de linhas tradicionais, elas foram substituídas por um batom vermelho e um frasco de rímel preto. A sedução - aqui relacionada a certo tipo de cuidado com o corpo - faz parte do "ser feminina", deve estar presente em meio aos gráficos, números e equações. O rímel substitui a linha - tão dura para uma mulher -, pinta os cílios daquela que apresenta dados e comanda equipes, impõe a "essência" feminina. O batom não poderia ser de outra coloração, o batom vermelho seduz, pinta o lábio, mobiliza a "natureza", enfrenta os números que são parte do mundo masculino.

Outra frase coroa ao final da página: "Cuidar de vidas faz parte da natureza feminina, é uma vocação" (Você S/A, abril de 2013, p. 35). Pronto! Ali está a afirmação! Cuidar de vidas é da "natureza" feminina, cuidar da família é sua vocação e não a do homem. Para que sua vocação não se perca em meio a pouca sensibilidade dos ambientes corporativos, é preciso lhe pintar a cara. Lembrá-la com um batom em uma mão, um rímel na outra. Seu lugar é o da sedução. Sua vocação é a vaidade e o cuidado.

A publicidade da Unimed, exposta em meio às palavras de Graça Foster vem seguida de outra ode aos cosméticos. A publicidade da Porto Seguros Auto Mulher, um seguro de automóvel específico para mulheres, contrapõe os tons azul marinho de suas palavras com o rosa perolado de um vidro de esmalte derramado. Tanto esmalte despejado produz uma imagem, um grande rosto de mulher à direita da página. Um rosto com longos cabelos rosa-perolados, olhos inquiridores, nariz delicado e boca carnuda. Só assim o rosto da mulher ganha contornos, a partir de um vidro de esmalte. Sem a vaidade, sem as unhas pintadas, não há contornos, não há mulher.

Abaixo desse rosto rosa perolado, uma frase: "Porque a gente sabe que o seu dia a dia não é só moda e cosméticos" (Você S/A, abril de 2013, p. 41). No melhor estilo "negação afirmativa", moda e cosméticos são entendidos como os pilares da "natureza" feminina. O dia a dia das mulheres resume-se em preocupar-se com a roupa que utilizam, os acessórios, o esmalte rosa perolado. Se sobrar um pouco de tempo, podem vir a pensar no seguro do seu carro. Melhor ainda se vier com descontos exclusivos em "[...] clínicas de estética (tratamentos corporais e faciais) [...]" (Você S/A, abril de 2013, p. 41), assim as mulheres fazem um seguro que lhes proporciona limpezas de pele e tratamento contra a celulite. Porque isso faz parte da "essência" feminina, o esmalte rosa perolado já indica que os contornos femininos se dão a partir dos cuidados estéticos.

Assim como o vidro de esmalte presente na mesa de Graça Foster, que insiste em ser descrito junto das atribuições de trabalho de uma mulher, as publicidades martelam a posição sedutora que deve ser ocupada. Afinal, mulheres podem ser tão firmes como homens - como afirma a própria Graça -, porém não vivem sem um esmalte, como atesta sua mesa. Mulheres até pensam em seguros de carro, mas, no fundo, são só moda e cosméticos. Esquecem-se dos números e passam a enxergar batons e rimeis como marcadores gráficos.

Temos, então, a construção de uma matéria inteira tratando de mulheres nas grandes corporações. Uma matéria que abusa dos "exemplos de vida", cheia de entrevistas com mulheres presidentes, mulheres superintendentes, mulheres diretoras. Suas falas e as palavras da matéria vão construindo uma teia discursiva que posiciona mulheres em um lugar de certa fragilidade, sensibilidade, uma "natureza" só delas. Essa teia vai ganhando mais fios à medida que as publicidades aparecem no virar das páginas. Logo após a fala de Sylvia Coutinho, diretora de varejo e gestão de patrimônio para a América Latina do HSBC, com especialização na área de finanças pela Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, a publicidade da Unimed apresenta seu gráfico financeiro de batom e rímel. Parece quase uma ironia, talvez possamos lê-lo assim. Uma especialista em finanças mulher se vê perseguida por uma publicidade grotesca que insinua que os únicos gráficos que uma mulher é capaz de construir são aqueles que dizem respeito à sua maquiagem. A teia discursiva ganha ainda mais contornos com a publicidade da Porto Seguros Mulher e seu rosto em esmalte rosa perolado. Na página que está ao seu lado esquerdo, encontra-se a fala de Maristela Castanho, diretora mundial de planejamento de volumes da área comercial da Renault. Uma diretora de uma grande empresa automobilística ao lado de uma publicidade de seguros automotivos. Tremendamente irônico, mais uma vez. Uma diretora da área automotiva ironizada por sua companheira de página, desenhada em esmalte e que faz de seu dia a dia moda e cosméticos. A teia se desenha e enrijece. Apesar de todas as qualificações e qualidades das entrevistadas, o discurso construído diz de uma "natureza" da qual não se pode escapar.

 

Considerações Finais

Iniciando as últimas pontuações deste artigo, parece-nos interessante agregarmos outras discussões possíveis que despertem leitores e leitoras a futuras problematizações. Claro que o exercício de um(a) pesquisador(a) exige delinear certos contornos e executar cortes, algumas vezes precisos, outras vezes nem tanto. Para este artigo, vínhamos nos debatendo com as questões de gênero, que exigiam um espaço para fora de nossos corpos, uma discussão nessas linhas. Porém, sempre há outros questionamentos a serem feitos.

Brevemente, pontuamos que as revistas de negócios podem ser fonte importante de análise quanto à produção e reverberação de discursos. Assim, refletir sobre o espaço inexistente para a aparição de casais homossexuais e a reiterada associação entre grandes executivos e executivas e suas parceiras e parceiros do sexo oposto. A norma heterossexual atravessa os textos, produz discursos e lugares e apresenta um "não lugar" no mundo dos negócios ao homossexual.

Não há nada de novo em afirmar que a maior parte da mídia coloca em cena o homem, branco, heterossexual e insiste em delimitar espaços possíveis a homens e mulheres. Outros artigos, como o de Tania Navarro Swain (2001), mostram que a mídia tem homogeneizado a condição feminina, seus supostos comportamentos e buscado reforçar um discurso de "verdadeira mulher" ligado à maternidade e à delicadeza. A autora afirma, a partir da análise das revistas Nova e Marie Claire, a construção de "temas femininos", tais como: sedução e sexo, família, casamento, maternidade e futilidades. Constatações se aproximam muito das discussões que empreendemos ao longo deste texto - com quatorze anos de diferença. A "novidade" talvez seja que tal discurso agora ocupa também as páginas não (só) das revistas ditas femininas, mas as de negócios. Logo, longe de ser mera redundância, seguir apontando e problematizando as "novas-velhas" roupagens das construções sobre as mulheres, nos parece, tem uma função política que não se esgotou.

Cláudia Regina Ribeiro e Fabíola Rohden (2009) analisam o programa jornalístico televisivo Globo Repórter e discutem a exploração de discursos da "ciência" que "localizam nos hormônios e no cérebro as diferenças entre homens e mulheres" (Ribeiro & Rohden, 2009, p. 270), princípio de leitura biológica e orgânica que as autoras também encontraram em reportagens da revista Veja e Época do ano de 2007. Tais argumentações, que cada vez mais tem circulado em diferentes âmbitos midiáticos, se compõem e fortalecem antigas "máximas", ganhando relevância em favor do que seria da ordem das "essências", despolitizando o debate e contribuindo para fixar posições que as lutas querem fraturar.

Parece que o feminino e o político são (devem ser?) estrangeiros. Se percebemos a (quase) ausência de mulheres em uma revista de negócios, tradicionalmente território masculino, Biroli (2010) verificou essa mesma ausência nos noticiários políticos das principais revistas semanais brasileiras - Veja, Época e Carta Capital: para além da baixa representação feminina no cenário da política brasileira, sua visibilidade é marcada por estereótipos que reafirmam as separações tradicionais e associam as mulheres às esferas domésticas e íntimas.

Se não é novo, porque insistirmos em apontar? Porque permanece ali, por mais que apontemos. Permanece como marca do "normal". Assim, mulheres, negros(as) e homossexuais instituem-se como o "outro". Isso fica bem claro na fala de Graça Foster, quando há um comparativo entre sua firmeza, como mulher, e a firmeza dos homens que ela conhece. Ela enfatiza que é tão firme quanto qualquer homem, utilizando-os como ponto de partida e colocando-se como aquela que busca uma norma estabelecida para comparar-se.

A resistência possível ao enrijecimento nessas teias não passa pela flexibilização de horários às mulheres para que cuidem de suas tarefas de casa, como parece sugerir SherylSandberg, número 2 do Facebook. A resistência passa por um trabalho de escavação de fendas, pequenas brechas em discursos já tão amarelados, mas ainda fortes e produtores do que somos como sujeitos. Um bom começo é poder demonstrar rejeição por expressões como: "mulheres são multitarefas por natureza"; "tão firme como qualquer homem"- elas nos enquadram e empobrecem. A exigência é por igualdade, então que cuidemos todos e todas de nossos filhos e filhas e os eduquemos para que não permaneçam reproduzindo frases como as acima. E lutemos todos e todas por menos horas de trabalho e mais horas de vida no parque.

 

Referências

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Você S/A. (abril de 2013). São Paulo: Editora Abril, edição 179.

 

 

Recebido em: 24/10/2014
Aprovado em: 30/03/2015

 

 

1 A revista Você S/A é uma revista de negócios brasileira mensal da Editora Abril e tem como foco reportagens sobre desenvolvimento pessoal e investimentos - podemos dizer que ela se debruça, fomenta mesmo, aquilo que o economista Theodore Schultz (1973) refere como capital humano. Quando Theodore Schultz escreve seu livro O capital humano: investimentos em educação e pesquisa, em 1971, declara que o ser humano deve passar a fazer parte dos cálculos econômicos de uma nação e que sua educação, seus momentos de lazer, suas mudanças de cidade devem fazer parte de um quadro calculável de investimentos. Michel Foucault (2008a) retoma o conceito buscando exercitar um posicionamento crítico, entendendo que a transformação dos sujeitos em capital tem relação com o aprofundamento de uma lógica individualista e competitiva, transformando relações humanas em relações de concorrência.
2 Em relação às práticas psicológicas que adotam como premissa a ideia de uma "essência" prévia: "O incômodo em relação às práticas psicológicas tradicionais diz respeito a sua pretensão em dar conta do desvelamento do sujeito - portanto, supondo a preexistência de uma interioridade do sujeito - por meio de teorias e técnicas cunhadas sob inspiração do paradigma positivista... Ao social, colocado como uma instância secundária de influência sobre o sujeito, restaria a propriedade de adaptar essa unidade que se produz a partir de dentro, de um nucleio psíquico previamente dado... (Huning & Guareschi, 2009, p. 159-160).
3 Além da presidente da Petrobrás, Graça Foster, são também entrevistadas: Maria Eduarda Kertész, presidente da divisão de consumo da Johnson & Johnson Brasil; Sylvia Coutinho, diretora de varejo e gestão de patrimônio para a América Latina do HSBC; Marise Barroso, presidente da Masisa, fabricante de painéis de madeira; Fernanda Terracini, superintendente financeira do hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo; Maristela Castanho, diretora mundial de planejamento de volumes da área comercial da Renault; Ana Paula Dacar, diretora comercial e de desenvolvimento de novos negócios para materiais especiais da Dow.
4 COO (chiefoperationsofficer) é um termo em inglês que designa o cargo que a executiva ocupa na plataforma de rede social Facebook. Sua possível tradução seria chefe do escritório de operações.

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