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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.10 no.2 São João del-Rei dez. 2015

 

ARTIGOS MULTITEMÁTICOS

 

Processo participativo entre profissionais de saúde para integrar o atendimento à criança vítima de violência

 

Participatory process among health care providers to integrate the assistance to the child who was a victim of violence

 

Proceso participativo para la práctica integrada de profesionales de la salud en cuidado de la víctima de la violencia infantil

 

 

Denise de Camargo

Graduada em Formação de Psicólogos pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1997). Atualmente é aposentada da Universidade Federal do Paraná e professora titular da Universidade Tuiuti do Paraná. E-mail: denisedecamargo@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este trabalho apresenta o relato de uma pesquisa participante desenvolvida com profissionais de saúde em um Hospital Infantil. Tem como objetivo identificar as contribuições dessa metodologia para a integração das diversas atividades desenvolvidas pelos diferentes profissionais quando do atendimento à criança vítima de violência. Adotou-se a metodologia participante para propiciar uma aprendizagem coletiva e comprometida. Este enfoque visou, ainda, promover a integração interdisciplinar para facilitar a prática de procedimentos implicados e ajustados à situação atendida, às políticas públicas e à realidade do hospital. Formou-se um grupo de discussão onde os profissionais identificaram as dificuldades do trabalho, refletiram sobre as implicações de cunho ideológico, cultural e psicológico que interferem nas suas práticas. Como resultado, elaboraram um esboço de protocolo de atendimento com a descrição das ações que cada profissional deveria realizar. Concluíram que os encontros precisavam continuar para colocarem em ação o protocolo e alcançarem a multidisciplinariedade no atendimento.

Palavras-chave: Criança; Violência; Profissionais de saúde; Protocolo de atendimento; Pesquisa participante.


ABSTRACT

This paper presents the report of a participatory research developed with health professionals in a Children's Hospital. It aims at identifying the contributions of this methodology to the integration of the various activities carried out by different professionals assisting children who were victims of violence. The participant methodology was adopted in order to promote collective and committed learning. This approach aimed also at providing interdisciplinary integration that would facilitate practical procedures that are involved with and adjusted to the situation found, to public policies, and to the hospital reality. A discussion group was formed where professionals identified work challenges and reflected on the implications of the ideological, cultural, and psychological nature that interferes with their practices. As a result, a management protocol outline was developed describing the actions that each professional should perform. They concluded that the meetings needed to be continued to put into action the protocol and to achieve multidisciplinarity in the assistance.

Keywords: Children; Violence; Health care professional; Assistance protocol; Participatory research.


RESUMEN

En este trabajo se presenta el informe de una investigación participativa desarrollada con profesionales de la salud en un Hospital de Niños. Tiene como objetivo identificar las contribuciones de esta metodología para la integración de las diversas actividades llevadas a cabo por diferentes profesionales en tratamiento a los niños víctimas de la violencia. La metodología participante se ha dirigido hacia proporcionar un aprendizaje colectivo y comprometido. Este enfoque ha, todavía, sido seleccionado para promover la integración interdisciplinaria para facilitar los procedimientos prácticos involucrados y ajustados a la situación que se presentad, a las políticas públicas y a la realidad del hospital. Un grupo de discusión fue formado donde los profesionales han identificado las dificultades del trabajo y han reflexionado sobre las implicaciones de naturaleza ideológica, cultural y psicológica que interfieren en sus prácticas. Como resultado, han desarrollado un esquema de protocolo de gestión que describe las acciones que cada profesional debe realizar. Llegaron a la conclusión de que las reuniones tenían que seguir para poner en marcha el protocolo y lograr la multidisciplinariedad en la asistencia.

Palabras clave: niño; violencia; profesionales de la salud; protocolo de tratamiento; investigación participativa.


 

 

Introdução

Pesquisadores da área da infância (Phebo, 1996; Azevedo & Guerra, 1998; Faleiros, 2000; Guerra, 2011; Azevedo, 2005) expressam preocupações com os altos índices da violência contra a criança. De acordo com Faleiros (2000), a Sociedade Internacional de Prevenção ao Abuso e Negligência na Infância (Sipani) tem divulgado ano a ano um índice muito alto de crianças vítimas de violência doméstica por dia no Brasil. Os registros desses maus tratos são diversos, sendo que 29,1% de meninos e meninas são vítimas de violência física; 16,3% de violência psicológica; 28,9% de violência sexual cometida, na grande maioria, por um membro da própria família, geralmente o pai ou o padrasto da vítima; e 25,7% sofreram de algum tipo de negligência. Os dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef/2009) salientam que 80% das agressões físicas contra crianças são causadas por parentes próximos e que, de hora em hora, morre, no mundo, uma criança queimada, torturada ou espancada pelos próprios pais.

Em relação à confiabilidade dos dados, os números desse tipo de violência são questionáveis. Os números da violência contra a criança são difíceis de serem contados por metodologias clássicas de coleta de dados. A maioria dos casos acontece em espaços privados e muitas vezes não chegam a ser notificados e computados. Os índices que apontam aumento de casos também podem ser interpretados como relacionados ao aumento da visibilidade do fenômeno. No Brasil, a visibilidade tornou-se maior a partir da vigênciada lei relacionada à proteção da criança e da veiculação dos textos legais, tais como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei nº 8.609, 1990) e as Orientações Técnicas de Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes (Conselho Nacional de Assistência Social - CNAS - e Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - Conanda -, 2009). As ações voltadas para a implementação do ECA e o processo de democratização do Brasil favoreceram a participação política de segmentos importantes da sociedade que propagaram novas ideias sobre educação e cidadania. Assim, abriu-se a possibilidade de questionamento das práticas violentas consideradas educativas na cultura brasileira e cresceu sua visibilidade.

Considera-se, portanto, que toda intervenção em relação à violência contra a criança deve assumir que a maioria dos casos não são conhecidos porque não são detectados e/ou não são notificados.

A violência contra a criança desafia saberes hegemônicos no campo da saúde. Deslandes (1999) situa essa violência em um estado doentio da pessoa, que não tem origem em ação invasiva de micro-organismo, não advém de nenhuma desordem orgânica, ou seja, aparentemente não apresenta nada que exija saberes da atuação médica e da pesquisa biológica. Essa falsa aparência é denunciada por Algeri & Souza (2006), que assinalam que, por muito tempo, considerou-se a violência um caso a ser tratado pela saúde, recebendo atenção somente quando havia lesões e traumas visíveis, ou seja, apenas os casos que necessitavam de cuidados médicos. Descuidava-se, portanto, da violência que não deixava marcas visíveis, mas que trazia consequências para a saúde física e mental do paciente, como, por exemplo, os maus-tratos emocionais, negligências físicas e emocionais e, em alguns casos, o abuso sexual.

Convencionou-se designar no Código Internacional das Doenças (CID) as consequências da violência como uma doença de "causas externas". Talvez por isso, persista uma expressiva dificuldade de promoção do tratamento adequado às crianças que sofrem violência que não deixa traços visíveis. Muitos autores, incluídos entre eles Mello Jorge (1979) e Minayo (1994), entendem que há uma imprecisão da categoria da violência como doença de "causa externa", pois essa expressão abrange uma extensão de eventos como: todo tipo de acidentes; lesões autoprovocadas; agressões; complicações médicas e cirúrgicas; e outras mais que levam à conclusão de que a violência, pela Classificação Internacional de Doenças (CID), enquadra-se como evento acidental, mas na realidade é um fator de muito maior gravidade na área de saúde. Várias são as pesquisas que confirmam essa gravidade, como é o caso dos trabalhos realizados na Organização Pan-Americana de Saúde (OPS, 1994), quando foi constatado que simplesmente tratar das lesões e dos traumas causados pela violência não é suficiente para realmente devolver a saúde ao paciente que a sofreu.

Assim, violência passa a exigir, no campo da saúde, a intervenção de uma equipe multidisciplinar e de vários setores da sociedade civil e das organizações governamentais. A intervenção multidisciplinar desejada para as vítimas da violência é apontada pela literatura (Souza, Assis & Alzuguir, 2002; Gonçalves, Ferreira & Marques, 1999) como aquela que terá como resultado final a melhoria do bem-estar psicossocial dessas vítimas, bem como o atendimento dos agressores.

Entende-se que a violência contra a criança apresenta-se de diversas formas, e que a criança agredida e o agressor necessitam de cuidados especiais e singulares para que possam participar plenamente de sua comunidade. A intervenção psicossocial na proteção infantil pode ser organizada de diferentes maneiras, dependendo das condições concretas. Defende-se que as ações preventivas e programas de acolhimento familiar devem ser prioritários.

Outra questão que precisa ser problematizada é a explicação da transmissão intergeracional dos maus-tratos e agressões de adultos contra crianças. A partir da perspectiva da aprendizagem social, tem-se explicado a possível transmissão da violência pelo argumento de que os pais e mães agressores não haviam aprendido habilidades para o manejo das condutas dos filhos. Ao contrário, haviam aprendido que a utilização do castigo físico era a única estratégia eficaz. Segundo esse modelo explicativo, as experiências infantis de maus-tratos constituiriam a predisposição para que a relação com os próprios filhos fossem inadequadas ou constituintes de sujeitos agressores. Essas explicações de repetição do ciclo dos maus-tratos não são uma evidência empírica. Desde os anos oitenta, Kaufman e Zigler (citado por Del Paúl & Madariaga, 2011) identificaram que unicamente um subgrupo dos sujeitos com história de maus-tratos na infância repetia o ciclo. Isso implica admitir que existem outros fatores que diferenciam os sujeitos com histórias de maus-tratos, que reproduzem esse comportamento, dos sujeitos que não reproduzem. Também, existem fatores que evitam que sujeitos com história de maus-tratos se constituam em agressores de seus filhos (De Paúl & Madariaga, 2011).

Outros modelos explicativos procuram compreender a questão da violência contra a criança como um fenômeno social. Trabalho como o de Gracia (citado por De Paúl & Madariaga, 2011), que relaciona a rede deficitária de apoio social dos pais como fator importante na possibilidade destes se tornarem agressores. Do ponto de vista da Psicologia Comunitária, a ausência de apoio social constitui um importante fator de risco para muitos problemas psicológicos e sociais, entre eles a violência contra a criança. Um sistema de apoio implica num padrão duradouro de vínculos sociais que desempenham importância significativa na manutenção da integridade física e psicológica das pessoas, ao promover compartilhamento de sentimentos, de pensamentos, de experiências, de informações e de ajuda material (Ornelas, 2008). O apoio social é também considerado importante ferramenta na capacitação das pessoas para enfrentar os problemas da vida diária e manejar as situações estressantes. Estudos (De Paúl & Madariaga, 2011) consideram que o mau trato infantil, em muitos casos, deriva de uma incapacidade para manejar as situações estressantes. A incapacidade de manejar o nível de estresse experimentado e a qualidade da rede de suporte social do sujeito agressor explicariam muitos casos de violência de adultos contra crianças (De Paúl & Madariaga, 2011).

Ainda temos que considerar os impactos provenientes das condições extremamente adversas e injustas de sociedades (tais como a má distribuição de renda, elevadas taxas de desemprego e pobreza) na produção de vidas segregadas e acesso aos bens materiais, aos bens simbólicos, à saúde, à educação e às condições mínimas para que as pessoas possam ser integradas à sua comunidade. Nesse contexto, percebe-se o surgimento de setores da população que se tornam socialmente mais vulneráveis a sofrerem violência e a se tornarem agressores.

Aqui também é necessário problematizar e ter clareza de que pobreza e padrões diferentes de arranjos familiares não são justificativas para a retirada definitiva da criança do convívio familiar em caso de violência. Como lembra Moreira (2014), a retirada das crianças e dos adolescentes de casa é para protegê-los dos riscos imediatos, e precisa ser compreendida como uma estratégia para que as relações familiares sejam trabalhadas e revistas.

As dificuldades relatadas nos artigos científicos relacionados anteriormente também são enfrentadas pelos profissionais de saúde, no momento do atendimento às crianças vitimas de violência.

Nunes, Sarti e Ohara (2009) realizaram um estudo de caso para compreender o modo como os profissionais de saúde abordam as situações envolvidas na violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente. Concluíram que os profissionais de saúde frequentemente recriminam e priorizam a punição em lugar do atendimento das vítimas. Perceberam, ainda, que a estrutura de trabalho dos equipamentos de saúde não permite que as vítimas expressem, no atendimento, suas reações e seus sentimentos. O modo de abordar as famílias, submetidas a uma situação de estresse causada pela vivência da violência, pode configurar outro ato violento para com elas. Para as autoras referenciadas, a maneira como é realizada a maioria das abordagens reflete a falta de integração entre os diferentes profissionais e os diversos setores responsáveis no enfrentamento dos casos.

O trabalho de Thomazine, Oliveira e Viera (2009) identificou de que forma acontece o atendimento de enfermagem às crianças e aos adolescentes vítimas de violência intrafamiliar nos serviços de pronto atendimento de instituições de saúde conveniadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), no município de Cascavel-Paraná, no que diz respeito à identificação dos casos e às medidas de notificação. Os resultados da pesquisa mostraram que os enfermeiros conseguiam suspeitar e identificar casos de violência intrafamiliar no atendimento de criançasvitimadas, porém poucos realizaram a notificação, mesmo sendo um dever legal e ético. Para as autoras, é necessário implementar um protocolo de atendimento que defina claramente o papel de cada membro, instituição, órgão governamental, setor da sociedade civil e profissional no atendimento e na prevenção da violência, construindo-se uma rede hierarquizada, articulada e consecutiva de ações, além de capacitar continuadamente a equipe e promover possíveis mudanças na rotina, estrutura e no ambiente de atendimento.

Outra contribuição é o artigo de Gonçalves e Ferreira (2002). No trabalho referenciado, discutiram as principais dificuldades enfrentadas pelos profissionais de saúde e sugeriram possíveis soluções a serem aplicadas no caso brasileiro. A pesquisa concluiu que há necessidade de esclarecimento da noção legal de maus-tratos, da concepção de suspeita, da preparação de manuais técnicos de orientação, de melhoria da infraestrutura de serviços e da realização de outros estudos sobre as consequências do ato de notificar, especialmente sobre a concepção de justiça que a notificação transmite à família brasileira.

Chega-se à conclusão que, em relação à violência contra a criança, são muitos os desafios. O conteúdo deste trabalho centra-se na gestão do atendimento às crianças, vítimas de violência que chegam a um hospital infantil. Narra um processo de intervenção de caráter participativo entre profissionais de saúde que teve como objetivo problematizar a prática de atendimento às crianças e aos seus acompanhantes, tendo como meta a criação de um protocolo de atendimento adequado às necessidades da prestação do serviço. Neste artigo, pretende-se demonstrar como a metodologia participativa contribuiu para que os diferentes profissionais de saúde percebessem a necessidade de integrar suas ações e garantir um espaço na rotina de trabalho para continuarem a troca de experiências e a aplicação do protocolo de atendimento.

A escolha de uma intervenção a partir do enfoque da metodologia participativa está ancorada em alguns pressupostos de "como se entende o processo do aprender" assumidos nesse trabalho. Aprender implica participar de uma comunidade e imprimir significado às suas experiências no mundo. Comunidade é a configuração social da qual participamos, desenvolvendo nossas atividades em interação e interdependência com outras pessoas (Norbert Elias, 1980).

Partilha-se da concepção de Lave e Wenger (citado por Matos, 2005) de que a aprendizagem é "um aspecto integral e inseparável da prática social" (p. 13). O conceito de prática significa fazer algo em um contexto histórico e social que confere uma estrutura e um significado ao que fazemos. Assim, prática é sempre social. Segundo Wenger (2001):

O conceito de prática inclui tanto aspectos explícitos como implícitos. Inclui o que se diz e o que se cala, o que se apresenta e o que se supõe. Inclui a linguagem, os instrumentos, os documentos, as imagens, os símbolos, os papeis definidos, os critérios específicos, os procedimentos codificados, as regulações e os contratos que as diversas práticas determinam para uma variedade de propósitos. Também inclui todas as relações implícitas, as convenções tácitas, os sinais sutis, as normas não escritas, as instituições reconhecíveis, as percepções específicas, as sensibilidades afinadas, as compreensões encarnadas, os pressupostos subjacentes e as noções compartilhadas da realidade que, na sua maior parte nunca se chegam a expressar, são sinais inequívocos da afiliação a uma comunidade de prática e são fundamentais para o êxito de suas empresas (p. 71).

Nessa perspectiva, a aprendizagem não é uma atividade separada da vida cotidiana. Ela faz parte da experiência e é produzida na participação das pessoas no mundo.

Segundo Matos (2005):

Numa visão de natureza sociocultural, a aprendizagem ocorre num contexto social, a cognição é partilhada socialmente entre os membros de uma comunidade e o conhecimento existe no seio das comunidades em que as pessoas participam. Esta visão da aprendizagem como um fenômeno situado e construído socialmente representa uma mudança fundamental na forma de analisar a aprendizagem e tem potencialidades importantes nos modos como é encarada a aprendizagem [...] ( p. 67).

Esses pressupostos orientaram a metodologia da nossa intervenção no hospital, que teve como objetivo discutir como os profissionais de saúde desenvolviam suas práticas com a criança vítima e, assim, contribuir para melhorar o atendimento a essas crianças e seus cuidadores e atender os preceitos da cidadania.

No Brasil, a concepção de criança como cidadã, sujeito de direitos, é homologada como lei em julho de 1990, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O ECA dispõe sobre a proteção integral da criança, ou seja, estabelece o que a criança, o adolescente, os pais ou responsáveis, a comunidade, as instituições e o Estado podem ou não, devem ou não fazer.

Como se pode perceber, o ECA aponta alguns responsáveis específicos pela notificação dos maus-tratos, que assim são listados devido à sua atuação perante a sociedade e seu dever profissional de assegurar o tratamento digno à criança e ao adolescente. Dessa forma, notificar as autoridades tidas como competentes - Conselho Tutelar, Ministério Público, Poder Judiciário e Polícia- é exercício de cidadania, sendo incumbido a todos esse dever que decorre da proteção integral à infância e à juventude garantida pelo ECA.

O ECA prevê ainda a implantação de Redes de Proteção Integral da Criança e do Adolescente (RPICA). Essas redes são políticas afirmativas construídas e alicerçadas em objetivos comuns e no trabalho em parceria com o Estado, com a sociedade em geral e com a família. A rede de serviços é entendida como a atuação articulada entre diversas instituições, organizações e grupos que já realizam ou possam realizar ações voltadas para a erradicação de um problema. No caso desta rede, ela visa ao combate à violência, à melhoria na qualidade do atendimento e ao desenvolvimento de estratégias de prevenção, com base em um trabalho coletivo que deve otimizar as competências dos participantes, estabelecer fluxos e dinamizar ações que vão possibilitar a orientação sobre o tema e o encaminhamento das vítimas aos serviços. A rede deve ser democrática e informativa, caso contrário, ela se desfaz (Oliveira, 2001).

A rede visa sensibilizar, por meio de informações, os atores envolvidos - pais ou responsáveis, profissionais e mesmo as crianças - para que possam atuar ou ajudar os envolvidos a tomar decisões nas diferentes etapas da prevenção: identificação e reconhecimento dos sinais de risco, notificação, acompanhamento transdisciplinar da criança, do adolescente e da família, incluindo, se possível, o agressor e fornecendo apoio legal (Oliveira, 2001). De acordo com Brasil (2010, p. 82-83), a estruturação da atenção integral à criança e a sua família em rede é um passo importante para assegurar o cuidado e a proteção social desse público.

 

Contexto da Pesquisa Participante

O trabalho foi desenvolvido em um hospital localizado em um município de médio porte do interior do Estado do Paraná que atende crianças de 0 a 12 anos, e onde são realizados, em média, mensalmente, 250 internações, 3.000 consultas, 4.000 exames laboratoriais e 90 cirurgias. O quadro funcional tem cerca de 160 funcionários.

O projeto desta pesquisa foi submetido à análise do Comitê de Ética em Pesquisa (Coep) da Sociedade Evangélica Beneficente de Curitiba (PR), tendo sido aprovado por meio do parecer de número 5.433/11. Caracteriza-se como pesquisa participante por visar atender às necessidades do homem de atuação, criação, expressão, realização, e autoafirmação, quando contribui e se percebe como ator da história. Entende-se que um processo participativo implica numa aprendizagem mútua, envolvendo todos os que possam contribuir, seja conceitualmente, seja pela sua experiência de vida (Haguette, 1999).

A proposta de fazer uma pesquisa-intervenção com os profissionais de saúde do hospital surgiu da observação de que o atendimento não estava de acordo com as necessidades do momento traumático vivenciado pela criança e seus familiares. Observou-se que não existia um padrão específico no atendimento dessas crianças. Nem sempre se cumpriam as determinações legais e cada profissional desenvolvia suas funções de forma independente. O que se percebeu foi um trabalho não integrado em que as ações de um profissional não se conectavam e não davam continuidade às do outro. Ficou evidente que não havia interação entre os profissionais nem capacitação atualizada de acordo com os novos desafios colocados pela realidade. O que se presenciou foi uma prática individualizada, fragmentada, descompromissada com as ações exigidas pelas políticas voltadas à criança. Observou-se que os profissionais atendiam prioritariamente à saúde física e descuidavam dos aspectos psicossociais e jurídicos. Isso levava a uma tomada de decisão equivocada que continuava a produzir danos à criança, como a volta à situação de vulnerabilidade e ao sofrimento psíquico.

Após essa observação inicial, apresentou-se à direção do hospital a proposta de uma intervenção psicossocial com os profissionais de saúde que desenvolvem suas atividades de atendimento às crianças vítimas de violências. O objetivo principal foi criar um espaço para problematizar suas atuações com a criança vítima de violência e a seus familiares, espaço que possibilitasse a reflexão conjunta em que as diferentes percepções e experiências pudessem ser compartilhadas, integradas e dirigidas para a formação de uma equipe interdisciplinar.

As questões geradoras da problematização consistiram: a) no debate sobre as ações intervencionistas realizadas pelos profissionais de saúde durante o expediente de trabalho quando são deparados com situações de violência contra a criança; b) nos conceitos de violência que orientam suas práticas; c) nas formas de atuação desenvolvidas pelos profissionais em questão; d) nas ações intervencionistas realizadas nos casos de violência contra a criança e seus cuidadores.

O enfoque do trabalho se orientou pelos princípios da Psicologia Social Comunitária no sentido de fortalecimento dos profissionais de saúde envolvidos nos atendimentos. Compreende-se que o aumento de autonomia e a constituição do sentimento de autodeterminação passam, necessariamente, pela participação dos profissionais na organização do seu trabalho. Assim, mais do que obter resultados imediatos, tem-se a preocupação com o processo de participação-reflexão e implicação das pessoas que serão os responsáveis pelo trabalho.

O enfoque participativo aconteceu em encontros de grupo realizados no próprio hospital infantil, respeitando-se a disponibilidade de tempo dos profissionais. Os profissionais que atuam no hospital no atendimento à criança vítima de violência são: recepcionista, enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares de enfermagem (equipe de enfermagem), médicos, assistente social, psicólogo, fisioterapeuta, musicoterapeuta e terapeuta ocupacional. Esses profissionais foram primeiro convidados a participar de uma entrevista semiestruturada, com questões abertas. A entrevista foi realizada com o objetivo tanto de conhecer qual a compreensão de saúde sobre as questões envolvidas no trabalho com as crianças vítimas de violência como de motivá-los e convidá-los para a participação do grupo de discussão sobre o atendimento no hospital.

A análise das entrevistas revelou que todos os profissionais entrevistados demonstraram preocupação com aspectos subjetivos e emocionais da violência. A maioria conceituou violência como algo que machuca e que irá afetar o futuro da vítima. Muitos relataram que a violência infantil é o descaso e falta de cuidado dos pais e dos familiares, como, a falta de cuidado higiênico e de alimentação. Pode-se observar na fala dos profissionais de saúde, a violência física, psicológica (emocional), sexual e principalmente a negligência.

As falas dos profissionais revelaram certa fragilidade do atendimento à criança vítima de maus-tratos, visto que não notificam os casos de violência aos órgãos competentes. A falha em notificar compromete todo o procedimento, uma vez que a criança fica sem acompanhamento e vulnerável a continuar sofrendo violência. Outros pontos identificados na fala dos profissionais foram a precariedade das condições de trabalho que refletem na qualidade do serviço e a falta de proteção para denunciar. Revelaram inúmeras dificuldades para lidar com a questão da violência, como o medo de se envolver com pessoas criminosas. Sentem a falta de guarida nas unidades de saúde e a falta de comprometimento dos familiares. Por se sentirem ameaçados, os profissionais acabavam se omitindo no envolvimento mais decisivo com os casos de violência detectados. Pode-se ainda sugerir que um dos motivos da dificuldade de denúncia seria a reprodução de padrões culturais da população em que se aceita a punição física como uma prática educativa.

Eu morro de vontade (risos), mas não... a gente é um pouco egoísta. A gente fala que acontece na casa do fulano, do cicrano, mas isso acontece na família da gente... Tem vários tipos de agressão... por exemplo, assim... o fato de você não dá um banho na criança na hora certa, não dá a alimentação na hora certa, deixá em casa sozinha... com quem não é o próprio pai e a mãe já é um tipo de violência, né? Você priva a criança de lazer, quando bate na criança pra educá, dizendo que é para ela aprende a não fazê mais isso. Então, tem muita coisa você tem na tua família então como que você vai... denuncia? Como que você vai tomá partido contra a tua própria família? Você fica tipo entre a cruz e a espada (E19).

O depoimento acima de uma participante do encontro revela a propagação da cultura da educação pela violência física. Essa prática imperou nas famílias brasileiras durante séculos e ainda podemos ver que ela permanece. Segundo Habigzang e Koller (2012, p. 14), "não é raro que a agressão física conduza à morte de crianças e adolescentes. Estas agressões são infligidas às crianças, geralmente, como forma de castigar e educar". A violência era tida como uma maneira correta de educar a criança. Culturalmente surravam a criança para que ela aprendesse a não fazer mais alguma coisa que o adulto não queria. Observa-se nas falas dos entrevistados que eles não denunciam porque essa prática ainda está muito presente em suas famílias. Expressam que não denunciam por sentirem medo das consequências desse envolvimento, pois, não há, no País, uma efetiva proteção ao denunciante. Grande parte dos profissionais de saúde acaba não denunciando os maus-tratos contra a criança, preferindo não se envolver, não denunciando os agressores, abafando, dessa forma, a violência existente no País. Esses podem ser alguns dos fatores que impedem a maior visibilidade e encobrem a violência contra a criança no Brasil.

A fala dos entrevistados revela que o enfrentamento da violência contra a criança e a falta de um acompanhamento adequado dos casos é resultado do precário conhecimento e/ou fortalecimento para identificação dos casos de violência e principalmente a falta de uma rede de apoio efetiva para proteção da criança, das famílias e do profissional de saúde.

 

Os Encontros

As entrevistas indicaram que os profissionais do hospital estavam disponíveis e sentiam necessidade de um espaço para dialogar sobre os problemas que enfrentavam no atendimento às crianças vítimas de violência. Assim, foram convidados a participar de encontros realizados no próprio hospital. Foram realizados seis encontros com duração de duas horas cada. Nesses encontros, pediu-se que os profissionais expusessem os seus conhecimentos sobre as leis, normatizações, políticas públicas e as redes de apoio social destinadas às crianças vítimas de violência.

 

Quadro

 

Necessidade de padronizar o atendimento à criança vítima de violência

No primeiro encontro, a pesquisadora informou que a análise das entrevistas revelou a falta de um trabalho de equipe. Propôs a realização de encontros de grupo com objetivo de refletir sobre as ações desenvolvidas no atendimento às crianças. Dessa reflexão nasceu a necessidade de padronizar o atendimento à criança vítima de violência.

As falas dos participantes revelaram a falta de trabalho em equipe e a identificação da necessidade da construção de um protocolo. "É importante o trabalho em equipe desde a chegada da criança para ir verificando como evolui o caso. Quantos casos passaram por aqui e nada foi feito, os médicos têm medo. O protocolo entrará na rotina" (P1). "Toda equipe trabalhando junto, cada um com o seu olhar. Todos serão acionados, irão pesquisar enquanto a criança estiver aqui no hospital. A partir dessa pesquisa, virá um protocolo e todos terão que seguir, vira rotina" (P2). "Na realidade a equipe fica presa a resolver apenas os problemas clínicos e isso, muitas vezes, impede os demais profissionais de darem um atendimento com maior qualidade e o paciente acaba voltando. Por isso eu concordo que um protocolo seria muito bom" (P3).

Nesse encontro, tendo como referência as orientações de Turra, Almeida, Doca e Costa Junior (2012), a pesquisadora informou que o protocolo é o termo que se refere a um modo de atuar, de abordar, de pensar a assistência à criança vítima de violência. O protocolo precisa "ser coeso, global, inclusivo, humanizado, maleável e adaptável às circunstâncias" (p. 501). Por esse motivo, um protocolo não pode ser imposto por técnicos que sejam de fora do serviço a que ele se propõe. Um protocolo de atendimento precisa ter sentido prático, ser coerente com as bases filosóficas de atuação de cada profissional e ser ético. Assim, é uma construção dos sujeitos que desenvolvem as ações a que o protocolo se refere. Nas palavras do referido autor, "o protocolo imprime à assistência o caráter acolhedor, compreensivo, receptivo, de consideração primordial e atenção refinada à pessoa em sofrimento" (2012, p. 501). O protocolo deve ter como diretriz a busca pelo atendimento integral, a saúde da criança, o diálogo contínuo com a equipe de saúde, a interface de ações e a construção permanente de interdisciplinaridade, tendo a criança em tratamento como centro (Turra et al., 2012 , p. 503).

Os participantes do grupo deduziram que, para o enfrentamento das dificuldades encontradas por uma equipe multidisciplinar, a construção da proposta de protocolo de atendimento somente funcionaria se fosse elaborado por eles, pois são eles que recebem e atendem a criança vitimada. Pouco valor têm protocolos que vêm prontos e acabados, pois são estanques, feitos por pessoas que estão de fora do serviço, que não conhecem a rotina e os problemas de cada instituição.

Relatos de vários pesquisadores, citando Deslandes (1999), Turra et al. (2012), Gebara e Lourenço (2008) entre outros, têm demonstrado que esse tipo de protocolo não funciona, ficando somente no papel. Nesse primeiro encontro, foi decidido pelo grupo elaborar um protocolo de atendimento padrão à criança vítima de violência, voltado à realidade do hospital.

Destacou-se que, para a funcionalidade de um protocolo, há necessidade de idealizar um processo que deve ser sempre revisto, avaliado e aprimorado pela equipe multidisciplinar, pois, para haver uma integração coerente com as necessidades do atendimento, todos os envolvidos são importantes e devem ser ouvidos. A fala de dois participantes são indicadores que revelam a expectativa gerada na primeira reunião: "Com o protocolo, vai ser possível acionar o Conselho Tutelar, outras instituições, e com o trabalho em equipe tem mais apoio" (P4)." Toda a equipe trabalhando junto não fica deixando espaço para que o caso não fique resolvido. Teve um caso recente que desde a recepção todos se uniram para resolver" (P5). Nessa mesma perspectiva, um dos profissionais presentes (P9) salienta a importância do seu trabalho para que a criança supere seus traumas. Expressa que entende que sua ação está vinculada ao trabalho em conjunto, respeitando o olhar de cada profissional.

Outro participante do encontro (P6) ilustra as discussões com um caso de violência contra uma criança que ocorreu recentemente. Relata que (P6) a médica que acompanhou o caso não teve medo e a equipe se uniu e encaminhou denúncia às autoridades responsáveis. Finaliza sua fala comentando que esse foi apenas um caso, mas que com certeza outros casos não foram notificados. E que, se houvesse um protocolo, essa tomada de decisão e encaminhamento seria uma rotina do hospital e todos teriam que cumpri-la, o que melhoraria o atendimento e o acompanhamento às crianças vítimas de violência.

Em relação à previsão de como seria a padronização de um trabalho articulado entre os setores e os profissionais que prestam atendimento, a psicóloga se posiciona dizendo que: "as responsabilidades serão divididas, pois sem uma padronização, os encaminhamentos são muito morosos e isso faz com que os casos sejam reincidentes. A padronização de um protocolo pode acabar com tantos procedimentos errados" (P5). Outra profissional (P3) destaca que, se houvesse um protocolo de atendimento, não haveria mais casos como o acontecido recentemente no hospital. Lembra de um caso em que o médico liberou, sem notificar o caso, uma criança vítima de violência. Indignada, menciona que "nenhuma providência foi tomada". Continua relatando que "após uns dias esta mesma criança voltou ao hospital tendo sofrido outra violência, mas desta vez foi encaminhada ao Conselho Tutelar que decidiu pelo distanciamento da criança da casa em que morava e sua ida para um abrigo onde estaria melhor protegida" (P8). De acordo com outra participante (P4), "a partir do momento em que realmente existir a padronização de um protocolo de atendimento, toda a equipe terá que segui-lo, pois será uma rotina do hospital".

Os profissionais se julgam despreparados para o trato com a criança vítima de violência

As falas dos profissionais revelam que se julgam despreparados para o trato com a criança vítima de violência. No segundo momento desse 1º encontro, a pesquisadora e também moderadora do grupo apresentou os resultados da pesquisa que tinha realizado sobre as atividades e ações desenvolvidas por cada profissional do hospital.

Logo no início desse encontro, a recepcionista do hospital falou: "Os funcionários da recepção não estão preparados para detectar um quadro de violência, no caso de terem que colocar no cadastro". Mencionou ainda a preocupação sobre o sigilo dos atendimentos.

Os participantes reafirmam a importância dos encontros para que todos os profissionais aprofundem conhecimento sobre o fenômeno da violência, e adquiram as condições para que detectem e façam os devidos encaminhamentos.

O cotidiano das ações no atendimento à violência contra a criança

No segundo encontro, o técnico de enfermagem descreveu o cotidiano de suas atribuições relacionadas à violência contra a criança. Mencionou um caso de violência sexual contra uma criança com deficiência física e mental em que foi feita denúncia. A criança, por meio de brincadeiras, contou os atos sofridos e, por gestos (colocando as mãos no rosto), relatava que estava com vergonha.

Nesse encontro, foi citada a importância da família para prevenir a violência, especialmente a sexual. Também foram discutidas as ações intervencionistas necessárias para o atendimento e o recolhimento de informações sobre a família e a situação da criança: saúde, escola, proteção, etc. Lembraram da necessidade da troca de informações entre os profissionais para evitar que os casos de violência sejam ignorados. Identificaram que uma das razões das ações não serem eficazes é a falta de comunicados entre todos os profissionais, (prática recorrente até o momento no hospital pesquisado). Mencionaram a falta de conhecimento para abordar adequadamente a vítima e a família.

Nesse encontro, foram apresentadas as ações intervencionistas que cada profissional desenvolvia atualmente e foi solicitado que cada um se posicionasse de forma crítica diante de suas ações. Colocou-se em pauta a sensibilização dos casos, que proporcionam paciência e cuidado no atendimento para não aumentar o traumatismo da criança violentada e, além disso, adquirir sua confiança para relatar o fato. Foi relatado que, entre os técnicos de enfermagem, muitas situações de violência são percebidas, mas não são informadas para os outros profissionais, pois não há orientação quanto à abordagem das vítimas de violência dentro do hospital. Assim, o profissional se depara com uma série de desafios e não consegue dar encaminhamento adequado. Por exemplo, os casos em que as mães ocultam a violência contra os filhos. Os técnicos de enfermagem lembram que muitos casos de violência são identificados por eles e não pelos médicos. Isso se deve ao fato de que alguns médicos não tocam o corpo da criança, contentando-se em diagnosticar pelas narrativas das mães.

Na atividade de levantamento das ações que, na opinião dos participantes desse encontro, não poderiam faltar no caso de atendimento às crianças vítimas de violência, as sugestões apresentadas foram: a) intensificação do trabalho da psicóloga para superar os desafios colocados pelo grande número de atendimentos no hospital e pela diferença do seu trabalho em relação ao da equipe de enfermagem; b) superação das dificuldades trazidas pela falta de tempo para brincar com as crianças e dar a atenção que elas requerem; c) alocação de estagiários em todas as áreas que são necessárias para o atendimento à criança vítima de violência, com a finalidade de facilitar as ações intervencionistas.

Todos os participantes demonstraram sensibilidade e conhecimento tácito sobre como devem abordar a violência contra a criança. Reafirmam que estão de acordo com a necessidade de alcançarem um trabalho integrado e articulado por uma equipe multidisciplinar. Lembram, entretanto, que, para um funcionamento adequado das ações, é necessário um quadro maior de funcionários. Salientam que a tentativa de instituir o uso de um protocolo de atendimento pode contribuir para unificar as ações. No final do encontro, falaram que sentiram alívio ao revelar as situações que causam sofrimento, principalmente aquelas em que os encaminhamentos cabíveis não foram verificados nos casos do fenômeno da violência contra a criança.

Dramatização dos casos de violência e trabalho preventivo nas ações contra a violência

Nesse encontro, foi observado que a criança que convive com a violência em seu lar acha normal o que ocorre com ela. Dessa forma, seria importante trabalhar com essa questão de uma forma lúdica, por meio de teatro, para expor à criança que a violência não é algo normal e que ela pode buscar meios para mudar essa situação. "A criança que convive com a violência, acha que é normal. Se fizer teatro pra mostrar que a violência não é uma coisa normal, ela pode crescer pensando que pode mudar essa realidade, ela vai se abrir, contar o que está acontecendo com ela" (P18).

A dramatização de um caso de violência contra crianças

No segundo momento desse encontro, foi sugerida a realização de uma dramatização sobre um caso de violência contra a criança para melhor compreensão das ações que possam ser desenvolvidas com a criança vítima de violência. As técnicas de enfermagem se dispuseram a realizar a dramatização. Foi dramatizado um caso referente à violência sexual, iniciando pela chegada da família com a criança no hospital, sendo atendida pela auxiliar administrativa (recepcionista) que fez o encaminhamento para a equipe de enfermagem e esta encaminhou à consulta médica.

Foi dramatizado um caso real de violência em que a mãe chegou ao hospital com a queixa que a criança havia "dado mau jeito" e a técnica de enfermagem, na hora que examinou a criança, levantou a hipótese de que havia ocorrido uma agressão. Comunicou para a enfermeira, mas não obteve resposta. Posteriormente, insistiu com o médico para que solicitasse Raios X da parte lesada, mas ele pareceu não perceber a necessidade; contudo, ela não desistiu e conseguiu que fosse feito o exame, tendo sido diagnosticada a fratura de fêmur. Quando foi revelado o resultado do exame, a mãe contou que a criança havia sido agredida pelo padrasto.

A reconstrução de um caso concreto possibilitou que dimensões e problemas fossem revelados e que o atendimento habitual do hospital fosse problematizado. Concluiu-se que a sensibilização da equipe de enfermagem não é suficiente para a tomada de decisões relacionadas à verificação da violência e que cada situação que chega ao hospital é singular, cada uma é diferente da outra. Foi observado que a equipe que atende a criança vítima de violência deve ser acionada imediatamente após a entrada da criança no hospital, para que as medidas cabíveis sejam tomadas adequadamente.

Os participantes do encontro concluíram que, para ocorrer um atendimento satisfatório, todos deverão passar por treinamento, para que assim adquiram um olhar diferenciado em relação à criança vítima de violência.

A psicóloga reforçou que a equipe de enfermagem deveria sempre acionar o setor de psicologia e de serviço social para atender os casos de violência. A assistente social lembrou que para que isso ocorra, a equipe deverá ser maior. Acrescentou, também, a importância de se obter um retorno dos casos de violência atendidos no hospital, como cobrar do Poder Judiciário para que as ações sejam mais efetivas e que os atendimentos sejam urgentes. As medidas devem ser mais extremas para apressar o processo no Ministério Público.

Ao término da dramatização, verificou-se a necessidade de uma preparação da equipe para atender a vítima de violência e, principalmente, da área médica, que demonstra relutância em se envolver e se integrar com os outros profissionais. Concluiu-se que as ações intervencionistas, seguindo um protocolo padrão, são essenciais para que ocorra um atendimento com mais qualidade e transparência.

Desde o primeiro encontro, verificou-se uma grande expectativa em relação à construção e implantação do protocolo. A equipe de enfermagem enfatizou, em vários momentos, que esses procedimentos fortaleceriam a equipe, fazendo com que as responsabilidades fossem divididas entre todos os envolvidos no processo e geraria uma união na busca de solucionar os problemas no atendimento. O pedido era sempre por um protocolo que fosse simples, realista e que de fato funcionasse.

Avaliou-se que a preparação para a implantação do protocolo estava gerando motivação para a busca de conhecimento em relação à violência infantil. Os encontros possibilitaram que os profissionais falassem sobre suas dificuldades, que compartilhassem suas experiências e que se sentissem os verdadeiros responsáveis pelo enfrentamento dos problemas.

Ações Intervencionistas dos Profissionais de Saúde

No primeiro momento do quarto encontro, foi realizado o acolhimento da equipe, dando as boas vindas àqueles que estavam comparecendo pela primeira vez. Devido à demanda do hospital, não foi possível a participação de toda a equipe em todos os encontros.

Em seguida, foi realizada a leitura das ações intervencionistas montada com a equipe de enfermagem com o objetivo do delineamento do protocolo. Percebe-se que, na maioria das situações, a atuação do profissional de enfermagem é solitária, pois quando deveria ocorrer uma ação multiprofissional, nem sempre há participação dos outros profissionais, como o da psicologia, do serviço social, da terapia ocupacional, que dificilmente estão presentes no momento do atendimento à vítima. A carga horária desses profissionais é de 6 horas diárias e os demais, principalmente os da área da enfermagem, fazem 12 horas. Constatou-se que, em muitos casos de violência contra a criança, alguns profissionais nem ficam sabendo do caso, não ocorrendo, portanto, uma ação articulada entre eles.

Construção do Protocolo de Atendimento (Fluxograma)

No primeiro momento do quinto encontro, retomaram-se os encontros anteriores, enfatizou-se a importância da troca de experiência e o quanto a própria pesquisadora estava aprendendo por meio dos encontros. Os participantes também se pronunciaram, valorizando o trabalho de grupo desenvolvido. Disseram que isso nunca havia acontecido no hospital. "Eu acho que esses encontros estão me fazendo repensar e aprender muito sobre a violência contra a criança. Quem não está participando, está perdendo a oportunidade de aprender" (P6). "Realmente é muito bom essa troca que tem acontecido. Pena que toda a equipe não esteja participando, mas por ser um hospital é difícil contar com a participação de todos" (P12).

A partir dessas avaliações sobre o andamento do trabalho, a pesquisadora propôs aos participantes a construção coletiva do protocolo (fluxograma) de atendimento à criança. Formaram-se grupos para que, a partir do discutido nos encontros e das experiências de cada um, formulassem como deveriam ser os encaminhamentos e procedimentos de atendimento da criança com suspeita ou confirmação de maus-tratos. Nessa reunião, foi realizado um esboço dos procedimentos contendo as ações de cada profissional.

Apresentação do Protocolo de Atendimento (Fluxograma).

No último encontro, a pesquisadora apresentou o esboço do protocolo (fluxograma). As ações foram apresentadas e foram perguntados quais profissionais deveriam ficar responsáveis por cada ação. A pesquisadora levantou questões a respeito das funções que cada profissional deveria desempenhar a partir do momento em que o hospital adotasse o protocolo de atendimento, por exemplo, a quem compete fazer a notificação dos casos de violência contra a criança? Um membro do grupo responde que é a enfermeira (P16). "É a enfermeira quem faz a notificação, porque é ela que faz o exame físico e passa as informações para a vigilância epidemiológica" (P16). Todos os presentes aprovaram o protocolo de atendimento.

 

Considerações Finais

Durante o processo de pesquisa, surgiu a proposta de construção de um protocolo de atendimento às crianças vítimas de violência. Um esboço do protocolo foi elaborado ao longo dos encontros e resultou em um fluxograma que indica a ordem de encaminhamento que a vítima percorre no processo de atendimento à violência sofrida, esclarecendo-se à parte as ações intervencionistas que cabem a cada profissional realizar.

Destaca-se que o protocolo é direcionado para o atendimento específico neste hospital. Buscou-se construir um modelo de protocolo funcional, prático, realista e aplicável. Daí a importância de que as ações fossem elaboradas por aqueles que convivem com os problemas das crianças atendidas, que estão habituados com a rotina e os problemas do hospital.

A pesquisa participante revelou ser uma metodologia com grande potencial para desenvolver a integração de equipes multidisciplinares nas instituições de saúde. Nessa modalidade de pesquisa, por meio da ação e participação dos atores envolvidos com a ampliação e mudança de significados, é possível a construção de conhecimentos e modificação de práticas consolidadas nessas instituições.

A pesquisa participante favoreceu a criação de um espaço democrático que interveio na ação dos profissionais de saúde. As discussões em grupo favoreceram a construção coletiva de um mecanismo de atendimento - protocolo de atendimento -, cujo intuito foi melhorar a assistência à criança vítima de violência.

O procedimento participativo dos encontros também possibilitou que o objeto - a forma de atendimento às crianças vítimas de violência - fosse modificado a partir da problematização, da expressão de diferentes pontos de vista, da revelação de conhecimentos tácitos e da aprendizagem e desenvolvimento das pessoas envolvidas no atendimento das crianças. Os participantes consideram o diálogo e a colaboração de todos fundamentais para a identificação dos problemas que todos vivenciavam diariamente no hospital.

O conteúdo principal dos encontros foi o relato das práticas desenvolvidas pelos profissionais. A introdução de conceitos e fundamentos teóricos decorreu tão somente das reflexões sobre a prática. Assim, a teoria foi introduzida para possibilitar a abertura para outras práticas possíveis. Desse modo, a moderadora (pesquisadora) dos encontros buscou revelar contradições e confrontá-las com os sujeitos praticantes, para possibilitar a transformação, o desenvolvimento e a inovação, pela construção de novos procedimentos com o propósito de resolver os problemas identificados.

Dentre as limitações deste estudo, destaca-se a dificuldade de fazer com que alguns profissionais, principalmente os médicos, participassem dos encontros. Dessa forma, sugere-se que sejam promovidos novos encontros entre os profissionais de saúde para que a ação multidisciplinar se concretize. Muitas dificuldades apareceram ao longo do desenvolvimento da intervenção. Práticas de poder, em vários momentos, dificultaram a comunicação entre os diferentes profissionais. Os profissionais de saúde com cursos superiores revelaram em diversas situações dificuldade para aceitar os conhecimentos tácitos expressos pelos outros profissionais com grau de instrução formal inferior. Importante revelar que nenhum médico participou dos encontros. Esse fato provavelmente é um fator que pode impedir a continuidade das reuniões para a construção de uma verdadeira equipe multidisciplinar e, principalmente, ser um impedimento para a consolidação da aplicação do esboço de protocolo elaborado pelos outros profissionais.

 

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Recebido em: 21/07/2014
Aprovado em: 30/04/2015

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