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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versión On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.1 São João del-Rei enero/abr. 2016

 

EDITORIAL

 

O PesquisarCOM e o feminino na ciência

 

 

Laura Cristina de Toledo QuadrosI; Márcia Oliveira MoraesII; Maria de Fátima Aranha de Queiroz e MeloIII; Marília Novais da Mata MachadoIV; Sheila Ferreira MirandaV

Iemail: lauractq@gmail.com
IIe-mail: - mazamoraes@gmail.com
IIIe-mail:fatimaqueiroz.ufsj@gmail.com
IVe-mail:marilianmm@gmail.com
Ve-mail: sheilaze@gmail.com

 

 

Parte I.

Polifonia de uma experiência no ESOCITE

É injusto recompensar uma pessoa por ter sentido tanto prazer, durante anos, solicitando ao pé de milho que resolvesse problemas específicos e observando suas respostas. (Declaração de Barbara McClintock ao receber o prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1983 )

O presente número temático é fruto da proposição de um Grupo de Trabalho (GT) no VI Simpósio Nacional de Ciência Tecnologia e Sociedade - ESOCITE - realizado no Rio de Janeiro em outubro de 2015. Nesta ocasião inscrevemos a proposta para um GT intitulada: O PesquisarCOM e o feminino na ciência. Na descrição da referida proposta, um dos pontos que ressaltamos foi a intenção de discutir políticas de pesquisa afinadas com conhecimentos locais, situados e encarnados, referenciados numa articulação entre as teorias feministas e os estudos CTS . A principal pista que, a nosso ver, foi reconhecida e seguida tanto pelos que se interessaram em inscrever seus trabalhos neste GT quanto pelos que foram assistir as apresentações e participar das discussões, foi a ideia de um modo peculiar de fazer ciência, um modo nomeado por Isabelle Stengers como solitário (1989), distinguindo o pesquisador que age como caçador de matilha, cujo princípio é a rapidez e a busca das generalizações, do pesquisador que age como caçador solitário, disposto a esperar, a conhecer o tempo e as singularidades do outro. Esse modo caçador solitário é, para Stengers, uma afirmação da ciência no feminino que, ainda segundo a autora, não se reduz a uma questão de gênero mas constitui um agenciamento de processos e procedimentos que emergem na própria ação do pesquisar, considerando o outro ou o objeto da pesquisa não como um alvo passivo de nossas indagações ou intervenções, mas como um outro com quem é preciso aprender COM, como num dança em que os movimentos de um se constroem no encontro com os do outro.

Nesse modo de pesquisar, há uma partilha de expertises, uma circularidade no conhecimento, uma distribuição dos saberes. A pesquisa, então, atua como um dispositivo de transformação recíproca que ativa a todos, pesquisadores e pesquisados. Considerando que as práticas são performativas, que elas "fazem existir realidades que não estavam dadas antes e que não existem em nenhum outro lugar senão nestas e por estas práticas" (Moraes, 2010, p. 35), a pesquisa torna-se um espaço vivo de conhecerCOM o outro e não sobre o outro. Essa diretriz nos exige outras formas de abordagem em nossos campos de pesquisa. Seguindo ainda a metáfora de Stengers, convocamos as singularidades que fazem do pesquisar um processo de aproximações, de construção de espaços potencializadores de múltiplas possibilidades em detrimento de uma diretriz única ou totalizadora.

Desse modo, reconhecemos aqui um intervir que se configura no pesquisarCOM (Moraes, 2010), que afirma a pesquisa como prática performativa e nos convida a "acompanhar este processo em ação, se fazendo na prática cotidiana daquelas pessoas que o vivenciam" (Moraes, p.42, 2010). Dessa forma, a ênfase em acompanhar as práticas nos possibilita reconhecer realidade e interferir, mas também sofrer interferências, afetando e sendo afetados pelo que experienciamos no campo da pesquisa, visto que "trabalhar com o campo, abre espaço para o que o campo pode dizer e potencializa novos conhecimentos constituídos numa ação coletivizada. Fazer com nos possibilita dizer ao outro, a partir de um diálogo, sem legislar sobre o proposto" (Quadros, p. 1196, 2015).

A provocação lançada por nosso GT é afirmar esse fazer como feminino no sentido de que conhecer envolve construir laços, vínculos que nos permitam transitar pelo campo, afinando-nos através dos encontros que ali derivam e, a partir deles, constituir o conhecimento afetado pelos saberes que estão ali distribuídos. Assim, o interesse do GT foi o de articular o pesquisarCOM e o feminino na ciência, considerando o pesquisar como um risco, um processo onde as interpelações que não devem ser polarizadas o que, consequentemente nos leva à condição de nos deixar surpreender, experimentar, escutar as convocações do campo.

Portanto, o leitor encontrará nesse número temático artigos que descrevem práticas, experiências, reflexões, derivações alinhadas com essa proposta de pensar e fazer pesquisa.

A articulação ciência-feminino-pesquisarCOM inspira-se, principalmente no que nos propõe Stengers ao trazer a trajetória da cientista Barbara McClintock como interlocutora para desenhar esse modo de fazer ciência que se produziu num cenário de muitas tensões as quais Bárbara precisou resistir, transgredir ao estabelecido e sobretudo confiar na escolha que assumira. Ao não reduzirmos o feminino na ciência a uma mera questão de gênero, não queremos invisibilizar o fato de que, historicamente, mulheres na ciência enfrentam percalços e desafios de diversas ordens. Como bem nos aponta a própria Stengers:

Entretanto Barbara McClintock era uma mulher, e isto não é desprovido de significação. A arte da solidão, a afirmação da singularidade, a aceitação da marginalidade que deixa tantos cientistas literalmente loucos, ela as aprendeu para tornar-se mulher de ciência, para conquistar aquilo que lhe teria sido dado naturalmente se ela fosse um homem. Talvez esta seja a verdadeira lição de sua vida para aqueles que se interessam pelas relações entre as mulheres e a atividade científica. Não a descoberta de uma "outra" razão, mas a exploração daquilo que a razão pode, se for libertada dos modelos disciplinares que a normatizam. A exploração das razões efetivas que se pode ter para não se sentir "à vontade" dentro das ciências, mesmo quando para elas se tem vocação. A tentativa, não mais isolada, mas solidária e explícita, talvez, de resistir à irracionalidade social das ciências .( p. 431, 1989)

Esse fazer reconhecido aqui como feminino apresenta-se como outra possibilidade, algo que rompe com uma modelagem moderna, fincada num cientificismo positivista e promove outro estilo de configurar as práticas de pesquisa, para além das dicotomias e subordinações.

Se propomos, com Stengers (1989), fazer ciência no feminino não é para reduzir o conhecimento que produzimos ao fato de sermos mulheres, reiterando por esse caminho, mais uma vez, um apelo a uma natureza que ao mesmo tempo nos transcende e nos subjuga e categoriza. Não é tampouco para esquecermos que somos mulheres fazendo ciência. Dizer que fazemos ciência no feminino tem o sentido de afirmar as marcas que nos constituem, marcas que tatuam nossas peles, se inscrevem em nossos corpos, fabricam nossos olhos, afinam nossos ouvidos. Dessas marcas não nos furtamos, conhecemos a partir e com elas. Como o caçador solitário de Stengers - ou o dançarino na dança contato improvisação - afirmamos que estar com os outros em relações de pesquisa é um tornar-se com (Haraway, 2008)num processo de deriva e variação que tem no conhecimento um de seus efeitos. Trata-se, como salienta Despret (2013), de afirmar que a agência - a nossa capacidade de agir - é sempre, inequivocamente, interagência, no sentido de que um agenciamento é uma relação de forças que torna alguns seres capazes de fazer outros seres capazes, de forma plurívoca, de tal modo que o agenciamento resiste a ser quebrado, desmembrado. Conhecer, no feminino, tem o sentido radical de afirmar essa interagência como aquilo que nos move na relação com os outros. Assim, o feminino é afirmado como uma ação de resistir na interagência, nela insistir, porque, como dissemos, é no laço, no vínculo com os outros que o conhecimento se faz possível.

Portanto, os artigos aqui expostos nos contam histórias, nos falam de trajetórias e de apostas nesse resistir-insistir no vínculo com o outro, com o campo, enfim, com o que nos acompanha num pesquisar que se faz nessa partilha, nessa jornada que como ressalta Barbara McClintock em sua declaração, pode ser prazerosa. É também o que desejamos ao leitor: uma leitura prazerosa, degustada, construída na singularidade de afetação de cada escrita, de cada leitura.

 

Parte II

Os artigos, seus temas e filiações

A revista Pesquisas e Práticas Psicossociais considera extremamente profícuas as parcerias desenvolvidas com grupos que trazem para a pauta da academia debates contemporâneos em torno dos quais as controvérsias estão longe de se esgotar. Não foi diferente na concepção deste número temático e em outros já editados ou que se delineiam no horizonte da PPP. A temática do feminino, em vários campos da vida, emerge neste século XXI, de forma urgente e contundente, tornando a sua discussão uma porta de entrada para repensar posturas e práticas. Como bem apresentado pelas autoras na primeira parte deste editorial, este número emergiu como proposta do Grupo de Trabalho (GT) no VI Simpósio Nacional de Ciência Tecnologia e Sociedade - ESOCITE - realizado no Rio de Janeiro em outubro de 2015 e agrega contribuições dos grupos da UFF, UERJ, UFMG, UFSJ, UFGO, PucMinas entre outras universidades. Na medida em que o número se desenvolvia, novos artigos eram submetidos a Pesquisas e Práticas Psicossociais, independentes do mencionado GT,mas ainda guardando a temática do feminino e/ou do pesquisarCOM. Alguns são, sem dúvida, tributários do pensamento de Paulo Freire que antecedeu, com sua pedagogia do oprimido, as inovações epistemológicas apontadas neste número temático. Freire (1983, p. 32) propôs, tanto na pesquisa como no trabalho pedagógico o fazer com o outro e não para o outro. Outros artigos são tributários, seja do pensamento psicanalítico que, desde sempre, teve na prática-com sua maneira especial de construir conhecimento, seja de propostas foucaultianas e feministas que se abrem a múltiplas formas de fazer ciência.

Neste número, temos artigos centrados em trabalhos de autores específicos, como: (1) O projeto ético de Donna Haraway: alguns efeitos para a pesquisa em psicologia social, de Ronald João Jacques Arendt e Márcia Oliveira Moraes e (2) A contribuição de Simondon para uma ética do feminino no fazer pesquisa, de Maria de Fátima Aranha de Queiroz e Melo.

Há o artigo Pistas para uma reinvenção da epistemologia: ser afetado, ciência no feminino, pesquisarCOM e saberes localizados de Amanda Muniz Logeto Caitité, voltado para a discussão epistemológica. Outros problematizam a escrita do feminino em campos diferentes como (1) Ciência no feminino: do que é feita a nossa escrita?de Marília Silveira e Josselem Conti, e (2) Método, escrita e narrativa. Histórias de um grupo que chegou à velhice, de Luciana de Oliveira Franco.

Várias pesquisas e experiências são narradas de maneira inventiva e sensível: (1) Inventar para conhecer de Ângela Carneiro Silva; (2) "Ouvir é como a chuva" - o apoio psicológico como parte da formação em psicologia de Eleonôra Torres Prestrelo, Erika da Silva Araújo, Márcia Moraes e Letícia Marques; (3) Possibilidades de inserção da Psicologia no trabalho com os cuidadores de crianças com deficiência de Ana Cláudia Lima Monteiro, Camila Portella Lopes e Clara Santos Henriques Araújo e (4)Da base da pirâmide social à "elite" do sistema: um estudo de caso sobre as diversas incursões de uma mulher negra, nordestina e militante de Sheila Ferreira Miranda.

Entre os artigos que abordam a questão do corpo, tão caro ao feminino, estão: (1) Corpo, tecnologias, produção de testemunho: um experimento na interface entre psicologia social e dança de Dolores Galindo, Danielle Milioli, Wiliam Siqueira Peres; (2) O que pode o corpo de uma psicóloga? De Débora Emanuelle Nascimento Lomba; (3) PesquisarCOM: efeitos de uma oficina de experimentação corporal com pessoas cegas e com baixa visão do grupo composto por Márcia Oliveira Moraes, Alexandra Justino Simbine, Beatriz Pizarro dos Santos Lopes, Carolina Sarzeda Reis Couto, Dandara Chiara Ribeiro Trebisacce, Gabrielle Freitas Chaves, Juliana Pires Cecchetti Vaz, Larissa Ribeiro Mignon, Lia Paiva Paula, Luana de Assis Garcia, Raffaela Petrini de Oliveira, Thais Amorim Silva.

Três artigos se ocupam de campos e saberes onde a presença feminina deixa sua marca:(1)Práticas Integrativas e Complementares no Sistema Único de Saúde do Brasil: inusitadas mediações de Maria Aparecida dos Santos; (2) Cuidado com dissenso: pensando mobilizações político-artísticas no Rio de Janeiro a partir de uma ética-prática do cuidado de Talita Tibola; (3) Pensar relações não-inocentes: Farmácia e Odontologia em São Paulo por um viés de gênero (1985 - 1906) de Isabella Bonnaventura de Oliveira; (4) Vozes que ecoam: Feminismo e Mídias Sociais de Mayara Pacheco Coelho.

Há também os artigos que trazem à cena mulheres em conflito com a lei: (1) A pedra que pariu: Narrativas e práticas de aproximação de gestantes em situação de rua e usuárias de crack na cidade do Rio de Janeiro de Diana Jenifer Ribeiro de Almeida e Laura Cristina de Toledo Quadros; (2) Mãe encarcerada: laços e desenlaces com a criança de Ilka Franco Ferrari, Suzana Faleiro Barroso; (3) Constituição da subjetividade por mulheres aprisionadas de Michelle Silva de Andrade e MaríliaNovais da Mata Machado.

Fechando o número, seguem-se as Publicações Recentes, como usualmente. Dessa vez, contudo, a lista também é temática - o feminino - e o período coberto é de cinco anos.

 

Referências

Despret, V. (2013, December). From secret agents to interagency. History and Theory. Middletown, 52. Recuperado em 1 de março, 2016, de www.vincianedespret.be/papers/from-secret-agents-to-interagency/        [ Links ]

Freire, P. (1983). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.         [ Links ]

Haraway, Donna (2008). When species meet. Minneapolis: University of Minessota Press.         [ Links ]

Moraes, M. (2010). PesquisarCOM, Política Ontológica e deficiência visual In Moraes, M. 7 Kastrup, V. (org). O Exercício dever e não ver (p. 26-51). Rio de Janeiro: Nau.         [ Links ]

Quadros, Laura. C. T. (2015). Uma trama tecida com muitos fios: O pesquisar como processo artesanal na Teoria ator-rede. Revista Estudos e pesquisas em psicologia, 15(4), 1181-1200.         [ Links ]

Stengers, I. (1989). A Ciência no Feminino. Revista 34 Letras, (5/6), 427-431.         [ Links ]

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