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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.1 São João del-Rei jan./abr. 2016

 

A contribuição de Simondon para uma ética do feminino no fazer pesquisa

 

Simondon's contribution for a feminine ethics in doing research

 

La contribución de Simondon de una ética femenina em la investigación

 

 

Maria de Fátima Aranha de Queiroz e Melo

É pós doutora em Psicologia Social pela UFF, professora do PPGPSI da Universidade Federal de São João del Rei, membro do LAPIP (Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial),participante dos grupos Entre-Redes e PesquisarCOM. E-mail: fatimaqueiroz.ufsj@gmail.com

 

 


RESUMO

Uma ética inspirada em Simondon enseja um modelo de fazer pesquisa que nos provoca a pensar de maneira divergente da ciência hegemônica, apontando o seu caráter ideológico, por vezes racista e sexista, assim como para a sua incapacidade de acolher o diferente. Para a construção de um modelo em sintonia com a busca de alternativas a um enquadramento normativo, evocamos feministas que, inspiradas no trabalho de primatólogas, se permitem usar outro artefato de pesquisa, trazendo, à discussão, práticas de campo até então pouco usuais que envolvem o tempo e a maneira de observar, a distância entre pesquisadores e pesquisados, a construção do meio justo da ação, a renúncia ao controle e a formulação de questões interessantes para ambos, tendo como norte o que Despret chamou de "polidez no fazer conhecimento". Essas ações são defendidas neste ensaio pois performam um conjunto de práticas para uma boa pesquisa, não por esta ser empreendida por mulheres, mas por ser praticada com ética.

Palavras-chave: Simondon; Ética; Feminino; Pesquisa


ABSTRACT

An ethic inspired by Simondon entails a model of doing research that provokes us to think in different ways from a hegemonic science, pointing its ideological character, sometimes racist and sexist as well as its inability to accommodate what is different. To build a model in harmony with the search for alternatives to a regulatory framework, we evoke feminists who, inspired by the primatologists work, allow themselves to use another artifact research, bringing to the discussion field practices until then unusual, involving time and manner of observing, distance between researchers and researched, construction of the righteous medium of action, renounce of control, and the formulation of interesting questions for both, having, as north, what Despret named "politeness in making knowledge". These actions are defended in this essay because they perform a set of practices for good research, not for being undertaken by women, but because are practiced ethically.

Keywords: Simondon; ethics; feminine; research


RESUMEN

Una ética inspirada en Simondon implica un modelo de hacer investigación que nos provoca pensar de forma diferente de la ciencia hegemónica, señalando su carácter ideológico, a veces racistas y sexistas, así como su incapacidad para dar cabida a lo que es diferente. Para construir un modelo en armonía con la búsqueda de alternativas a un marco regulatorio, evocamos las feministas que, inspiradas por lo trabajo de primatólogas, se dejan usar outro artefacto de investigación, trayendo, a la discusión, las prácticas de campo hasta entones insólitas, que implican tiempo y la forma de observar la distancia entre los investigadores y los investigados, la construcción del medio justo de la acción, la renuncia de control y la formulación de preguntas interessantes para ambos, que tienen, como el norte, lo que Despret ha nombrado "la cortesía en la toma de conocimiento". Estas acciones se defienden en este ensayo porque ellos realizan un conjunto de prácticas para una buena investigación, no por seren llevadas a cabo por las mujeres, sino porque se practican éticamente.

Palabras clave: Simondon; ética; femenina; investigación


 

 

Introdução

Simondon foi um pensador mais conhecido como filósofo da técnica e ontologista, em cujas ideias encontramos pontos de contato com correntes de pensamento desenvolvidas no século 21, fazendo todo sentido para a formulação de uma ética que respeita os vários modos de existir, que vislumbra seres de todos os tipos que chegam a ser o que são através do processo de individuação. A contribuição de Simondon para uma ética no fazer pesquisa se assenta na ideia de que ele nega qualquer concepção substancialista1 que suponha realidades fixadas previa e definitivamente. Uma das mais conhecidas afirmações de Simondon é a de que precisamos entender "o indivíduo através da individuação, mais que a individuação a partir do indivíduo" (Simondon, 2005, p. 24 [1992, p. 16).

Escóssia (2003) pondera que a questão ética não é a temática central na obra de Simondon, mas há uma preocupação ética que atravessa seu pensamento, fazendo de seu trabalho um verdadeiro tratado de ética. Ao criticar as concepções substancialistas, Simondon toma posição diante da ética pura (ou teórica), ou da ética prática (ou aplicada). A primeira preserva a substancialidade, a imutabilidade e a eternidade do ser, pois, sendo da ordem da contemplação, ela se opõe à vida; enquanto que a segunda confere um privilégio ao devir como devir, num movimento perpétuo e inapreensível. Não sendo uma realidade fixada, o indivíduo também não é uma ficção, mas fase numa trajetória cheia de individuações potenciais num equilíbrio metaestável: nem estável levando à paralisia e à morte, nem instável remetendo à incapacidade de preservar. A metaestabilidade seria um estado de tensão que predisporia a novas transformações. Para Escóssia, Simondon busca combater a distinção entre as duas éticas com a noção de metaestabilidade, pois essa "é a via onde as duas éticas tradicionalmente separadas podem coincidir" (p.185).

Há consequências para a ética se pensarmos no estudo de realidades individuadas ou se focarmos em realidades se individuando. A ontologia de Simondon envolve uma realidade de relações, de sistemas que se comunicam gerando tensões numa lógica de deslocamentos que se propagam, cada fase de uma trajetória sendo um equilíbrio metaestável ensejando as que virão. Essa lógica nos oferece uma maneira de pensar qualquer ser na relação que estabelece consigo mesmo, com outros, com seu meio, com seu passado e seu futuro, emergindo numa complexa rede de forças que tanto nos molda como é moldada por nós. As tensões que um ser experimenta ao se individuar não são resolvidas de forma solitária, mas sempre em relação com outros (Landes, 2014). Tomando outros e não o indivíduo de forma isolada, Escóssia (2003) destaca que realidade ética para Simondon é estruturada em rede, cada ato se desdobrando em atos laterais que se entrelaçam em redes que geram sentido. Segundo a autora:

Tais redes, diferentemente das cadeias contínuas, caracterizam-se por uma simultaneidade recíproca entre os diversos atos ou acontecimentos. O ato imoral, louco e parasita, além de não criar lateralidade, de não se conectar, ainda impede outros atos de se estruturarem em rede. (p. 183)

A tendência à centralização, ao controle e à discriminação se opõe frontalmente a uma ética reticular e à possibilidade de diferir. Simondon se contrapõe aos princípios universais e eternos, pensando nas normas não como fins em si mesmos, mas como meios que podem ser testados. Para o autor, a aplicação cega de princípios a partir de um olhar de cima, que tudo abrange e nada vê - como o "olhar de Deus" de Haraway (1995) - joga todos numa vala comum sem examinar os matizes de cada situação. Segundo Landes (2014), o que o pensamento de Simondon oferece é uma maneira mais sofisticada de transitar entre o conjunto de regras e princípios e os casos particulares, colocando os primeiros à prova em função do exame dos segundos.

Se Simondon está correto, todo o conceito de indivíduo em sua trajetória de valores precisa ser retrabalhado à luz da complexa realidade da individuação, gerando consequências na ética e principalmente, destacamos, numa ética do cuidado2, cada caso gerando realidades performadas por arranjos múltiplos e heterogêneos, como nos falaria Mol (2008), na lógica que rege as ações praticadas em rede. Para Simondon, teríamos a ética sempre em movimento, pois as normas estariam em constante revisão a depender do contexto onde elas se atualizariam. Ao pesquisar, não podemos nos deter no que se apresenta temporariamente como cristalizado, como se essa maneira de ser se encerrasse nela mesma e não pudesse ser outra. Para sermos éticos, precisamos explorar como um ser chegou a um equilíbrio metaestável e trazer não apenas as vozes que se fizeram ouvir nesse processo, mas também as que calaram e aquelas potenciais de um futuro que estão no devir do pré-individual. Para Simondon, pré-individual é um reservatório de energia potencial suscetível a mudar de fase, na medida em que entra em contato com uma informação que perturba seu atual equilíbrio, gerando a necessidade de fazer uma ressonância interna. O pré-individual é sempre uma promessa, algo que se projeta que se arremessa para um futuro, encerrando, dessa forma, múltiplas possibilidades. A própria ideia de ressonância interna nos faz pensar em como qualquer entidade ressoa diante da informação que emana de outro ser, de como duas instâncias repercutem uma na outra, afetando-se mutuamente.

A ética simondoniana gera consequências para pensar as formas de feminismo (Grosz, 2012) e outras vozes silenciadas, ao defender, como Latour (2012), uma pluralidade ontológica que oferece a chave para não tomar as entidades como acabadas ou reduzi-las a umas poucas. A ideia de uma ética em movimento se conjuga bem com o movimento de abrir caixas pretas, preconizado como uma das estratégias de pesquisa propostas por Latour (2001), nada tomando como óbvio ou auto explicável, pagando os custos de sua explicitação para ter legitimidade. Latour (2012) fala de como uma "ciência" mal construída utiliza o artifício do "duplo clique" que faz desaparecer todas as cadeias de referência que dão legitimidade à construção de um fato científico, tornando-o óbvio e, portanto, desarticulado. Para Simondon, qualquer existente - seja ele um cristal, uma esponja, um artefato técnico, um humano - tem uma trajetória de múltiplos e fortuitos encontros que convergem para sua constituição.

Se pensarmos os seres em suas trajetórias de equilíbrios metaestáveis, podemos inclusive questionar o significado de ser humano ou qualquer outra coisa (homem, mulher, preto, branco) como lugares de passagem que se desdobram no passado, no presente e no futuro. Por essa razão, quando usadas para reforçar o racismo ou o sexismo como auto-evidentes, obscurecendo as redes que lhes dão sustentação, as visões de mundo universalistas e substancialistas são violentas.

Ciente dos limites, aquele/a que pesquisa com uma atitude ética investiga, perscruta, tateia, hesita, antes de tomar uma situação como pronta para julgamento. Trabalha com a inspiração do cuidado. Não há receitas prontas, pois as situações não são sempre as mesmas. Elas se fazem a cada vez e precisam ser olhadas localmente e, ao mesmo tempo, conectadas a outras. É necessário sempre perguntar quem são, onde estão os atores, duvidar do que está pronto, seguir a ação em curso.

Vejamos como essas ideias reverberam numa postura de pesquisa pensada no feminino. Aonde nos leva uma ciência no feminino? Como podemos fazer diferença acolhendo os incontáveis modos de existir em suas trajetórias? Esta é a discussão em foco para a qual evocamos algumas feministas, quando propõem outras maneiras de pesquisar, de fazer ciência, de considerar modos de existir que não se esgotam naqueles já conhecidos ou sancionados. Todos os que ficaram de fora de um acordo prévio apenas entre aqueles que decidem quem deve povoar o mundo, em detrimento de outros seres, podem bater à porta e reivindicar o reconhecimento de sua existência. Formas de ver e sentir o mundo não precisam estar limitadas a uma epistemologia que trata o conhecimento como uma exclusividade do humano.

Em seu mais recente livro, Latour (2012) toma como protagonista não um homem, provavelmente branco e ocidental como a encarnação de um pesquisador, um estudioso das ciências. Em sua aventura investigativa, é uma mulher, uma antropóloga, quem faz a imersão nos campos mais valorizados pela ciência moderna. Às vezes chamada de etnóloga, outras de antropóloga, é a ela que Latour dá a incumbência de analisar costumes bizarros e naturalizados da tribo exótica que constituem os modernos. Ela é herdeira desse mundo, mas se autoriza a estranhá-lo, a ver suas incoerências e monstruosidades. Teria Latour se rendido ao clamor de uma ciência em sua versão feminina? Seria a sua uma estratégia "politicamente correta" afinada com as bandeiras de defesa da diversidade? Penso que, para pensar divergentemente da ciência tal como a engendraram os modernos, um olhar do feminino é bem vindo e oportuno.

Despret & Stengers (2011) questionam se, praticando uma ciência "enquanto mulher", caberia imaginar um Galileu vestido de rendas, construindo de forma diferente uma teoria dos corpos que caem, ou um Newton de vestido, elaborando outra mecânica celeste. Nada mudaria se assim fosse. A ciência continuaria como uma prática "não marcada", uma vez que invisível e naturalizada, obra de humanos que, por uma contingência sócio-histórica, eram homens e brancos.

 

Outro artefato, outra história

A história podia ser diferente. Uma forma de ver a questão por outro ângulo foi evocada por Despret & Stengers (2011) com o exemplo das práticas da primatologia nos finais dos anos 1960 e ao longo dos anos 1970. Ao observarem primatas, cientistas mulheres ousaram retornar do campo com relatos muito diferentes daqueles que seus colegas tomavam como base para fazer inferências de cunho universal. As fêmeas que elas observavam não pareciam ter um papel social sem importância, como assinalavam os pesquisadores que haviam estado antes no campo: as hierarquias no bando se apresentavam de outra maneira para as observadoras! Enquanto os primatólogos davam relevo à competição entre os machos, marcada por violentos conflitos, as primatólogas percebiam que as fêmeas detinham o papel crucial de dar acesso aos meios de provisão e à introdução de novos membros no bando. As afirmações vindas do campo como mero resultado de um olhar tendencioso, sugerindo um "artefato das pesquisas", inauguraram a hipótese de que as mulheres tinham uma maneira de observar diferente da dos homens. Mais que isso, o ângulo do olhar de quem observava poderia formular versões de mundo muito diversas, desconstruindo as pretensões de uma história única e universal.

 

O tempo de observar

O olhar feminino poderia marcar a diferença na abordagem do campo principalmente porque ele estaria contextualizado de outro modo. A maneira de entrar no campo não era a mesma, o tempo que dedicavam a estar com seus pesquisados assim como a postura diante deles se revelavam diferenciais significativos. As primatólogas passavam mais tempo convivendo com seus pesquisados e faziam observações menos apressadas que seus colegas, ocupadíssimos com a ascensão de suas carreiras acadêmicas. Elas ficavam longos períodos no campo - às vezes anos - fazendo aproximações, sem o receio de se misturarem ao grupo observado. Esse maior tempo de permanência no campo lhes possibilitou prestar mais atenção ao contexto, dando-lhes a oportunidade de estarem mais sensíveis aos primatas, em especial às fêmeas, e de se interessarem mais pelo que lhes era interessante, praticando o que chamaram de método da habituação. Essa aproximação com o bando significava o abandono das prescrições de assepsia tão comuns aos "pesquisadores de avental branco", um modo diferente de abordar o campo e o grupo pesquisado.

Uma vez que são inevitáveis as trocas entre pesquisador e pesquisado, para serem éticas, acontecem sob o registro do respeito e da confiança. A etimologia da palavra respeitar nos aponta para o latim "re-spectare", ou seja, olhar e olhar outra vez (Despret, 2002). Segundo o dicionário etimológico, a palavra confiança, também do latim, vem de confidentia, confidere, com fidere, com fides que significa fé. Matos (2012) brinca com a palavra decompondo-a: "com fiar, fiar com, tecer com alguém". Oferece uma definição interessante sobre o que significa confiar, que aqui tomamos emprestada para pensar o campo da pesquisa, momento em que os atores se enredam para tecer junto suas histórias:

Confiar, de fiar junto, é costurar, unir pedaços de linhas, de tecidos e de histórias. Misturar novelos e criar novelas. É desfazer nós. Mas também fazê-los, de tal modo que os nós unam lãs de cores diferentes, tão suaves e ao mesmo tempo tão firmes como laços, enlaces. Confiar é se permitir enlaçar e ser enlaçado, numa busca infinda de regulagem da firmeza do laço (s/p)

 

O meio justo da ação e as boas questões

Por passarem mais tempo no campo, as primatólogas desenvolviam uma escuta mais acurada de questões outras que não apenas aquelas que eram inicialmente formuladas. Pelo que se interessavam os pesquisado/as? O que fazia sentido para ele/as? Quais questões se faziam comuns para pesquisadores e pesquisados? O que tornava pesquisadores e pesquisados ao mesmo tempo interessantes e interessados uns para os outros?A essa construção Despret chamou de "meio justo" (p.143), ponto de partida necessário para permitir a construção de um ajustamento entre as partes, esse espaço "entre", para onde convergem os interesses, que inspira a prática de uma boa ciência. Despret (2002) evoca Wiliam James para afirmar que um conhecimento só tem valor se traz em seu bojo a capacidade de tornar algo interessante, se enriquece a realidade de um mundo já existente e se alarga os horizontes daqueles que participam de sua construção. O inter-esse retira a ação dos polos e lança luz sobre o espaço de mediação onde se dá a investigação. Diz a autora (Despret, 1996) que uma pesquisa a priorista estabelece, por antecipação, as questões a serem investigadas, de como será feita a manipulação das variáveis, testa hipóteses e impõe ao real os limites das respostas a serem encontradas, à semelhança de um sistema de espelhos. Uma pesquisa a posteriorista, em contraste, espera que os fatos ocorram primeiro para depois fazer a emissão de hipóteses, postura típica da démarche antropológica. Recuperando as maneiras como as primatólogas conduziam seus estudos em Etologia, a autora demonstra que não se trata mais de colocar ênfase no olhar daquele que conhece para que o objeto lhe apareça tal qual é, nem de evidenciar o objeto pesquisado como aquele que vai determinar como será visto pelo pesquisador. Emergindo de uma multiplicidade de agências, a ação de pesquisar não estaria nem "centrada num construtivismo estéril com ação exclusiva do humano", nem cairia num "relativismo enclausurado", no polo de uma suposta objetividade (p. 136). Para a autora, o ato de pesquisar envolve uma zona de construção para aqueles que se inter-essam, ou seja, aqueles que podem formular juntos as questões que afetam a ambos, arregimentando-os em ações comuns. Despret fala das boas questões de pesquisa como as interrogações que não partem somente do pesquisador, mas daquelas que são capazes de mobilizar o interesse do campo, numa construção compartilhada durante o tempo de convivência. As boas questões terão mais sintonia quanto mais puderem compor os interesses dos pesquisadores com os dos pesquisados, gerando respostas para como ambos poderão se transformar juntos nesse processo.

A ação de pesquisar estaria melhor definida nessas condições, se tomássemos, ao invés da palavra construção, que tem como foco um criador, o conceito de instauração que Etiénne Souriau (como citado por Latour, 2007) adotou para descrever a emergência de uma obra de arte. Assim como na pesquisa, não se trata de um processo cujo fim está dado de antemão ou previsto em seu início. Em qualquer processo de fabricação (de um fato, de um artefato, de uma obra de arte), há sempre um risco a correr, uma vez que muitas agências convergem para que surja algum resultado, já que a ação não emana somente de um, nem está centralizada unicamente num humano. Sendo várias as agências que concorrem para a emergência de um fenômeno, para a fabricação de um fato ou artefato, é preciso entender como acontece esse encontro, como as várias entidades são arregimentadas, como se aproximam e como se distanciam.

 

A questão da distância

A questão da distância entre as primatólogas e seus pesquisados se transforma sob essa perspectiva. A proximidade não é mais vista como um erro a evitar, como o fazem os puristas ou aqueles que defendem a objetividade indiferente. A "boa distância" torna-se um problema a construir em cada caso, na busca por um "meio justo", implicando na negociação das apostas comuns entre os participantes de um evento. As distâncias e os papéis não são dados a priori, mas frutos das práticas de mediação que vão ocorrendo entre pesquisador e pesquisados. Quando abordamos um grupo para ter seu acolhimento, a aprendizagem de boas maneiras leva em conta o interesse daquele a quem a investigação se endereça e conduz à construção de uma boa distância que atenda aos interesses de ambos dentro de uma proposição de transformações mútuas. Boas maneiras na pesquisa nos permitem entender e respeitar os limites colocados pelos pesquisados para obter para o estudo a permissão daqueles que transitam pelos espaços de interesse mútuo, configurando um código de regras de convivência entre grupos, nomeado por Despret com a expressão "polidez no fazer conhecimento" (p. 172).

 

A polidez no fazer conhecimento

De Goodall (1979, como mencionada em Despret, 2002), nos chegam as regras de polidez necessárias à abordagem de qualquer grupo. Essa polidez no "fazer conhecimento" seria, segundo Despret, a qualidade daqueles/as que veem as "boas questões" como aquelas que podem ser engendradas pelo grupo pesquisado juntamente com o pesquisador e que, sendo interessantes para os pesquisados, provocarão também o interesse do pesquisador. A questão de como o que ativa o/a pesquisador/a pode constituir uma proposição interessante para ativar aqueles que ele/a encontra no campo e como essa atividade pode autorizá-lo/as a mobilizar o/a pesquisador/a para novas questões e novos hábitos tornou-se central para numerosos primatólogos. As primatólogas aprenderam que, se alguém quer conhecer um grupo e com ele construir algum pertencimento, precisa encontrar um aliado, um mediador que lhe ensine as regras de polidez e hospitalidade para se fazer perceber, que lhe mostre os hábitos daqueles de quem o pesquisador espera alguma acolhida para que, pouco a pouco, possa ganhar a confiança da comunidade. Seguindo Shirley Strum, Despret (2002) define a polidez no fazer conhecimento como "a exigência de não construir um saber 'nas costas' daqueles a quem ela endereça suas questões, [...] como a obrigação de levar em conta a maneira pela qual aquele que é interrogado pode tomar posição em relação à interrogação" (p. 132).

 

Renúncia ao controle, abertura ao imponderável

A princípio receosa de como reagiriam os chipanzés, Goodall evitava contato e se mantinha isolada deles, apenas observando-os. Mas não tardou para que um deles tomasse a iniciativa do contato. Conforme descreve Despret (2002),

Goodall estava comendo uma banana, sentada próxima à sua tenda, quando David entra no campo. Desta vez, ela decide ficar. Ele se aproxima e para em frente a ela. Ele eriça os pelos, de maneira ameaçadora [...] Goodall permanece imóvel. Mas em lugar de atacá-la, ele se contenta em tomar sua banana e fugir com ela. Jane Goodall compreendeu então o que ele esperava dela - e o que ela poderia esperar dele: o encontro deveria acontecer sob os auspícios da oferenda. Ela começa então o que a prática ocidental tinha desde longo tempo proibido no campo de pesquisa: ela oferece cotidianamente aos chipanzés um lote de bananas. O sucesso foi imediato [...] (p.150)3

Despret (2002) entende a expressão "sob os auspícios da oferenda" como uma regra de polidez que prevê, de quem chega à casa de um desconhecido, o oferecimento de algo que faça sentido para aquele que recebe o forasteiro em seu espaço, abrindo um canal para a construção de interesses comuns. Foi David, o chipanzé, aquele que mostrou à pesquisadora o que era interessante para o grupo e possibilitou, com essa mediação, a sua aproximação. Numa situação em que apostas comuns podem ser formuladas com as questões que interessam a ambos, com o cultivo dos gestos de polidez dirigidos ao grupo pelo pesquisador, o grupo pesquisado passou a ser "alguém que contava" (p. 258), oferecendo a chance de contar outras histórias. E isto não é pouco.

Outros hábitos foram constituintes dessa polidez no fazer conhecimento. Além dos já mencionados, destaca-se a renúncia ao controle no dispositivo experimental que até então era a condição para o êxito de uma pesquisa. A atitude inaugurada pelas primatólogas cede espaço ao imponderável da surpresa e promove uma torção na lógica dos trabalhos eminentemente experimentais, tomando, assim, a influência do pesquisador como um problema a negociar, não como efeito parasita a erradicar ou a controlar. A respeito das propostas de pesquisa e de sua capacidade de gerar circunstâncias inéditas e surpreendentes, Despret (2002) nos fala:

Elas [as propostas] podem conduzir à existência de entidades inéditas, como as dos macacos que falam, de entidades ou eventos que nos obrigam a rever o que nós pensamos de nós mesmos, que nos oferecem novas definições do que é ser um macaco, que ampliam nossas concepções de linguagem, que nos engajam de outra forma, que mudam nossos hábitos, em suma. (p. 114)

A proposta integra, nesse caso, a possibilidade de sua própria transformação: se o macaco a recusa, é preciso mudar a proposta, reformulá-la de outra forma, submetê-la a condicionantes mais pertinentes. O sucesso do laboratório traduz então os riscos aos quais os pesquisadores aceitaram se submeter. (p. 115)4

As pesquisadoras passaram a desenvolver o gosto pelas individualidades, especificidades e contextos que trazem a multiplicidade e a complexidade dos pontos de vista daqueles que falam e nos fazem falar. As generalizações, que colocam tudo e todos sob um único modelo, passam a ser vistas com desconfiança, uma vez que a tendência a universalizar e a não considerar as diferenças tem servido para impor o ponto de vista dos dominantes e calar outras versões de como pessoas e fatos poderiam ser.

A capacidade de renunciar ao controle e estar sensível ao outro numa pesquisa empreendida sob a lógica do feminino nos sugere evocar o conceito de transdução, outro conceito chave na obra de Simondon. Apesar de sua inspiração estar claramente fundada em processos da física, não é uma operação que se limita ao domínio físico/material. Podemos pensá-la como um processo de mediação que opera dentro de uma margem de indeterminação entre dois domínios. A transdução é a individuação se fazendo, um processo em que entidades se comunicam, se afetam, perturbam reciprocamente seus equilíbrios internos, ressoam a essas perturbações e sendo/soando "enquanto outro", se diferenciam, mudam de fase. Com inspiração nas ideias de Simondon, a pesquisa pode ser entendida aqui como um processo de transdução: tem um pouco de transmissão, um pouco de tradução, faz a passagem de um registro a outro, é um transporte em que o transportado resulta transformado. Essa lógica pode se aplicar tanto ao conhecimento produzido como ao pesquisador e seus pesquisados.

 

Tornar-se mulher, tornar-se pesquisadora

"Não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres" é a declaração, em 1949, de Beauvoir (2009) que, reeditada por Despret (2002), é tomada para defender a ideia de que "não nascemos pesquisadoras, tornamo-nos pesquisadoras", ou seja, não nascemos pronto/as, mas aprendemos a construir modos de ser em composição com muitas outras entidades. A ênfase aqui é colocada na transformação e no questionamento de padrões únicos e fixos: de quantas formas nos entendemos mulheres? Como chegamos a ser mulheres em mundos onde ainda prevalece a lógica do homem? É possível uma ciência no feminino? No que uma ciência feita por mulheres difere da ciência convencional? Que ética rege essa ciência? Foram estas as indagações que moveram este ensaio.

As características femininas levadas ao campo da pesquisa relatadas por Despret (1996, 2002) trazem um histórico das mulheres que se tornaram pesquisadoras exatamente porque tomaram partido de uma posição marginal por sua condição feminina, aprendendo a desenvolver outra atitude em relação ao campo e às suas agências, fazendo contraste com a forma canônica de pesquisar até então empreendida apenas pelos homens.

Caberia pensar numa ciência no feminino? A controvérsia é explosiva, segundo Despret (2002) e outras feministas. Seriam as mulheres diferentes dos homens? Defender essa diferença, por um lado, seria correr o risco de aderir à ideia de que as diferenças seriam naturais e biológicas; por outro, seria esquecer que as instituições científicas se construíram historicamente excluindo e desvalorizando as qualidades femininas. Numa terceira posição, Despret acrescenta que "reivindicar uma diferença é dar a chance de redefinir essas qualidades desqualificadas de outra forma para valorizá-las e criar assim a ocasião de modificar as práticas do 'fazer ciência'" (184). Não se trataria de afirmar o fato de que, só porque eram mulheres, as primatólogas contaram outra história de sua passagem pelo campo, mas considerar que se tornaram boas cientistas porque tiveram a oportunidade de construir outra prática. Outros fatores deram às pesquisadoras a condição de fazer o relato de uma história diferente. Entre eles, permanecer anos no campo e desenvolver outra metodologia, diferente daquela de seus predecessores, buscando uma aproximação interessada; identificar cada um dos pesquisados à custa de muito trabalho e paciência; abdicar de pontos de vista quando os pesquisados mostrassem essa necessidade; respeitar as diferenças individuais sem impor aos pesquisados modelos teóricos a priori. Sim, a paciência, o cuidado, o apego às individualidades, o gosto pelos detalhes poderiam ser considerados características femininas. Mas, acima de tudo, seriam essas as características de bons pesquisadores, independentemente de serem homens ou mulheres. Se não nascemos pesquisadoras/es, tornamo-nos através de nossas práticas, fazendo essa construção de maneiras muito variadas. A identidade de pesquisadora, como a identidade de gênero, ou qualquer outra, se faz a partir de um conjunto de atos performativos, gestos, posturas e expressões que vão se constituindo como parte de nossa maneira de ser e estar com outros.

O olhar sobre o devir e não sobre o que está pronto, como defendem teóricos como Simondon e James - para mencionar aqueles que referenciaram alguns argumentos deste estudo - ganha ênfase nessa defesa. A ciência não está pronta, os conhecimentos não são definitivos, os/as pesquisadores/as se fazem em suas trajetórias. Um modo de fazer pesquisa conjugado no feminino põe à prova o conhecimento racional e objetivo para atingir uma única verdade e propõe o conhecimento que questiona as divisões mente/corpo, razão/emoção, para incorporar as dimensões intuitivas, emotivas, localizadas. Ao invés da neutralidade e do isolamento do cientista em seu laboratório, busca a proximidade dos lugares comuns e o envolvimento do pesquisador COM seus pesquisados; ao invés dos temas universais, foca sua atenção nos detalhes, nas experiências do cotidiano, em micro histórias tecidas com as narrativas de muitos com a linguagem do NÓS.

Pesquisadores, pesquisados e o conhecimento produzido no encontro de ambos são fases numa trajetória cheia de individuações potenciais futuras. O fazer conhecimento se torna legítimo porque é ético, independentemente de quem o produz, se e somente se é capaz valorizar e ampliar a vida, quando é tecido na composição com outros, quando possibilita a reinvenção de nós mesmos e do mundo.

 

Referências

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Recebido em 20/12/2015
Aprovado em 28/04/2016

 

 

1 Herança de Platão, a concepção substancialista entende que há uma substância prévia a todas as coisas.
2 Para pensar numa ética do cuidado, tomamos de empréstimo a ideia de uma lógica do cuidado apresentada por Mol (2008). Dedicando-se ao estudo dos tratamentos para diabetes, a autora coloca em questão as diferenças entre uma lógica da escolha e uma lógica do cuidado. Sob a égide da primeira, o diabético assume a total responsabilidade pelo tratamento assim como por suas consequências, uma vez que é ele quem faz as escolhas. Sob uma lógica do cuidado, as ações para o tratamento estariam mais distribuídas pela rede de elementos que as sustentam, permitindo ao doente ter o olhar, a atenção e o acolhimento de outros.
3 A tradução é de nossa responsabilidade.
4 A tradução é de nossa responsabilidade.

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