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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.1 São João del-Rei jan./abr. 2016

 

Pistas para uma reinvenção da epistemologia: ser afetado, ciência no feminino, pesquisarCOM e saberes localizados

 

Clues to a reinvention of epistemology: be affected, science in feminine research WITH and localized knowledge

 

Claves para una reinvención de la epistemología: verse afectado, ciencia en femenino, pesquisarCOM y conocimientos localizados

 

 

Amanda Muniz Logeto Caitité

Psicóloga e mestre pela Universidade Federal da Bahia, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense. amanda.munizlc@gmail.com

 

 


RESUMO

Em nossas pesquisas é comum encontrarmos, numa mesma instituição, diversos campos de conhecimento. Neste ensaio, procuro refletir sobre a possibilidade de estudar esses diferentes saberes a partir da epistemologia, de modo que a expertise e a autoridade de cada ator encontrado em campo sejam preservadas. Viabilizar essa proposta requer que os enunciados sejam pensados em termos que passam ao largo da oposição entre verdade e erro. Retomamos então textos que, ao menos de forma declarada, defendem uma virada ontológica, legitimando as propostas de afastamento em relação à epistemologia tradicional. Afirmamos, no entanto, a possibilidade de fazer a epistemologia existir como um projeto irmanado à ontologia. Concluímos que um fazer epistemológico capaz de levar a sério a expertise do outro é viável a partir de um fundamento pragmático e do privilégio da dimensão afetiva e do caráter encarnado do ato de pesquisar.

Palavras-chave: pesquisarCOM, virada ontológica, epistemologia, pragmatismo, afeto.


ABSTRACT

In our research we often find, in the same institution, several structured fields of knowledge. In this essay, I try to reflect on the possibility of studying this different knowledge from the epistemological field, so that the expertise and authority of each actor found in the field are preserved. Enabling this proposal requires that the statements be thought in terms that go off the opposition between truth and error. Then we resume texts that at least openly advocate an ontological turn legitimating proposals that scape from a traditional epistemology. We affirm, however, the possibility to make epistemology to exist as a project close to ontology. We conclude that an epistemology able to take seriously the expertise of the other is viable starting with a pragmatic basis and favoring the affective dimension and embodied character of the act of researching.

Keywords: research WITH, ontological turn, epistemology, pragmatism, affect.


RESUMEN

En nuestras investigaciones encontramos a menudo, en la misma institución, varios campos estructurados de conocimiento. En este ensayo, trato de reflexionar sobre la posibilidad de estudiar estos conocimientos diferentes desde el campo epistemológico, por lo que la experiencia y la autoridad de cada actor que se encuentra en el campo se conservan. La activación de esta propuesta exige que los enunciados pueden ser pensados en términos que van a la oposición entre la verdad y el error. A continuación resumimos los textos que abogan al menos abiertamente un giro ontológico y legitiman propuestas que escapan de una epistemología tradicional. Afirmamos, sin embargo, la posibilidad de hacer la epistemología existir como un proyecto cercano a la ontología. Llegamos a la conclusión de que una epistemología capaz de tomar en serio la experiencia del otro es viable desde una base pragmática y desde el privilegio de la dimensión afectiva y del carácter encarnado de lo acto de investigación.

Palabras clave: pesquisarCOM, giro ontológico, epistemología, pragmatismo, afecto.


 

 

Onde quer que seres de diferentes espécies se associem e produzam enunciações afirmativas, uma multiplicidade de expertises pode ser encontrada. As redes existentes em um terreiro de candomblé integram elementos que não são encontrados em um hospital, a expertise de uma mãe de santo difere da de uma cardiologista, ou do paciente que a ambas se dirige procurando auxílio. Não é a mesma expertise encontrada nos manuais de medicina em uma biblioteca que, por sua vez, difere do saber de uma pesquisadora que transita nesses espaços.

Como nos posicionarmos frente a essas diversas expertises, sem submeter formas de saber não científicas a um falseamento? É possível levar a epistemologia para além dos saberes científicos, ou seria o fazer ontológico a única maneira de levar a sério a alteridade? Neste ensaio, tento responder a essas questões, tecendo reflexões sobre pesquisar em meio ao conjunto de práticas encontradas em campo, especialmente em meio às práticas discursivas. Procuro encontrar um modo de falar sobre os discursos na praxigrafia, registro inventivo das práticas cotidianas, posto em cena por Annemarie Mol (1999; 2002).

O cuidado de refletir sobre o lugar do discurso na praxigrafia se deve à constatação de que, em algumas situações de pesquisa, são práticas discursivas o que encontramos com mais frequência. Além disso, estamos sempre a pensar sobre o nosso próprio fazer científico, nos nossos modos de estar em campo. Poderíamos situar essas reflexões como um fazer epistemológico? Mas como falar em epistemologia sem reeditar a divisão entre a realidade do mundo e o saber que dele produzimos? Como conciliar o estudo de conceitos, de práticas discursivas, e levar em consideração a proposta, por parte de autoras centrais, de que abandonemos o uso dessa palavra ou esse campo filosófico? Não posso afirmar ao certo se há ou não uma virada ontológica em curso na produção desses autores e autoras e se essa virada implica num abandono da epistemologia em si mesma, ou num conflito etimológico, numa rejeição motivada pelos sentidos que a palavra epistemologia evoca. Apesar de encontrarmos na literatura referências a uma virada ontológica nas ciências sociais, sua existência é controversa e precisa ser mais bem elaborada em outro momento. Neste ensaio, me detenho em considerar a saída do campo epistemológico em direção ao da ontologia, como um deslocamento explicitamente advogado por Mol (2002) em seus textos.

É no livro The Body Multiple que Mol (2002) defende com maior clareza a relevância de que seus estudos sejam situados no campo da ontologia. Desde o prefácio, a autora anuncia a necessidade de empreender um movimento que distancie suas pesquisas do campo epistemológico. No entanto, no decorrer desse livro e em outros momentos, Mol (2002) reverencia a epistemologia de Canguilhem (2009) e deixa claro que suas pesquisas são fortemente influenciadas pelo autor. Talvez essa adesão seja suficiente para defender que Mol situa seus estudos também no campo epistemológico. Outra possibilidade seria ver nessa reverência a Canguilhem um manejo cuidadoso da literatura, em que ela demonstra cultivar, em relação a elementos da obra do autor, dissidências que prescindem de ruptura com a totalidade de seus escritos.

De todo modo, é extremamente relevante procurar no texto de Mol (2002) outros posicionamentos que indiquem uma variação em relação à sua proposta inicial, ou seja, enunciados demonstrando que ela está a defender outra epistemologia e não a saída desse campo. Apesar de muito interessante, deixarei essa busca para outro momento. Neste ensaio, especificamente, me detenho na aposta de que partir de sua declaração mais explícita também pode nos levar a reflexões significativas. Sua proposta de distanciamento em relação à epistemologia me parece oportuna para discorrer sobre algumas possibilidades de que esse campo da filosofia seja afinado, de modo a compor projetos consonantes à virada ontológica.

Tomando então como ponto de partida a existência da opção pela ontologia por parte de autores a autoras que nos são caros, eu me volto para um dissentimento em relação à posição mais explícita de Mol (2002):defendo que sua necessidade de afastamento em relação à epistemologia pode ser compreendida como fundamento de um desdobramento desse campo e não como uma justificativa para seu abandono. É possível encontrar na filosofia empírica de Mol (2002) o prelúdio de um movimento que considera o que a epistemologia pode ser, além do modo como foi tradicionalmente delineada. Afirmando a potência desse campo para o fortalecimento de uma ciência no feminino, defendo que podemos incluir nossas pesquisas também como reflexões epistemológicas - sem que isso implique na redução dos diferentes enunciados encontrados em campo a meras representações variadas de uma realidade em si mesma unívoca e sem que isso implique em trazer à existência uma hierarquia entre saberes distintos.

Acredito que outras publicações, às quais ainda não tive acesso, defendam um posicionamento semelhante. Meus argumentos, no entanto, serão tecidos a partir do que posso assimilar da experiência etnográfica e filosófica de quatro autoras: Favret-Saada (2005), Haraway (1995, 2008, 2010, 2014a, 2014b), Moraes (2010) e Stengers (1989). Pretendo ressaltar em seus escritos aquilo que nos ajuda a encontrar um posicionamento frente a propostas de virada ontológica e, a partir de então, pensar nas implicações de um possível resgate, afirmação, ou reinvenção da epistemologia (Nunes, 2008).

 

Porque uma virada ontológica?

Como um fazer filosófico que se investe da capacidade de distinguir entre verdade e erro, o aparecimento da epistemologia é indissociável da emergência do projeto moderno de ciência. É com a pretensão de estabelecer os critérios de legitimação do conhecimento que esse campo se apresenta como instância independente, soberana, destinada a avaliar os mais diferentes enunciados. No entanto, dentre toda a diversidade de modos de saber, a epistemologia adota como referenciais de legitimidade aqueles que são próprios à ciência moderna. Nessa operação, o que resulta é uma equivalência imediata entre a palavra conhecimento e o saber científico. Todas as outras formas de saber são submetidas a um falseamento, são excluídas do campo do conhecimento e atribuídas ao âmbito da ignorância, da crença, do erro, da superstição, das representações, da cultura. Ao conhecimento científico, é atribuída a égide da neutralidade, da imparcialidade, da objetividade (Nunes, 2008).

Não deve surpreender, portanto, o fato de que esse projeto filosófico da epistemologia seja rejeitado por teóricos que acusam o que há de nocivo na ambição generalizante e exclusivista do projeto de ciência da modernidade. Seja na antropologia médica, na etno antropologia, nos estudos feministas, ou nos estudos sociais em ciência e tecnologia, encontramos quem reivindique o abandono desse campo, propondo novas formas de pensar sobre a produção de saber, suas condições de existência, seus efeitos e suas relações com a ética e a política (Nunes, 2008). É possível encontrar também, nessa literatura quem descreva essa rejeição da epistemologia nos termos de uma virada ontológica.

Em pesquisas voltadas para estudos de populações indígenas, Viveiros de Castro (2003) chama a atenção para a maneira como o modo de pensar posto em cena pela epistemologia acaba por atribuir um caráter de falsidade, de ilusão aos sentidos encontrados. Ao ir a campo, levar a sério a diferença daqueles com quem convivemos requer ter em consideração que eles compartilham um mundo ainda desconhecido. As palavras das pessoas precisam ser tomadas como a realidade do mundo, não como um conjunto abstrato de crenças. Ao pesquisador não cabe mais se deter nos significados, ele deve voltar-se para a realidade prática do cotidiano, ou seja, o seu exercício deve ser o de fazer uma ontologia (Souza, 2012).

De modo semelhante, ao voltar-se para as ciências médicas propondo a inclusão do corpo como realidade passível de ser investigada pela filosofia e pelas ciências sociais, Mol (2002) não apresenta seus estudos como pertencentes ao campo epistemológico. Sua intenção, ao se desviar desse campo, é trazer para as ciências sociais o estudo do corpo em sua materialidade, em sua biologia. É romper com o pressuposto de que existe uma dimensão que escapa ao domínio social, cuja expertise seria exclusiva a especialistas das ciências biomédicas.

Tradicionalmente, pesquisas na área social partem da distinção entre biologia e cultura, realidade e representação. No campo da saúde, essa dualidade se atualiza na separação entre disease (a doença, entendida como dimensão biológica do adoecimento) e illness (a enfermidade, entendida como conjunto de experiências pessoais e fatores culturais associados à doença). Essa distinção delega a expertise sobre o corpo à medicina e o estudo de representações às ciências sociais. É essa divisão que Mol (2002) entende como derivada de uma abordagem epistemológica.

Ao legitimar o estudo do biológico em sua materialidade a um único grupo restrito, limitando-se à investigação de conceitos (entendidos como representações abstratas), adotar uma base epistemológica traria como prejuízo a perda do corpo como campo da filosofia e das ciências que se ocupam do social. Favoreceria a possibilidade de silenciamento de grupos politicamente engajados, através da naturalização de práticas opressoras, já que, nesse caso, as ciências biológicas detêm a última palavra sobre a realidade do corpo (Bellacasa, 2015; Harding, 1986; Haraway, 2008; Martin, 1987; Mol, 2012). Tal cisão entre materialidade e discurso dá margem à formação de uma biologia que se pretende alheia às práticas sociais e de um corpo compreensível apenas por especialistas do campo biomédico. Mantido de fora da análise das ciências sociais, o corpo ganha o estatuto de entidade unívoca, estabilizada, de ontologia fixa. Como dimensão natural e imutável, o corpo garante àqueles que se dedicam ao seu estudo a autoridade para proferir a última palavra sobre o que há de imutável no mundo. É em meio a essa divisão de expertises que a produção científica legitima práticas opressoras. A ideia de que mulheres são naturalmente passivas, submissas e indefesas, por exemplo, é encontrada em resultados de pesquisas científicas nos campos mais variados (Bellacasa, 2015; Harding, 1986; Haraway, 2008; Martin, 1987; Mol, 2012).

A crítica à epistemologia, por esse motivo, é encontrada no campo dos estudos feministas. Embora não exista um consenso quanto ao abandono do campo, há uma invenção de novas formas de epistemologias, sedimentadas na exposição de como as práticas científicas são permeadas por valores sociais e guardam o potencial de reforçar o sexismo (Bellacasa, 2015). Para a filosofia da ciência tradicional, os resultados de uma pesquisa são independentes do contexto de formulação do problema, de modo que pouco se considera a influência do gênero de quem pesquisa sobre os resultados alcançados.

A crítica empreendida pelos estudos feministas rompe o silêncio em torno da dimensão política inevitavelmente presente no campo epistemológico. Direciona-se à parcialidade das pesquisas em ciências, mais especificamente às consequências do fato de que os problemas que delas emergem são formulados por homens. As pesquisas científicas não raro desfavorecem mulheres, ora por não levarem em consideração o que apareceria como problema a partir de suas experiências, ora por difundirem resultados que reforçam a posição de dominação masculina. Como afirma Harding (1986), algo só é identificado como um problema de pesquisa na medida em que alguém o vivencia como tal. As experiências sociais de homens e mulheres constituem pontos de partida diferentes para o conhecimento, impulsionam e propagam (embora não determinem) modos de interrogar que levam a resultados distintos.

Uma introdução apressada à filosofia de Harding (1986)poderia levar à conclusão de que a autora recai num dualismo e advoga que pessoas do gênero masculino necessariamente virão a produzir conhecimentos que fortalecem o sexismo. No entanto, não é disso que se trata. O gênero importa, mas não como dualidade determinante. Harding (1986) defende claramente que a possibilidade de assumir a perspectiva de mulheres não é exclusiva às pessoas do gênero feminino. Ao propor uma teoria do ponto de vista, a autora defende que uma pesquisa tem mais chances de produzir um conhecimento objetivo e fidedigno quando quem a realiza (seja homem, ou mulher) é sensível ao ponto de vista de mulheres, independente do seu gênero. A metáfora da visão poderia ter sido descartada, já que é fulcral à ambição de universalidade da modernidade, mas é retomada de forma brilhante por Harding (1986) para fundamentar o conceito de objetividade forte, por ela trazido à existência.

Da metáfora da visão, Harding (1986) dispensa o olhar neutro que existe por si só e que pretensamente vê de lugar nenhum, substituindo-o por olhos encarnados, que nada poderiam alcançar sem a densidade material que os continua, ou seja, sem as demais sensorialidades do corpo no mundo. Haraway (1995) abraça essa metáfora, afirmando que ninguém vê com um Olho. A visão sempre acontece com olhos corporificados, imersa numa totalidade inacabada de sensorialidades e aparatos técnicos interdependentes. É a partir do corpo, ou seja, de um complexo enredamento técnico, sensorial e afetivo, que a visão tem lugar. Essa entidade imaterial, o Olho de deus, que em tese teria o poder de estar em toda parte e de tudo ver sem jamais ser visto, é, na concretude do fazer científico, a perspectiva não marcada do Homem Branco1 (Haraway, 1995). Os olhos existem como continuidade de uma materialidade corporal no mundo, como aparelhados a um ciborgue, um corpo híbrido de carne e metal de onde não podem se desprender (Haraway, 2000).

Para Harding (1986), quanto menos explícito for o lugar de onde parte o cientista, mais distorcido será o conhecimento por ele produzido. Propor-se a estar em todos os lugares simultaneamente, sem se fixar em parte alguma, produz um conhecimento enviesado. Ao contrário, o olhar que proporciona à ciência uma objetividade forte é aquele que não apaga a materialidade de suas conexões e assume o ponto de vista das pessoas em situação de vulnerabilidade. Se conceitos formulados a partir do grupo que se beneficia de uma posição de opressor forem privilegiados, os resultados serão necessariamente enviesados. A objetividade forte requer, portanto, um estudo sistemático dos posicionamentos e valores sociais que permeiam um processo de pesquisa. O conhecimento será tão mais fidedigno quanto mais próximo estiver da perspectiva de grupos oprimidos. Uma estratégia para aumentar o rigor das pesquisas é ampliar a participação de quem permanece de fora do meio acadêmico, já que são pessoas capazes de identificar, nos enunciados de um conhecimento, aquilo que decorre de uma posição social privilegiada de quem pesquisa, perpetuando desigualdades. Harding (1986) não reivindica, portanto, um relativismo em que qualquer ponto de vista conta como verdade. Tampouco defende o abandono da epistemologia.

Nos estudos feministas, foi em Bellacasa (2015) que encontramos uma aversão declarada à epistemologia e uma busca por sair desse campo. A autora não se opõe à proposta de Harding (1986); ao contrário, enfatiza as mudanças positivas que seus escritos trouxeram e afirma a necessidade de apoiar seu posicionamento como estratégia política. O que Bellacasa defende é manter a teoria do ponto de vista e a ideia de objetividade forte, levando essas contribuições para fora do campo referido como epistemologia. Harding (1986) defende claramente a existência de um saber mais fidedigno do que outro, o que Bellacasa parece entender como uma ambição normativa. A autora vê esse posicionamento como consequência inerente ao uso da palavra epistemologia, que, ao impor a dicotomia entre verdade e ficção, inspira leis canônicas do conhecimento promotoras da hierarquia entre diferentes formas de saber. Como uma das possíveis saídas para pensar a produção de conhecimento, sem recorrer a essa palavra e suas repercussões, Bellacasa aponta para a ideia de conhecimentos localizados, de Haraway (1995). Essa autora retoma a metáfora de objetividade forte de Harding (1986), acrescentando modificações que a afastam da dicotomia entre verdade e erro.

Neste ensaio, defendo não só a legitimidade como a necessidade do posicionamento de Bellacasa (2015), de Mol (2002), Viveiros de Castro (2001) e de outros autores que reivindicam uma virada ontológica e o abandono da epistemologia. Compreendo a relevância que tem a problematização dessa palavra para os seus campos de estudo. Dificilmente poderíamos deixar de considerar o que há de nocivo na produção de conhecimento justificada pela epistemologia tradicional: o efeito desrealizante sobre povos colonizados; a cisão entre natureza e cultura, materialidade e sentido, humano e não humano; a legitimação de posicionamentos políticos reacionários e genocidas; a desqualificação e exclusão de formas de saber cujas bases epistemológicas não se sujeitam às hegemônicas; a arriscada presunção de conhecimentos que se supõem universais (Nunes, 2008). Reconheço a relevância estratégica da virada ontológica e não pretendo questioná-la, de forma alguma. Talvez possamos colocar a proposta de retomada da epistemologia nos termos de uma diferença que se afirme menos por contradição ou contraste e mais por uma continuidade variada (Bellacasa, 2015); que permita cultivar desdobramentos firmados por uma "escuta não pacificada" do que dizem esses autores, fazendo aos seus enunciados uma referência que não negue possíveis dissidências (Tibola, 2014).

 

"Saberes localizados", "pensarCOM", "ciência no feminino" e "ser afetado" como possíveis formas de reinvenção da epistemologia.

Concordamos, portanto, que, para pensar o mundo dos outros sem apelar para um eventual falseamento, é necessário fazer uma ontologia. Os diferentes saberes que produzimos e encontramos em campo são elementos que se somam a outros elementos na tessitura do mundo e a nós interessa mais situá-los quanto ao que produzem do que quanto à sua acurácia. Se na epistemologia de Harding (1986) o conceito de objetividade forte parece evocar uma hierarquia dos saberes, na ideia de saberes localizados ele faz sobressair as dimensões ética e política envolvidas na produção de conhecimento. Um saber situado, produzido a partir da perspectiva do subjugado, não garante um lugar de inocência de onde seria possível proferir a verdade do mundo. Não implica assumir uma identidade total e reificada, mas em poder responder pelas conexões sempre parciais que sempre se formam. Conexões totais, ou auto-identidades, objetivam e coisificam o mundo tanto quanto o Olho de deus. Nos dois posicionamentos, o que resulta é a última palavra, entidade silenciadora pretensamente capaz de encerrar qualquer disputa política. A perspectiva de pessoas subjugadas é sim preferível, mas por não ter meios de apagar os rastros de suas conexões. É menos provável reivindicar um olhar neutro quando se parte de um lugar marcado, cedo ou tarde se é chamado a responder. Essa possibilidade de responder parcialmente, sem pretensão de ser o outro, sem por ele falar, ou com ele se confundir é o que dá passagem ao inesperado. A conexão parcial é preferível por permitir a agência do mundo em suas muitas possibilidades (Haraway, 1995).

É o acolhimento do mundo em suas diversificadas versões que a preposição COM nos incita, quando associada ao verbo pensar. A expressão pensarCOM foi levada adiante por Moraes (2010) em suas pesquisas de campo na área da deficiência visual. Ao subverter o esperado distanciamento entre cientista e mundo, a autora aposta que, uma vez em campo, o saber seja produzido em parceria COM as pessoas que encontramos, não sobre elas (Moraes, 2010).

A preposição "sobre" evoca uma mirada que se dá por um distanciamento corporal e afetivo do sujeito e que tudo pode ver. Um olhar assim acaba por fazer a deficiência existir no mundo como uma entidade determinada, fixa, dada desde sempre. Não raro essa única versão é a da falta, do fracasso, da ineficiência. Nesse campo, a proposição COM intervém de modo a criar no pensamento uma abertura ao que a deficiência pode ser, às suas distintas versões. Uma vez que a produção de conhecimento é partilhada com as pessoas em campo, uma vez que elas são tomadas como experts, é possível aprender com elas a fazer arranjos que produzam sua existência de formas variadas (Moraes, 2010). Nesse sentido, pensarCOM é afirmar o caráter sempre interventivo da pesquisa. A reflexão sobre que tipo de mundo pretendemos construir deve ser parte do fazer científico que se enriquece na medida em que se afirma como politicamente situado. Do mesmo modo, temos responsabilidade por aquilo que escolhemos incluir ou ocultar nos nossos textos e os termos que orientam essa decisão devem ser explicitados (Moraes, 2010).

Acredito que também seja nesse sentido, de um fazer científico que permita a agência do mundo, que Stengers (1989) apresenta uma ciência no feminino. Para ilustrar o que entende por esse termo, a autora descreve o trabalho de Bárbara McClintock, cientista que ousou quebrar protocolos de pesquisa comuns na sua época e, ao estudar o milho, acabou fazendo descobertas que revolucionaram a compreensão do genoma. Stengers (1989) encontra no trabalho de Bárbara, características muito peculiares e não deixa de associar suas inovações ao fato de que ela era uma mulher a fazer ciência.

Os modos do trabalho da cientista pareciam estranhos e não podiam ser compreendidos por seus colegas. Bárbara não partia de uma única questão elaborada antecipadamente e não pretendia chegar a uma generalidade sobre o milho como totalidade. Sua atitude era permeada por uma curiosidade difusa em relação a cada grão em sua singularidade. Difusa no sentido de que sua atenção se voltava para todos os problemas inesperados que cada grão de milho pudesse trazer. Cada um deles participava ativamente de sua pesquisa e mostrava quais eram as boas questões a serem formuladas. Bárbara formava parceria com o material e imprimia em seu trabalho a lentidão e a sutileza necessárias para permitir que ele contasse sua história, em seu próprio ritmo. Ela criou meios para que o material pudesse contar sua história singular e, assim, expressar resistência ao consenso e ao dogmatismo dos modelos já prontos na época.

É a esse modo de estar diante do que encontramos em campo que Stengers (1989) denomina ciência no feminino. Não porque sua possibilidade de existência esteja restrita ao fazer de mulheres, mas porque ela traz uma marca de singularidade que não chega a ser delimitada num conjunto específico de métodos a serem seguidos, num protocolo. É feminino porque não ambiciona se tornar hegemônico, uma vez que é em si mesmo aberto a invenções. É um modo de fazer sempre por fazer. De que maneira Barbara chegou a estabelecer uma parceria com cada grão de milho, qual foi o seu método? Nós não sabemos. Cada grão pediu um manejo distinto. O que Stengers (1989) chama de feminino é a disponibilidade para uma conexão que deixe falar o material. Ela descreve a lentidão e a sutileza de Bárbara, mas não como uma regra a ser seguida, a sutileza não é um protocolo. A lentidão foi o ritmo solicitado pelo material com que ela interagia. O ritmo do grão de milho não se aplica a todos os materiais. O feminino diz mais sobre a conexão, a parceria e a disposição para deixar o mundo agir e surpreender. É não partir de problemas formulados de antemão e aprender com o outro que questões importam. Em uma ciência no feminino, os diferentes saberes, as diferentes expertises em campo são materiais tomados em sua singularidade.

Podemos encontrar essa postura também no fazer etnográfico de Favret-Saada (2005), antropóloga que, após estudar a feitiçaria entre camponeses do Bocage, escreve sobre a importância de firmar parceria com quem encontramos em campo, sem excluir os afetos que perpassam as interações. Apesar de ter levado o corpo ao status de elemento necessário à prática científica antropológica, a etnografia ainda guarda o potencial de operar o distanciamento do pesquisador e a constituição do outro como uma alteridade absoluta em campo. Muitos etnógrafos, mesmo após o contato intenso com uma ampla diversidade de elementos, limitam seus escritos ao registro de aspectos intelectuais das práticas sociais: o que pensam os humanos, quais são suas perspectivas acerca de uma determinada realidade. Além de minimizar a relevância do posicionamento do pesquisador frente ao campo, a dualidade entre cultura (compreendida como significados) e realidade (que seria a natureza objetiva) leva ao que Viveiros de Castro (2001) denomina efeito desrealizante. A palavra dos nossos companheiros de campo (informantes)2 tende a ser atribuída ao âmbito da falsidade, da ilusão. Apoiados no conceito de representação, esses estudos reafirmam a dissociação entre a linguagem e o mundo, agregando signos em coletâneas que convencionaram chamar de "crenças". Reeditam, desse modo, a divisão colonialista entre primitivos e civilizados, em textos que operam uma dupla exclusão: a do corpo do pesquisador como instrumento legítimo de conhecimento e a da palavradas pessoas que encontra como autoridade etnográfica (Favret-Saada 2005; Clifford, 2011).

A falta de disponibilidade para experimentar e deixar-se afetar pelas situações encontradas em campo restringe as possibilidades de comunicação. A etnografia é reduzida a uma troca verbal descolada dos afetos que a acompanham. Os processos que estão aquém ou além da representação permanecem incompreendidos, quando não são tomados como inexistentes (Goldman, 2005). Favret-Saada (2005) ressalta que a experiência de ocupar um lugar em meio às atividades do outro não equivale a viver a realidade da mesma maneira que ele. Os afetos vivenciados por ela nas práticas de feitiçaria não informavam sobre os afetos dos camponeses, mas permitiam um modo particular de comunicação com eles, em que sobressaíam questões que, de outro modo, sequer seriam percebidas. Sua atitude não pode tampouco ser confundida com empatia. Se existe a possibilidade de o pesquisador experimentar as intensidades de um lugar, certamente é através de seu próprio corpo, não a partir de um exercício imaginativo sobre o que o outro vivencia.

Repetir efusivamente esse caráter encarnado do conhecimento é o que parecem fazer as demais autoras que tomo como referência neste ensaio. Com elas aprendo que permanecer em mim não implica estar imersa numa dobradura hermeticamente fechada sobre si mesma. O meu corpo não constitui um estorvo ao encontro objetivo com a realidade que pretendo conhecer. Ao contrário, meu dispositivo de pesquisa torna-se mais propenso à emergência do inusitado - modos de fazer que ainda desconheço e que, portanto, dão sentido ao ato de pesquisar - quando me autoriza a intervir na realidade que busco compreender e quando me permite levar em consideração a forma como as idiossincrasias que me constituem matizam e são matizadas pelos encontros em campo.

Além disso, um dispositivo que me situa como parte de um campo pessoal-político é condição necessária para pôr em cena conhecimentos assentados em posicionamentos explícitos, claramente dados aos embates que permeiam qualquer produção acadêmica. Afirmar com tamanha convicção a positividade desse inevitável enredamento está longe de ser uma postura convencional. A ubiquidade do corpo nos resultados obtidos com qualquer dispositivo científico não pode ser posta em evidência sem subverter e pôr em questão o alcance de certos modos já legitimados e majoritários de fazer ciência - aqueles guiados pelo ideal moderno de purificação e neutralidade.

 

Porque retomar a epistemologia?

Dentre as formas de pensar a produção de conhecimento que tomamos como referência, foram quatro as que apareceram neste ensaio. Poderíamos falar em uma epistemologia no feminino? Ou numa epistemologia forte? Como soa a expressão epistemologiaCOM? Seria possível fazer referência às nossas reflexões com um desses termos? O que esses modos de fazer ciência e pensar a produção de conhecimento afirmam é a possibilidade de que a virada ontológica possa coexistir com uma tentativa de fazer uma modificação da epistemologia por dentro. De fazer com que esse campo possa abrigar novas formas de pensar a produção de conhecimentos (no plural), de suas condições de existência, seus efeitos e suas relações com a ética e a política, atentando para o modo como a ciência se posiciona frente a outras formas legítimas de saber. Talvez seja possível fazer com a palavra epistemologia o que Harding (1986) e Haraway (1995) empreendem com o conceito de objetividade. Ao somar forças ao resgate da epistemologia (Nunes, 2008), o que almejamos é radicalizar a postura de fazer, das palavras, territórios políticos em disputa, e da escrita, um instrumento para subverter a rígida lógica hierárquica que determina quem pode falar, a ordem em que se fala, sobre o que se fala e quais são os métodos apropriados ao conhecimento (Clifford, 2011).

Novos sentidos para a palavra epistemologia nos interessam, do mesmo modo que buscamos manter, como pertencentes ao campo da ciência, as pesquisas orientadas por práticas que divergem daquelas inauguradas e recomendadas (quando não exigidas) pelo projeto de modernidade. Em nossos estudos, nós nos servimos de propostas de fazer ciência que diferem desse projeto e a elas nos referimos como ciência no feminino (Stengers, 1989), pesquisarCOM (Moraes, 2010) e saberes localizados (Haraway, 1995), dentre outras. Se nessa decisão reivindicamos o reconhecimento de que aquilo que fazemos não é outra coisa além de ciência, seria importante defender que, ao pensar sobre nossas produções de conhecimento e sobre múltiplas expertises, estamos fazendo epistemologia.

Ao manter as práticas de produção do conhecimento no campo da ciência, já que é de um contexto acadêmico que falamos, e ao reivindicar que a reflexão sobre nossas práticas não seja algo diferente de epistemologia, não o fazemos tendo em vista o status adquirido por aqueles que povoam campo científico e o consequente exercício de hierarquia de saberes que ele tanto fomenta. A epistemologia não implica necessariamente a criação de meios para afirmar o suposto abismo que separa o conhecimento acadêmico de outras formas de conhecimento, atribuindo somente ao primeiro o domínio da verdade e da legitimidade.

O que propomos é justamente uma tentativa de retirar da epistemologia a oposição entre verdade e erro, retirar a ciência do patamar de superioridade, do lugar de padrão a partir do qual todas as demais formas de saber devem ser avaliadas, de único lugar onde a questão da verdade é possível ser colocada (Nunes, 2008). É certo que podemos encontrar em pelo menos uma das alternativas que citamos acima, uma aversão explícita ao projeto de epistemologia da modernidade. No entanto, por maiores que sejam os esforços de apontar os riscos de uma epistemologia tradicional, não encontramos uma atitude de policiamento em Stengers (1989), nem em Moraes (2010), nem em Haraway (1995) ou Favret-Saada (2005). Não propomos para a ciência um novo paradigma que permita identificar novos modos de conhecer a serem categoricamente excluídos, deslegitimados. Longe disso, propomos uma epistemologia forte, capaz de sustentar a eclosão permanente de saberes e práticas. Numa epistemologia capaz de celebrar a diversidade de ontologias, o pensamento é uma constante aventura. Riscos existem, mas, desde que essa diversidade não nos leve a um relativismo, estaremos bem.

Um primeiro passo nesse sentido talvez seja a afirmação da impossibilidade de um campo puramente conceitual, da necessidade de partir de outra concepção de pensamento, uma concepção fundada na recusa da cisão entre materialidade e discurso, humano e não humano, corpo e linguagem. Talvez esse primeiro passo nos coloque diante da palavra epistemologia. Ao estilo de Haraway (2008), poderíamos buscar outras possibilidades de uso das palavras, reciclar aquelas cujo sentido comum já não nos serve, inventando outros mais interessantes, numa espécie de ecologia semântica. Tradicionalmente, episteme tem o significado de ciência e logos nos remete ao discurso racional que instaura regras gerais para que o conhecimento exista. Numa proposta diferente, episteme poderia significar toda forma de saber como prática e logos poderia enunciar o corpo que se volta reflexivamente para a compreensão de seus efeitos.

Talvez seja possível pensar em um logos centrado no corpo, entendido como condição de existência da cognição e não como mero aparato material de uma consciência abstrata e independente (Csordas, 2008; Haraway, 2000; Jaquet, 2011; Merleau-Ponty, 1994; Rabelo, 2005; Simondon, 2015; Spinoza, 2009; Valviese, 2013).A cultura não seria, nesse caso, um agregado de discursos carentes de vínculo com a natureza e com o mundo. Não há uma instância material única, natural e existente desde sempre sobre a qual seriam projetadas variadas abstrações culturais. O discurso é desde sempre matéria e a nós interessa o que ele faz fazer, como ele interpela os atores solicitando gestos, possibilitando agências, compondo enredamentos. Para obter os efeitos que almejamos, a via de apreensão do sentido não é o registro de uma cosmologia supostamente abstrata. A proposta é estudar o conhecimento a partir do acompanhamento das conexões que o possibilitam, através da presença afetiva diante do conjunto de práticas enredadas às práticas discursivas. Atentar para a condição encarnada dos conceitos é reconhecer a especificidade de sua materialidade, é conceber o pensamento como uma atividade possível somente e como imersa nas sensorialidades e nos enredamentos técnicos que constituem um corpo no mundo (Csordas, 2008; Haraway, 2000; Jaquet, 2011; Merleau-Ponty, 1994; Rabelo, 2005; Simondon, 2015; Spinoza, 2009; Valviese, 2013).

Precisamos de um pensamento sobre o saber que mantenha os ímpetos normativos serenados e privilegie o corpo como fundamento primordial da cognição. Uma concepção de pensamento em que a racionalidade deixe de ser identificada como atividade de uma cognição autônoma, humana e individual. É preciso encontrar aliados. Não consegui ir muito longe nessa tarefa de reformulação etimológica e não me preocupei em fazer um levantamento do que outras pessoas alcançaram nesse sentido. Sei que a própria Bellacasa (2012) aponta para a possibilidade de encontrar, na filosofia grega de Heráclito, uma concepção de logos que não se alimenta de uma ordem hierárquica e se posiciona como princípio dos devires.

 

Conclusão

Diante da diversidade de expertises em campo, ao pesquisar com aqueles que encontramos, pretendemos afirmar a possibilidade, ou melhor, a necessidade de inventar ou afirmar uma teoria do conhecimento que não seja instrumento de imposição do realismo euro-americano, que não tenha como objetivo a criação de dispositivos para distinguir entre crença, conhecimento e verdade, mas seja uma análise das práticas envolvidas na produção de saber (Nunes, 2008). Que apreenda o conhecimento não como uma entidade abstrata, não como conjuntos de enunciados apartados da realidade, hierarquicamente estabelecidos, mas como uma grande diversidade de práticas concretas que intervém no mundo e cria mundos a partir da especificidade de sua materialidade. Nesse sentido, propomos uma epistemologia de tal forma assentada no pragmatismo que dela seja possível dizer que não é outra coisa além de uma ontologia.

A meu ver, é fundamental sublinhar que é essa a epistemologia de Boaventura de Souza Santos, apresentada por Nunes (2008). Sob o nome de "Epistemologias do Sul"3, ela se fundamenta inclusive na objetividade forte de Harding (1986), no conhecimento situado de Donna Haraway (1995),na praxigrafia de Annemarie Mol (2002) e na filosofia de teóricos pragmáticos, além dos estudos sociais em ciência e tecnologia. Nunes (2008) entende que qualquer reflexão sobre a legitimidade de um conhecimento deve partir da ideia de que há uma simetria entre os diferentes saberes e que a reflexão epistemológica deve passar por um entendimento da diversidade de conhecimento como algo positivo. Entende que nenhuma forma de saber deve ser considerada mais adequada ou válida do que outra, sem que antes se tenha em consideração seus efeitos. Para esse autor, um conhecimento é avaliado em relação ao modo como contribui para o crescimento das comunidades envolvidas e dos membros dessa comunidade, sendo que crescimento tem o sentido de extensão das suas capacidades de relação, ampliação de suas capacidades de agir e aumento de seu bem-estar.

Muitas propostas sobre como pensar a produção de conhecimento já se encontram em Haraway, Harding, Mol e Bellacasa. A epistemologia de Santos (2007) é quase uma sistematização dessas ideias, acrescida das de filósofos da pragmática e dos estudos em ciência e tecnologia (Nunes, 2008). Santos se refere aos trabalhos a partir dos quais formula os fundamentos da sua proposta, de modo que não poderíamos falar em apropriação.

Em nossas reflexões, pretendemos fazer um uso da epistemologia a partir de uma política textual peculiar. Adotamos o resgate da epistemologia proposto em Santos (2007), mediado por Nunes (2008), e citamos o que traz de inovador. Acreditamos ser de grande importância a referência direta às autoras que fundamentam a reflexão sobre a produção do conhecimento, quando fazemos uso de ferramentas conceituais por elas desenvolvidas. Evitamos, desse modo, dissolver sua autoria num campo mais largo de sistematização, de modo a não repetir, em nossos textos, o apagamento intelectual de que tantas mulheres foram alvo na história da ciência, quando tiveram suas ideias apropriadas por colegas.

No fazer dessa política textual, a referência a Mol, Bellacasa, Viveiros de Castro e outras pessoas talvez seja encarada como algo contraditório, já que, em alguma medida elas propõem uma saída da epistemologia e uma virada ontológica. No entanto, como há de ter ficado claro, não propomos uma relação entre epistemologia e ontologia como dicotomia. Fazer epistemologia é uma estratégia política que, para ter os efeitos que almejamos, deve necessariamente irmanar-se com o fazer da ontologia. A relação entre os dois campos se dá como continuidade, emparelhamento, imbricação. Podemos dizer que é nessa continuidade que situamos nossos estudos, com a liberdade para seguir de um campo a outro sempre que necessário, escrevendo nossos textos de tal modo que, diante da pergunta "O que vocês fazem é epistemologia?", talvez possamos responder: "Sim, também".

 

Referências

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Recebido em 10/12/2015
Aprovado em 07/05/2016

 

 

1 É imprescindível procurar compreender melhor o que Haraway entende por "Homem Branco". Assim como em Harding (1986), uma introdução apressada aos termos da autora pode fazer com que suas ideias sejam erroneamente compreendidas como deterministas e dualistas. Por ora, entendo que, ao dizer "Homem Branco", Haraway se refere a um lugar que não pode ser atribuído de forma imediata, arbitrária e necessária a pessoas brancas do gênero masculino. Como um lugar composto por um conjunto de práticas, o "Homem Branco" requer uma soma de elementos humanos e não-humanos para encontrar atualização e perpetuação. Guardadas as devidas proporções e condições de possibilidade, ressaltando ao extremo as distintas consequências, por ora entendo que suas práticas podem também vir a ser parcialmente reproduzidas por mulheres e por pessoas não brancas. Suas práticas, jamais o seu lugar.
2 A palavra "informante" é tradicionalmente utilizada na antropologia para nomear as pessoas que se relacionam mais intimamente com o pesquisador, partilhando com afinco os detalhes de seus fazeres cotidianos. À primeira vista, ela não dá conta de enunciar o vínculo afetivo que se estabelece nessas interações e guarda o sentido de que aqueles que encontramos são meros transmissores de informações. Por isso substituí informantes por companheiros, para que fique entendido que essas pessoas, além de serem significativas, partilham conosco a autoria do trabalho realizado. É preciso deixar claro, no entanto, que essa parceria na pesquisa não é resolvida a partir de uma fácil declaração de que o conhecimento resulta de um trabalho coletivo. Partilhar a autoria com quem encontramos em campo é algo complexo, um problema cujas soluções possíveis passam pela reflexão sobre a escrita etnográfica. Para um levantamento de exemplos do que tem sido feito nesse sentido, ver Clifford (2011). É um texto antigo, mas digno de leitura. Além da adoção do termo companheiro, defendo o uso intercambiável com a palavra informante, desde que sejam observados outros sentidos que a palavra pode ofertar. Convém repensar o que acontece quando alguém diz algo que nos interessa. Para um conceito de informação como fundamento do encontro com o outro, ver Simondon (2015).
3 Ver especialmente Santos (2007).

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