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Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.1 São João del-Rei Jan./Apr. 2016

 

Corpo, tecnologias, produção de testemunho: um experimento na interface entre psicologia social e dança

 

Body, technologies, production of witness: an experiment on the interface between social psychology and dance

 

 

Dolores GalindoI; Danielle MilioliII; Wiliam Siqueira PeresIII

IUniversidade Federal de Mato Grosso - Possui Doutorado (2006) e mestrado (2002) em Psicologia Social pela Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), com Doutorado Sanduíche na Universidade Autônoma de Barcelona (2004) e Pós-Doutorado em Psicologia Social na PUCSP. Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em 1999. dolorescristinagomesgalindo@gmail.com
IIUniversidade Estadual Paulista - Possui graduação em Psicologia (UFSC), Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea (UFMT) e cursa doutorado em Psicologia e Sociedade (UNESP/Assis). daniellemilioli@gmail.com
IIIUniversidade Estadual Paulista - Possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1985), mestrado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2000), doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2005) e Pós Doutorado em Psicologia e Estudos de Gênero pela Universidade de Buenos Aires. pereswiliam@gmail.com

 

 


RESUMO

Neste artigo discutimos o processo de criação Móvel (2011), uma dança-pesquisa em psicologia social que articula Teoria Ator-Rede (TAR) e a produção de testemunhos corporais. Em Móvel, trabalhamos experimentos artísticos com o objetivo de abarcar a coemergência ontológica dos aparatos tecnológicos e do corpo, com destaque para este último. Abordamos corpo em conexão com aparatos múltiplos cujas ontologias não são estáveis, sendo inteiramente dependente das relações. A partir da agência de um corpo em dança, empregada como método de pesquisa psicossocial, produz-se um testemunho que está para além da sobrevida, por meio de aparelhamentos e desaparelhamentos que o levam ao limite da resistência, ao limite das fronteiras do humano.

Palavras-chave: Teoria Ator-Rede; Produção de Testemunho; Corpo; Tecnologias; Arte.


ABSTRACT

This paper discusses the process of Móvel creation (2011), a dance-research in social psychology that articulates Actor-Network Theory (ART) and the production of physical evidence. In Móvel, we deal with artistic experiments in order to understand the ontological coexistence of technological devices and body, especially the latter. We study bodies in connection with multiple devices whose anthologies are not stable, being entirely dependent to relationships. From a body in movement, employed as psychosocial research method, we have testimony of production which is beyond survival through pairing elements and paired opposites that lead the body to resistance limits, the limits of the human borders.

Keywords: Actor-Network Theory; Testimony of production; Body; Technologies. Art.


RESUMEN

En este artículo discutimos el proceso de creación Móvel (2011), una danza-investigación en psicología social que articula Teoría Actor-Red (TAR) y la producción de testigos corporales. En Móvel, trabajamos experimentos artísticos con el objetivo de abarcar la co emergencia ontológica de los aparatos tecnológicos y del cuerpo, con destaque para este último. Abordamos cuerpo en conexión con aparatos múltiplos cuyas ontologías no son estables, siendo enteramente dependiente de las relaciones. A partir de la agencia de un cuerpo en danza, empleada como método de investigación psicosocial, se produce un testimonio que está más allá de la sobrevida, por medio de emparejamientos y desemparejamientos que lo llevan el cuerpo al límite de la resistencia, al límite de las fronteras de lo humano.

Palabras-clave: Teoría Actor-Red; Producción de Testimonio; Cuerpo; Tecnologías; Arte.


 

 

Na imagem (Figura 1) que introduz este texto, uma dançarina, de costas para o público, está sentada sobre uma antiga Unidade Central de Processamento - CPU. Braços atados a teclados, pés atados a teclados. Cabelos presos por um fio. Seria esta a descrição? Percamos a dançarina de vista. No lugar, coloquemos uma máquina da qual ela participa, que existe a partir dos contatos e trocas entre aparatos e corpo. Esta é a primeira cena de Móvel (2011), uma dança-pesquisa em Psicologia Social que articula Teoria Ator-Rede (TAR) e produção de testemunho.

 

 

Atualmente, o grande investimento no próprio corpo, que reduz processos de subjetivação a imagens fixas de corpos ágeis e velozes, vem produzindo corporeidades moduladas pela busca de um equilíbrio vinculado à boa forma, com restrição dos possíveis em prol do ideário de aperfeiçoamento e estabilidade. Como saída à fixação de uma boa forma para os corpos e de uma boa vida ligada a determinadas corporeidades, Peter Paul Pelbart (2013) propõe pensarmos mais no que pode o corpo (questão espinosana), nas potências da vida, numa vida que é desnudamento de todos os códigos e onde é possível sustentar-se entre atualidades e virtualizações; onde é possível criar.

Uma das ênfases da Teoria Ator-Rede (TAR) é a consideração da actância material, ou seja, que corpos, naturezas, tecnologias são recalcitrantes, pois objetam, contrapõem, respondem, resistem, e mais, são coatuantes dos mais variados processos e, portanto, coconstituidores dos efeitos desses processos (Latour, 2008a). Para a TAR, "tudo - pessoas, o mundo natural, o contexto social e cultural - estão todos moldados nas relações" (Law, 2009, p. 4, tradução nossa). Com a TAR, o mundo material adquire um estatuto relacional e deixa de significar satisfação de necessidades e finalidades humanas, de ter um uso funcional, ou mesmo, por exemplo, no caso de uma obra de arte, de ser utilizado apenas para apreciação estética, transformando-se em testemunha das práticas onde está inserido; das práticas que o "fazem falar".

Nesse sentido, a produção de testemunho que pensamos aqui acontece como "co-afetação entre entidades, na produção inesperada de efeitos, e não no salto representacional dado na identidade entre uma sentença ou hipótese prévia e um estado de coisas a ser progressivamente desvelado" (Ferreira, 2011, p. 4). O mundo material que compõe o experimento de pesquisa não é objeto de investigação (Moraes, 2008), mas quem, na sua recalcitrância, produz as questões que importam.

Em Móvel, criamos situações para que a actância dos aparatos no contato com o corpo artista e pesquisador resultasse numa dança-pesquisa em psicologia social efeito de cocriações. Propomo-nos a aproximar corpo e aparatos, sem, no entanto, recorrer literalmente aos usos previstos nos recursos desses aparatos: estamos no plano ficcional, onde não buscamos representar mundos, mas inventá-los. Donna Haraway (1994, 1995a, 1995b, 2004) sugere recorrentemente que há, na Arte, potências para discutir políticas de relações, as quais, na vida, se mostram impossíveis e que mobilizar essas discussões contribui com a visualização de modos de viver as relações entre humanos e não/humanos menos pautadas por hierarquias e binarismos. Sem dúvida, a veiculação do manifesto em favor dos ciborgues, por Donna Haraway, na década de 1980, mostrou-nos como a arte e a ciência podem traçar, quando utilizadas em seus múltiplos alfabetismos, planos para romper fronteiras e estabelecer políticas de vida em prol das potências e aberturas.

O objetivo do uso do processo de criação artístico, como método de pesquisa em Psicologia, em Móvel, é o de que peças de computador e fio de telefone, no contato com o corpo da pesquisadora, ajudem a visibilizar processualidade sociomaterial e relacionalidade das associações que produzem a dança e o corpo que dança, sem apelar às grandes divisões entre humanos e não humanos, entre natural e social (Haraway, 1994). Abordamos, neste texto, um corpo em conexão com aparatos múltiplos cujas ontologias não são estáveis, sendo inteiramente dependentes das relações. Interessa-nos pensar os aparatos com base em suas gêneses não fixas e engajadas em conexões com humanos, a partir de seus processos de individuação à luz das proposições de Simondon (2007; 2009).

Partimos da acepção de que aparatos não estão fechados em si. Ao contrário, negociam suas propriedades, processo que Serres (2004) chama de aparelhagem. Nossos membros aparelham; eles nos abandonam para formar aparelhos que se parecem com eles. Esses aparelhos - objetificação de órgãos - esvaziam (desaparelham) o corpo de suas montagens adquiridas e possibilitam-nos outras invenções, além de nos ensinarem sobre nós mesmos, produzindo uma história que o autor chama de exodarwiniana: uma evolução que se dá em meio aos objetos técnicos. Com a bicicleta, afirma Serres (2004), aprendemos sobre nossas pernas, desenvolvendo um tipo de movimento único, possível apenas na integração com os aros das rodas, e também aprendemos a "saber que jamais andamos ou corremos a não ser por causa delas" (p. 113).

Pela agência de um corpo em dança, produz-se um testemunho que está para além da sobrevida, por meio de aparelhamentos e desaparelhamentos que o levam ao limite da resistência, ao limite das fronteiras do humano. Um testemunho híbrido que diz da potência máquina, quando esta não coincide com servidão. Ou seja, uma máquina que, ao invés de "reduzir multiplicidades a dualismos" tais como sujeito/objeto, natureza/técnica, humano/não humano dentre outros (Lazzarato, 2014, p. 36), opera produzindo multiplicidades em linhas de fuga por meio da reconfiguração e redistribuição desses dualismos.

Não há, portanto, diferenças essenciais ou fundamentais entre corpo e aparatos. Isso significa que estes não podem ser tratados como recursos explicativos. A dança se dá com aparatos, os quais atariam os corpos ao ritmo célere das comunicações e da produção e a um imperativo da velocidade que aplaina o sensível. Os aparatos que estão em Móvel, quando atados ao corpo, perdem sua funcionalidade prévia, engendram maquinismos que divergem da sujeição e lançam-nos em novos territórios existenciais. Ao invés do fluxo célere da comunicação em rede, por exemplo, proporcionada pelos computadores, advém a lentidão ocasionada pelo amarrar dos aparatos que doem demais para serem ignorados.

Para dançar com os aparatos, recorremos a uma modalidade do sensível que buscamos criar a partir de situações de aprisionamento numa resistência ativa. Fonseca, Thomazoni, Lockmann e Butkus (2009), ao se referirem ao acervo de produções artísticas numa instituição de internação psiquiátrica, pontuam como essa produção é dotada "de um caráter de resistência ativa que a torna peculiar, ética e politicamente significativa" (p. 413), justamente porque criada em situações de aprisionamento.

A produção artística, como testemunho, não vem de uma inspiração subjetiva do artista, da sua "criatividade", pois o testemunho é impessoal, é esgotado, no sentido de que produz um modo de individuação, de subjetivação, num meio que associa diferentes atores. A produção artística, nesse caso, é ela mesma um processo de individuação "que não se foca somente no que se é, mas, principalmente, no que se torna. Fala-se em uma ontogênese que vai além da obra ou do humano" (Oliveira, 2012, p.104). Assim como Simondon conduzia aulas utilizando equipamentos e experimentos motores, nós também o fazemos no laboratório de dança só que com peças desconectadas cujo movimento se dá com o corpo e nada demonstram. Visibilizar nem sempre equivale a demonstrar, uma vez que a demonstração está mais ligada ao factual do que a visibilidade, principalmente quando esta última é ligada à arte.

Nos relatos que escrevemos como parte dos processos de dança-pesquisa, narramos movimentos mínimos que poderiam ser considerados meras legendas de práticas, ou ainda, descartáveis à descrição de um espetáculo de dança, mas que interessam por tornarem visíveis processos de com-posição e re-com-posição da distribuição de agência entre humanos e não humanos, bem como os corpos relacionais produzidos nestas práticas (Galindo, 2014).

 

Dança-pesquisa em Psicologia Social a partir da Teoria Ator-Rede (TAR)

A proposta metodológica da TAR nos leva a olhar as relações feitas nas práticas e a não partir de nenhum pressuposto fixado antes dessas relações. Conduz-nos, ainda, a olhar menos para as formas-fixadas e mais para as formas-deslocadas e para os caminhos que estas perfazem (Law, 2008). No que diz respeito aos estudos do corpo, a TAR nos permite pensar corpos enquanto rede de proposições, ao invés de uma afirmação que remete a eles mesmos ou a construções que lhes são externas. Proposições são demarcadas por "uma obstinação (posição)", sem "autoridade definitiva (é apenas uma pro-posição)", isto é, aceitam negociar-se a si próprias "para formar uma com-posição sem perder solidez" (Latour, 2008b, p. 45).

Pensar o corpo enquanto rede de proposições é uma maneira de recuperar o corpo relacional excluído da psicologia social e, assim, problematizar o núcleo mesmo da identidade (a psyché) do campo Psicologia, campo esse historicamente construído pelas separações entre sujeito e objeto, mente e corpo, cultura e natureza entre outras (Arendt & Costa, 2005).

Para Latour (2008b), ter um corpo é aprender a ser afetado, "efetuado, posto em movimento por outras entidades, humanas ou não humanas" (p.39). E quanto mais se aprende a ser afetado por elementos variados, o corpo, uma interface, dirá Latour (2008b), se torna, também, mais descritível. A fim de que a possibilidade de descrição se efetive, o autor propõe a noção de articulações não apenas entre palavras (plano discursivo), mas entre entidades diversas artificiais (plano material-semiótico), as quais possibilitam que progressivamente se vá constituído um corpo.

Na dança contemporânea, encontramos discussões que vão ao encontro das propostas da TAR. Ao problematizar a suposta obviedade do corpo como espaço do humano, essa dança mobiliza um corpo que vai se tornando não humano em sua recomposição intensiva e permite pensá-lo como uma série de práticas, como multiplicidade e variação. À revelia de qualquer virtuosismo, a dança contemporânea visa a explorar "o movimento e, através da dança, compor um corpo que não está dado, que não se evidencia" (Sander, 2009, p. 403). É um exercício político de mostrar que há vida "aquém e além de qualquer prévia organização do corpo" (p. 403).

Conforme Lepecki (2012), o crescente interesse dos artistas da dança contemporânea em dançar com objetos - coisas, como prefere chamar o autor - é o que constitui seu exercício político, ou seja, um exercício que produz rupturas com hábitos e comportamentos. Esse exercício, para Lepecki (2012, p. 94), tem como efeito "o deslocar das noções de sujeito e objeto, performer e arte, em detrimento de uma ligação profunda entre performatividade e coisidade".

Uma variedade de trabalhos na dança contemporânea, como nos mostra Le, coloca corpo e objetos lado a lado numa quietude, o que faz visualizar a zona de indeterminação entre ambos, um devir coisa da dança que ativa o seu movimento impessoal, no qual tanto o eu quanto o outro são retirados de "si mesmo", conduzindo ambos para o mundo das relações entre seres processuais (Lepecki, 2012).

Partindo da dissolução de um eu individuado, propomos a dança contemporânea como um campo de criação de fontes de pesquisa (Spindler & Fonseca, 2008), onde é possível a construção de narrativas mínimas e singulares agenciadas nas relações instauradas num corpo que não apenas é produzido como dançante, mas que se relaciona com aquilo que as práticas de dança propõem, que dança na relação com a dança. Nas palavras de Monteiro (2011, p. 194):

O que acontece com este corpo que dança pode ser comparado àquilo que compreendemos como a exigência da obra de arte, pois os movimentos não são expressos somente para exibir as habilidades físicas do bailarino (equívoco comum neste meio da dança), mas para expressar as potências do corpo, sua leveza, seus desdobramentos, suas ultrapassagens e limitações.

Enxergamos nas práticas de dança-pesquisa uma potência de multiplicação que convoca a uma objetividade forte que se propõe a olhar "desde um corpo, sempre um corpo complexo, contraditório, estruturante e estruturado, contra a visão desde cima, desde nenhuma parte" (Haraway,1995, p. 30). Neste sentido, a partir dessa noção de objetividade que é encarnada/corporificada, o que temos são "possibilidades visuais altamente específicas, cada uma com um modo maravilhosamente detalhado, ativo e parcial de organizar mundos" (Haraway, 1995b, p.22). Nesse tipo de objetividade, nós nos responsabilizamos (somos capazes de prestar contas, de prescindir do direito de não ter cuidado) pelo que aprendemos a ver, pelas actâncias com quem aprendemos a ver, pelas práticas visuais que produzimos, já que estamos tratando de localização e não de transcendência.

Estamos lidando, nas práticas de dança-pesquisa, com um conhecimento que não pode ser antecipado e que não se relaciona com a busca de um tipo de objetividade "a serviço de ordenações hierárquicas e positivistas a respeito do que pode ter validade como conhecimento" (Haraway, 1995b, p. 17). Estamos lidando com o que pode propiciar a criação de relacionalidades entre humanos e não humanos onde corpos, para além de modificarem a si mesmos, alteram e resistem às formas hegemônicas e homogeneizadoras de organização do mundo. São danças que oferecem possibilidades de mobilização necessárias à ação que transforma os modos de viver (Guzzo & Spink, 2015), pondo em xeque a divisão estanque entre humanos e não humanos ao trabalhar a sua porosidade e co-constituição.

 

Um corpo-experimento em pesquisa

Para discutir o corpo artista e pesquisador na relação com os aparatos, iremos fazê-lo pelas aprendizagens durante as afetações que tomaram a forma de aparelhamentos, desaparalhamentos e relacionalidades, neste caso, mas que não necessariamente se estendem como princípio explicativo a outros modos de constituição dos corpos: são aprendizagens situadas (Haraway, 1995).

Nas práticas de dança-pesquisa em Psicologia Social com não humanos, traduzimos da dança à pesquisa psicossocial, dispositivos próprios do contato de improvisação. O contato de improvisação (ou improvisação de contato), criado por Steve Paxton e herdeiro do pensamento produzido na década de 1970, questiona as hierarquias e hegemonias estabelecidas por padrões e sistematizações de técnicas e gêneros artísticos. Daí a possibilidade de tradução, já que para dançar com não humanos é preciso pensar que não há modos de dançar únicos, mas sim parciais, provisórios, frágeis e temporários. Neste sentido, não quer estabelecer nenhuma definição ou formulação clara sobre seus processos e não se propõe a ser validada e qualificada para nenhum discurso oficial (Damian, 2014).

No princípio, imaginamos teclados amarrados aos pés. Interessava-nos problematizar os deslocamentos do corpo em posicão ereta; convidar os aparatos a criar resistências aos movimentos habituais de um corpo formado por técnicas de dança. Ao procurar lugares para coletar os teclados imaginados encantamo-nos por outra peça em desuso (resíduo tecnológico), a placa-mãe, em função de seu design e pela história de sua funcionalidade contada a nós pelo especialista que nos cedeu às peças. O entusiasmado especialista não cessava de apresentar peças, inclusive sugerindo movimentos: "Essa você pode colocar aqui (no rosto)" (Diário de processo, 2011). No contato com as possibilidades que cada peça mobilizava, optamos por coletar uma variedade delas e deixar que os experimentos na sala de dança decidissem quem iria dançar. O entusiasta técnico nos contava o quanto as peças que agora nos cedia já comunicaram, já mudaram as relações que estabelecemos com o mundo tornando-as mais céleres.

Os experimentos na sala de dança consistiriam, inicialmente, em espalhar aleatoriamente as peças pelo chão, observar, posicionar, manusear, tocar, ouvir, caminhar por entre elas, deslocá-las. Apenas os teclados tinham um destino previsto, mesmo assim, esse era um destino incerto. Não sabíamos se o os teclados sob os pés aguentariam o peso do corpo e se com os pés amarrados a sapatilhas tão estranhas alguma dança seria possível.

Para o processo de aparelhagem, amarramos teclados aos pés e aos braços, primeiramente, com os próprios cabos que se encontravam atrelados aos teclados. Um fio de telefone foi introduzido no processo posteriormente e, a princípio, seria utilizado apenas para fortalecer as amarras, mas, possibilitou a presença das placas-mãe (como narraremos posteriormente), em uma situação diferente, já que amarrá-las ao corpo não se mostrou interessante a esta dança.

Amarramos diferentes peças no corpo, mas a maioria recusou a proposta: não fixavam ou machucavam o corpo. Ficamos, inicialmente, com as possibilidades dos teclados e passamos a explorar diversos modos de amarrar até encontrar um tipo de amarração que não machucasse em demasiado a pele ou comprometesse a circulação sanguínea do local, todavia, que obtivesse força suficiente para manter as peças presas ao corpo dançando.

Os teclados confirmaram sua fragilidade quando amarrados aos pés: sua inflexibilidade fazia-os quebrar ou soltarem-se dos pés e peças como as teclas caíam com facilidade. Precisamos mobilizar essa inflexibilidade e dançar a partir dela. A recalcitrância dos aparatos conduziu a dança para um extremo no qual a coatuação se tornou um imperativo a sua continuidade. A CPU se transformou em integrante essencial a ampliação do experimento com teclados. Sentados sobre ela, movimentos são improvisados sem sobrecarregar os teclados amarrados aos pés.

Durante o processo de dança pesquisa, para fazer dançar os aparatos foi preciso produzir recalcitrância, isto é, produzir situações onde entraríamos em contato com a resistência dos aparatos, com o inesperado. É uma postura na qual os não humanos são convidados a questionar o processo de criação (Despret, 2011), conduzindo a redistribuições de agência já que peças e corpos se aparelham e desaparelham mutuamente.

A intensificação dos movimentos foi desfazendo as amarras. Desamarrar foi inevitável quando as movimentações corporais se ampliaram, vindo daí o título que revela aquilo que passamos a perseguir nesse trabalho: Móvel, ou seja, continuamente no movimento, na mudança. Nos desaparelhamentos de Móvel, temos o desfazer das amarras e corpo, de sorte que aparatos entram em dinâmicas de afastamento parciais onde outras invenções se delinearam. Um a um os aparatos foram se soltando, até que restou um último contato. As placas-mãe estavam conectadas ao corpo pelo fio de telefone, o qual, preso ao teto, formava o que chamamos de móbile (Figura 2).

 

 

Para a construção do espetáculo, queríamos evidenciar cada relação com as peças em sua especificidade, sem, porém, produzir cenas separadas. Todos estavam no palco ao mesmo tempo e, embora a iluminação estabelecesse cenas isoladas, o fio do móbile preso ao corpo funcionava como a conexão entre estas. As cenas foram organizadas de modo que a conexão com o móbile permanecesse sutil. Metros de fio formaram o móbile para que os deslocamentos do corpo não o movimentassem. Sem as amarras, iniciamos outro tipo de relação com os aparatos e dançamos relacionalidades, ou seja, relações entre corpo e aparatos que não implicam isomorfismo, mas um tornando-se com (Haraway, 2008).

As relacionalidades entre corpo e móbile não remetem as desconexões à produção de separações geradoras de fronteiras limitantes ou delimitadoras. Na ausência de relações, acabaríamos por estagnar a dança. Sem amarras, ainda continuamos a dança a partir dos aparatos que passaram a estabelecer dinâmicas de aproximação ou, quando o contato gera risco ao corpo, afastamento. Nem fusão, nem separação, mas actantes dançando a partir de suas singularidades.

Nos desaparelhamentos, visualizamos a impossibilidade de não nos relacionarmos mesmo em situações onde a distância parece ser a única saída ao corpo. As dinâmicas de aproximação e afastamento nos ensinam sobre a instabilidade geradora de graus de liberdade para um corpo nu, quer dizer, um corpo que foi esvaziado nas afetações que o constituíram; um corpo onde outros agenciamentos subjetivos podem desdobrar-se e tomar consistência.

 

Máquinas, aparelhagens, concretização

Para Simondon (2007), a máquina é um objeto técnico que incorpora um pensamento humano referente ao seu funcionamento. Contudo, segundo o autor, quando a máquina funciona, isto é, quando o pensamento humano é transduzido para uma máquina funcionando, dá-se uma autonomização dessa funcionalidade que produz variações nos seus funcionamentos previstos; um movimento vivo existente na máquina. A gênese das máquinas não se encontra, nesse sentido, na intencionalidade humana, mas na sua funcionalidade autonomizada.

Podemos pensar, com Simondon (2007; 2009), que máquinas também são seres que, assim como humanos, se encontram envolvidos em processos de individuação. Na visão de Simondon, antes de indivíduos (um ser que é uma unidade ontologicamente estável e imutável), existem seres pré-individuais que não possuem essências determinantes, mas singularidades. À constituição (individuação) dos objetos técnicos, Simondon (2007) chama de processo de concretização.

Concretizar difere do processo de transformar um objeto natural em artificial, como quando reproduzimos a natureza em estufas, por exemplo, e a manipulamos de modo que essa adquire uma existência completamente dependente dessa manipulação. Na concretização, o objeto técnico se aproxima da autorregulação visualizada no natural e adquire potência de interferir no objeto natural. Com a noção de concretização, não é mais somente o humano que modifica o objeto técnico, já que esses passam a ser pensados como seres cocriadores de mundos.

Em Móvel, sugerimos que é possível dialogar com a noção de concretização. As peças, em sua resistência às movimentações dos braços e pés, começam a soltar-se ou quebrar. Não conseguimos dirigir sozinhos os cursos da dança. Ao amarrar teclados aos braços, entramos em contato com um braço que não pode dobrar-se, pois suas articulações estão comprometidas, e foi preciso explorar movimentos com os ombros e as mãos.

Chegamos também a experimentos de bater e esfregar os teclados uns nos outros e no corpo. Ações que produziram intensa sonoridade, mobilizando os ouvidos a explorar ritmos. A máquina nem sempre exibe sua maquinação, os fluxos sonoros atravessam o corpo, interpelam-no a dançar. A concretização amplia as conexões com os objetos, destes com o mundo do qual são também um testemunho.

 

Desamarrar, mover, viver

Os desaparelhamentos de Móvel iniciaram com a intensificação dos movimentos, a qual fez com que os teclados amarrados aos braços começassem a se soltar. Em posição ereta, com os braços sem teclados, encontramos os pés/teclados. Os movimentos dos pés também resultaram do contato com meios externos, como chão e sapatos. Os teclados, amarrados aos pés, tornaram-se mediadores para pensar o equilíbrio e deslocamento do corpo. Caminhar com os teclados causou um estranhamento para o corpo acostumado com outros tipos de sapatilhas. Como caminhar com sapatilhas tão frágeis que podem, a qualquer momento, quebrar e machucar membros como os pés, tão importantes para quem dança?

Com o tempo, descobrimos a capacidade de variação dos teclados e dos pés. Deslocamentos, saltos e giros. Essas grandes sapatilhas, bem maiores que os pés, aumentavam a superfície de contato entre pés e chão e contribuíram com a função de equilibrar o corpo ereto. Aqui, o tempo de resistência da fusão é menor que a dos braços/teclados e, ao invés de intensificar a soltura, nos esforçamos em manter a fusão para ampliar o dança. O desaparelhamento passa a ser um processo desencadeado pela resistência e afetações produzidas pelos teclados que forçaram a soltá-los ou, simplesmente, interromper a dança, entregar-se, portanto, à morte.

Sem os teclados, os pés retomaram o contato com o solo e aprenderam sobre estabilidade relacional. Experimentos de equilibrar o corpo com um dos pés sem teclados no chão foram explorados. Foi preciso reaprender a andar com os pés no chão. Os teclados levaram a pensar que, a cada dança, produzimos um território ao mesmo tempo em que entramos em relação com territórios marcados por outras danças que o constituíram. Heranças que transformam o dançarino em busca de repisar esse chão para que algo novo possa aparecer (Lepecki, 2008).

A estabilidade instável dos teclados mostra que o caminho da mudança é percorrido na variação, no "meio", nos lugares mestiços, nos limiares. No meio, onde estamos? Cá ou lá? Entre dois lugares, é possível estabilizar-se e desestabilizar-se a medida dos encontros; é possível transformações nos modos de viver (Serres, 2001).

 

Marcas, testemunho

Rolnik (1993) observa que, no desenrolar de nossa existência mutante e mergulhada em ambientes humanos e não humanos, experimenta-se uma textura ontológica constituída nos fluxos de nossa composição atual com outros fluxos, o que produz sempre outras composições que nos desestabilizam enquanto "sujeitos". Essa desestabilização - um estado inédito - é uma violência vivida pelo nosso corpo atual e estabelece o que a autora chama de marca: uma diferença "que instaura uma abertura para a criação de um novo corpo, o que significa que as marcas são sempre gênese de um devir" (Rolnik, 1993, p. 2).

Uma vez colocada em movimento, uma marca, pontua Rolnik (1993), continua a viver como potencial criador e pode ser reativada a qualquer momento. Para que a marca se reatualize em uma nova situação de conexão, basta encontrar ressonâncias em algum ambiente e, quando isso ocorre, produz-se uma nova diferença, um novo corpo. Assim, nas palavras da autora:

vamos nos criando, engendrados por pontos de vista que não são nossos enquanto sujeitos, mas das marcas, daquilo em nós que se produz nas incessantes conexões que vamos fazendo. Em outras palavras, o sujeito engendra-se no devir: não é ele quem conduz, mas sim as marcas. O que o sujeito pode é deixar-se estranhar pelas marcas que se fazem em seu corpo, é tentar criar sentido que permita sua existencialização - e quanto mais consegue fazê-lo, provavelmente maior é o grau de potência com que a vida se afirma em sua existência. (Rolnik, 1993, p. 3).

Nesse sentido, a memória de marcas é uma memória sempre atual, potencialmente geradora de novos corpos que se compõem nos encontros das marcas com os fluxos que as atravessam ininterruptamente. Em Móvel, quando os membros se libertaram, ficaram evidentes as marcas que constituíram esse processo. Para outros movimentos, foi necessário, antes, esgotar o processo anterior.

Entramos numa zona de transição que nos levou, inicialmente, a exercitar movimentos relacionados aos anteriores, como efeito potencial do arranjo anterior, porém, em um lugar onde a relação se desse com as ressonâncias incorporadas das amarras, não com as amarras propriamente ditas. Os movimentos, sem dúvida, remetiam ao corpo anterior, mas suscitaram o aparecimento a mudança na maquinação composta.

Vários outros movimentos e deslocamentos são possíveis para o corpo sem os teclados amarrados, todavia, nem todas as amarras estão desfeitas: o fio de telefone, amarrado aos seios, ainda sustenta a aparelhagem. Propomos, no processo de desamarrar o fio de telefone, que a impossibilidade de fixar uma situação se aproxima do que Simondon (2009) denomina processo de individuação, já que Móvel nada tem a ver com o subjetivo ou individual, mas, ao contrário, com os encontros que nos desamarram de nós mesmos.

A individuação é amplamente discutida em diferentes teorias filosóficas que buscam aquilo que faz do indivíduo (ser vivo) um ser único. Segundo Simondon (2009), existem duas vias que abordam a realidade do ser como indivíduo e não como individuação: a via hilemófica e a substancialista.

A via hilemórfica se estabelece pela contraposição matéria/forma, cujo encontro resulta em um indivíduo pronto. Vejamos o exemplo do autor, a respeito da feitura de um tijolo. No hilemorfismo, a massa de argila é considerada uma matéria sem forma que, para se tornar tijolo, precisaria ser modelada por uma fôrma de madeira. Nessa via, é somente a partir do objeto pronto que definimos sua constituição. Tanto o processo de feitura, no qual a potência tijolo já se encontra na argila, quanto à intervenção do oleiro são descartados.

A via substancialista, por sua vez, partindo do modelo atomista, considera o ser consistente em si mesmo e a individuação como um fato acabado. A origem do indivíduo estaria no composto de átomos reunidos ao acaso e o importante é a existência do átomo em si, não o que leva os átomos a se agregarem e se tornarem coesos.

Em ambas as vias, tem-se um investimento na polarização da individuação e não no processo, de maneira que a aposta de Simondon (2009) é abdicar da ideia de indivíduo pronto, presente nas vias hilemórfica e substancialista e investir na de processo de individuação.

Individuar, para Simondon (2009), é resolver um problema existencial, e este é um movimento que nunca chega ao fim. Cada individuação gera uma realidade pré-individual, onde residem singularidades que formam conjunturas para a passagem ao plano individual. O indivíduo não é a origem de todas as coisas, mas o processo de individuação é a origem do indivíduo. Origem para o qual sempre retorna, em um fluxo ininterrupto de modificação. Ou seja, não se parte de um indivíduo pronto, uma essência, mas de uma ontogênese, onde há relações constantes que individuam.

 

Singularidades, dançar no presente

Um indivíduo que não é um ser nada mais é do que a interrupção temporária de um dado processo, não sua origem ou resultado fixo (Neves, 2006). A noção de disparação ajuda a pensar no dinamismo que anima a individuação. Simondon (2009) toma essa noção da teoria da percepção visual, na qual a disparação designa a relação entre as imagens captadas pelo olho que apresentam perspectivas diferentes e, no entanto, formam uma unidade que integra elementos distintos, graças a uma dimensão nova, que é o relevo.

Assim, tanto a individuação quanto a disparação são concebidas como descobertas emergentes em situações de divergência, nas quais se faz premente uma nova axiomática. A individuação incorpora a diferença a um novo conjunto que se forma com base no surgimento dessa diferença. Isso se dá em estado de equilíbrio particular, chamado de sistema metaestável.

De acordo com Simondon (2009), a metaestabilidade é o motor da operação de individuação e é pela noção de transdução que o autor pensa a ideia de metaestabilidade. Para ele, o princípio da individuação é a mediação, isto é, a relação entre seres que coexistem, mas que possuem naturezas diferentes. Na transdução, estabilidade e instabilidade andam juntas: há impossibilidade para o ser de continuar a viver sem variação, sem encontros. As naturezas diferentes - singularidades - em contato produzem um estado que rompe com o equilíbrio pré-relacional, ao mesmo tempo em que fornecem o germe de uma nova estruturação.

Vejamos o que acontece em Móvel, na cena do fio que conectava corpo e móbile. Com o movimento do corpo, também o fio se solta caindo por dentro da roupa que antes o escondia. Agora, não resistimos, ao contrário, buscamos movimentos para potencializar o desenrolar dos fios. Mesmo assim, há resistência. Alcançamos alguma fluidez, porém, em alguns momentos, o fio, como uma trava, interrompia essa fluidez.

Movimento dançante não é sinônimo de fluidez (Lepecki, 2010). A dança do desenrolar se assemelha mais ao navegar em mares revoltos, onde somos jogados de um lado para o outro. A consistência do corpo deve ser adquirida para que possamos dançar, evitando a manipulação ou mesmo, ao contrário, a soltura completa, o que conduziria a antecipação precoce do processo.

Buscamos o desamarrar para criar outro mundo, não para desvelar uma essência. Em Móvel, quando nos propomos jogar com o fio escondido, entramos na zona de individuações sociotécnicas, nos fluxos que conduzem a relacionalidades entre humanos e não/humanos, no que "se move com". Buscamos um corpo que transporta e traduz coexistências, não como um signo, mas como um nó (Haraway, 1995) por onde confluem os elementos em circulação no processo.

 

Recalcitrância, dançar com

Não há mais amarras, o fio agora está caído no chão. Mas ele ainda sustenta a dança com os aparatos, pois é nele que estão presas as placas-mãe compondo o móbile. Para continuar a relação, foi preciso aproximar-se, não mais como um corpo/máquina, porque eram necessárias outras relações para continuar a dançar. Um exercício voltado a decompor, a desarticular pro-posições. O móbile criado requer outro corpo para existir. Dançar. Continuar dançando. Um imperativo. No entanto, agora dançamos com, pois os aparatos concretizados ensinam o corpo sobre as relações de mútua constituição que não implicam isomorfismo. Nada está pré-definido, quer-se um corpo que se faça interessar e isso se dá pela ressonância com os outros.

Pensamos nos humanos e não/humanos como singularidades em relações não hierárquicas, nas quais um não controla ou domina o outro, porém, compartilham práticas (Latour, 2008). Entendemos que as fronteiras entre humano e máquina são porosas, pois "o que conta como humano e não humano nunca está dado por definição, mas apenas por relação, por envolvimento em encontros mundanos e situados, onde as fronteiras tomam formas e sedimentos de categorias" (Haraway, 1994, p. 64, tradução nossa). Sabemos ademais que a categoria "não humanos" abrange diversas singularidades e que se, de um lado, nos ajuda a pensar alternativas a um vocabulário voltado às relações sujeito e objeto, de outro, pode nos levar a essencializações.

Para dançar a partir do móbile, para um dançar com, foi preciso responder aos modos de mover que o móbile sugeria ao corpo e, ainda, aquilo que o singularizava enquanto um actante participando da dança. Mesmo parado, o móbile é uma densidade energética cujo contato gera pequenos choques eletroestáticos. Não é fácil dançar a partir do móbile. As placas podem machucar o corpo, são pesadas, cheias de pequenos aços afiados. O peso e a instabilidade do móbile produzem sempre imprevisibilidade. Às vezes, parecem não nos dar muita opção de relação. Para nos relacionarmos com o móbile, foi preciso estabelecer um tipo de contato mais lento, diferente do das outras peças. A resistência das peças desestabiliza o corpo ainda sob efeito das danças anteriores e, ambos, dançam um novo processo.

O corpo evita o choque direto, a fim de que o impacto das placas não machuque. Não reagimos às placas, mas criamos mecanismos para dançar com, isto é, para entrar nos modos de viver e morrer que traçam relações entre singularidades, realçando que estamos implicados uns nos outros, emaranhados. Humanos e não humanos não preexistem a sua constitutiva intra-ação em cada dobra de tempo e espaço, efeitos de ações multidirecionais (Haraway, 2008) que têm um incrível poder de nos contar que a natureza humana é também a não humana.

O corpo se arrisca e intensifica a movimentação do móbile. O móbile com o qual dançamos não possui a leveza da maioria dos que conhecemos. Precisa mais do que uma brisa suave para mover-se, necessita emprestar do corpo as forças para suas turbulentas oscilações. Corpo e móbile em plena intensidade da relação. Risco que se relaciona com o pensamento de que o que leva o corpo a adquirir variação é o contato com aquilo que ele exclui, ou seja, com o risco pensado em sua potência, como um espaço de fixidez e mobilidade, como aquilo que desestabiliza e altera o equilíbrio em busca do corpo que ainda virá a ser.

Na figura do acrobata discutida por Guzzo (2004), vemos tecida a questão da potência do risco. O acrobata, em aparente equilíbrio, precisa da desestabilização do corpo em queda para soltar-se e voar. Manobra de risco momentâneo, pois novamente o equilíbrio precisa ser mobilizado para o desenvolvimento de suas manobras aéreas, bem como para voltar ao aparelho com segurança. Eis a dança com o móbile: aquilo que assusta e põe em risco cria, inversamente, um espaço mais seguro onde há o distanciamento o qual produz um tempo necessário para uma boa relação.

Os espaços grandes produzidos na dança com o móbile começam, no entanto, a questionar a resistência do móbile. Até quando ele poderia sobreviver à turbulência instaurada por um novo afastamento? Foi preciso perguntar ao fio, conhecer melhor sua resistência. Mordemos o fio; ele é resistente. Dentes adquirem paciência e persistência, porque morder os fios era um trabalho delicado e silencioso.

Serres (2001) nos recomenda os saberes da degustação. Exaltamos a boca tagarela que não saboreia, pois está anestesiada. A boca que degusta, em sua quietude, coleta uma enorme quantidade de dados. A boca que devora desgasta-se e exime-se. Para Serres (2001), dos cinco sentidos, o gosto é o mais oprimido pela linguagem, por disputar com essa a mesma boca, por estar demasiado próximo localmente da linguagem.

O conhecimento do mundo, segundo Serres (2001), não está na linguagem, mas no nosso corpo. Tudo passa, antes, pelos sentidos. O saber do gosto não vem do ingerir, contudo, do degustar como ato de conexão com o mundo, o que só acontece quando a língua da linguagem é silenciada. Esse saber do gosto é, ainda, um saber diferenciador, ao contrário da visão e da audição, os quais são saberes integradores. No gosto, o alimento é apreciado no instante, num tempo que é passagem. Nas palavras de Marandola-Jr (2014, p.21):

O gosto apresenta um mapa de sentidos e saberes. Mas esta constituição se dá por aquilo que o gosto traz como viagem, como saberes de lugares distantes, como constituição em viagem. Serres (2001, p. 165) afirma: "Viajamos: nosso intelecto atravessa as ciências como o corpo explora continentes e mares, um perambula, o outro aprende. Não há nada no intelecto se o corpo não rodou por aí afora, se o nariz nunca fremiu na rota das especiarias." A viagem é o desenho de mapas pelo próprio movimento do corpo, que aprende na aventura da amplitude dos gostos possíveis: sapiência e sagacidade.

Em nosso processo, os dentes mobilizam o testemunho do fio, explorando sua resistência, produzindo quem é capaz de cortá-lo. Não conseguimos usar nossos fortes molares especialistas em cortar, visto que o fio não chegava até eles. Tivemos que recorrer aos dentes dianteiros, mais fracos e menos especialistas em cortar e fazê-los adquirir essas propriedades. Tirar sua anestesia e cortar como pequenos roedores com seus fortes dentes dianteiros capazes de atravessar a dureza. O corpo resiste.

De acordo com Braidotti (2006), a resistência tem a ver com a duração do intensivo no tempo - espaço. Essa se desenvolve na capacidade de sermos afetados aos pontos extremos. Isso significa suportar dificuldades e alegrias. Na resistência, temos um ato ético e estético de afirmação da positividade do sujeito intensivo - sua afirmação como potência de continuar e perdurar; sua sustentabilidade.

O fio rompe-se, mas não soltamos a parte rompida. Agora também sustentamos as placas-mãe. Passamos a sentir o peso dessas placas e a dificuldade de movimentá-las linearmente. Dançar a partir do móbile requer força, porém, também suavidade. Por fim, soltamos as placas e nos voltamos para o que sobrou do móbile pendurado: uma placa-mãe solitária.

Presos ao pequeno móbile pendurado ao teto, os dentes solicitam a ajuda do pescoço para produzir movimento. Os circulares e diagonais parecem ser os que mais dão resultados. A intensidade dos movimentos pode ser mais bem calculada e, confiantes, esperamos que o aumento dessa intensidade impossibilitasse aos dentes segurar o móbile, o que nesse momento era seguro, já que corpo e móbile estavam posicionados de modo que não poderiam chocar-se.

Em nossa posição, observamos o movimento do móbile que gira no sentido inverso ao produzido pelo corpo, retornando ao lugar inicial. Esse pequeno móbile, mais leve, está sujeito à força das pequenas oscilações do ar. Dificilmente fica completamente parado. Quando o móbile parece pausar, podemos, com a tranquilidade daqueles que findam uma jornada, nos apresentar como corpo repleto de marcas.

O corpo se mostra sem as peças, mas as marcas visíveis na pele denunciam as afetações do corpo que se articulam nas relações com os outros. Marcas que se acumularam a cada experimento. Corpo agenciado pelas e nas impressões produzidas pelos fios, teclados, placas - corpo que continua intensivamente ligado aos não/humanos.

A dançarina está impregnada das relações que a constituem: o corpo não existe antes da dança; faz-se nela: múltiplo: heterogêneo: maquínico. O que era máquina aparece como marcas que se desfarão, já que findo o espetáculo. Porém, as marcas invisíveis, aquelas que se apresentam como referências dos modos de vida que vamos criando, como figuras de um devir (Rolnik, 1993), seguirão com o corpo, agora um corpo nu e sustentável, pois expropriado de si e aberto ao com.

 

Considerações Finais

Móvel não é senão uma maneira de dançar-pesquisar a nossa coconstituição como agenciamentos, onde as fronteiras dos corpos estão em constante rearranjo. Nenhum corpo é uno. Dança que delineia num emparelhamento e desaparelhamento dos corpos treinados para técnicas específicas em busca de sua potência irruptiva, não referente, mas constitui, ao mesmo tempo, um hiperaparelhamento dos corpos, já que produz corpos capazes de articular diferentes afetações, criando, em um fluxo contínuo e singular, outros modos de dançar (Louppe, 2000).

O experimento de dança-pesquisa que narramos faz parte de um campo de investigação mais amplo voltado à interface entre Psicologia Social e Arte Contemporânea, o qual nos leva, em uma frente, à produção de trabalhos em arte e, numa segunda frente, aos desafios e dilemas da escrita que definimos aqui enquanto narrativa.

Entendemos que o ato de narrar faz parte da dança-pesquisa psicossocial e requer uma modalidade de escrita estética que, como nos ensina Law (2000), colabora para redistribuir e performar prazer, beleza, horror - ou seja, faz presente explicitamente a dimensão da aesthesis nas narrativas mínimas que emergem como produção de testemunho, no contemporâneo.

 

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Recebido em 21/10/2015
Aprovado em 03/05/2016

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