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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versión On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.1 São João del-Rei enero/abr. 2016

 

O que pode o corpo de uma psicóloga?

 

What can the body of a female psychologist?

 

¿Qué puede hacer el cuerpo de una psicóloga?

 

 

Debora Emanuelle Nascimento Lomba

Mestranda UERJ

 

 


RESUMO

O presente trabalho pretende abordar a atuação de uma psicóloga em um pré-vestibular comunitário, bem como as transformações ocorridas em sua atuação através de um "fazer no feminino" inspirado por Stengers. Em seu texto A ciência no feminino, essa autora traz a história de Barbara McClintock e sua maneira peculiar de pesquisar; trago a ideia desse fazer como uma postura diferente da lógica dominante de fazer ciência. Como relato dessa experiência, trago um diálogo com uma aluna que após me gerar um incômodo com sua fala, me fez pensar a construção de um corpo disponível enquanto psicóloga. Para fundamentar esta discussão, adoto principalmente os pensamentos da feminista negra Bell Hooks e dos autores da Teoria Ator-Rede, Bruno Latour, Anemarie Mol e John Law.

Palavra-chave: Corpo; Psicologia; Feminino.


ABSTRACT

This study aims to report the role of a female psychologist in a pre-university community as well as the changes occurring in her acting through a "make as a female" inspired by Stengers. In her essay Science in the feminine, this author tells the story of Barbara McClintock and his peculiar way to search; I report the idea of this acting as a different way from the dominant logic of doing science. To report this experience, I present a dialogue with a student who, after generating a nuisance with her speech, made me think of building a body available as a female psychologist. In support of this argument, I adopt especially the thinking of the black feminist Bell Hooks and of the authors of the actor-network theory, Bruno Latour, Anemarie Mol and John Law.

Keywords: Body; Psychology; Feminine.


RESUMEN

Este estudio tiene como objetivo abordar el papel de una psicóloga en una comunidad pre-universitaria, así como los cambios que ocurren en su actuación a través de un "hacer en el femenino", inspirado en Stengers. En su ensayo La ciencia en el femenino, esta autora cuenta la historia de Barbara McClintock y su peculiar manera de pesquisar; relato la idea de esta actuación como una forma distinta a la lógica dominante de hacer ciencia. Para narrar esta experiencia, presento un diálogo con una estudiante que, después de generar un malestar con su discurso, me hizo pensar en la construcción de un cuerpo disponible como una psicóloga. En apoyo de este argumento, adopto en especial los pensamientos de la negra feministas Bell Hooks y de los autores de la teoría del actor-red, Bruno Latour, Anemarie Mol y John Law.

Palabras clave: Cuerpo; Psicología; Femenino.


 

 

Um pouco do percurso desviante

Os caminhos por onde passei me permitiram chegar à proposta de trabalho que desenvolvo hoje. Comum a um percurso sendo trilhado, encontrei diversas pessoas, dentre elas muitos professores, alunos e autores dos mais diversos países, que se faziam presentes na leitura e discussão de seus textos em grupos de estudo, assim como profissionais de diversas áreas de conhecimento, além de cadeiras, salas, quadros, microfones e tantos outros não-humanos fundamentais para minha formação. Este artigo então, como um recorte da dissertação que desenvolvi, pretende contar algumas das histórias desse caminhar em busca de uma atuação em psicologia que vem sendo desempenhada, num pré-vestibular comunitário, por meio de um fazer no feminino. Isabelle Stengers (1989) será a primeira e talvez a grande contribuição para que essa discussão se inicie e se desenvolva.

Entre caminhos que fogem de uma sequência linear, os desvios me levam a trajetos extremamente curvilíneos e desconhecidos, onde torno e retorno a autores, a ações, a propostas, num ziguezague que, por mais caótico que possa parecer, faz construir um trabalho, não como um modelo, mas como possibilidade que surge a partir de afetações. Digo isto, inicialmente, para poder salientar para o leitor que este texto pretende ser igualmente desviante. Com a intenção de fazer uma caminhada com calma e o máximo de clareza que consigo, devo salientar, entretanto, que não pretendo poupá-lo das curvas e retornos. Contando com seu aceite em me acompanhar, proponho que sigamos fazendo um primeiro retorno à autora supracitada e uma indagação disparadora: com o que Isabelle Stengers pode contribuir neste trabalho?

Com as muitas leituras recorrentes no grupo de pesquisa Entre-redes1, que conta com a "regência" de nosso professor Ronald Arendt na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, circulam em nossa roda de discussão textos e assuntos dos mais diversos. Graduandos, pós-graduandos, professores, café, bolos, biscoitos e tantos outros, compõem esse cenário fértil de discussões densas pelo seu peso intelectual, mas leves pelo aroma e pelo calor afetivo. Foi assim, num desses momentos, que surgiu o texto A ciência no feminino, de Isabelle Stengers (1989), texto relativamente curto, de leitura fácil e incrivelmente provocadora.

Nesse texto, a autora nos apresenta Barbara McClintock, uma cientista considerada velha e louca por seus colegas cientistas - importante frisar - homens! Uma pesquisadora que tinha no milho seu interesse de estudo, mas que, para conhecê-lo, apostava em uma maneira de pesquisar diferente daqueles que a desdenhavam. E é sobre essa possibilidade de fazer diferente e apostar nisso como uma legítima maneira de pesquisar que faz com que esse texto sirva de referência para este artigo, bem como para a proposta de trabalho que venho desenvolvendo.

Barbara McClintock, afirma Stengers, percorria um caminho solitário diante de seus colegas pesquisadores ao se permitir uma lentidão no trato com o milho, assim como disponibilidade em estar atenta à singularidade do que o milho poderia contar. E assim, se dedicando cuidadosamente a conhecer e se interessar pelo milho com o qual lidava, desenvolvia uma proposta de pesquisar com lentidão, com atenção e cuidado, o que a diferenciava e até mesmo distanciava dos seus colegas, homens cientistas.

Os apontamentos de Stengers (1989) acerca do pesquisar de McClintock tem sua potência no diálogo e no encorajamento de práticas em pesquisa. Aqui afirmo que também em práticas de trabalhos cotidianos, que não pretendem corresponder à lógica de práticas aceleradas e desencarnadas. É por isso que trago a seguir, com toda a inspiração que o texto de Stengers contribui para pensar um fazer que é no feminino, o que não está vinculado a uma discussão de gênero, ou seja, não se trata de um fazer unicamente feito por mulheres, mas de uma proposta que contrasta com a lógica dominante de atuação empreendida por homens, tal como Stengers aborda em seu texto.

Stengers designa como caçadores de matilha os pesquisadores homens, contemporâneos de McClintock, comprometidos com uma maneira de pesquisar cuja rapidez é um princípio. Segundo essa autora, diferente dessa lógica dominante, McClintock atuava como um caçador solitário, evitando toda precipitação para estar atenta às singularidades de seu objeto de estudo, o milho. E, com este artigo, faço coro com Stengers e tantos outros autores citados aqui, apontando que pretendemos afirmar uma maneira diferente de pesquisar, não para mudarmos o paradigma atual, mas para pensar a legitimidade de práticas que se desviam da lógica dominante que, por diversas vezes, pode ser entendida como a única maneira de fazer ciência.

Façamos outro desvio. Do cenário agradável de discussão na universidade, com meus colegas que circulam no meio científico, quero nos transportar, você e eu, para um local de extrema importância para minha formação, onde as práticas acontecem cotidianamente, concretizando ou não o que muito se pensa e se discute na universidade. Esse lugar, onde faço trabalho voluntário desde 2008 e que hoje é uma ONG, atende jovens e adultos interessados em ingressar numa universidade. Um pré-vestibular, localizado numa comunidade de Sulacap, zona oeste do Rio de Janeiro. Um lugar que sintetizei e carinhosamente apelidei de, simplesmente, Pré2.

Com esse desvio venho contar minha história de chegada e de permanência nesse local. Cheguei a esse lugar sendo aluna da graduação em psicologia, me formei, ingressei no mestrado, tudo isso enquanto atuava como coordenadora e psicóloga dessa instituição. Inicialmente, em 2008, fui convidada para fazer parte da equipe de eventos desse curso pré-vestibular que tem o compromisso de auxiliar os alunos a ingressarem em uma universidade, mas também visa atuar de forma a contribuir para a formação de outras maneiras de pensar e agir de alunos, professores e tantos outros que pertencem àquela comunidade. Foi assim que, como primeira incumbência, fui solicitada a organizar um Simpósio sobre educação comunitária (SIEC). Logo depois, surgiu outro evento primordial para a mudança de direção da minha trajetória nesse lugar.

O Dia da Orientação foi então um evento voltado para os alunos e para o qual levamos diversos profissionais para conversarem sobre a profissão, apresentando aspectos acerca dos afazeres cotidianos, do mercado de trabalho, do salário, dentre outros assuntos que pudessem interessar aos alunos. Assim, psicólogos foram convidados a ministrarem palestras e oficinas que tratassem o tema da escolha profissional. A repercussão desse evento foi surpreendente e pareceu ser tão interessante para os alunos que fez com que eu me questionasse se fazia sentido continuar na equipe. Foi então que, no início de 2009, decidi criar a equipe de psicologia.

Na ocasião, eu era uma aluna de graduação em psicologia que acabara de criar uma equipe visando abordar questões referentes à orientação profissional. Entretanto, até o momento, meu único contato com essa área havia sido aquele evento que propiciou a criação da equipe. Ciente da necessidade de aliados, iniciei a busca por companheiras de equipe e professores que pudessem me auxiliar nesse trabalho.

Para a equipe, entrei em contato com algumas colegas de turma e apresentei o que eu acreditava que poderia ser o trabalho inicial no Pré. Enfatizando a ideia de trabalhar com orientação profissional, ao receber o aceite de três amigas de turma, fomos buscar uma professora para nos orientar. Hoje percebo que éramos alunas buscando por orientação para tentar orientar outros alunos.

A parceria com essas aliadas durou apenas um ano. As amigas decidiram que não queriam continuar e a professora nos apresentou uma maneira de atuar que não estava sintonizada com o que estávamos buscando. Sendo assim, continuei solitária, mas confiante de que ainda havia algo a explorar nessa estrada. E, não sabendo muito bem para onde ir, a quem recorrer, eu segui atuando como me era possível naquele momento, com os recursos que tinha.

Cabe ressaltar que, ao criar a equipe, havia a necessidade de haver uma coordenadora para ela e, no caso, assumi também essa função. Era uma aluna de graduação tentando descobrir como se tornar psicóloga, mas também como se tornar uma coordenadora. Aparentemente um duplo desafio. Posteriormente, identifiquei a importância dessa dupla tarefa. Digo isto por entender que o fato de assumir essas funções exigiu de mim um pouco mais de dedicação e comprometimento com o curso, visto que, enquanto coordenava, escalas de trabalho no local precisavam ser cumpridas, o que me aproximava não só dos alunos e voluntários, mas também das questões que envolviam a gestão, os problemas, as alegrias, os desafios que se apresentavam.

Sendo assim, pude vivenciar e decidir os vários formatos do curso. Vez ou outra, éramos convocados a pensar sobre como lidar com ele. No início da fundação do Pré, a configuração era a seguinte: tínhamos uma sala de aula que funcionava em uma das salas do térreo da Igreja Batista Betânia, em Sulacap e, no alto do quarto andar, conseguimos uma sala para a coordenação guardar os materiais, ter reuniões, enfim, se organizar de alguma forma. Naquela época funcionávamos com aulas apenas aos sábados.

Com o passar do tempo começamos a pensar na possibilidade de transferir as aulas para os dias da semana. Nessa época, já não habitávamos mais as dependências da igreja mencionada. Havíamos nos mudado para o centro de ação social da mesma igreja, que funcionava a alguns metros da instituição. Nessa configuração ocupamos uma sala de aula no terceiro andar e uma sala da coordenação no segundo andar.

Os voluntários do Pré, em sua origem, eram amigos do fundador do curso e aceitaram participar da empreitada visionária de um morador da comunidade que despertou para auxiliar outros jovens que, como ele, pretendiam ingressar numa universidade com o intuito demudar sua condição econômica. Entretanto, com as imprevisibilidades da vida, assim como com as mudanças de rotinas e vontades, muitos foram tendo de deixar de atuar no Pré, restando-nos a necessidade de buscar substitutos.

Essas mudanças na configuração do curso, de local e/ou de horário, foram acompanhadas por mim, vivenciando o dia a dia do curso que, também, com o passar do tempo, se tornou uma ONG. O que fica disso tudo para este artigo a que me dedico a escrever? Posso dizer que acompanhar esse cotidiano foi uma das mais potentes ações que eu poderia ter para guiar o trabalho a ser desenvolvido a cada momento no Pré.

Como ingressei nesse local no período de graduação, procurava entender como as discussões e ensinamentos das salas de aula da universidade poderiam me auxiliar no direcionamento de um trabalho nas dependências do curso. E, habitando esses lugares, vivenciando as mais diversas situações, em dado momento me percebi capturada por um tema que agora se torna central neste artigo, assim como foi central para escrever a dissertação: o corpo ou, para ser mais precisa, o corpo disponível de psicóloga. Estudei sobre esse tema com as especificidades existentes ao me aliar aos autores da TAR. Talvez seja a hora de um novo desvio ou de um retorno; vejamos.

 

Um encontro com a Teoria Ator-Rede (TAR)

Se pude aqui, neste artigo, iniciar a discussão abordando as contribuições de Isabelle Stengers ao nos apresentar Barbara McClintock, é porque um outro encontro, anterior a esse, foi possível: o encontro com a Teoria Ator-Rede, com o professor Ronald Arendt. O mesmo que havia sido o professor da disciplina História da psicologia I e que havia provocado em mim grande desconforto ao ensinar, no primeiro período da graduação, que só poderíamos falar de história das psicologias, no plural. Recém-chegada na universidade, me espantava e encarava com desconfiança, essa afirmação de que não haveria uma psicologia única, unificada (Lomba, 2011). Talvez um primeiro temor em relação ao que poderia ser essa profissão que eu havia escolhido.

Levei esse incômodo até o fim do período seguinte, quando novamente tive aula com o professor, agora com a disciplina História da Psicologia II. Ao término desse segundo período, segui assistindo às demais aulas e, com o passar do tempo, desejando que fosse verdade aquilo que havia me incomodado na fala dele, no início da graduação. Aguardava que as muitas psicologias se revelassem a mim. Foi então que o reencontro com esse professor se deu.

Incentivada por uma colega veterana, bolsista de iniciação científica do professor, me inscrevi na disciplina eletiva que ele ministraria - Teoria das emoções: uma abordagem alternativa. Era uma disciplina que discutia as emoções a partir da versão da psicóloga e filósofa Vinciane Despret. Fascinada com as discussões em sala, queria mais. E, mais uma vez incentivada pela colega, demonstrei meu interesse para tal professor que me acolheu em seu grupo de pesquisa Entre-redes. A partir daí, Vinciane Despret, Bruno Latour, John Law, Annemarie Mol e tantos outros se tornaram leituras básicas para todo e qualquer trabalho que me dispunha a realizar.

Encontrei-me com os que se tornariam meus aliados, os autores do campo de estudos Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), mais precisamente, da Teoria Ator Rede (TAR). O antropólogo francês Bruno Latour, o sociólogo inglês John Law, a psicóloga belga Vinciane Despret, a médica e filósofa Anemarie Mol, a etnógrafa francesa Favret-Saada, assim como outros autores nacionais e internacionais, tornaram-se fundamentais para a minha maneira de conduzir a pesquisa, assim como para meu trabalho no Pré.

Como pode ser observado, esse campo de estudos CTS é composto por estudiosos de diversas áreas, mas que unidos contribuem, principalmente, para as ciências humanas com questões que fazem pensar a ética e as práticas de pesquisas. Com estas, fazem existir múltiplas maneiras de pesquisar em suas áreas, mas que transbordam seus campos e se apresentam como outra possibilidade de pensar as pesquisas em psicologia. Sendo assim, como Despret (1999) aponta, podemos falar da construção de versões acerca do que nos propomos a estudar, muito mais do que a constatação de uma verdade única.

O campo de estudos CTS compreende que ciência, tecnologia e sociedade são entrelaçadas com a articulação dos seus atores, humanos e não humanos. O que isto indica? Dentre muitas conclusões, uma que se faz primordial nesta explanação, é que o social não é dado de antemão, mas é o efeito das associações de elementos heterogêneos. Uma concepção que oferece outra possibilidade de entender como o mundo, a pesquisa e a realidade podem ser vistos.

Assim, temos, por exemplo, o que Annemarie Mol (1999) denomina política ontológica, ou seja, o entendimento de que a realidade é performada por meio das práticas. Logo, o mesmo acontece com nossas pesquisas. Como o pesquisador é um dos atores nesse cenário, nossas práticas produzem realidades. E há de se pensar nisto cotidianamente: os efeitos de nossas produções fazem existir realidades das mais diversas.

Portanto, considero fundamentais duas perguntas colocadas pela psicóloga e pesquisadora Marcia Moraes (2011), em seu artigo dedicado a discutir o ato de pesquisar e narrar seu trabalho no campo da deficiência visual. Ela indaga "[...] em que mundo queremos viver? Que realidades serão performadas a partir de nossas práticas e dispositivos de pesquisa?" (Moraes, 2011, p.5). Duas perguntas, aparentemente simples, mas que reservam um desafio ao terem de ser lembradas a todo tempo com o intuito de nos orientar e fazer repensar, sempre que necessário, as nossas práticas.

Dessa forma, meu encontro com os autores da TAR e do campo de estudos CTS, que contribuem com questões teórico-metodológicas comprometidas com uma atuação ético-política e interessadas no aprendizado, me permitiu pensar uma atuação desviante. Aliás, esse encontro me possibilitou uma desacomodação acerca do que poderia ser a Psicologia. Em contato com os trabalhos desses autores fui apresentada, também, à possibilidade de pensar o corpo de psicóloga, assim como os efeitos da performance dele.

E neste artigo, das muitas histórias que poderia contar acerca do meu fazer no Pré, quero poder explorar uma em especial, a fim de discutir um tema de meu interesse e que foi o ponto central da minha dissertação: o corpo. Para ser mais específica, a construção do corpo de psicóloga, a partir da atuação no pré-vestibular comunitário, apresentado nas linhas acima. Como de costume neste texto, aviso que faremos outro desvio.

 

Psicóloga ou amiga?

Nas linhas acima, em meio a tantos desvios, brevemente tracei um panorama do meu ingresso no Pré, instituição na qual faço trabalho voluntário desde 2008. Agora quero, então, poder contar uma história mais atual em relação ao que tem sido o trabalho desenvolvido mais recentemente nesse local. Para isso, conto com o diálogo entre as práticas que desenvolvo e as muitas contribuições dos autores da TAR e do campo de estudos CTS.

E por falar em práticas, foram essas performadas no Pré, com alunos, voluntários e demais atores, humanos e não-humanos, as responsáveis por me levar a discutir essas questões acerca do corpo. Ao me lançar nesse campo completamente inspirada por Favret-Saada (2005), disponibilizando-me a afetar e ser afetada, senti na pele uma convocação que não podia passar despercebida. É por isso, então, que venho falar da possibilidade de uma atuação cujo corpo disponível de psicóloga permite esse jogo de afetação, bem como a abertura para que surpresas no e com o campo possam ser vivenciadas.

Favret-Saada (2005) nos conta sobre sua pesquisa e experiência com a feitiçaria no Bocage e propõe abordar a possibilidade de estar envolvida com o campo de maneira a afetar e ser afetada. Isso indica uma predisposição a considerar o pesquisador envolvido com os atores do campo a ponto de ter essa relação de afetação, visto que esses atores também interpelam os pesquisadores, da mesma maneira que contribuem para a construção do conhecimento. Um posicionamento arriscado, afinal, nas palavras da própria autora "Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer" (p.160)

Embora ainda seja demasiado complexo abordar que corpo é esse do qual estou falando, cabe apontar alguns dos caminhos possíveis a se percorrer. Longe de pretender criar uma dicotomia de corpos, mas buscando contrapor algumas possibilidades de corpos performados em determinadas atuações, quero poder concentrar esta discussão no que chamo de corpo disponível de psicóloga. Sendo assim, algumas contribuições de Bruno Latour, Favret-Saada, John Law e Annemarie Mol me auxiliarão e me permitirão dialogar com eles a partir das práticas performadas no Pré.

Nessa trajetória de atuação com alunos e voluntários dessa instituição, desde o início imprimi um movimento de não fazer atendimentos individuais se esses fossem encaminhamentos institucionais numa tentativa de corrigir ou reparar algum "aluno problema". Ao contrário disso, busquei atuar em conjunto com os demais coordenadores no intuito de entendermos todo e qualquer problema gerado em nosso espaço físico, envolvendo duas ou mais pessoas, como sendo algo a ser tratado de maneira coletiva. Mas, quando era solicitada por algum aluno ou voluntário para realizar um atendimento individual, não hesitava em cumprir o chamado.

E foi assim, com uma proposta de atuar mais nos corredores do que em salas fechadas, que fui me aproximando, principalmente, dos alunos. O simples transitar pelos espaços comuns do prédio ou o ato de ir, regularmente, às salas de aula para dar recados, levar a lista de chamada ou simplesmente dar boa noite, permitiram que uma aproximação pudesse ocorrer entre mim e os alunos. Bastaram alguns desses encontros informais para que abraços e toques afetuosos ocorressem. Um clima mais descontraído, no entanto profissional, estava sendo performado dia após dia.

E envolta nesse clima, recebi um desses pedidos de atendimento. Uma menina muito participativa nas aulas, muito comunicativa e atuante no nosso curso, me pedia para conversar, já que eu era psicóloga e ela não estava se sentindo muito bem. Prontamente disse que trataria de conseguir um local para que pudéssemos falar um pouco mais à vontade. Sendo assim, solicitei à secretária do prédio onde ocupamos as salas de aula e da coordenação, uma sala extra para atender a aluna. Ela me entregou a chave de uma sala pequena, que bem parecia um consultório com poltronas, cadeiras, mesa.

Já acomodada na cadeira, disse então que ela poderia ficar à vontade para falar e que ali poderíamos conversar. Ela me contou os problemas pelos quais estava passando com familiares, com outro curso onde estudava na parte da tarde, assim como outros problemas que se somavam e a incomodavam naquele momento. Conversamos, entre lágrimas, tristezas, lembranças, esperanças até ela dizer que já se sentia um pouco mais aliviada por poder desabafar. Entendendo que havíamos terminado o assunto, nos abraçamos e ela seguiu para aula.

Meses depois, essa mesma aluna me fez um novo convite: encontrava-se novamente angustiada e precisava falar. Num movimento muito parecido com o da primeira vez, solicitei uma sala extra, mas, dessa vez, me foi concedida uma nova sala. Essa, muito espaçosa, com um ar de sala de arte, foi o cenário do nosso segundo encontro. Antes mesmo que pudesse dizer qualquer coisa, essa aluna me surpreendeu dizendo que estava precisando conversar e, que naquele momento, estava ali para falar com a Débora amiga, já nem era mais com a Débora psicóloga. Ela que havia me procurado por conta dos incômodos que sentia por diversas situações da vida acabara por provocar um incômodo em mim ao dizer tal frase.

Recolhi esse incomodo para poder ouvir o que ela tinha a me dizer e então poder ajudá-la. Novamente entre lágrimas, tristeza, esperança, abraço, conversamos e ela disse já estar se sentindo mais aliviada. Finalizamos com um abraço carinhoso, quem sabe um abraço de amigas. E, durante um bom tempo aquela frase me acompanhou. Perturbavam-me uma dúvida sobre o que aquela relação estava sendo, bem como um questionamento sobre meu profissionalismo. Por vezes me indaguei se estava sendo amiga daqueles alunos e com isso deixando de ser psicóloga, deixando de ser profissional. E não conseguia entender o que de fato aquela simples, porém perturbadora frase queria dizer. Foi então que algumas leituras me ajudaram aos poucos a elucidar do que se tratava aquele incomodo.

Ao escolher trilhar um caminho que venho chamando neste texto de fazer no feminino, muitos riscos se apresentam. Riscos com os quais a priori já sabemos que teremos de lidar, como por exemplo, o vivenciado por Barbara McClintock, o de não ser considerado ciência o que se faz, por simplesmente não reproduzir as práticas previstas pelo modelo dominante. Mas, há também riscos que se apresentam pelo simples fato de se abrir para a possibilidade de se surpreender com o campo e no campo. Ao assumir a postura de fazer uma psicologia de corredor também corro riscos, nesse caso, o de parecer mais amiga do que psicóloga.

E, pensar num fazer no feminino que inclui esse arriscar-se não tira a legitimidade dessa proposta. Pelo contrário, vem afirmar a busca por um método tal qual John Law (2003; 2004) nos convida a pensar, tendo em vista o mundo caótico e complexo do qual fazemos parte: uma metodologia disposta a conhecer de modo igualmente bagunçado. Um fazer no feminino, fazer uma bagunça no método, abrir-se para a possibilidade de se surpreender com e no campo, tendo um corpo disponível de psicóloga, me parecem um caminho possível e desejável a partir das práticas que tenho vivenciado no espaço do Pré, mas também em outros locais, como no grupo Entre-redes, nas salas de aula etc.

Para pensar essa prática em psicologia com uma proposta de corpo disponível, assim como elucidar meu incomodo gerado pelo que a aluna do Pré me disse, preciso seguir com calma. Além dos autores citados como importantes aliados nesta escrita, há em especial, uma que não faz parte do grupo de estudiosos do campo de estudos CTS e da TAR, porém foi primordial para me auxiliar nesta discussão, a saber: Bell Hooks. Uma feminista negra, cujo belo texto me provocou um despertar para uma prática que já vinha desenvolvendo, mas que possuía dificuldade de legitimar.

Em uma das aulas do mestrado, numa disciplina que tratava de explorar textos e temáticas feministas, me deparei com o texto Eros, erotismo e o processo pedagógico, de Bell Hooks (2010). Um título que por si só me despertou tremenda curiosidade e que, a partir da leitura integral do texto, só confirmou meu entusiasmo inicial. E, tendo como recordação o incômodo que senti ao ouvir a aluna dizer que queria conversar com a amiga e não com a psicóloga Débora, a cada frase desse texto percebia o que de fato acontecera e esse acontecimento se revelava a mim de outra forma.

Com uma escrita simples e encarnada, Bell Hooks, que se apresenta com seu pseudônimo em letras minúsculas como um posicionamento político, vem falar do corpo em sala de aula. A autora expõe o dualismo metafísico ocidental, a noção de que existe uma cisão entre o corpo e a mente e o quanto nossa atuação em sala é pautada por esse princípio filosófico. Mas, a despeito dessa tradição, Bell Hooks vai chamar atenção para a necessidade de repensarmos e subvertermos esse paradigma. E com a pedagogia crítica feminista ela vem nos falar da possibilidade de estar em sala de aula de maneira inteira. A exemplo disso, a autora relata um pouco da relação que teve com um aluno:

Tínhamos uma relação apaixonada de professora e aluno. Ele tinha quase dois metros de altura; me lembro do dia em que chegou atrasado na aula, foi direto à frente da sala, me pegou no colo e girou comigo. Todos riram. Eu o chamei de "bobo" e ri. Ele fez isso para se desculpar por ter se atrasado, por ter perdido uns poucos momentos de paixão em aula. Assim, levou seu próprio momento. Eu também adoro dançar. E assim dançamos rumo ao futuro como camaradas e amigos, ligados por tudo quanto havíamos aprendido juntos na classe. (Hooks, 2010, p. 261).

Em sala, o que Hooks ensinava era que haviam outras maneiras de pensar o corpo, as relações, o modo de ser dentro e fora de sala. Dessa forma, relembrando o incomodo que mencionei, percebi que outro corpo disponível estava sendo performado por mim, como psicóloga do Pré, e que permanecia sendo profissional. A diferença é que minha prática não estava sob a égide do dualismo metafísico ocidental, o que de fato faz mudar a maneira de conduzir meu trabalho onde quer que eu esteja.

E, uma vez feita essa descoberta, foi aguçada a minha curiosidade para tentar entender então que concepção de corpo era essa que pautava meu trabalho. Assim, faço um retorno aos autores da TAR mencionados acima. O primeiro que pretendo resgatar é Bruno Latour, um antropólogo francês, primordial para quem se interessa pelos estudos referentes a TAR. Com suas publicações em francês, inglês e também em português, me deparei com um de seus textos que já havia lido tempos atrás, mas que foi ganhar um novo sentido recentemente, com a releitura que fiz imbuída da vontade de pensar outras possibilidades de pensar o corpo de psicóloga em meu trabalho no Pré, bem como em minha pesquisa.

Latour (2007), se tornou um grande aliado para pensar o corpo, haja visto seu texto Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre ciência, onde ele inicia contando que na conferência que deu origem a tal texto, ele pediu para os participantes anotarem num papel o antônimo da palavra corpo. E, diante de uma lista de palavras, das mais diversas, duas lhe chamaram mais a atenção: insensível e morte. Ao refletir a partir dessas palavras, Latour vai afirmar que

O corpo é, portanto, não a morada provisória de algo de superior - uma alma imortal, o universal, o pensamento - mas aquilo que deixa uma trajetória dinâmica através da qual aprendemos a registrar e a ser sensíveis àquilo de que é feito o mundo. É esta a grande virtude da nossa definição: não faz sentido definir o corpo diretamente, só faz sentido sensibilizá-lo para o que são estes outros elementos (Latour, 2007, p.39)

E, ao prosseguir utilizando o exemplo do "kit de odores", afirma que ter um corpo é aprender a ser afetado, e com isso ele quer apostar num aprendizado pelo corpo. Para apoiar seus estudos acerca desse tema, ele se vale das proposições de Stengers e Despret, tecendo um diálogo entre seus trabalhos.

Mas, além de pensar, com Bell Hooks, sobre outras possibilidades de pensar e performar o corpo e, com Latour, poder pensar o corpo como afetação e portanto, aprendizado por meio dele, quero trazer mais uma contribuição fundamental para a discussão desse tema. Afinal, muitos autores afirmam que temos e outros que somos um corpo. Mas, Annemarie Mol e John Law (2004) vem propor uma terceira maneira de pensar: o corpo que fazemos.

Para esses autores, nós fazemos nossos corpos e nas práticas os performamos e é assim que acredito que o acontecimento com a aluna que mencionei anteriormente me fez perceber que há um corpo de psicóloga sendo feito, cuja afetação e o aprendizado por meio dele contribuem para sua performance. Um corpo de psicóloga, que de tão próximo e disponível para afetar e também ser afetado foi performado com essa aluna que, devido à proximidade com a qual nos relacionávamos, julgou ser uma relação de amigas.

Hoje, livre do incomodo e tendo amadurecido a ideia de que é possível ser psicóloga, ser profissional, ser confundida com uma amiga, ser próxima dos alunos com os quais convivo, acredito que essa seja uma prática legítima. Se por vezes me incomodei, agora quero poder afirmar a possibilidade de uma prática incorporada e profissional.

Dessa maneira, penso que o incomodo que foi gerado pela fala da aluna do Pré permitiu que eu pudesse atentar para algo tão importante em minha prática, mas que talvez até o momento estivesse passando despercebido: a construção de um corpo disponível de psicóloga.

 

Referências

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Recebido em 10/12/2015
Aprovado em 27/04/2016

 

 

1 O Grupo de pesquisas Entre-redes é formado por graduandos e pós-graduandos, em geral orientados pelo professor Ronald Arendt. As reuniões acontecem pela manhã, todas as quintas-feiras e têm como tema de discussão os trabalhos desenvolvidos pelo grupo, livros, textos, filmes e tantos outros materiais.
2 Pré é a abreviação de PREVEST, inicialmente, o nome do curso pré-vestibular em que faço trabalho voluntário e onde ocorreram as histórias que me propus a contar. (Ver Lomba, 2016).

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