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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.1 São João del-Rei jan./abr. 2016

 

Possibilidades de inserção da Psicologia no trabalho com os cuidadores de crianças com deficiência

 

Psychology insertion possibilities in working with caregivers of children with disabilities

 

 

Ana Claudia Lima MonteiroI; Camila Portella LopesII; Clara Santos Henriques AraújoIII

IProfessora Doutora do Departamento e do PPG em Psicologia da Universidade Federal Fluminense E-mail: anaclmonteiro@yahoo.com.br
IIAluna de Graduação do Curso de Psicologia e bolsista de Extensão da Universidade Federal Fluminense E-mail: cportellalopes@gmail.com
IIIAluna de Graduação do Curso de Psicologia e bolsista de Extensão da Universidade Federal Fluminense E-mail: clarasha@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo fala sobre o trabalho realizado com o grupo de cuidadores das pessoas com deficiência beneficiadas com o Programa de Natação Adaptada, oferecido em parceria com o Departamento de Educação Física da Universidade Federal Fluminense entre 2013 e 2015. A partir do que Vinciane Despret (2011) chama de mal-entendido, procuramos pensar a inserção do profissional de psicologia neste espaço. Durante nosso trabalho foi preciso modificar nossa proposta de intervenção algumas vezes, dentre as mudanças, destacamos a proposta de desvincular a figura do cuidador da pessoa que é cuidada. Em seguida, pensamos no trabalho de intervenção em conjunto com a equipe da Educação Física, numa tentativa de ampliar as possibilidades de cuidado. Quando pensamos em cuidado como um processo, como proposto por Annemarie Mol (2008), foi possível aceitar um espaço de intervenção que fugisse do ambiente asséptico normalmente utilizado pela Psicologia. Esta mudança possibilitou o surgimento de afetos e articulações que não eram possíveis anteriormente.

Palavras-chave: estudos da deficiência; cuidadores; mal-entendidos.


ABSTRACT

This article is about the work with the caregivers of the people with disability who attend the Adapted Swimming Program, offered in partnership with Federal Fluminense University's Physical Education Department between 2013 and 2015. From what Vinciane Despret calls a misunderstanding, we try to formulate the insertion of the psychology professional in this space. During our work we had to modify our intervention proposition a few times, initially thinking about separating the caregiver's figure from the person who is 'receiving' care. Then, we thought about an intervention made with the P.E. team. When we took care as an ongoing process, as proposed by Annemarie Mol, we could accept an intervention space that escaped the aseptic environment normally used by Psychology. This change allowed the unfold of affections and articulations that were not possible before.

Key words: disability studies; caregivers; misunderstandings.


RESUMEN

Este artículo habla sobre el trabajo realizado con el grupo de cuidadores de personas con discapacidad beneficiadas con el Programa de Natación Adaptada, que se ofrece en asociación con el Departamento de Educación Física de la Universidad Federal Fluminense entre 2013 y 2015. A partir de lo que Vinciane Despret llama malentendido, procuramos pensar en la inserción del profesional de psicología en este espacio. Durante el trabajo se tuvo que modificar nuestra propuesta de intervención algunas veces, reflejando en primer lugar sobre separar la figura del cuidador a la de la persona que es cuidada. Por último, pensamos en un trabajo de intervención en conjunto con el equipo de Educación Física. Cuando tomamos el cuidado como un proceso, tal como es propuesto por Annemarie Mol, podemos aceptar un espacio de intervención que se aleja del ambiente aséptico normalmente utilizado por la Psicología. Este cambio hizo posible el surgimiento de afecciones y articulaciones que no eran posibles anteriormente.

Palabras-clave: estudios sobre discapacidad; cuidadores; malentendido.


 

 

Introdução

Nosso trabalho, em Psicologia, se insere num campo problemático: entre a saúde e as humanidades. Portanto, a própria escrita deste texto caminha nesta dupla direção. Por um lado, falamos do cuidado e de como podemos pensar a saúde daqueles que cuidam de crianças com deficiência. Por outro lado, nos utilizamos de uma metodologia e de uma forma de escrita que segue pelos caminhos da pesquisa em ciência humanas. Utilizamos narrativas, diários de campo e apostamos na construção dos afetos que ocorrem nas relações que estabelecemos em nosso campo. Neste sentido, buscamos pensar uma intervenção que tenha como pontos de discussão a questão do cuidado e os mal-entendidos promissores. Em relação ao nosso trabalho existe algo ainda mais específico: como pensar a saúde dos cuidadores uma vez que estamos lidando com questões relacionadas à delicadeza das relações de cuidado que permeiam o trabalho com pessoas com deficiência?

Sob o ponto de vista da saúde, pensamos que esta é algo que se constrói, que não está dada de antemão e precisa ser problematizada ao longo de nossa prática. O problema central em nosso texto, portanto, é pensar as relações de cuidado e como estas se estabelecem. Neste sentido, o que pensamos que seja saudável para os cuidadores das crianças com deficiência nem sempre é aquilo que estes próprios cuidadores pensam. Sabemos com Canguilhem que "nem o vivente, nem o meio podem ser ditos normais se os considerarmos separadamente" (Canguilhem, 2012, p.176). Portanto, a saúde não deve ser vista como algo implícito ao sujeito, mas algo que deve ser construído com o meio e comporta as errâncias que compõem esta relação.

O que a caracteriza é a capacidade de tolerar variações das normas para as quais apenas a estabilidade das situações e meio, aparentemente, garantida e, de fato, sempre necessariamente precária, confere um valor enganador de normal definitivo. O homem só é verdadeiramente são quando é capaz de muitas normas, quando ele é mais do que normal. (Canguilhem, 2012, p. 183)

Para fins de nosso trabalho, podemos pensar que a questão da deficiência pode ser compreendida também nestes termos: como algo que ocorre especificamente em cada corpo, em cada relação e que, para além do diagnóstico, fala das errâncias, da maneira como construímos as nossas relações de cuidado. Os cuidadores, portanto, são parte atuante desta saúde e compõem um tecido próprio com aquele que cuida, com a rede de saúde, com o projeto da Natação Adaptada e com muitos outros espaços de cuidado que frequentam. Mesmo que este seja nosso campo de inserção, as discussões acerca do lugar da deficiência em nosso trabalho não serão aprofundadas. Cabe salientar apenas que tomamos a deficiência como algo que, ao mesmo tempo em que se apresenta como diferença, como aquilo que marca o sujeito e o insere no mundo a partir de algumas especificidades, é também algo que precisa ser pensado a cada relação, a cada história e a cada narrativa. Mesmo que a vida dos cuidadores seja marcada pela deficiência daqueles a quem eles cuidam, não é somente deste ponto de vista que as relações são feitas. Em nosso trabalho percebemos que muitas daquelas crianças circulam em muitas redes de cuidado, em instituições diversas, o que as aproxima. Porém, cada cuidador articula esta rede de maneira diferente, insere a questão da deficiência de uma forma própria em suas vidas. Escola, trabalho, centros de reabilitação, casa, família, apresentam nuances diferenciadas em cada um daqueles cuidadores. Portanto, a deficiência é o que marca a inserção das crianças no Projeto da Natação Adaptada e mesmo em nossa pesquisa, uma vez que as relações de cuidado passam necessariamente por esta questão. Porém, foi exatamente esta marca - e todos os preconceitos que carregamos com ela - que fez com que nossa pesquisa se constituísse pelos mal-entendidos, este sempre o primeiro deles: acreditar que a deficiência era o ponto central na vida dos cuidadores. Falaremos melhor sobre isso mais adiante.

Nosso campo de trabalho ocorreu no projeto Natação Adaptada, que se realiza na Universidade Federal Fluminense e tem como professor orientador o prof. Aurélio Pitanga Vianna do Departamento de Educação Física e do Desporto. Em tal projeto, são acolhidas pessoas com deficiências, sem especificidade de diagnóstico. Estas pessoas fazem trabalhos variados na piscina, tais como: estimulação motora, familiarização com o ambiente da piscina, brincadeiras aquáticas que estimulam a interação entre estas pessoas e os profissionais de Educação Física, dentre outras atividades. Em resumo, a proposta dos profissionais de Educação Física é de proporcionar a essas pessoas qualidade de vida e saúde através da natação e das atividades lúdicas que ocorrem neste espaço.

Como dissemos, são aceitas pessoas dos mais diversos diagnósticos e idades, portanto, em nosso texto, será necessário um recorte: nosso trabalho foi feito com os cuidadores das crianças que frequentam este espaço. Neste sentido, traremos aqui a especificidade desta relação entre as crianças com deficiência e seus respectivos cuidadores, que podem ser a mãe, o pai, o avô, a avó, uma pessoa contratada para estar junto à criança. Em outras palavras, chamamos aqui de cuidadores aqueles que levam as crianças ao projeto e ficam com elas durante a natação. É importante salientar que, mesmo que consideremos muitas vezes os cuidadores como aqueles que são os responsáveis pelas pessoas com deficiência, preferimos manter o termo "cuidador" porque este carrega um sentido diferenciado daquele. Os cuidadores nem sempre são os responsáveis legais pela criança, isto pode variar. Além disso, o sentido que palavra "cuidador" carrega expressa de forma mais interessante a relação que se estabelece entre a pessoa com deficiência e aqueles que se tornam disponíveis para estabelecer relações de cuidado.

O trabalho com os cuidadores de pessoas com deficiência deve levar em consideração as questões postas anteriormente sobre a relação entre normal e patológico. Se a deficiência deve ser compreendida como algo que se produz e é reiterado - ou não - nas relações de cuidado, como podemos construir, junto com estes cuidadores, espaços de potencialização destas existências? Como fazer com que o foco do cuidado seja distribuído entre aqueles que participam do trabalho com os cuidadores? Estas foram questões que, de certa maneira, balizaram nossa entrada neste campo de pesquisa. Buscamos pensar, então, como nos inserir no trabalho com os cuidadores tendo em mente que a questão do cuidado era algo importante para tais pessoas e, neste sentido, pressupomos que, para cuidar destes cuidadores, deveríamos pensar neles como pessoas que precisavam de um espaço para cuidar deles mesmos. Um espaço em que sua relação com as crianças fosse minimizada.

Seguindo este pensamento, a Psicologia se inseriu no Programa com o intuito de realizar encontros e atividades com os cuidadores. No tempo em que acompanhamos o trabalho da natação, o nosso trabalho se modificou significativamente. Ao longo do processo, tivemos muitos impasses e dilemas que nos fizeram pensar sobre nossa prática, mas também nos possibilitaram construir uma forma de cuidado que levou em consideração diversas questões trazidas a partir do encontro com este Programa. Consideramos nosso trabalho como um percurso, nem sempre apaziguador, em que construímos nossa proposta a partir daquilo que o campo nos trouxe como questão.

A possibilidade de por em risco aquilo que propomos aos cuidadores está intrinsecamente relacionada à nossa proposta metodológica. Escolhemos como modo de pensar o campo a metodologia do PesquisarCom proposta por Moraes (2010). Tal escolha nos retira de um lugar de comodidade no qual se acredita que o psicólogo tem prontas as respostas para as perguntas feitas pelo campo de intervenção. Como nos diz Moraes (2010), muitas vezes nós psicólogos vamos ao campo cheios de certezas acerca daquilo que significa, por exemplo, deficiência - mesmo que não tenhamos tal deficiência ou qualquer contato com as pessoas que a têm. Estar no campo para ouvir aquilo que as pessoas têm a dizer sobre sua maneira de existir é um dos principais pressupostos metodológicos de nossa intervenção. Além disso, nos dispomos a compreender que toda intervenção, em Psicologia, se apresenta como um desafio na medida em que lidamos sempre com "gêneros interativos", como discute Despret (2011) em seu texto Os Dispositivos Experimentais. Os gêneros interativos são aqueles que influenciam e são influenciados pelas pesquisas às quais se submetem. "Hacking queria apontar para o problema das expectativas: os sujeitos se tornam aquilo que é esperado deles e se conformam à teoria ou à hipótese que é produzida a seu respeito." (Despret, 2011, p. 45) Deste modo, afirmamos que as intervenções em Psicologia não apenas descobrem algo acerca do comportamento daqueles que pesquisam, mas também produzem tais comportamentos. "Falaremos de gêneros interativos quando a classificação afeta, em contrapartida, aqueles que são classificados como tais." (Despret, 2011, p. 45)

Sob tal perspectiva, a construção que qualquer dispositivo, em Psicologia, deve levar em consideração é o fato de que estamos sempre construindo, junto com nossos pesquisados, aquilo que queremos pesquisar. Consideramos nossos sujeitos inteligentes, ou seja, eles são capazes de imaginar aquilo que buscamos em nossas pesquisas e de questionar nossos dispositivos. Neste sentido, é fundamental que consideremos as perguntas mais importantes que as respostas. Compreendemos então que nossa proposta de estar com os cuidadores num espaço constituído por nós não é neutra; ao contrário, afirmamos que tal espaço é um dispositivo, produz sujeitos, relações e afetos.

Dentre as questões importantes sobre a construção do dispositivo está o fato de que ocupamos um lugar diferenciado, de especialistas e, mais do que isso, daqueles que buscam dos cuidadores uma determinada postura em relação a si, ao cuidado e a nós - especificamente falando de nosso trabalho. Veremos ao longo do texto que, ao problematizarmos este espaço e ao construir outro espaço de cuidado junto aos profissionais de Educação Física, fomos capazes de deslocar também nossa posição e apostar em novas relações e novas formas de cuidado que levaram em consideração aqueles que estavam sendo cuidados e também os profissionais de Educação Física.

Vale destacar, ainda, como aposta tanto de uma metodologia de intervenção, quanto de escrita deste texto que, a cada encontro com os cuidadores, eram elaborados diários de campo, como citamos no início deste texto. Tais diários não se restringiam a uma descrição das atividades propostas, mas também levavam em consideração as impressões, afetos e dificuldades daqueles que escreveram tais diários. Portanto, ao longo do texto, serão apresentados trechos dos diários como forma de dar visibilidade àquilo que nos moveu em nossa pesquisa, a saber, a construção de um espaço de cuidado que não se restringisse a uma proposta ortopédica. Os diários serão apresentados então em destaque no texto, semelhante às citações, com uma diferença: grifados em itálico e com a data relativa à intervenção.

Como forma de análise de nosso trabalho, utilizamos um conceito proposto por Despret (2011), o mal-entendido:

O que Stern (...) chama mal entendido designa o acontecimento que advém quando os pais pensam que seu filho adquiriu uma nova competência antes que ela esteja plenamente atualizada, e quando o fato de se dirigir a ele como se a tivesse participa da atualização dessa competência. (Despret, 2011, p. 48)

O mal-entendido promissor é uma proposição que, na maneira como ela se apresenta, permite que apareça uma outra possível versão do fato que está sendo estudado. Em outras palavras, damos significado àquilo que percebemos e encaixamos alguns comportamentos em determinados jogos de sentido: o que conta é o que pensamos que aconteceu - damos sentido a algo que não tem propriamente um sentido - e não o que efetivamente acontece. Quando dissemos acima que valorizamos mais as perguntas do que as respostas, é porque pressupomos que determinados comportamentos podem não ser exatamente aquilo que imaginamos que eles sejam e, desta forma, também estamos trabalhando nesta zona proximal na qual o que ocorre são mal-entendidos e não comunicação num sistema comunicacional claro em que as partes sabem exatamente o que está sendo dito.

Além disso, chamamos os mal-entendidos de promissores a estas situações na medida em que podemos reelaborar nossa intervenção ao afirmá-los, ao invés de tentar descartá-los. Os mal-entendidos são incluídos como parte do processo de construção do campo que, como dissemos acima, necessita da intensa participação de todos que nele estão envolvidos. Tomamos nossos sujeitos como pessoas que atuam e opinam na construção do conhecimento e, por isso, o que eles entendem de nossas práticas torna-se algo mais interessante do que o que nós pressupomos das mesmas quando vamos ao campo repletos de perguntas. Por fim, será destacado a seguir aquilo que consideramos como impasses e como lidamos com eles.

Em primeiro lugar, gostaríamos de enfatizar o fato de que havíamos planejado uma intervenção com os cuidadores pressupondo que estes gostariam de ter um espaço que fosse "só deles", para que eles pudessem pensar "neles" para além do cuidado com as crianças. Construímos vários dispositivos que possibilitassem que os cuidadores falassem de suas vidas, de suas perspectivas e que se colocassem como pessoas, de certa forma, independente deste lugar de cuidador. Além de possibilitar a estes um espaço de experimentação alternativo no qual eles pudessem vivenciar a troca de conhecimentos e experiências com outras pessoas que tem situações semelhantes a eles. Inclusive, estes encontros eram realizados numa sala anexa à piscina, em um espaço fisicamente separado. As crianças ficavam com os alunos e o professor de Educação Física na piscina e os cuidadores subiam as escadas para tal sala anexa. A proposta se encontrava em sintonia com a ideia de promoção de saúde, uma vez que esta se apresenta como bem estar biopsicossocial e não possui foco diretamente relacionado à doença. Primeiro mal-entendido: era possível destacar os cuidadores de suas próprias vidas? Vidas estas marcadas também pelo cuidado exercido com as crianças? Crianças estas que necessitam de cuidados especiais?

Posteriormente, gostaríamos de destacar o fato de que nossa intervenção ocorria, inicialmente, como proposta de ouvir os cuidadores, de propor dispositivos que incitassem as pessoas a falarem de suas vidas, de seus problemas, dos impasses que ocorriam na relação com as crianças. Enfim, os dispositivos eram construídos com o intuito de fazer falar. O que estas pessoas tinham a dizer sobre suas vidas e sobre a relação que elas estabeleciam com as crianças que eram cuidadas por elas? Tivemos muitos momentos de conversa sobre isso, porém a dinâmica estabelecida favorecia certo tipo de discurso e deixava muitas outras possibilidades de fora. Mesmo que muitas coisas tenham sido ditas e muitos efeitos tenham sido gerados, percebemos que muitos cuidadores permaneciam calados, ou quase não se manifestavam. Uma das cuidadores se destacava muito nestas conversas dando dicas de como agir e apresentando grande conhecimento das leis e descobertas "científicas" sobre o autismo. Porém, houve um movimento muito interessante que partiu principalmente daquelas pessoas que ficavam o maior tempo caladas: elas não queriam mais ir para a sala conosco. Diziam que preferiam ficar nas arquibancadas "fofocando". Impasse: o que fazemos nesta hora? Obrigamos as pessoas a subir? Insistimos na importância deste espaço? Fizemos isso, sem resultados. Concomitantemente, o professor de Educação Física sugere que os cuidadores também façam atividades físicas. Saímos do impasse e mergulhamos num grande problema: como intervir, como "fazer psicologia" neste lugar? Segundo mal-entendido: pensamos que as intervenções psicológicas só são possíveis nos espaços reservados ao trabalho que envolve a construção de uma "queixa" e a intervenção sobre tal queixa.

 

Vidas destacadas do cuidado: Como cuidar de quem cuida?

Dissemos acima que reuníamos os responsáveis em uma sala anexa à piscina e lá fazíamos atividades de expressão corporal, dinâmicas de grupo e conversas sobre algum tema que eles escolhiam ou nós levávamos. Tínhamos como pressuposto em nosso trabalho a importância de um espaço no qual os cuidadores pudessem, de alguma maneira, se desvincular deste lugar de cuidador, como se a vida deles se resumisse àquela relação de cuidado.

Pressupúnhamos importante, no trabalho com os cuidadores, o fato de que estes gostariam de ter um espaço "só deles", em que pudessem falar de suas vidas, daquilo que gostavam e das coisas que eram importantes para eles além de cuidar das pessoas com deficiência pelas quais eles eram responsáveis. A ideia era fazer um grupo de cuidado que seria focado em trabalhar os sujeitos que existem para além das crianças, ou seja, antes de ser mãe, pai, avó, prima, eles eram homens e mulheres. Para isso acontecer, subíamos para a sala anexa à piscina com os cuidadores, enquanto as crianças ficavam na natação. Nossas atividades eram preparadas de acordo com o que ouvíamos dos próprios cuidadores nos nossos encontros, como, por exemplo, quando algumas mães falavam sobre suas vidas amorosas, casamento, carreira, sonhos e vaidade. Em um encontro específico, decidimos reunir o gosto musical com memórias importantes de suas vidas pessoais. Planejamos uma oficina em que o gosto musical poderia ser um disparador de memórias afetivas. Escolhemos a música Gostoso Demais cantada pelo Dominguinhos, pois uma das participantes do grupo gostava de forró. Segue relato de um dos diários realizados neste dia:

Nossa atividade principal propôs um momento de afetação pela música que estava tocando, pois pedimos para que cada uma falasse sobre como a música (sendo a letra, o ritmo ou qualquer elemento dela) se identificava com elas. A. e T. a princípio ligaram a letra da música (que era romântica) ao amor pelos seus filhos. T. disse que se sentia em paz quando estava com B., e que seu filho não seria o mesmo se não tivesse o autismo, assim como ela não teria um propósito de vida se não fosse o mesmo. Já A. disse que sua vida girava em torno de D., que ela "vivia a vida dele", e não a dela. (Diário de Campo, 27/08/2014)

Fomos bastante impactadas com tais relatos. Nossa pressuposição era que a música romântica remeteria a outros acontecimentos que não os filhos, como, por exemplo, namoro e casamento. Montamos as atividades do grupo justamente pensando que os cuidadores precisariam de um espaço em que as crianças não aparecessem, mas lá elas apareciam. Este mal-entendido nos fez pensar bastante sobre esta separação que estávamos propondo. Pensamos que talvez esta questão seja muito mais nossa do que deles. Lembramos da fala de uma das mães relatada no diário acima que nos disse que se seu filho não fosse autista não seria quem ele era e que ela gostava dele exatamente como ele era. Trouxemos esta frase para nosso trabalho naquela oficina e pensamos que, da mesma forma, aqueles cuidadores não seriam eles mesmos se excluíssemos as relações de cuidado que têm tanta importância em suas vidas. Desta forma, a vida destas pessoas inclui todo o cuidado que a perpassa e a constitui.

Resolvemos considerar isso nos encontros seguintes, que continuaram sendo realizados na sala anexa à piscina. No semestre seguinte de trabalho, após as férias, retomamos o grupo.

No dia 25 de março o projeto retornou de suas férias, e assim nos juntamos ao restante do grupo para iniciar as atividades. (...) Primeiramente foi feita uma apresentação da supervisora da psicologia, o que logo gerou um questionamento em A., quando esta perguntou: "Mas qual é o objetivo disso?". Esta questão não só mostrou a posição que as cuidadoras tinham em relação ao nosso projeto, como nos fez sair de nosso lugar de suposto saber para um outro lugar de questionamentos, perturbações e produções. (Diário de Campo, 25/03/2015)

Mesmo após um semestre de encontros, a maioria não sabia dizer o motivo dos encontros, visto que eles entendiam a psicologia como um trabalho de clínica, e não estávamos em um consultório. Foi preciso então pensarmos qual era, de fato, o objetivo de estarmos ali, questionarmos a relevância e a necessidade do nosso trabalho. Alguns falaram sobre a importância de ter um grupo assim para compartilhar as experiências com seus parentes que são portadores de alguma deficiência; outros disseram não se sentirem confortáveis em falar sobre suas vidas e suas opiniões em um grupo; outros ficaram em silêncio.

Foi explicado então o que queríamos ao convocá-las naquele lugar, e como a pergunta de A. foi um perfeito exemplo de um dos pontos do nosso objetivo oficial, o qual consiste na proposta de "fazer com", ou seja, produzir com todos os envolvidos, um projeto que satisfaça tanto nossas questões, como as das pessoas das quais estamos buscando respostas. (Diário de Campo, 25/03/2015)

Nossos encontros eram pensados - como escrito acima no diário - como um espaço de troca em que os psicólogos não comandavam o grupo, participavam dele junto com os cuidadores, mesmo carregando alguns pressupostos do que era saúde, doença e cuidado. Mas será que o fato de termos que explicar e explicitar isso para os outros participantes já não diz algo sobre o quão bem-sucedidos estávamos sendo nessa tentativa? O que para nós era uma troca seria uma troca para eles?

Quando fazíamos as reuniões na sala, algumas pessoas se destacavam e tomavam a frente no discurso em relação às outras.

Um dia, uma mãe de um filho autista dividiu com o grupo como era difícil fazer ele se alimentar, pois não comia nada além de biscoitos e refrigerante, e nada que ela tentava fazer adiantava. Ao contrário, seu filho reagia agredindo a si mesmo. Uma outra mãe de outro filho autista se posicionou na mesma hora, dizendo que o comportamento do outro era "má criação" e rebeldia, e isso ela não deixava acontecer com o filho dela, o qual se alimentava muito bem, pois ela "não dava mole para ele". Ainda foi apontado como a alimentação do menino prejudicava sua saúde, e os pais deveriam tomar alguma atitude sobre isso, pois eram os responsáveis pela criança. (Diário de Campo, 25/03/2015).

A mãe do menino em questão disse concordar com a fala dos demais, e na reunião seguinte, chegou dizendo que seu filho tinha comido arroz pela primeira vez na vida. Após esses encontros, o assunto foi discutido em supervisão. Poderíamos ter entendido esse episódio como um encontro que promoveu a saúde do menino e ajudou a dar uma solução para seus pais, mas será que foi isso mesmo que aconteceu? Pensamos que não, pois a fala da mãe não foi realmente acolhida, e sim julgada; do ponto de vista do que os outros pais pensavam sobre alimentação e criação dos filhos, havia ali uma maneira única de pensar o cuidado que não levava em consideração a dificuldade daquela mãe em lidar com a autopunição do filho. De alguma maneira, aquela fala foi sentida com certo incômodo, pois seria este o nosso lugar? Pensamos, neste momento, naquilo que tanto ouvimos em nossa formação: intervir em psicologia seria acatar este lugar de "polícia das famílias" no qual somos sempre convidados a cumprir um papel ortopédico?

Mesmo com a notícia de que ele comeu arroz, a mãe, sempre muito tímida e calada nas reuniões, começou a rejeitar com mais frequência a "sala de atividades", dando desculpas de que precisava olhar seu filho na piscina, pois diversas coisas poderiam acontecer com ele sem a sua presença. Aliás, este menino sempre interrompia as reuniões fazendo com que estas terminassem. Sempre que ele entrava na sala, ela se levantava e saía. Pensamos que, de alguma maneira, aquela relação não estava sendo cuidada.

Fui até a arquibancada para avisá-los que iríamos começar a nossa atividade. (...) A A. me respondeu que subiria, porém a S. não hesitou em dizer que não queria sair de onde estava, pois acordou indisposta hoje. Em seguida, a K. confirmou que também queria ficar na arquibancada mesmo. Respondi que todos havíamos vindo para o projeto e preparado algo 'bacana' para ser trabalhado nesse dia. Ambas se desculparam, mas relutaram para ficar onde estavam, acrescentando que agora com a greve, elas só têm a quarta-feira para conversar e trocar experiências. Olhei para os demais responsáveis esperando que me respondessem algo, mas ninguém se manifestou, exceto a A. que disse não fazer diferença, que para ela "tanto faz" e propôs realizarmos os encontros quinzenalmente para não prejudicar ninguém. (Diário de Campo, 10/06/2015).

Com a recusa dos cuidadores de frequentar a salinha, precisamos sair então da nossa zona de conforto, com o intuito de compreender que aquilo que chamamos de cuidado podia não ser o que os cuidadores acreditavam ser. Cuidar daquela mãe, portanto, não era acusá-la simplesmente, sem entender que a forma como o autismo é encarnado em seu filho, em suas vidas, em suas relações, difere da forma como ele é vivido por outras pessoas. Ao tentar "enquadrar" o autismo numa única história, ao invés de cuidado, podemos produzir coerção. A recusa de K. chamou-nos a atenção não apenas para sua história, mas também para nossa atuação.

De alguma maneira, nós também nos sentíamos mais confortáveis na sala de atividades, afinal, o que poderíamos fazer fora dela? Como seria uma intervenção em psicologia sem a nossa ação intencional de preparar os encontros? Como poderíamos cuidar destes cuidadores se não estivéssemos na salinha, comandando as relações, estabelecendo o que seria ou não seria cuidar? Precisávamos de uma maneira diferente de pensar o cuidado e encontramos uma boa possibilidade no livro The Logic of care: health and the problem of the patient choice (2008). Neste livro Annemarie Mol (2008) nos convida a pensar o cuidado da seguinte maneira:

O cuidado é um processo: ele não tem limites claros. Ele é aberto. (...) O cuidado não é um produto (pequeno ou grande) que muda de mãos, mas uma questão de várias mãos trabalhando juntas (ao longo do tempo) em direção a um resultado. O cuidado não é uma transação em que algo é trocado (um produto contra um preço); mas uma interação em que a ação avança e recua (em um processo contínuo). (Mol, 2008, p.18 - tradução nossa)

Seguindo a autora, somos convidados a pensar o nosso trabalho de maneira diferente: o cuidado deve ser um ato de cuidar compartilhado e que ocorre de maneira contínua. Portanto, nosso desafio seria construir um espaço de cuidado que não estivesse delimitado pelas paredes (confortáveis) da salinha isolada, destacada e, de certa maneira, asséptica. Precisávamos construir um cuidado em que "várias mãos trabalhassem juntas". Colocamo-nos em risco, aceitamos este primeiro mal-entendido e o consideramos promissor para construirmos a partir dele nosso encontro com os cuidadores. Desta vez, aceitamos ficar com eles nas arquibancadas assistindo as crianças na piscina, começamos a nos sentar ao lado dos cuidadores, nos mostrando disponíveis e atentos ao que eles queriam.

A festa junina da Natação seria na semana seguinte, então tínhamos ficado de combinar quem ia levar o que neste dia. (...) Ficamos todas juntas na arquibancada fazendo a lista e comentando os itens. Depois, M. começou falar sobre o R., dizendo que ela nunca reclamou de ter tido um filho especial, mas que na semana anterior tinha sido demais. (...) Durante a conversa, alguém falou que ia melhorar. S. entrou então na conversa, falando que não reconheceríamos L. algum tempo atrás. Ele não falava, e não obedecia. Contou das duas vezes que ele fugiu de casa. M. contou que R. também já fugiu da casa nova, e uma das vezes foi trazido de volta por uma mulher da vida. Aparentemente, todas as crianças já fugiram ao menos uma vez, pois foram surgindo várias histórias assim. Antes de sair, M. disse que adorou o que A. tinha falado "ninguém disse que ia ser fácil". (Diário de Campo, 8/07/2015)

Algo então mudou, todos conversavam com mais tranquilidade, mais abertos e com maior confiança em nós e neles mesmos. Questões que nunca puderam aparecer na sala, surgiram na arquibancada e foram trabalhadas de outros jeitos, em parceria com aqueles que estávamos trabalhando. As dificuldades e problemas que emergiram ali nunca tiveram lugar na salinha. Percebemos que os cuidadores articulavam suas questões de maneira diferente quando a hierarquia imposta pela salinha não estava em cena. O cuidado circulou de maneira diferente, passou de um cuidador a outro, sem que nossa intervenção fosse necessária. Estávamos ali para compartilhar e fazer parte da distribuição do cuidado que se exercia de maneira tão presente. Mesmo aquela fala mais dura: "ninguém disse que ia ser fácil" teve um lugar de acolhimento. De alguma maneira, as trocas e interações que tanto almejávamos na salinha, ocorriam ali na arquibancada, num espaço aberto de circulação dos afetos, tão próximo às crianças que se divertiam e se exercitavam na piscina.

 

Cuidar com a Educação Física: A construção de um saber coletivo sobre o corpo.

Na mesma época em que fizemos a aposta de não mais irmos para a salinha, a equipe de Educação Física começou a sentir a necessidade de interagir mais com os cuidadores. Sua equipe se renovara, as pessoas que entraram não os conheciam e sentiam falta deste contato. Alguns, inclusive, disseram numa reunião de equipe, que se incomodavam com o fato dos cuidadores nem saberem os nomes deles. Só se dirigiam ao coordenador da equipe e à equipe da Psicologia. Deste modo, foram feitas novas propostas de trabalho para cuidadores e usuários. Os objetivos eram explorar mais o espaço disponível da universidade e promover uma integração maior do grupo. E agora? Discutimos em equipe se o nosso lugar de trabalho poderia ocorrer nas atividades propostas pela Educação Física. A princípio, nada nos impedia de participar daquele novo espaço. Resolvemos arriscar, apesar dos muitos questionamentos e da insegurança em não estar à frente da proposta de trabalho. Afinal, o que a Educação Física tem a dizer sobre o cuidado? Estaríamos ali para "fazer exercícios físicos" com os cuidadores?

Na semana seguinte tivemos uma reunião com toda a equipe e pudemos falar um pouco sobre esta nova fase do trabalho. Em primeiro lugar, destacamos a própria forma como a reunião foi feita: todos em pé entre a piscina e a arquibancada, no sol, alguns com roupas de banho e molhados. A equipe da Psicologia ponderou o fato de que não seria interessante que os exercícios se restringissem a algum tipo de musculação ou algo semelhante. Sugerimos oficinas de dança, ou até mesmo caminhadas, atividades lúdicas trazidas pela Educação Física e assim por diante.

Neste dia, foi decidido fazer atividades fora da piscina. Fomos para a quadra, e as crianças puderam ocupar todo aquele espaço. Os cuidadores inicialmente ficaram de pé perto das bolsas, conversando sobre os filhos. (...) Então D. pegou uma corda e foi tentar pular, sem sucesso. A. pegou uma corda maior e perguntou se ele não queria pular aquela. Me ofereci para bater com ela, mas D., depois de tentar umas duas vezes, se desinteressou. S. então imediatamente disse que queria pular, pois fazia muito tempo que não fazia isso. Parecia empolgada! Ela pulou, depois M., e depois S. novamente. A essa altura E. disse que não queria pular, mas queria bater, e eu troquei de lugar com ela. L. apareceu, e brincou junto com a mãe. Eu adorei! Depois, A., S. e M. ainda brincaram de bambolê, lembrando o que sabiam fazer e o que não faziam mais. (Diário de Campo 29/07/2015)

O que aconteceu foi que, aquelas mesmas mães que não falavam na salinha e que aos poucos foram se recusando até a subir conosco, começaram a participar, animadas, das atividades. Chamavam-nos para brincar com elas, riam, propunham coisas para se fazer, conversavam sobre os mais diversos assuntos. A diferença era gritante. A cuidadora S. era sempre muito silenciosa na salinha e, sempre que alguma coisa lhe era perguntada, respondia de maneira automática. Nunca tinha iniciativa em falar, fosse sobre ela, fosse sobre o filho. Com a mudança do trabalho com os cuidadores, a convidamos para que participasse da oficina de dança junto com uma pessoa da nossa equipe, já que ela havia dito que adorava dançar forró. Antes da realização desta oficina, esta pessoa da nossa equipe nos disse que S. tinha lhe chamado para falar sobre a organização da mesma. Ela lhe disse que achava que poderia ser uma aula de axé, que é mais animada do que forró e perguntou o que ela tinha achado. Ficamos muito surpresos com esta mudança no trabalho e na posição que S. agora ocupava junto à equipe.

S., por outro lado, estava muito animada. Ela literalmente saltitava. R. comentou que ela estava impossível, todos nós reconhecemos o quanto ela estava animada. "Eu não estava assim na arquibancada! É aqui que estou assim!" Nos dias que seguiram, esse dia da dança foi comentado com carinho. "K., você perdeu!", comentou M. no dia 28/10. "Tinha que ver a S. naquele dia! Meu Deus!" (Diário de Campo, 21/10/2015)

Surpreendemo-nos com este mal-entendido: apenas nós, da Psicologia, somos capazes de gerar intervenções que tenham efeitos tão surpreendentes em relação ao modo como os sujeitos se posicionam no mundo? Isto não significa dizer que não houve um trabalho efetivo da Psicologia, mas que este trabalho fluiu de maneira muito mais interessante quando partilhamos o espaço de cuidado com a equipe de Educação Física. Vale ressaltar que esta diferença pôs em cena uma questão importante para nós: o corpo com o qual estes cuidadores se apresentavam. Sentados na salinha, passivos e neutros, com cadeiras escolares, quadro negro e sentados em roda, estes cuidadores tinham um corpo passivo, dócil, que apenas recebia aquilo que lhes era proposto. Com a Educação Física, estes corpos eram outros, presentes, agitados, dançantes. A maneira como os cuidadores se colocaram nesta nova maneira de nos relacionar nos surpreendeu por uma questão muito simples: eram outros corpos que estavam em jogo ali. Portanto, o cuidado também ocorre no corpo, levando em conta a distribuição possível deste mesmo cuidado que inclui o corpo dos cuidadores, suas articulações com a posição que ocupam no espaço, com outras pessoas e, neste caso específico, com um corpo que dança.

Outro fato que nos provocou admiração foi que as conversas eram muito mais livres e eram constituídas de conteúdos dos mais diversos, inclusive o que tanto almejávamos na salinha: que os cuidadores falassem de suas vidas para além do cuidado, a relação com os cônjuges, como eles se viam para além do lugar de cuidador. Note-se que isso só foi possível quando ampliamos o sentido do cuidado e incluímos atividades ligadas ao corpo destes cuidadores. Num dia em que a atividade foi uma caminhada, temos o seguinte diário:

Estavam presentes eu, (equipe da Psicologia), M. dando a oficina, S., A., K., E. e uma outra mãe que eu não conhecia (I.). P. não quis subir. Depois (...) K. e todas comentaram dos maridos e todas ficaram rindo, o clima descontraído foi desencadeado a partir da atividade proposta de pegar um objeto no chão ativando o glúteo. Nessa hora o J. entrou na sala com a Z. (da Educação Física), começou a explorar o espaço e a K. olhou ele, mas continuou rindo e fazendo o exercício. Depois fizemos exercícios deitadas e sentadas no colchonete e o J. continuou no espaço, mexendo nos colchonetes, correndo, e a K. o repreendia e pedia desculpas toda a hora e a M. dizia que "todas aqui sabem o que é isso, não precisa se desculpar, nossos filhos são assim mesmo em todos os espaços", e A. disse que "veja pelo lado bom, ele quis é participar com a gente". (Diário de Campo, 30/09/2015)

Neste diário, pudemos perceber que os cuidadores estavam muito mais descontraídos nas atividades propostas em conjunto, inclusive com os próprios cuidadores. Se na oficina de dança S. foi uma das responsáveis, nesta oficina M. também participou ativamente da proposta e se sentiu bem à vontade por ser da área de Educação Física. Outro fato que nos chama a atenção é a diferença de K. em relação ao filho. Se na salinha ela sempre saía quando ele chegava, neste espaço ela não parou de fazer as atividades mesmo com ele presente. Certamente ela se desculpava, mas além de ser acolhida pelas outras, ela também não sentiu necessidade de parar. A entrada de seu filho não se apresentou como um constrangimento, mas como algo que pertence tanto àquele espaço quanto àquelas pessoas. O cuidado se apresenta mais uma vez na fala: "todas aqui sabem o que é isso, não precisa se desculpar..." Se, na salinha, ela era repreendida por causa da comida do filho, naquele novo espaço ela era acolhida como alguém que pertencia a um mesmo grupo: todas são cuidadoras, apesar das diferenças. Neste sentido, o cuidado pode se apresentar como algo que, mesmo feito de maneiras diferentes, cria um laço, um vínculo afetivo entre aquelas pessoas. De alguma maneira, elas entendem as dificuldades umas das outras.

Em outra oficina, tivemos mais uma surpresa sobre o relacionamento dos cuidadores das pessoas atendidas no projeto. Segue trecho de diário de campo:

Não sei como a conversa foi parar ali, mas naquele momento fomos inteirados que todos os outros responsáveis presentes (S., K., M., P. e I.) dormiam no mesmo quarto com seus filhos. E começaram a falar sobre: I. mora em um apartamento de apenas um quarto. Mas N. dorme na cama e ela na bicama. S. mora em um bairro perigoso, ouve o tiroteio e se sente mais segura com L. em sua cama (...). K. até tentou fazer J. dormir em outro quarto. Ele dormiu, mas ela não. "Ele é tão gostosinho!" ela afirmou e M. concordou. P. nos contou que dormem os quatro (ele, C., e os dois filhos) na mesma cama: dois virados para um lado e dois para o outro.

- Estou me sentindo um alienígena! Mas vocês todos estão errados, vocês sabem, né? Assim eles se sentem cada vez mais como bebês. - A. continuou com seus conselhos - O que a psicóloga de vocês diria?

- Eu não conto isso para ela! - Disse K., rindo, e foi impressão minha ou ela olhou para a gente ao dizer isso?(Diário de Campo, 16/09/2015)

Este foi o momento em que tivemos mais clara a função inibidora da salinha para alguns cuidadores. Certas coisas simplesmente não podem ser ditas para um psicólogo! Sabe-se que psicólogos tendem a policiar a relação pais e filhos, embora não tivéssemos esta intenção. Mas, uma vez abertos a ocupar outros espaços, apareciam outras histórias. Sobre eles, as crianças, seus gostos, até sobre seus corpos. Neste dia, indagamos a respeito da vida sexual dos casais, estes disseram que sempre há um jeito e que o caso de dormir com as crianças nunca foi impedimento para isso.

Deparamo-nos então com o fato de que existem coisas que não são ditas para nós porque somos sempre convocados a ocupar o lugar do policiamento, como dissemos acima. Mas acreditamos também que não é fácil ocupar outro lugar diferente daquele em que estamos acostumados, em que somos sempre convidados a intervir tendo em vista uma determinada maneira de compreender o cuidado. Este cuidado passaria então pela proposta de vigiar as relações com o intuito de "prevenir" determinados problemas, como fica claro na fala de A. Pudemos então deslocar a questão posta sobre a salinha de atividades: seriam apenas os cuidadores que não "poderiam" falar certas coisas para nós, ou nós também não "poderíamos" ouvir algumas coisas que não fazem parte do que compreendemos como "correto" para a vida das pessoas? Este acontecimento nos forçou a pensar em nossa prática num sentido muito mais interessante: a construção do cuidado passa necessariamente pelas relações de cada pessoa, pelos enlaces que são possíveis para cada grupo, pelas negociações de vida acordadas por aqueles que participam de experiências de cuidado. Não há, nesta proposta, a intenção de dizer como as pessoas devem se comportar, mas de ouvir seus agenciamentos, acolher suas histórias e produzir relações potentes, que fazem com que as próprias pessoas sejam capazes de construir suas formas de existência.

 

O traço com o qual nosso percurso nos presenteia: continuamos a construir o cuidado com nossos cuidadores.

Chegamos então ao momento de paragem, não de finalização, mas de respiro. Fomos capazes de perceber a importância dos acontecimentos que nos levaram até aqui. Durante este percurso aprendemos muito, não apenas com os textos que lemos, mas principalmente com as perplexidades geradas no campo e com nossa disponibilidade em ocupar um lugar, muitas vezes desconfortável, de não saber exatamente o que fazer. Podemos dizer que não é fácil desconstruir nossas ideias e ir a campo de braços abertos para o improvável, o inesperado. Nosso trabalho consistiu numa aposta em ocupar este lugar de cuidado, firmamos nossos pés nesse espaço e nos colocamos de maneira disponível para construir com os cuidadores este lugar. Pulamos de mãos dadas para a beleza que esse trabalho nos proporcionou; junto à equipe de Educação Física e aos cuidadores, pudemos experimentar tanto as inseguranças em relação ao que era possível compreender como cuidado quanto aos momentos em que partilhamos deste cuidado em conjunto.

Nosso trabalho continua então produzindo este caminho junto aos cuidadores, com os quais podemos dizer hoje que construímos uma parceria de pesquisa, um time de cuidado que pretende continuar potencializando vidas e produzindo existências com mais qualidade. Pensamos então que o cuidado se encontra para além do que aqui chamamos de qualidade, o cuidado carrega sutilezas que não cabem nesta palavra, principalmente se falamos destas relações nas quais se insere a questão da deficiência. O cuidado requer um posicionamento muito mais sutil, que está relacionado a um tempo diário e contínuo. Aprendemos, em nosso trabalho, que é possível sim, aos cuidadores, falar de suas vidas, seus anseios, seus relacionamentos sem passar necessariamente por este lugar de cuidador, porém a sutileza se encontra justamente aí: constituímos com eles novos encontros, novos sentidos e, por isso, novas possibilidades de cuidado em que este não seja somente visto como uma relação hierárquica entre os cuidadores e as pessoas com deficiência. Podemos pensar o cuidado como este espaço de relações, que vários de nós exercemos, em momentos diversos, o lugar de cuidador e daquele que precisa ser cuidado. Vimos esta questão ao longo do texto e esperamos que, mesmo que nossas perguntas não tenham sido plenamente respondidas, tenhamos sido capazes de construir novas relações em que a intervenção em Psicologia pode ser pensada como algo que constrói relações, que é capaz de engendrar laços de fortalecimento e potencialização dos sujeitos. Além disso, buscamos, em nosso texto, refletir sobre a forma como cuidamos daqueles que nos chegam. O cuidado então está relacionado aos corpos, afetos, lugares, parcerias e tantos outros fatores que entram em jogo quando nos propomos a sair de um lugar de prévio conhecimento para habitar, em conjunto, com aqueles que cuidamos. O cuidado circulou em nossos encontros no momento em que também nos tornamos disponíveis àqueles que se dispuseram a ser nossos parceiros nesta caminhada. Portanto, encerramos nosso texto como uma forma de gratidão aos cuidadores, aos profissionais de Educação Física e às crianças que fizeram deste texto uma partilha tão prazerosa para nós.

 

Referências Bibliográficas

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Despret, V. (2011). Os dispositivos experimentais. Rio de Janeiro: Fractal Revista de Psicologia, 23(1).         [ Links ]

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Mol, A. (2008). The Logic of Care: Health and the Problem of Patient Choice, London: Routledge.         [ Links ]

Moraes, M. (2010). PesquisarCOM: política ontológica e deficiência visual. In M. Moraes & V. Kastrup (pp. 26-51). Exercícios de ver e não ver: Arte e pesquisa com pessoas com deficiência visual. Rio de Janeiro: Nau Editora.         [ Links ]

Serres, M. (2004). Ramos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.         [ Links ]

 

 

Recebido em 11/05/2016
Aprovado em 31/05/2016

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