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Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.1 São João del-Rei Jan./Apr. 2016

 

Mãe encarcerada: laços e desenlaces com a criança

 

Incarcerated mother: bounds and unbounds with a child

 

Madre encarcelada: lazos y desenlaces con el niño

 

 

Suzana Faleiro BarrosoI; Ilka Franco FerrariII

IDoutora em Teoria Psicanalítica pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da UFRJ, coordenadora do Laboratório de Estudos Clínicos e professora da Faculdade de Psicologia da Puc-Minas. Psicanalista membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise. suzanafaleirobarroso@gmail.com
IIDoutora pela Universidade de Barcelona, Espanha, professora nos cursos de graduação e pós-graduação da PUC Minas, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, com sede em Paris, França. E-mail: francoferrari@terra.com.br

 

 


RESUMO

O texto percorre caminho que leva à concepção do que é ser mãe, sua função e a constituição subjetiva da criança, a partir de questões advindas de pesquisa desenvolvida no Centro de Referência à Gestante Encarcerada do Sistema Prisional de Minas Gerais. Essa unidade carcerária é considerada modelo para a América Latina, pois, em instalações sem grades, prisioneiras grávidas ou já com seus filhos ali permanecem até que eles tenham por volta de um ano de vida. A ideia base desse projeto institucional é a garantia do aleitamento e do contato físico da criança com a mãe, contribuindo para fortalecer o vínculo psicoafetivo, até que a determinação judicial para separação entre a mãe e criança aconteça. A psicanálise orienta o percurso e, na conclusão, são estabelecidas algumas condições para se pensar essa separação, diferentes do tempo cronológico que tem sido preocupação da política governamental brasileira.

Palavras-chave: maternidade; crime; infância; laço social; teoria psicanalítica


ABSTRACT

The text goes through a way that takes to a conception of what is to be a mother, her role and the consequent subjective constitution of a child, based on the questions that come from a research developed by the Reference Center to the Incarcerated Pregnant of the System of Prison of Minas Gerais. This prison system unit is considered a model to the Latin America, because the pregnant prisoner or women who already have children there stay in installations with no bars, until the child is aroundone year old. The idea, base of this institutional project, is the guarantee of the nursing and physical contact with the mother, contributing to the strengthening of the psycho affective bounds, until the judicial determination to the separation between mother and child happens. The psychoanalysis orientates the trajectory and in the conclusion are established some conditions to think about this separation, different from the chronologic time that has been a preoccupation to the Brazilian governmental policy.

Keywords: motherhood; crime; childhood; social ties; psychoanalytic theory


RESUMEN

El artículo muestra el camino que conduce a la concepción de lo que es ser madre, su función y la constitución subjetiva del niño, a partir de preguntas que surgen de la investigación desarrollada en el Centro de Referencia a la Gestante Encarcelada del Sistema Penitenciario de Minas Gerais. Esta unidad penitenciaria se considera un modelo para América Latina, debido a que en las instalaciones sin rejas, las presas embarazadas, o que ya están con sus hijos, permanecen allí hasta que éstos cumplan aproximadamente un año de edad. La idea básica de este proyecto institucional es garantizar el amamantamiento y el contacto físico del niño con la madre, ayudando a fortalecer el vínculo psicoafectivo, hasta que se produzca la determinación judicial para la separación de la madre y el niño. El psicoanálisis orienta el camino, y al concluir se establecen algunas condiciones para pensar esta separación, distintas del tiempo cronológico que ha sido una preocupación de la política gubernamental brasileña.

Palabras clave: maternidad; crimen; infancia; lazo social; teoría psicoanalítica


 

 

As reconfigurações familiares produzem novas figuras de mãe na sociedade contemporânea, a exemplo do que se expressa em dizeres tais como: mãe solteira, barriga de aluguel, produção independente, pãe, etc. São modos de dizer que expressam estilos singulares de funcionamento nessa função. E, a uma possível lista que se venha constituir, nela cabe acrescentar a nomeação que se evidencia na pesquisa "Mulheres encarceradas: laços com o crime, desenlace com a família", isto é, mãe encarcerada.

Essa pesquisa se realizou no Centro de Referência à Gestante Encarcerada do Sistema Prisional de Minas Gerais, CRGPL, criado em 2008, na cidade de Vespasiano, região metropolitana de Belo Horizonte. Trata-se de modelo prisional considerado o único na América Latina destinado a acolher gestantes a partir do sétimo mês, ou mães já com seus bebês nascidos, em instalações sem grades. Há, no entanto, as exceções no acolhimento de mulheres grávidas antes do sétimo mês, por motivos que podem incluir a exigência de cuidados.

 

Mãe em tempo integral

O objetivo geral da pesquisa mencionada era o de investigar o CRGPL como uma resposta social às questões do mal-estar na civilização atual, a partir do aprisionamento das mulheres e seus filhos, instaurando questões diversas sobre formas de laços sociais e modos sintomáticos de vida que convocam as políticas públicas.

O leitor pode encontrar reportagens em jornais e televisão, sobre essa instituição, mas esta é a primeira pesquisa que a toma como objeto de estudo. Nos objetivos específicos cuidou-se, portanto, do levantamento do perfil das detentas e de questões cruciais vividas por elas, seus filhos, funcionários e familiares. Os dados são obtidos de documentos advindos da área jurídica, o chamado "Prontuário Jurídico", da área psicológica, conhecido como "Prontuário de Saúde", mais informações de "conversações" realizadas com detentas e funcionárias, orientadas pelo método clínico psicanalítico. As conversações são um dispositivo da psicanálise clínica, estendido a outros espaços como psicanálise aplicada. Trata-se de procedimento grupal em que os participantes debatem sobre tema proposto, em experiência com a palavra como um dom, fazendo com que o dizer de um ressoe no outro que também se coloca a trabalho. Sustenta-se na dimensão do sujeito, ainda que em grupo, considerando a existência de uma associação livre que é coletivizada e a partir da qual se isolam pontos para análise.

De acordo com o projeto que fundou a instituição, essas mulheres ali permanecem até que os filhos completem um ano, voltando para a prisão de origem, quando é o caso, e a criança tem, então, estabelecida a destinação de sua guarda. O tempo determinado para que o bebê permaneça com a mãe pode ser reduzido ou estendido a partir das exigências de cada caso; por exemplo, quando há impasse na decisão da guarda da criança. Observa-se, no entanto, que os documentos consultados não esclarecem o motivo para o estabelecimento da temporalidade de um ano.

De acordo com reportagem do jornal O Tempo, publicada em 21 de outubro de 2013, um levantamento do ministério da Justiça mostra que 80% dos estados usam o limite mínimo do tempo previsto pela Lei 11.942, de 2009, seis meses, como referência para a permanência da criança com a mãe, dentro de um presídio. Essa Lei define que o prazo máximo é de sete anos e, em Minas Gerais, o prazo que se decidiu adotar é de um ano (Lourenço, 2013).

A Secretaria de Estado de Defesa Social, citada naquele jornal, considera esse tempo adequado para que as crianças recebam os primeiros cuidados necessários; mas, depois é melhor que ela conviva em círculo social mais extenso, tendo contato com ambiente diferente do carcerário. Na reportagem do jornal O tempo (Lourenço, 2013)há a afirmação de que para as detentas o tempo de um ano é pouco, e cita exemplos. Mas, essa não é a realidade que a pesquisa realizada encontrou.

A maioria quase absoluta das mulheres ouvidas, durante as conversações, dizia da necessidade de se ter o direito de decidir querer ou não ter o filho no cárcere. Essa, para elas, não pode ser uma decisão de governo, até porque as condições a que as crianças estão submetidas restringem seu desenvolvimento e nem sempre favorecem sua saúde. Várias afirmaram que, fora dali, as crianças teriam melhor atendimento médico e condição de vida e que não podem pagar por um crime cometido pela mãe.

De acordo com a reportagem do referido jornal, o Ministério da Justiça estabeleceu o prazo de final de 2013 para que se concluísse e divulgasse o relatório da Política Nacional de Atenção Integral às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade. Segundo consta, por ele as detentas ganham o direito de permanecerem como filho até que este complete dois anos de vida. Na reportagem fala-se de direito e não de obrigatoriedade.

Não se pode ignorar, no entanto, que no desenvolvimento desse projeto há a pretensão de minimizar ou reduzir, ao máximo, os problemas advindos de uma separação inadequada da criança e da mãe, nesse importante tempo de estruturação subjetiva da criança. E, também, que nele se pode notar a existência de crença no estabelecimento de vínculo mãe-criança, que seja favorecedor dos laços após o cumprimento da pena da mãe.

No cumprimento dessa proposta institucional, a criança permanece exclusivamente sob os cuidados maternos, desde após o parto, e em companhia diária e constante da mãe, salvo quando por motivos de estudos ou outro, alguma colega, também prisioneira, é destinada a ajudar. No projeto há a previsão de construção de uma creche, o que ainda não aconteceu. Desse modo, não parece exagero dizer que, nesse caso, acontece o que se pode chamar de "mãe em tempo integral", até que chega o momento da separação.

E a situação da separação suscita muitas perguntas, reforçadas pelas palavras da maioria das detentas, durante as conversações com elas realizadas. Entre elas, qual é a concepção de vínculo mãe-filho, bem como a de separação, que sustenta a tendência a valorizar, nesse contexto, a figura da mãe em tempo integral.

Recorrer às contribuições da psicanálise, relativas à função da mãe no processo de constituição subjetiva, demarcando qual separação está em jogo na constituição do sujeito, pode ajudar nas reflexões sobre o assunto.

É bem verdadeiro que a elaboração psicanalítica produziu também certa lista de figuras maternas, desde Freud, passando pelos pós-freudianos, neles incluindo Lacan: mãe fálica, mãe boa, mãe má, mãe suficientemente boa, mãe psicotizante, mãe geladeira, devoradora, desejante, toda - mãe, não toda-mãe. Cada um desses nomes das mães se apoia numa concepção particular de seu papel na estruturação subjetiva e, com efeito, no papel do potencial patogênico de determinados tipos de relação mãe-filho.

A figura da "mãe geladeira", por exemplo, assim descrita por Bruno Bettelheim (1987),no livro A fortaleza vazia, implica a ideia de uma mãe que não faz investimento libidinal e afetivo no filho. E, para esse autor, isso é o que explicaria, de modo decisivo, o autismo da criança. A figura da mãe-geladeira até hoje é evocada por aqueles que pretendem desqualificar a intervenção psicanalítica junto aos autistas, alegando não ser politicamente correto, por exemplo, nomear de "geladeira" uma mãe que, ao contrário, se mostra tão dedicada a seus filhos. Destacamos esse exemplo para ressaltar o quanto merece cuidado a abordagem da função materna, de seus impasses e determinações nas patologias, visto que essas implicam uma diversidade de fatores de grande complexidade.

Na psicologia da criança, segundo uma concepção mais familiarista, muitos afirmam, a exemplo de Spitz (2004), que, do ponto de vista psicológico, tudo depende da boa relação mãe-filho. Por outro lado, em uma abordagem mais naturalista e biologicista da ciência, há a tendência a reduzir, gradativamente, o papel da mãe na constituição da subjetividade, priorizando as funções neurocognitivas e seus déficits.

Entre os psicanalistas encontramos diversos modos de dizer e trabalhar o papel da mãe na subjetividade. Depois de Freud, entre os chamados analistas pós-freudianos, destacamos Melanie Klein e Winnicott que mobilizaram um polêmico debate em torno da figura materna, por ocasião da década de 1930. Foram responsáveis por uma densa interrogação sobre o papel da mãe e suas falhas na conquista da normalidade da criança, e na suposta garantia da felicidade futura do adulto.

A ênfase nessa psicanálise, que se tornou uma psicanálise do vínculo mãe-criança, motivou Jaques Lacan (1995) a repensar a função da mãe, isto é, o que é a mãe para a psicanálise. Daí provém suas formalizações sobre o Desejo da Mãe. Nesse caminho se contrapôs à concepção prevalente, junto aos pós-freudianos até a década de 1950, qual seja, aquela que faz equivaler a função da mãe à maternagem, aos cuidados dispensados à criança. Lacan desloca, portanto, o debate aprisionado à dimensão dos cuidados maternos, mais ou menos gratificantes, para a questão da mãe como uma das principais funções simbólicas constituintes da estrutura psíquica da criança.

Podemos considerar a mãe nas dimensões simbólica, imaginária e real, mas, aqui destacaremos a dimensão simbólica sustentada na noção de Desejo da Mãe, como já dissemos, elaborado por Lacan (1995) em resposta ao desvio que se havia promovido a respeito da função da mãe na constituição do sujeito.

 

O mito da relação harmônica entre mãe e filho

Ao reler Freud, sobretudo no Seminário, livro 4: a relação de objeto, Lacan (1995) situa que o desejo de filhos, presente em uma mulher, está fundamentado na posição de reivindicação fálica que lhe é específica. Trata-se do desejo causado pela falta fálica, -j, que orientará o lugar a ser ocupado, pela criança, na subjetividade materna. O desejo de ter filhos, numa mulher, se apoia numa das modalidades freudianas de solução do Édipo feminino e implica um processo de simbolização da falta feminina, que tem seu início na infância da menina.

Como se conhece, trata-se de um desejo sempre impossível de ser satisfeito, visto que, entre a criança esperada pela mãe e a criança real, há uma distância irredutível que reenvia a mãe à sua própria falta, sua incompletude subjetiva, que Freud nomeou de castração. É precisamente a linguagem, considerada por Freud como a fonte de todos os problemas morais da espécie humana, que institui a impossibilidade de uma relação complementar e sem mal entendidos entre mãe e filho e desconstrói o mito da harmonia suposta nessa relação.

O ponto chave da posição de Lacan (2003a), quanto à relação mãe-criança, se encontra em sua intervenção na Jornada sobre a criança alienada, organizada, em 1967,e publicada no livro Outros Escritos, com o título Alocução sobre as psicoses da criança(2003a). Ele se colocou francamente em desacordo com as concepções pós-freudianas acerca da relação mãe-criança, porque considerava que elas desconheceram a ação da linguagem na constituição do ser falante e não estabeleceram o status da fantasia como o que conjuga o desejo e o gozo, inclusive na relação mãe-criança.

Por não se darem conta de que entre a mãe e a criança há a dimensão do gozo e da linguagem, os pós-freudianos criaram uma espécie de mito recobridor da impossibilidade da relação sexual, o mito da harmonia da relação mãe-criança. De acordo com tal mito, haveria uma harmonia natural na relação mãe-criança, rompida apenas nos casos patológicos. Ao psicanalista, representante da mãe boa, caberia trabalhar nesses casos excepcionais para restaurar essa suposta complementariedade.

De fato, o interesse predominante pela mãe, adotado pelos psicanalistas pós-freudianos e criticado por Lacan (2003a), parece ter sido um deslocamento da interrogação freudiana sobre a mulher: o que quer uma mulher? Especialmente Melanie Klein e seus seguidores obturaram essa pergunta, deixada por Freud, sobre o enigma da mulher. Deslocaram o foco da concepção inicial da psicanálise, com base na repressão paterna e no complexo de castração, para as frustrações oriundas da mãe. O sonho de harmonia das relações familiares, das relações homem-mulher, se deslocava para o sonho de harmonia da relação mãe-filho. "Por não estabelecer esse status da fantasia no ser-para-o-sexo (que se vela na ideia enganosa da "escolha" subjetiva entre neurose, perversão, psicose), a psicanálise constrói às pressas, com folclores, uma fantasia postiça - a da harmonia instalada no hábitat materno" (Lacan, 2003a, p.365).

O ser-para-o-sexo é aquele marcado, em sua origem, pela castração, isto é, pela perda de gozo do vivente, perda que dá lugar à estruturação da realidade por meio do quadro da fantasia de cada sujeito. Tanto para a criança, quanto para o adulto, a responsabilidade subjetiva quanto ao modo de gozo, de cada um, só pode advir da construção da fantasia que anima o sujeito.

A fantasia, definida como enquadre da realidade, é promovida, por Lacan (2003a), no texto Alocução sobre as psicoses da criança, ao estatuto de referência principal para pensar o vínculo da mãe com a criança, em termos de falo e de objeto a. Qualquer que seja o objeto ao qual a criança é identificada, na fantasia inconsciente da mãe, esse objeto está indexado pela função fálica, exceto nos casos de psicose.

A função fálica regula e normatiza o laço da mãe com a criança, sua presença e sua ausência, abrindo, para a criança, o acesso a outros laços para além da relação exclusiva com a mãe, o acesso ao regime das trocas e à inserção social. Nas psicoses e nas neuroses graves verificamos os impasses da criança para se separar do domínio do mundo fantasístico materno, devido à inoperância da função fálica reguladora do vínculo da mãe com o filho.

De fato, para a psicanálise de orientação lacaniana o falasser nasce na condição de objeto em relação à subjetividade materna, sendo possível identificar duas vertentes desse objeto: a de objeto fálico e a de objeto condensador de gozo. O objeto fálico, que está fora do corpo, é marcado pela castração e implica a interação e a circulação dos interesses libidinais entre a mãe e a criança. O objeto condensador de gozo é o resto que escapa à significação fálica da criança no desejo da mãe e implica o real pulsional. A operação de falicização da criança, isto é, a conexão da criança real ao valor fálico que ela terá para a mãe não é completa e deixa sempre um resto.

Por um lado a criança é semblante de um ideal e, por outro, permanece como objeto real. É o falo que transfere o valor de gozo do corpo da criança em um gozo sexuado. Mas, quando não há um parceiro da mãe que responda pelo gozo da mulher e que limite sua posição fazendo-a não toda mãe, o corpo da criança pode restar desumanizado ao funcionar apenas como condensador de gozo para o Outro materno, ou seja, como inanimado. Nesse caso, o corpo fica à deriva da norma fálica e a serviço da vontade de gozo do Outro materno.

Do texto Nota sobre a criança (Lacan, 2003b), pode-se extrair uma série diferencial da posição da criança com relação ao objeto de gozo do Outro materno: a criança-sintoma está para uma fantasia imaginária na neurose, assim como a criança-fetiche está para uma fantasia realizada na perversão e a criança-objeto está para uma fantasia real na psicose. A orientação ética da psicanálise em relação ao real que afeta a criança é opor-se à situação na qual "seja o corpo da criança que corresponda ao objeto a" (Lacan, 2003a, p.366). Encarnar o objeto a determina impedimentos e constrangimentos à criança quanto à sua inserção num discurso e, consequentemente, no laço social. A condição maior da montagem de um discurso é uma perda, ou seja, a exclusão do gozo.

 

Qual é a separação em jogo na constituição do sujeito?

Muito já se falou, na psicanálise, da separação da criança em relação à mãe, sobretudo com relação aos casos de crianças institucionalizadas, devido ao sofrimento mental.

Na prática, só para citar um exemplo, a instituição fundada por Maud Mannoni, na década de mil novecentos e sessenta para acolher crianças psicóticas, tinha a proposta de intervir na psicose infantil e no vínculo patológico da mãe com a criança. A intervenção supunha afastar a criança do convívio familiar e do Outro materno, forçando um tipo de separação que não configura, propriamente, a separação da qual fala Lacan (1998b)nas operações constitutivas do sujeito. Na teoria, temos o livro As psicoses infantis, de Margaret Mahler (1989), para a qual as psicoses infantis se ancoravam numa concepção do processo de individuação e separação da criança, a partir de um vínculo inicial, simbiótico, com a mãe.

A contribuição de Margareth Mahler traz uma versão cognitivista da separação, que desconhece a implicação dos processos inconscientes e libidinais nessa operação. Para essa analista, a separação não comporta nenhuma subtração ao real do sujeito, nenhuma separação do seu gozo, mas, sim, a troca de uma satisfação ilusória por uma mais verdadeira. Ali onde está, para Margaret Mahler, o fracasso da realização cognitiva e afetiva da consciência de estar separado pode-se supor problemas na causação do sujeito, ou seja, nas operações de alienação e separação.

Para a orientação lacaniana trata-se de outra noção de causalidade da estrutura subjetiva, diferente daquela relativa à interação entre predisposições inatas e fatores ambientais ou relativos às vicissitudes biográficas ou, ainda, relativos às classificações e descrições objetivantes do saber psiquiátrico. Com Lacan elabora-se uma causalidade fantasística que implica o ser do sujeito e sua relação à causa do desejo do Outro. A separação, quando ela é possível, quer dizer que a criança pôde extrair-se como objeto do Outro e inscrever essa perda numa ficção familiar, por exemplo, uma ficção do tipo edipiana ou outros tipos de ficções característicos das reconfigurações familiares contemporâneas. A causalidade fantasística implica as duas operações de constituição do sujeito: a alienação e a separação.

A alienação quer dizer que o sujeito aparece primeiro no campo do Outro, assim que o primeiro significante, o significante unário, surge no campo do Outro e representa o sujeito para outro significante. Esse outro significante tem por efeito a afânise do sujeito, de onde advém sua divisão. Quando o sujeito aparece em algum lugar como sentido, em outro lugar ele se manifesta como fading ou desaparecimento. A escolha típica da alienação está entre petrificar-se num significante ou deslizar no sentido a partir do elo entre S1e S2. Escolhe-se a identificação ou o sentido. Não há sujeito sem afânise do sujeito, e é nessa alienação que se institui a dialética do sujeito na relação com o Outro.

A operação de separação diz da separação da cadeia significante. Pelo efeito da fala, o sujeito se realiza sempre no Outro e ele só é sujeito por ser assujeitado ao campo do Outro: "É por isso que ele precisa sair disso, e no tirar-se disso, no fim ele saberá que o Outro real tem, tanto quanto ele, que se tirar disso, que se safar disso" (Lacan, 1985, p.178). O que torna possível a separação é o desejo, o que implica o Outro ao qual pode faltar o objeto. É no intervalo entre dois significantes que vige o desejo do Outro, do primeiro Outro com o qual o sujeito tem que lidar, isto é, a mãe. Seu desejo está para além ou para aquém do que ela diz e é nesse ponto de falta que se constitui o desejo do sujeito, ponto do qual ele se separa: "É sob a incidência em que o sujeito experimenta, nesse intervalo, uma Outra coisa a motivá-lo que não os efeitos de sentido com que um discurso o solicita, que ele depara efetivamente com o desejo do Outro" (Lacan, 1998b, p.858).

Há duas frases do texto Posição do inconsciente que são representativas das operações de alienação e de separação, e evidenciam os dois tipos de causalidade em jogo na constituição do sujeito, a saber, a causa significante e a causa real. A primeira diz que "isso fala dele, e é aí que ele se apreende" (Lacan, 1998b, p.849). E a segunda diz: "ele pode me perder?" (Lacan, 1998b, p.858).

Antes que um significante represente o sujeito, ele não é absolutamente nada. Ele encontra-se na sujeição do - e isso fala dele - antes que ele mesmo fale. Do ponto de vista da separação, o sujeito tem que emergir do ser vivo, a partir de sua condição primeira de objeto. Por meio da separação, ele se produz a partir da causa do desejo do Outro, do que foi para o Outro em sua ereção como ser vivo.

O conjunto das operações de alienação e de separação, como se vê, demonstra que o sujeito sem substância, o sujeito da falta-a-ser, efeito de linguagem, também está ligado à substância gozante e se relaciona ao ser vivo. O Outro, nesse caso, é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que poderá se presentificar do sujeito, "é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer [...] é do lado desse vivo, chamado à subjetividade, que se manifesta essencialmente a pulsão" (Lacan, 1985, p.194).

A noção lacaniana de separação, formulada em Posição do inconsciente (1998b), inspira-se no conceito de castração. Ela é permitida ou não, a partir das condições simbólicas determinantes da vinda da criança ao mundo. O que está em jogo é a separação do sujeito em relação a ele mesmo, isto é, a disjunção entre o seu estatuto de sujeito da falta-a-ser e o estatuto do ser de gozo para o Outro. Separar significa separar-se de seu ser de gozo para o Outro, isto é, não realizar o objeto perdido da fantasia do Outro (Zenoni, 1998).

 

O jogo do fort-da e a clínica da separação

Esse jogo infantil, conhecido como fort-da, descrito por Freud no texto Além do princípio do prazer (1969), a propósito de ilustração do automatismo de repetição, se tornou para Lacan o paradigma das operações de constituição do sujeito, a alienação e a separação.

Trata-se de um jogo matriz da relação do sujeito com o significante e com o objeto. Ao observar o brincar de seu neto de um ano e meio de idade, Freud descreveu o jogo que marca a inserção da criança na dimensão simbólica. Ao afastar de si o carretel com o qual brincava, a criança enunciava o fort e, ao recuperá-lo, trazendo-o para junto de si, enunciava o da, expressando a alternância do desaparecimento e do retorno do objeto: "Foram esses jogos de ocultação que Freud, numa intuição genial, produziu, a nosso ver, para que neles reconhecêssemos que o momento em que o desejo se humaniza é também aquele em que acriança nasce para a linguagem" (Lacan,1998a, p.320).

A criança demonstra, nesse jogo peculiar, seu compromisso com o discurso do Outro, reproduzindo, em seu fort e em seu da, os significantes que dele recebe. Pois sua ação destrói o objeto que ela faz aparecer e desaparecer na provocação antecipatória de sua ausência e sua presença. Ela negativiza assim o campo de forças do desejo, para se tornar, em si mesmo, seu próprio objeto. E esse objeto, ganhando corpo imediatamente no par simbólico de dois dardejamentos elementares, anuncia no sujeito a integração diacrônica da dicotomia dos fonemas, da qual a linguagem existente oferece a estrutura sincrônica e sua assimilação (Lacan, 1998a, p.320).

Observa-se bem que o ato da criança, aparentemente ingênuo, é um ato de palavra que anula o objeto e implica uma cessão de gozo acarretada pela entrada no discurso: "Se é verdade que o significante é a primeira marca do sujeito, como não reconhecer aqui [...] que o objeto ao qual essa oposição se aplica em ato, o carretel, é ali que devemos designar o sujeito" (Lacan, 1985, p.63).

Uma das interpretações mais correntes do fort-da é que, nesse jogo, por meio da repetição, a criança estaria elaborando a perda relativa à ausência da mãe, fazendo-se agente dessa perda. Nesse contexto, o carretel é a mãe. Para Lacan, fazer-se agente da perda torna-se um fenômeno secundário em relação à importância fundante do sujeito nesse jogo. Lacan, portanto, desloca a questão da separação do par mãe-criança, para a criança e o objeto, ao mesmo tempo íntimo e exterior a ela mesma. O carretel é, então, o objeto a, já que a necessidade do retorno da mãe poderia manifestar-se pelo grito. Há, portanto, algo mais do que o grito e a demanda que se inscreve no jogo do carretel e que o eleva à dimensão de um ato.

O fort-da testemunha, desse modo, a perda inerente à introdução do sujeito na dimensão simbólica.

A hiância introduzida pela ausência desenhada, e sempre aberta, permanece causa de um traçado centrífugo no qual o que falha não é o outro enquanto figura em que o sujeito se projeta, mas aquele carretel ligado a ele próprio por um fio que ele segura - onde se exprime o que, dele, se destaca nessa prova, a auto-mutilação a partir da qual a ordem da significância vai se pôr em perspectiva (Lacan, 1985, p.63).

O que chamou a atenção de Freud foi, sobretudo, a necessidade da criança repetir o jogo reiteradamente, revelando o verdadeiro segredo do lúdico, isto é, a diversidade mais radical que constitui a repetição em si mesma. A repetição típica do fort-da é uma presentificação, em ato, do encontro com o real que Lacan nomeou de tiquê, em O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.

É a repetição da saída da mãe como causa de uma Spaltung no sujeito - superada pelo jogo alternativo, fort-da, que é um aqui ou ali, e que só visa, em sua alternância, a ser o fort de um da e o da de um fort. O que se visa é aquilo que, essencialmente, não está representado (Lacan, 1985, p.63).

A observação de Freud esclarece como o sujeito se produz a partir de sua inscrição na cadeia significante (fort-da). O que se destaca aí é a condição dessa operação, a saber, a extração do objeto que introduz uma negativização do gozo. Para Lacan, o carretel não é a mãe reduzida a uma bolinha, mas uma "coisinha" que dele se destaca, ainda que a segure. Isso porque, para esse autor, é com seu objeto que a criança salta as fronteiras de seu domínio.

O sujeito, como efeito de significação, é resposta do real à ausência do Outro:

O jogo do carretel é a resposta do sujeito àquilo que a ausência da mãe veio criar na fronteira de seu domínio - a borda do seu berço - isto é, um fosso, em torno do qual ele nada mais tem a fazer senão o jogo do salto. (Lacan, 1985, p.63).

O salto é o ato e indica uma clínica do objeto para além de uma clínica do sentido.

Pode-se extrair da estrutura do jogo do for-da uma clínica do fort-da, isto é, uma clínica das relações do sujeito com o significante e com o objeto. O par fort-da corresponde ao par S1 - S2, necessário para definir a estrutura do Outro, segundo a primeira linha do discurso do Mestre, no qual se inscreve a identificação do sujeito. A clínica do objeto concerne a uma orientação que prioriza a extração do excedente de gozo. O objeto a, definido como um furo no Outro (Lacan, 2005), um furo com uma borda que funciona como lugar de captura de gozo, proporciona uma forma ao gozo, pois isola uma unidade de gozo em relação ao seu caráter de absolutização e infinitização. Trata-se do isolamento de zonas especiais no corpo que se tornam lugares do mais-de-gozar.

 

Conclusão

Conforme se constatou, no Centro de Referência à Gestante Encarcerada do Sistema Prisional de Minas Gerais, o momento da separação supõe preparos, não só judiciais, mas também psicológicos. Evidentemente isso leva a supor que ali as relações mãe-criança são pensadas para além da pura biologia.

Em nossas considerações, a psicanálise lacaniana pode contribuir no sentido de ajudar a pensar esse momento de ruptura ou interrupção de uma relação em tempo integral. Ponderamos a importância de que a escuta de cada caso localize, mais que a temporalidade fixa de tantos anos para que essa ação aconteça, os seguintes pontos: 1) o lugar da criança na subjetividade materna; 2) o estatuto do objeto-criança na fantasia da mãe; 3) o nível de captura do corpo da criança na fantasia da mãe; 4) as condições da relação da criança com a linguagem e de sua entrada no discurso; 5) as condições maternas de subjetivação da criança. Esse último ponto, a nosso ver, deve orientar, principalmente, a escuta da mãe e as suas condições de promover a separação da criança.

 

Referências

Bettelheim, B. (1987). A fortaleza vazia. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Freud, S. (1969). Além do princípio do prazer. In S. Freud. Obras Completas (pp. 13- 88). Rio de Janeiro: Imago Editora. (Original publicado em 1920).         [ Links ]

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Recebido em 12/05/2015
Aprovado em 17/05/2016

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