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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versión On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.2 São João del-Rei mayo/agosto 2016

 

Problematizações entre a dinâmica familiar preconizada pela Assistência Social brasileira e a família monoparental feminina

 

Problematizations between the familiar dynamic recommended by brazilian Social Assistance and the female single-parent family

 

Problematizaciones entre la dinámica de la familia preconizadas por el Bienestar Social de Brasil y la familia con un solo progenitor femenino

 

 

Cláudio Eduardo Resende AlvesI; Guilherme Freitas SilvaII; Maria Ignez Costa MoreiraIII

IPossui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1998) e mestrado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2002). Doutoranda em Psicologia e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
IIAcadêmica do 5º ano do curso de Psicologia da Universidade Paranaense (UNIPAR), Umuarama-PR
IIIAcadêmico do 5º ano do curso de Psicologia da Universidade Paranaense (UNIPAR) Umuarama-PR

 

 


RESUMO

A mulher, ao longo da história, foi alocada em lugar de privacidade e passividade na sociedade. Nos dias atuais, muitas mulheres são chefes de família monoparental e são a maioria dos(as) usuários(as) da política de Assistência Social brasileira, que preconiza em seu trabalho uma heterogeneidade de modelos familiares, embora não saia de um modelo cristalizado de funcionamento e papéis dentro da família. Em uma realidade familiar monoparental feminina, na qual a dinâmica familiar difere das famílias nucleares tradicionais, a política nacional de Assistência Social precisa considerar novas formas de exercício da dinâmica familiar, que não essas tradicionais, e contribuir para a desconstrução de discursos sedimentados que atravessam suas práticas.

Palavras-chave: Mulher; Família; Assistência Social.


ABSTRACT

The woman, along the history, was allocated in a place of privacy and passivity in society. In the current days, many women are the single-parent householders and are majority of the Brazilian Social Assistance Policy users that preconizes, in its work, an heterogeneity of family models, but doesn't leave from a crystallized model of functioning and roles within the family. In a female single-parent family reality, where the family dynamics differs itself from the traditional nuclear families, the National Social Assistance Policy needs to consider new ways of exerting of the familiar dynamics that are not these traditionals, and contribute to the deconstruction of discourses sedimented that go through its practices.

Keywords: Woman; Family; Social Assistance.


RESUMEN

La mujer, en largo de la historia, fue asignada en lugar de privacidad y pasividad en la sociedad. Hoy en día, muchas mujeres son jefes de familia monoparental y son la mayoría de los(as) usuarios(as) de la política de Asistencia Social brasileña que defende, en su trabajo, una heterogeneidad de modos familiares, pero no sale de un modo cristalizado de funcionamiento y papeles adentro de la familia. En una realidad familiar monoparental femenina, donde la dinámica familiar es distinta de las familias nucleares tradicionales, la política nacional de Asistencia Social necesita considerar nuevos modos de ejercicio de la dinámica familiar que no eses tradicionales y contribuir para la desconstrucción de los discursos sedimentados a atravesar sus prácticas.

Palabras clave: Mujer, Familia, Asistencia Social.


 

 

Apresentação

Este trabalho busca realizar uma compreensão do modelo de família monoparental feminina, ou seja, famílias chefiadas por um único membro do gênero feminino, realizando uma problematização com a noção de família, na qual a política pública de Assistência Social se pauta no exercício de suas ações.

Para tanto, em um primeiro momento, realizamos um levantamento da realidade dessas famílias monoparentais femininas contemporâneas no contexto brasileiro. Esse modelo de família caracteriza-se, conforme Souza (2008), por um convívio familiar concentrado apenas entre uma mulher e seus descendentes, seja esse convívio resultado de uma separação conjugal, divórcio, viuvez, ou simplesmente pela opção de adoção e/ou maternidade solteira. São modelos em que a mulher é, necessariamente, chefe dessa família.

A temática deste trabalho não se esgota nessa definição, uma vez que busca também compreender qual é a noção de família que trabalha a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) trabalha, criada em 2004, e se tal política considera esse modelo monoparental feminino, exercendo ações de maneira condizente com essa nova realidade familiar. Cabe destacar que estão entre os objetivos da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) a garantia de direitos sociais mínimos e o provimento de condições para a universalização desses direitos, que contribuem com a equidade e a inclusão, sempre garantindo as ações de Assistência Social como tendo centralidade na família. Essa temática busca entender, porém, se essa centralidade considera os diferentes arranjos familiares contemporâneos, em especial essas famílias monoparentais femininas.

É importante o objetivo de compreender inicialmente o modelo familiar monoparental chefiado por mulheres na contemporaneidade brasileira. Esse modelo é resultado de um percurso histórico que afetou principalmente o lugar da mulher dentro da família e da sociedade. No contexto brasileiro, as principais mudanças se deram ao longo dos séculos XIX e XX, conforme descreve Fiorin (2011), sendo que até esse período a mulher detinha o lugar de mãe e cuidadora do lar, estando subordinada ao marido. A partir dos anos 1960, é desencadeada uma revolução científica marcada pelo surgimento dos anticoncepcionais, iniciando os movimentos feministas, que passam a contestar esse controle do homem sobre a mulher e o discurso da maternidade como natural.

Cano et al. (2009) deixam claro que essa inserção das mulheres no mercado de trabalho, somada à lei do divórcio sancionada em 1977, foi um fator fundamental para o surgimento de novos modelos de família, inclusive o monoparental feminino. Se, até poucas décadas atrás, as esposas dependiam financeiramente do marido, a entrada da mulher no mercado de trabalho e a conquista de sua autonomia e independência financeira levaram muitas dessas mulheres a optar pela separação.

Além de todo o movimento histórico que conduziu a tal arranjo familiar, é preciso dar atenção às características desse arranjo no contexto brasileiro. Brito (2008) considera a existência de diversos fatores que afetam essa família, como o fato de as dificuldades familiares se tornarem um discurso que culpabiliza a mulher pelos problemas ocasionados pela falta de um chefe familiar do gênero masculino: a dupla jornada de trabalho somada à falta de tempo para se dedicar aos filhos(as), a situação financeira como um agravo para manter sozinha uma família e a dificuldade de suprir a falta do marido e pai das crianças. Ainda faz parte do imaginário social associar a família monoparental feminina à pobreza.

Desde o surgimento da PNAS (2004), as políticas de Assistência Social direcionam suas ações para a família como centro principal de seu trabalho, exercendo o que alguns autores chamam matricialidade sociofamiliar. Gueiros e Santos (2011), ao falar dessa matricialidade, afirmam que os vínculos sociais com essas famílias são estabelecidos a partir da unidade familiar, sendo a família o palco onde a política de assistência social busca seus alicerces, procurando trabalhar juntamente a ela em sua sobrevivência, no acolhimento de suas necessidades e nos seus interesses sociais e comunitários.

Considerando, portanto, o fato de a política de Assistência Social brasileira estar focada no desenvolvimento da autonomia e no combate à vulnerabilidade social, tendo de realizar seu trabalho na centralidade da família e de as mulheres chefes de família monoparentais formarem um grupo com alto índice de situações de vulnerabilidade, esta articulação busca compreender se a política nacional de Assistência Social realmente está preparada para lidar com essas famílias monoparentais femininas diante de suas características e de sua vulnerabilidade.

Este artigo se justifica pela realidade constatada na sociedade brasileira no que tange ao atendimento da Assistência Social, reconhecendo as transformações contemporâneas nas relações familiares em que a figura da mulher vem crescendo como pessoa de referência na família, centrando-se nela os maiores perfis familiares de atendimento nos serviços da assistência, de acordo com as pesquisas de Meyer, Klein e Fernandes (2012).

Uma vez que essa realidade se apresenta, é necessário, diante do reconhecimento da matricialidade sociofamiliar, o conhecimento das ações exercidas para essas famílias chefiadas por mulheres, que fogem à regra de família típica nuclear. Subentende-se que existem características peculiares nesse modelo de família e que, portanto, as ações exercidas sobre elas devem ser condizentes com tal realidade para que sejam eficazes e preservem o princípio do respeito a essas diferenças e singularidades da família monoparental feminina.

 

Ser mulher: o discurso regulador do feminino na sociedade contemporânea

É impossível discutir a importância e a dinâmica da mulher na família, principalmente na família monoparental, sem considerar a maneira como a compreensão do feminino e do ser mulher na contemporaneidade funciona no processo de subjetivação de gênero e os modos de existir como mulher, não só atuais, mas construídos histórico-socialmente.

A maneira como as mulheres agem, se constroem e como a sociedade as compreende não é a natural. Seguindo o disposto por Haraway (2004), em se tratando de gênero, não existe uma maneira ideal ou pré-determinada de ser mulher, isto é, não existe essa maneira natural. Tudo aquilo que define a masculinidade ou a feminilidade, tratando-se do contexto ocidental, é uma construção histórico-social. Assim, tudo aquilo que hoje é atribuído como papel, função ou característica da mulher, definindo-a como tipicamente feminina, na realidade é a reprodução de um discurso de poder.

Essa definição do que seria natural, ideal e típico da mulher começou como um processo de normalização ainda em meados do século XIX. Donzelot (1986) diz que sempre foi interessante para o Estado a moralização e disciplina das crianças para que elas pudessem vir a retribuir ao Estado, no futuro. Em um contexto em que as crianças eram deixadas aos cuidados dos criados, que muitas vezes as desmoralizavam, o saber médico instituiu que a mulher e mãe era a pessoa ideal para permanecer no lar junto a essas crianças para garantir sua moral e disciplina.

Com esse discurso médico, a mulher foi instituída como naturalmente designada à maternidade. O corpo biológico foi utilizado, portanto, como meio primeiro da definição da expressão do gênero mulher: ela é naturalmente reprodutora, logo é naturalmente mãe. Farah (2004) entende que é a partir desse discurso biologicista e maternalista que as outras funções da mulher foram se desenvolvendo e colocando-a na esfera privada. Assim, foram se instituindo dois polos distintos: o masculino, na função de produtor na esfera pública, e o feminino, na função de reprodutora na esfera privada.

Haraway (2004) diz que a sociedade contemporânea se desenvolveu colocando o homem como dominador na esfera da família, construção esta biológica e socialmente estratégica, pois o homem é visto como aquele que tem a força necessária para o exercício do trabalho na sociedade de produção e a mulher é vista como aquela que tem um organismo propenso à reprodução. A mulher é vista como naturalmente frágil, aquela cujo corpo é naturalmente propenso a procriar, com quadris largos para parir e seios desenvolvidos para amamentar e que, por essa determinação, deve estar sempre junto à prole para atender suas necessidades. A caça e os perigos fora da esfera privada são vistas como responsabilidade dos homens. Nesse contexto se construiu a ideia, de base biologicista, de homem caçador e mulher coletora.

Primitivamente, o homem era aquele que trazia o alimento para casa, a caça que sustentaria sua família, e a mulher apenas coletava esse alimento trazido pelo homem e o preparava de acordo com as necessidades da prole. Todos os perigos do mundo externo estavam reservados ao homem, segundo Rosaldo (1980). Nos discursos contemporâneos, portanto, prega-se que a natureza do homem e da mulher ainda é a de homem caçador e mulher coletora, ou seja, homem produtor na esfera pública e mulher reprodutora na esfera privada. Assim, os estudos da biologia evolutiva transpuseram um modo de vida humano primitivo como natural na realidade ocidental atual.

Na relação de gênero, portanto, o discurso que sempre predominou e que até hoje possui uma força a ser transposta coloca a mulher em um lugar de privacidade. Esses discursos constroem uma falsa verdade de que as mulheres são naturalmente propensas ao cuidado, ao afeto, e devem garantir uma postura de preservação à privacidade, e que ela possui um lugar passivo e submisso socialmente diante da masculinidade, conforme Torrão Filho (2005). As mulheres, muitas vezes, são vistas como incapazes do oposto ao privado e passivo, e se ela prova essa capacidade, ela é trazida novamente pelos discursos para um lugar de normalidade. Para esse autor, o discurso em torno do gênero produz uma identidade do feminino e do masculino que aprisiona os sujeitos em seus limites dos quais precisa a história escapar.

Esses discursos que predominam sob um sistema binário sexo/gênero, ou seja, definindo a partir do corpo biológico quais devem ser as expressões, ações e comportamentos do homem e da mulher, tiveram como principal propulsor a ciência. Haraway (1995) critica a postura da ciência ao objetivar seu campo de estudo, em especial, o corpo. A autora conduz a pensar que a ciência utilizou de seus conhecimentos sobre a natureza e o biológico para, por meio deles, construir saberes que determinaram o que é ser mulher social e historicamente. Assim, a ciência construiu o que é ser mulher e seu discurso prevalece pelo seu poder.

É preciso desconstruir essa objetivação biologicista que recai sobre a mulher contemporânea. É preciso reconhecer na mulher sua capacidade de sair desse discurso de reprodução e passividade, reconhecer a possibilidade de uma mulher ativa, que se sobressai no mercado, capaz de ser chefe e arrimo familiar, como nos casos da família monoparental. Para isso, é possível instituir na mulher contemporânea o poder para ser agente transformadora e construtora de sua própria realidade sem nenhuma determinação objetiva, é possível empoderá-la.

Segundo Borsa e Nunes (2011), os movimentos feministas do século XX, especialmente a partir dos anos 1950, desencadeados coincidentemente pela própria ciência que instituiu a mulher na esfera privada do lar devido à sua propensão à maternidade, conduzindo ao surgimento das pílulas anticoncepcionais e da fertilização in vitro, fizeram com que se percebesse a mulher não mais como naturalmente condenada à maternidade, mas como capaz de controlar sua própria reprodução, resistindo ao discurso biologicista que funcionava como determinante do feminino.

Apesar desses movimentos e das mudanças nos papéis de gênero da mulher no século XX, o discurso determinista de gênero perdeu pouca ou nenhuma força, existindo dispositivos que ainda colocam a mulher nesse lugar de privacidade e passividade ao qual, na prática, se vem resistindo quando se vê, por exemplo, as próprias mulheres chefes de família monoparental que vivem sem a necessidade ou auxílio do masculino e exercem suas tarefas na esfera pública e privada.

Diante dessa realidade que ainda se firma no discurso de gênero que determina o ser mulher na sociedade ocidental atual, cabe o exercício do empoderamento das mulheres para que compreendam as possibilidades de saída e resistência da norma de gênero pregada nesses discursos.

Para entender e praticar o empoderamento, é importante pontuar o conceito de poder para Foucault (1979), que afirma que é algo que não existe como coisa, mas é um exercício. O poder, para o filósofo, é o exercício de ações que se dão nas relações e acabam influenciando o funcionamento dessas relações e se disseminando na estrutura social, construindo modos de ser e fazer, construindo novos discursos e saberes. O poder é sempre uma relação que envolve um jogo de forças e, consequentemente, envolve resistência.

[...] o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona. [...] Não é um objeto, uma coisa, mas uma relação. [...] Qualquer luta é sempre resistência dentro da própria rede de poder. (Foucault, 1979, p.14)

Dessa maneira, seguindo pelo viés foucaultiano do poder como relação que envolve um jogo de forças e resistência, empoderar seria promover essa possibilidade de resistência. Em se tratando da mulher na contemporaneidade, empoderá-la seria possibilitar as suas relações de maneira a resistir aos discursos que objetivam sua maneira de ser mulher e forçar novas maneiras de exercer o feminino na sociedade, produzindo assim novos discursos, novos saberes e novas formas de ser mulher a partir dessa nova relação de poder.

Assim, cabe ao e à profissional da Psicologia em diversos contextos e às políticas públicas o exercício desse trabalho de empoderamento, demonstrando que ser mulher não é sinônimo de vida privada e passividade, mas pode representar autonomia e independência ocupacional e financeira; e que ser mãe não é algo natural, mas uma opção e apenas mais um elemento que tange a vida dessa mulher, não a privando dos outros elementos de sua realidade.

Compreendendo a existência do discurso que regula o que é ser mulher em nossa sociedade, mas também compreendendo que esse discurso pode ser transgredido e que as mulheres podem encontrar novas formas de serem mulheres na atualidade, é possível afirmar que a família monoparental feminina não foge à força desse discurso, mas pode resistir a ele, e o trabalho da política de Assistência Social pode fazê-lo. Assim, cabe agora buscar entender esse modelo de família agenciado a essas linhas de subjetivação dos gêneros e, em seguida, o referencial de família que a Assistência Social considera em sua política para entender se ela vem cumprindo o papel de considerar esse modelo e do que fazer diante dele.

 

A família monoparental feminina na sociedade brasileira contemporânea

A família monoparental feminina, ou seja, aquela constituída apenas pela figura da mulher e dos(as) filhos(as) é um modelo familiar relativamente recente, fazendo parte dos novos arranjos familiares que começaram a predominar na última metade do século XX. Antes de a mulher poder chefiar sozinha uma família, ela ocupou lugares de submissão dentro dela, o que podemos entender em uma breve retomada histórica.

Seguindo as descrições de Ariès (1981) e Donzelot (1986), é possível dizer que, na Idade Média e nos períodos que antecederam a Idade Moderna, a família ainda não possuía uma vida privada, pois vivia em uma casa grande, aberta e sem cômodos, onde qualquer pessoa circulava livremente e não se tinha as divisões de papel familiar bem estabelecidas. Nessa família, a mulher era vista como mera reprodutora, ou seja, como o corpo biológico capaz de reproduzir uma criança.

O lugar da mulher se transforma na Idade Moderna, quando as casas se fecham e surge o sentimento de privacidade, o sentimento de infância e, consequentemente, o modelo de família tradicional burguesa. Aqui, a família passa a ser constituída por pai, mãe e filhos, e as crianças passam a ser os mais importantes elementos da família. Essas crianças precisam ser preservadas, não podem ser deixadas nas mãos de qualquer criadagem ou nutriz, mas precisam ser deixadas aos cuidados de alguém que garanta a boa educação moral dessa criança.

Donzelot (1986) diz que é o saber médico que institui a mãe como a cuidadora e educadora ideal para essa criança, pois o discurso médico traz a ideia da mulher como portadora da natureza biológica que lhe institui o papel de mãe de maneira pré-determinada. Assim, o saber médico institui a mãe na esfera privada do lar, como responsável pelas atividades domésticas e como autoridade na educação dos filhos.

Nesse período, a mulher passa a uma posição de submissão ao marido, pois ele é aquele que trabalha na esfera pública e traz para casa o sustento, sendo que a mulher paga ao marido com seus serviços prestados no lar e com sua obediência.

A corrente feminista cresceu como filosofia no século XX, com filósofas como Hannah Arendt e Simone de Beauvoir, entre outras, que procuraram deixar claro que não se nasce mulher, mas que a mulher é uma construção histórica e nada a determina.

O processo de emancipação feminina permitiu às mulheres, mesmo as casadas, sair para o mundo público do trabalho. Moreira et al. (2011) destacam que, ainda assim, durante muito tempo, essas mulheres tinham que conciliar a vida no mercado, a vida doméstica e a maternidade em muitos casos. Isso se dá porque, mesmo com essa emancipação, existe todo um discurso social e histórico que prega as atividades domésticas e a maternidade como características do gênero feminino. A partir daqui passa a existir uma grande dificuldade de conciliação entre os papéis de trabalhadora, esposa, mãe e cuidadora do lar.

No Brasil, uma das mudanças que propiciou essas transformações se deu de maneira legal com o surgimento da lei do divórcio, de 1977. Para Cano et al. (2008), as famílias evitavam situações de rompimento de vínculo conjugal antes dessa lei devido às dificuldades do aceite social. O aporte legal do divórcio tornou maior esse aceite e conduziu muitos casais ao trâmite legal de separações conjugais.

Portanto, chega-se a concluir que nas últimas décadas do século XX existe uma elevação no número de famílias monoparentais femininas. Esses fatores, no entanto, apenas facilitaram o surgimento dessas famílias que, apesar das mudanças no modelo familiar das últimas décadas, ainda podem ser vistas como um modelo familiar de resistência devido às dificuldades e aos preconceitos que enfrenta.

Uma vez que se compreende esse processo da mulher, que passou da posição de privacidade e submissão na família para uma mulher questionadora e que obteve ganhos no século XX, é necessário agora compreender quem é essa mulher chefe de família monoparental contemporânea na sociedade brasileira.

A família monoparental feminina se caracteriza por uma mulher que sozinha é responsável pelo lar, pela educação e pelo sustento dos(as) filhos(as). A mulher chefe de família monoparental brasileira, conforme Brito (2008), comumente concilia uma jornada dupla de trabalho fora do lar somada às suas responsabilidades domésticas e cuidado dos(as) filhos(as) no lar. Assim, essa mulher acaba por se sobrecarregar em suas responsabilidades. Ela deve suprir o que seria a construção social de homem da casa e pai de família.

A ausência de um cônjuge masculino gera, no olhar social, um julgamento equivocado que termina por estigmatizar as famílias monoparentais femininas. Essas famílias, de acordo com Yunes et al. (2007), são muitas vezes julgadas como desestruturadas, desorganizadas ou desintegradas devido à ausência dessa figura masculina. É preciso parar para refletir e ressignificar esse modelo familiar, considerando que essa família não é desestruturada, mas apenas mais um modelo no rol dos novos arranjos familiares contemporâneos.

Essa estigmatização que decai sobre a família monoparental feminina é maior se considerarmos a posição econômica da maioria dessas famílias. No Brasil, a maioria das famílias monoparentais femininas estão em situação de pobreza e vulnerabilidade. Não estamos aqui dizendo que a pobreza é característica própria desse modelo de família, pois sabemos que existem famílias monoparentais femininas em boas condições econômicas, mas afirmando a realidade que se apresenta na sociedade brasileira.

O fenômeno da pobreza na maior parte das famílias monoparentais femininas é justificado por Carloto (2005) pelas características sociais do país. Segundo a autora, vivemos em um país onde as mulheres ainda estão em desigualdade de renda com relação aos homens. As mulheres chefes de família monoparental, além de possuírem essa renda em desvantagem simplesmente por serem mulheres, não possuem um cônjuge para auxiliar nas despesas do lar. Essas mulheres precisam administrar sua renda para sustentar sozinha a si própria, aos filhos e filhas, pagar as contas básicas, muitas vezes morando em casas de aluguel.

Assim, um lar com várias crianças e um único adulto com uma renda relativamente inferior acaba gerando uma dificuldade de sustento e administração financeira que pode conduzir à situação de vulnerabilidade. Socialmente, passa-se a entender que, se essa família enfrenta tal situação, é devido à falta de um homem para administrá-la, pois na compreensão social essa mulher não saberia administrar sozinha uma família. Assim, essa família está condenada a outro estigma, "o de que as mulheres são menos 'capazes' para cuidar de suas famílias ou para administrá-la sem um homem" (Brito, 2008, p. 45).

O fato de não existir um homem na vida familiar dessas mulheres não incomoda a maior parte delas, de acordo com uma pesquisa de Brito (2008). Apesar da sobrecarga gerada sobre essa mulher, principalmente no que tange ao sustento econômico dessa família, a maior parte delas se orgulha por ser chefe de família e por assumir a figura de autoridade diante dos filhos e filhas, figura essa que tradicionalmente caberia ao pai. Aliás, não é apenas economicamente que a mulher assume a figura do homem, mas também afetivamente, pois ela deve suprir também a falta de um pai para essas crianças.

Souza (2008) coloca que muitas vezes é necessário investir na carreira profissional, principalmente pela dificuldade de renda dessas mulheres, mas esse investimento reduz o tempo dedicado à prole e acentua a culpabilização da mulher diante dessa condição. Muitas dessas mulheres saem de casa pela manhã e retornam apenas à noite, quando fazem as atividades domésticas, não restando tempo hábil para se dedicar aos filhos(as). Elas sentem-se culpadas por isso e pelo fato de deixar, por exemplo, as crianças durante o dia todo aos cuidados de parentes mais próximos, como os avós, ou mesmo aos cuidados do(a) irmão(ã) mais velho(a).

Favaro (2009), ao tratar desse aspecto da família monoparental, deixa claro que a rotina dessas mulheres é de jornada dupla entre o trabalho e a casa com os(as) filhos(as). Em alguns casos, a mãe delega aos filhos(as) parte do trabalho doméstico enquanto estão fora de casa trabalhando. Assim, muitas crianças e adolescentes acabam desempenhando essa função como meio de auxiliar a mãe, sendo as próprias crianças constituintes de uma rede de apoio para a mulher chefe de família monoparental.

Os(as) filhos(as), ainda seguindo a autora supracitada, possuem uma importância crucial na vida dessas mulheres. O fato de muitas delas se sentirem culpadas por não conseguirem fornecer a atenção e o cuidado que preconizam como fundamental para os eles(as) se deve muitas vezes ao discurso social do amor materno natural. Essas mulheres ainda sentem a responsabilidade e a cobrança social pelo contato afetivo e pela dedicação de amor aos filhos(as) devido ao discurso de que elas são naturalmente responsáveis por suprir essas necessidades afetivas. A soma necessária de funções privadas e públicas acaba por tornar quase inviável essa possibilidade de tempo unicamente para os filhos(as).

O "mito do amor materno" como algo natural e dado é expresso nos discursos das mulheres de maneira bastante clara. Ainda há uma grande naturalização da maternidade, seja no contexto analisado, seja em outro, como no de mulheres cônjuges e também nas das classes mais altas. (Favaro, 2009, p. 100)

Enfim, conhecendo a realidade de grande parte dessas famílias monoparentais femininas, sabemos que seria fundamental a existência de programas sociais com o objetivo de desenvolver autonomia e não estigmatizá-las, oferecendo proteção e cuidados aos seus membros, conforme Brito (2008). Assim, podemos ver no Sistema Único de Assistência Social (Suas), especialmente no que tange à proteção básica, um meio de se trabalhar essa autonomia respeitando as características desse modelo familiar. Estaria a política nacional de Assistência Social preconizando uma ideia de família que garanta um trabalho ideal para esse modelo familiar? Cabe agora buscar entender qual é a família que essa política preconiza em seu trabalho e se esta vem cumprindo com suas obrigações em relação à família monoparental feminina, de acordo com a maneira com que esta se apresenta em nossa realidade nacional.

 

A perspectiva familiar a partir da política pública de Assistência Social brasileira

As políticas públicas são todas as ações que o Estado exerce para efetivar as prescrições constitucionais acerca de todos os direitos básicos dos cidadãos brasileiros. Um desses itens destacados no art. 6º da Constituição Federal (1988) como direito fundamental do cidadão brasileiro é a assistência aos desamparados.

A Assistência Social brasileira passa a ser reconhecida como política pública nacional a partir da Lei nº 12.435, de 2011, que instituiu o Sistema Único de Assistência Social (Suas), conforme ditado pela Lei Orgânica de Assistência Social - Loas (1993), que já previa a instituição desse sistema. A partir da Loas e da instituição do Suas, a política de Assistência Social brasileira passa a funcionar, por lei, de forma descentralizada e as esferas federal, estaduais e municipais possuem responsabilidade no exercício da política e no implemento e repasse de recursos para que a Loas e o Suas funcionem.

O art. 1º da Loas (1993) dispõe a Assistência Social como direito de todos os cidadãos e dever do Estado. O art. 2º da mesma lei coloca como um dos seus primeiros e principais objetivos a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice. A família, portanto, aparece como um dos primeiros e primordiais pontos de ação da política pública de Assistência Social. É na família que a política se efetiva e busca seus resultados e transformações. De algum modo, a política pública de Assistência Social brasileira compreende essa família, uma vez que ela é o principal meio de exercício de suas ações, mas temos de buscar entender que compreensão de família é essa.

A atual Política Nacional de Assistência Social, de 2004, apresenta que, ao trabalhar com família

Deve considerar novas referências para a compreensão dos diferentes arranjos familiares, superando o reconhecimento de um modelo único baseado na família nuclear, e partindo do suposto de que são funções básicas das famílias: prover a proteção e a socialização dos seus membros; constituir-se como referências morais, de vínculos afetivos e sociais; de identidade grupal, além de ser mediadora das relações dos seus membros com outras instituições sociais e com o Estado. (Brasil, 2005a, p.35)

Dessa maneira, é perceptível que a PNAS (2004) não busca definir a família pelo que ela é ou pelo que deveria ser. A definição de família aqui parte das funções ou papéis que deve desempenhar. Apesar dessa nova visão, que supera a visão hegemônica do modelo burguês, permanece um paradoxo no conceito de família que essa política tenta adotar, porque é impossível pensar a família diferente do modelo nuclear tradicional e não pensar que os papéis e funções também se modificam. Di Marco (2005), por exemplo, aponta que as famílias contemporâneas não são apenas uma diversidade de arranjos familiares, mas há também uma reorganização interna que está modificando os padrões de produção e reprodução das dinâmicas relacionais no que tange às questões de gênero, intergeracionais e de trabalho dentro da família.

Apesar do reconhecimento de que a família pode ser qualquer instituição que não seja formada unicamente pelos membros tradicionais burgueses (pai, mãe e filhos), a PNAS (2004) cobra o desempenho e/ou funcionamento dessas famílias de acordo ainda com a família tradicional. O atraso dessa política vem nesse sentido de não reconhecer novas possibilidades de cuidado ou referências morais, por exemplo, dentro dessas famílias.

Essa família, dessa maneira entendida pela PNAS, de 2004, como dito anteriormente, é o centro das ações da política de Assistência Social brasileira. O principal programa da proteção básica da Assistência Social brasileira é o Programa de Atenção Integral à Família (Paif). A Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (2013), ao tipificar as ações do Paif, coloca que este tem a função de trabalhar com as famílias em situação de vulnerabilidade social e econômica para fortalecer seus vínculos familiares e sociais, garantir que os já existentes não sejam rompidos e assegurar o acesso e usufruto de direitos básicos para melhorar a qualidade de vida dessas famílias. Ainda segundo esse documento, o respeito à heterogeneidade dos modelos familiares atendidos pelo Paif é garantido.

É serviço baseado no respeito à heterogeneidade dos arranjos familiares, aos valores, crenças e identidades das famílias. Fundamenta-se no fortalecimento da cultura do diálogo, no combate a todas as formas de violência, de preconceito, de discriminação e de estigmatização nas relações familiares. (Brasil, 2013, p. 10)

Essa centralidade na família, sustentada pela política de Assistência Social, deve buscar justamente que as ações dessa política sejam de mão dupla, ou seja, um trabalho no qual as equipes da Assistência Social se posicionem diante de toda a realidade familiar e que a família, independentemente do modelo ou arranjo, também se posicione diante do seu direito ao usufruto de tal política. Freitas (2010) salienta que muitas vezes a política de Assistência Social brasileira acaba por fazer um uso equivocado dessa centralidade e acaba se focando na família como organização, mas se esquece de olhar a universalidade, ou seja, as condições socioeconômicas que a rodeiam. A centralidade não pode se focar na família e se esquecer da realidade que em grande parte a constitui.

A família é vista pela política de Assistência Social brasileira como centro de cuidado e proteção. Por um lado, entende-se que a família teria essa capacidade de desenvolver cuidado e proteção de maneira autônoma, sem demandar nenhuma intervenção do Estado. Ela, por si só, é vista como capaz de estabelecer vínculos que a fortalecem e lhe garantem a superação das vulnerabilidades e das dificuldades. Mello (2012), no entanto, coloca que o Estado intervém nessa rede de autonomia da família apenas quando seus canais falham, ou seja, quando se percebe a necessidade do Estado para construir e ofertar uma rede de proteção e cuidado para a família, porque, por algum motivo, não vem funcionando a proteção e o cuidado no seio da própria família.

O equívoco que se nota quando o Estado entra em ação para reconstruir e ofertar essa rede é justamente a compreensão de família da PNAS (2004). A política atende qualquer modelo de família, mas tenta inseri-la em modelos de cuidado e proteção baseados em suas premissas sem, no entanto, questionar o que a própria família considera como cuidado e proteção. "Assim, a família em referência (...) é chamada a se reestruturar como espaço de proteção e cuidado [grifo do autor], de acordo com o ideal pré-estabelecido e determinado pela política social." (Mello, 2012, p. 107). Se a referência de proteção da família não está em consonância com a referência de proteção da política de Assistência Social, ela é culpabilizada, em vez de ser compreendida.

Em se tratando das mulheres, ao longo das últimas décadas, elas ganharam mais espaço como pessoas de referência nas famílias. Nas famílias monoparentais femininas, elas necessariamente assumem a posição de chefe não por opção, mas por serem as únicas responsáveis pelo sustento do lar e dos(as) filhos(as). A PNAS (2004) reconhece que até 2002, por exemplo, aumentou em 30% o número de famílias chefiadas por mulheres. Segundo estimativas do IBGE (2010), dos mais de 57 milhões de domicílios brasileiros, a mulher é a pessoa responsável em mais de 22 milhões, ou seja, aproximadamente 38,5% dos domicílios brasileiros são chefiados por mulheres. Esse número chega a 40% se considerarmos apenas as zonas urbanas. A maior parte dessas famílias que tem a mulher como referência são as monoparentais.

A família monoparental feminina é, como já visto, reconhecida pela PNAS (2004) como um novo arranjo familiar que supera o modelo tradicional burguês. Apesar desse reconhecimento, a política de Assistência Social brasileira não oferece subsídios mais sólidos para o desenvolvimento de práticas que atendam as diferenças nas dinâmicas de tal família, e pode acabar por estigmatizá-la em vez de desenvolver autonomia com ela, o que deveria ser o seu papel.

É embasada na matricialidade sociofamiliar que a política de Assistência Social pode estar realizando um trabalho equivocado com essas famílias. Essa política traz, como já destacado anteriormente, uma concepção de papéis e funções básicas que uma família deve exercer para seu cuidado e proteção, independentemente do modelo familiar, o que se torna inviável, uma vez que é ao pensar em novos arranjos familiares que se mudam também os papéis desempenhados, o que não atende aos padrões pré-fixados discursivamente.

Seguindo o raciocínio de Freitas (2010) acerca da centralidade da família em uma contrapartida com a família monoparental feminina, podemos perceber que, em diversas vezes, não há a problematização da realidade contextual por parte dos executores da política, ou seja, os membros da equipe socioassistencial que dão margem a considerações, por exemplo, de que famílias constituídas por mãe e filho(as) possuem a mesma capacidade dinâmica de proteção e cuidado que qualquer outra família, e se essa proteção e cuidado ideal não vêm sendo exercidos é porque algo está errado em tais famílias. Precisa-se do entendimento de que existem, nessas famílias, outras concepções de valores de cuidado e proteção que não são piores que os valores de cuidado e proteção preconizados pela política, mas apenas diferentes.

Ao se dar conta do funcionamento relacional de uma família monoparental, a política de Assistência Social dá margem à interpretação de casos como de uma criança que, auxiliando na esfera do lar ou cuidando dos irmãos, esteja em uma outra perspectiva de cuidado e proteção. O problema é que essa equipe não pensa na realidade dessa família e não considera os valores dessa família. Enfim, a política não vê essa dinâmica como própria dessa família, mas como um equívoco de proteção e cuidado. Isso se dá porque a política tem ideais de proteção e cuidado inflexíveis em relação às realidades familiares.

A partir de situações como essa, a política intervém para desenvolver autonomia nessa família e tirar essas crianças das condições de cuidado e proteção nada ideais para a política. Seguindo o disposto por Mello (2012), a proteção e o cuidado no seio familiar falharam e agora o Estado vem, por meio da política de Assistência Social, promover essa proteção e esse cuidado. Aqui, a Assistência Social vem para trabalhar a autonomia dessa família monoparental feminina para mudar essa realidade incompatível com o ideal, mas é também aqui que os valores de proteção e cuidado próprios desse modelo familiar, com sua dinâmica própria de funcionamento, são apontados como errados e, portanto, cai sobre a família a culpabilização por tal situação.

Percebe-se que a família, sob o olhar da política social, se torna culpada por suas próprias características estruturais e funcionais e, consequentemente, por sua própria vulnerabilidade social. O problema maior dessa culpabilização para esse modelo de família é que ela nunca recai sobre os discursos estruturantes de modelo familiar, mas sempre sobre a mulher, porque ela é a única chefe de família naquele contexto.

Considerando o que dispõem Brito (2008) e Yunes et al. (2007) acerca da estigmatização da mulher chefe de família monoparental feminina, torna-se perceptível que a política de Assistência Social reforça essa estigmatização. Culpabilizando a mulher pela situação de sua família, a política de Assistência Social contribui para a construção negativa da visão social de que as famílias monoparentais femininas comumente dirigem sua família de maneira errônea por culpa da mulher e, consequentemente, as famílias com a presença masculina se desenvolvem de maneira correta e ideal na concepção social.

Podemos, finalmente, dizer que ao se considerar uma dinâmica, conjunto de valores e proteção ideal igual para todas essas famílias, desconsidera-se a própria heterogeneidade familiar que preconizam. Ademais, não cabe culpabilizar essas famílias por sua condição, mas justamente trabalhar com elas na perspectiva de matricialidade sociofamiliar para que elas façam uso de sua autonomia para sair de sua condição de vulnerabilidade, embora considerando que o Estado deve fornecer ferramentas para isso e tem responsabilidade na situação de seus cidadãos.

 

Considerações finais

Quando a política de Assistência Social brasileira, em sua concepção de família, não considera as mudanças de papéis nos diferentes contextos familiares e, devido a isso, trabalha culpabilizando as famílias quando fogem ao padrão ideal de proteção e cuidado familiar, acaba por realizar na família monoparental um trabalho que conduz a sociedade a uma manutenção de uma postura sexista e machista.

Em suma, a política de Assistência Social contribui com esse trabalho para que essa visão machista de que se essas famílias não estão adequadas ou bem é porque são administradas por uma mulher e porque lhe falta um homem. É uma política da norma, que saiu da norma de modelo familiar, mas não saiu da norma nas expressões tradicionais de família. Conforme a PNAS (2004), a maioria dos atendimentos em serviços de proteção básica é para a população feminina e de famílias monoparentais. Se tal política continuar construindo a culpabilização dessas famílias e contribuindo para a estigmatização da mulher, pode se tornar uma ferramenta negativa do sistema machista e sexista que vem se fortalecendo há séculos. Cabe procurar mudanças na concepção de como se trabalhar com essas famílias para que tal política não seja um dispositivo negativo, em vez de um meio de garantir os direitos sociais e econômicos básicos da população.

O foco deste estudo é um exemplo significativo, na medida em que os prejuízos desse trabalho equivocado podem ultrapassar a dinâmica familiar, atravessados por uma questão de gênero, tornando-se uma ferramenta para a reprodução de discursos machistas e sexistas. A política pode até ter boas intenções, mas como detentora de um poder que está utilizando de maneira errônea, está construindo um saber que desqualifica a mulher como pessoa capaz de gerir uma família.

Cabe aos e às profissionais que estão inseridos nessa política a busca por uma saída da norma de visão familiar para não incorrer nesse erro. Esses(as) profissionais devem olhar para essa família gerida por uma mulher buscando enxergar toda a realidade dessa família e como essa realidade é uma linha de subjetivação para o seu funcionamento em sua dinâmica relacional e funcional entre mãe e filhos(as). As famílias monoparentais femininas devem ser reconhecidas em sua forma de expressão e não delimitadas por formas de expressão previamente construídas e instituídas como se fosse uma obrigação para todos os modelos familiares expressar-se segundo um único padrão.

Os psicólogos e psicólogas, como profissionais das políticas públicas de Assistência Social, precisam problematizar essa questão e se colocar como profissionais implicados com a questão dos modelos familiares e das linhas de gênero que atravessam os(as) usuários(as) da Assistência. Dessa maneira, o(a) psicólogo(a) deve ter a clareza das diversas possibilidades de estar mulher, estar mãe, estar vulnerável e de ser família. A partir daí, esses(as) profissionais precisam buscar construir com os outros profissionais da equipe socioassistencial essa compreensão para que as equipes e os órgãos socioassistenciais se sensibilizem diante da realidade dessas famílias. O profissional e a profissional de Psicologia, dentro da Assistência Social, poderia primeiramente se voltar para essa equipe e torná-la compreensiva do contexto e sua interferência no ser família, e, a partir daí, trabalhar com as próprias famílias, não para culpabilizá-las, mas para lhes mostrar todas as possibilidades para a saída da condição de vulnerabilidade e desenvolver autonomia para que essas mulheres superem as dificuldades de sua condição.

Por fim, cabe sempre destacar que os profissionais constroem um Sistema de Assistência Social em que é possível resistir à norma da política em prol das diferenças familiares e de gênero, e que o(a) psicólogo(a), de certo modo, pode ser um carro-chefe nessa resistência para uma ressignificação do trabalho com famílias monoparentais femininas na política de Assistência Social.

 

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Recebido em 02/03/2015
Aprovado em 02/03/2016

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