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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.2 São João del-Rei maio/ago. 2016

 

A política pública do uso do nome social por travestis e transexuais nas escolas municipais de Belo Horizonte: uma pesquisa documental

 

The public policy of the social name usage by transvestites and transsexuals in the municipal schools of Belo Horizonte: a document research

 

La politique publique de l'utilisation du nom social de travestis et transsexuels dans les écoles municipaux de Belo Horizonte: une recherche documentaire

 

 

Cláudio Eduardo Resende AlvesI; Guilherme Freitas SilvaII; Maria Ignez Costa MoreiraIII

IDoutorando do programa de pós-graduação em psicologia da PUC Minas. E-mail: cadupbh@gmail.com
IIGraduando do curso de Psicologia da PUC Minas e Bolsista de Iniciação Científica do Fundo de Incentivo à Pesquisa da PUC Minas (FIP). Atualmente pesquisa o campo de estudos de gênero na perspectiva pós-estruturalista
IIIProfessora do Programa de pós-graduação em Psicologia da PUC Minas. Doutora em Psicologia Social pela PUC SP. E-mail: maigcomo@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo é o relato de uma pesquisa acadêmica, financiada pelo FIP/PUC Minas, que investigou a política pública do uso do nome social por estudantes travestis e transexuais nas escolas municipais de Belo Horizonte. Por nome social, entende-se o nome pelo qual travestis e transexuais preferem ser chamados cotidianamente, uma vez que o nome civil ou de registro não reflete sua identidade de gênero. A pesquisa teve suporte epistemológico nas teorias pós-estruturalistas de gênero e como estratégia metodológica a análise documental da Resolução CME/BH nº 002/08 e do Parecer CME/BH nº 052/08, ambos do Conselho Municipal de Educação de Belo Horizonte, que legitimam o uso do nome social na educação. Inúmeras inconsistências textuais e conceituais foram encontradas nos documentos analisados, comprometendo a lógica interna do dispositivo legal. Entretanto, longe de ser o ideal, o nome social trouxe a temática para a pauta política dos direitos humanos.

Palavras chave: Direitos humanos; Educação; Gênero; Nome social; Política pública.


ABSTRACT

This article is a report of an academic research, funded by FIP/PUC Minas, which investigated the public policy of the social name usage by students transvestites and transsexuals in municipal schools of Belo Horizonte. Social name means the name by which transvestites and transsexuals prefer to be called daily, once the civil name does not reflect their gender identity. The research had the post structuralist theories of gender as epistemological support and as methodological strategy the document analysis of the Resolução CME/BH nº 002/08 and of the Parecer CME/BH nº 052/08, both produced by the Municipal Council of Education of Belo Horizonte, legitimating the use of the social name on education premises. Numerous textual and conceptual inconsistencies were found in the analyzed documents, undermining the internal logic of the legal provision. However, far from ideal, the social name brought the thematic to the human rights policy agenda.

Key words: Human rights; Education; Gender; Social name; Public policy.


RÉSUMÉ

Cet article est le rapport d'une recherche universitaire, financée par le FIP/PUC Minas, qui a enquêté sur la politique publique de l'usage du nom social d'étudiants travestis et transsexuels dans les écoles municipaux de Belo Horizonte. On comprend le nom social par lequel travestis et transsexuels préfèrent être appelés quotidiennement, une fois que le nom civil ne reflète pas leur identité de genre. La recherche a eu comme support épistémologique les post structuraliste théories du genre et comme stratégie méthodologique l'analyse documentaire de la Resolução CME/BH nº 002/08 et du Parecer CME/BH nº 052/08, tous deux du Conseil Municipal de l'Éducation de Belo Horizonte, que légitime le nom social sur l'administration scolaire. De nombreux incohérences textuelles et conceptuelles ont été trouvées dans les documents analysés, ces incohérences nuisent la logique interne de la disposition légale. Cependant, loin d'être idéale, le nom social a apporté la thématique à l'agenda politique des droits humains.

Mots clés: Droits humains; Education; Genre; Nom social; Politiques publiques.


 

 

Introdução

Este artigo consiste em um relato da pesquisa "O uso do nome social nas escolas municipais de Belo Horizonte: ressonâncias na prática social" realizada no ano de 2014,1 financiada pelo Fundo de Incentivo à Pesquisa (FIP) da PUC Minas e que contou com a colaboração de um bolsista de iniciação científica. A pesquisa é um recorte da tese de doutoramento, defendida em 2016, no Programa de pós-graduação em Psicologia da PUC Minas que trata do uso do nome social por estudantes travestis e transexuais no espaço escolar. A expressão nome social designa o nome pelo qual sujeitos travestis e transexuais preferem ser chamados cotidianamente, uma vez que o nome civil ou de registro não reflete sua identidade de gênero. O uso legal do nome social faz parte da realidade escolar no município de Belo Horizonte desde 2008, entretanto poucos estudos têm sido realizados sobre essa política pública. Nesse sentido, a pesquisa em foco apresenta como estratégia metodológica a análise documental da Resolução CME/BH nº 002 (2008a) e do Parecer CME/BH nº 052 (2008b), ambos do Conselho Municipal de Educação de Belo Horizonte, que legitimam o uso do nome social nas escolas municipais. Como suporte epistemológico para análise dos documentos, foram eleitas as teorias pós-estruturalistas de gênero e seus campos de pertencimento.

 

Contexto da pesquisa: estratégia metodológica e etapas de desenvolvimento

Para a realização da pesquisa, elegeu-se a metodologia da análise documental em fonte primária, que utiliza "materiais que não receberam ainda um tratamento analítico, ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os objetivos da pesquisa" (Gil, 1989, p. 73). O uso de documentos em pesquisa propicia o acesso a uma riqueza de informações. Essa escolha metodológica permite o acréscimo da dimensão do tempo à compreensão do social. A avaliação do contexto histórico e sociopolítico, assim como o público-alvo para o qual foi produzido o documento, são primordiais na discussão e na compreensão do contexto apresentado (Cellard, 2010).

A análise documental se inicia com uma avaliação crítica da documentação, incluindo sua contextualização política, econômica e cultural. Em seguida, algumas etapas se destacam no processo investigativo: 1. A investigação da autoria, se ela se refere a um grupo específico e/ou a uma instituição; 2. A verificação da lógica interna do texto, buscando nele situar os conceitos-chave e as ideias principais; e 3. A realização de recortes específicos no material recolhido, buscando reordená-lo segundo os critérios de pertinência dos objetivos pré-definidos (Cellard, 2010). Na presente pesquisa, os recortes escolhidos dos documentos analisados foram decodificados à luz das teorias pós-estruturalistas de gênero em interface com as políticas públicas no campo dos direitos humanos, sinalizando pontos de convergências e divergências epistemológicas no texto. No contexto pesquisado, a metodologia de análise documental possui um importante potencial investigativo, segundo o qual foram elaboradas categorias analíticas, eixos de discussão e correlação com a prática social.

Todo o processo investigativo foi realizado entre os meses de fevereiro e dezembro de 2014, por meio de encontros semanais de planejamento entre o pesquisador orientador e o bolsista de iniciação científica. Foi elaborado um cronograma com as seguintes etapas: 1. Elaboração de um glossário básico sobre termos importantes na teoria de gênero: sexo, sexualidade, identidade de gênero, orientação sexual, nome social, heteronormatividade, travestis e transexuais; 2. Leitura crítica do Parecer e da Resolução municipais de Belo Horizonte; 3. Pesquisa no site da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais (ABGLT)2 sobre as outras normativas que legitimam o uso do nome social em escolas no território brasileiro; 4. Leitura de artigos científicos sobre políticas públicas de diversidade sexual e de gênero na perspectiva dos direitos humanos; 5. Construção de um quadro sintético com os dados obtidos; 6. Sistematização das principais ideias e impressões após a análise de todo o material; 7. Elaboração de categorias de análise documental; e 8. Escrita do relatório da pesquisa.

Paralelamente ao mesmo período cronológico, como estratégia metodológica complementar, os pesquisadores responsáveis fizeram a observação crítica de alguns eventos públicos sobre diversidade sexual e direitos humanos promovidos pela academia, pelo poder público e pelo movimento social feminista e LGBT locais. Destes, destacam-se o 1º Colóquio sobre (In)visibilidade Trans da Faculdade de Direito da UFMG e o Ciclo de Debates nº 8: Saúde, Direitos e Nome Social, organizado pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da UFMG. Em ambos os eventos, uma equipe do Ministério da Saúde se prontificou para confeccionar o cartão de saúde SUS com o nome social para sujeitos travestis e transexuais que desejassem fazê-lo. Para tanto, foi disponibilizado uma impressora nos referidos locais. Na ocasião, tivemos a oportunidade de realizar uma sondagem quantitativa dos sujeitos que fizeram o cartão, computando um montante de trinta e sete pessoas nos dois eventos, dos quais havia tanto mulheres transexuais (pessoa nascida com genitália masculina que possui uma identidade de gênero feminina) quanto homens transexuais (pessoa nascida com genitália feminina que possui uma identidade de gênero masculina). Salienta-se que a máquina disponibilizada apenas imprimia uma etiqueta de papel com o nome social e o número, que era colada atrás do cartão padronizado.

A participação nos eventos permitiu uma escuta qualificada de sujeitos travestis e transexuais e também uma troca de experiências com outros pesquisadores da temática. Possibilitou também o reconhecimento da amplitude da política pública do uso nome social em outros setores do poder público, apontando os dificultadores em seu processo de implementação. E, principalmente, foi possível identificar reajustes e aprimoramentos necessários a fim de garantir um pleno exercício do direito de cidadania dessa população.

 

Breve panorama da política pública do uso do nome social em território brasileiro

Desde o início do século XXI, temáticas como sexualidade, sexo e gênero, ancoradas no campo dos direitos humanos, ganharam visibilidade social, política e científica no Brasil e no mundo. Destacamos os inúmeros planos e programas federais que promulgam a igualdade de direitos entre os cidadãos (Junqueira, 2009), a criação da Secretaria Especial de Direitos Humanos no governo federal, a multiplicidade de pesquisas acadêmicas sobre diversidade sexual e de gênero nas universidades públicas e privadas do país e, sobretudo, o uso legalizado do nome social pela população de travestis e transexuais nos prontuários médicos, nos documentos internos escolares e até mesmo nas carteiras de identidade em alguns estados da federação.

A escolha do nome social revela o processo de subjetivação vivenciado pelos sujeitos em seus contextos históricos de vida, bem como agrega valores identitários oriundos da vivência social, familiar, cultural e política. O caráter democrático, a priori, dos documentos municipais que legitimam a presença de estudantes travestis e transexuais na escola é uma possibilidade de aprendizagem acerca da contingência do sistema sexo/gênero no campo dos direitos humanos (Carvalho, 2009; César, 2009). A apropriação dos saberes na escola é atravessada pelo enigma da travestilidade e da transexualidade, refletindo no saber social incorporado. A escola delimita espaços, afirma o que pertence ao universo masculino e ao universo feminino, separa e institui, informando o lugar daquilo que é socialmente aceito e rejeitando o desviante da norma (Louro, 2000; Alves, 2013). A instituição escolar não é apenas o lugar onde se realiza a reconstrução do conhecimento, mas o lugar onde se reflete criticamente acerca das implicações políticas e sociais desse conhecimento.

Historicamente, o Pará foi o primeiro estado brasileiro a elaborar uma política pública educacional3 para garantir a inclusão do nome social no ato da matrícula, por meio da Portaria nº 016/08 de 10 de abril de 2008. O primeiro município foi Belo Horizonte, por meio da Resolução CME/BH nº 002/08, aprovada por unanimidade no Conselho Municipal de Educação de Belo Horizonte em dezembro do mesmo ano. Atualmente, os estados de Goiás, Mato Grosso, Maranhão, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Tocantins, Alagoas, Espírito Santo, Ceará, Bahia, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal também possuem normativas referente ao uso do nome social em instituições educacionais. Os estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraíba têm normativas diferenciadas, pois garantem o uso do nome social em todos os órgãos de administração direita e indireta, sem especificar o uso do nome social no âmbito educacional. Além de Belo Horizonte, as capitais estaduais Fortaleza e Vitória também possuem normativas relacionadas ao uso do nome social em instituições educacionais.

Tanto a natureza quanto a abrangência desses instrumentos de lei são as mais variadas possíveis, estabelecendo pontos de convergência e de divergência entre eles. Os documentos garantem a inclusão do nome social, geralmente entre parênteses, nos diários de classe, boletins e demais documentos internos da instituição escolar, estando excluídos histórico, certificado e diploma. Sobre alguns dos requisitos para o uso do nome social, encontramos três formas distintas nas normativas pesquisadas em relação ao limite de idade: 1. Normativas exclusivas para maiores de dezoito anos; 2. Normativas que contemplam menores de dezoito anos com a aquiescência de um adulto responsável; e 3. Normativas que não especificam idade.

Observa-se que na maioria das normativas citadas o que se garante é a inclusão do nome social apenas - com exceção de Santa Catarina, Paraná, Ceará, Bahia, Distrito Federal e Fortaleza, que além de garantir a inclusão do nome social nos registros internos, salienta que este deve ser o usual na forma de tratamento interpessoal. No Paraná, uma orientação pedagógica foi elaborada para instruir a escola a manter sigilo do nome civil do aluno que solicitou o nome social e também instruindo sobre o uso do banheiro,4 que deve ser utilizado em conformidades com a identidade de gênero do requerente.

No âmbito nacional, temos a Portaria nº 1.612, de 18 de novembro de 2011, do Ministério da Educação, que assegura às pessoas transexuais e travestis a escolha do tratamento nominal no âmbito do Ministério da Educação. Nesse documento, encontramos uma recomendação específica aos agentes públicos sobre o tratamento da pessoa que solicitou o uso do prenome social (Art. VI, §3º, 2011). Ainda no campo da educação, dezessete universidades federais possuem alguma normativa que assegura o uso do nome social de pessoas transexuais e travestis. Numa perspectiva transgressora e, de certa forma, inclusiva, a normativa legal sobre o uso do nome social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte foi modificada em seu texto original por uma equipe de pesquisadores acadêmicos, ampliando o direito a todos os estudantes universitários, omitindo do documento os termos travestis e transexuais.

O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) é outro tópico de discussão frequente devido aos problemas decorrentes da recente implantação do direito ao uso do nome social. Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep), na edição do exame do ano de 2014, um total de noventa e cinco pessoas, entre travestis e transexuais, requisitaram oficialmente o uso do nome social na realização das provas, o que demandou a elaboração de estratégias de atendimento diferenciado.5

A seguir, analisaremos os documentos municipais a partir de três categorias eleitas, sendo elas: 1. Autoria e destinatário; 2. Contexto histórico e político; e 3. Abordagem teórico-conceitual.

 

Análise do Parecer CME/BH nº 052/08 1ª Categoria: autoria e destinatário

O Parecer CME/BH nº 052/08 consiste num documento de natureza opinativa expressa em resposta a uma demanda do Movimento Social de Minas Gerais, ele equivale a um pronunciamento por escrito de uma opinião técnica a respeito da importância da inclusão do nome social de travestis e transexuais nos registros internos escolares, sendo anterior à Resolução. O texto do Parecer Municipal é formado por vinte e dois parágrafos com cinco laudas e organizado em seis tópicos. O documento apresenta como solicitante e interessado os seguintes representantes do Movimento Social: Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais; Articulação Nacional de Travestis e Transexuais; Instituto Horizontes da Paz; Centro de Referência LGBT da Prefeitura de Belo Horizonte e Associação das Travestis e Transexuais de Minas Gerais. Um significativo ponto de análise reside no fato de a demanda de elaboração do Parecer sobre a importância do uso do nome social por travestis e transexuais não ter partido de nenhuma escola ou estudante em particular. O próprio movimento social criou uma demanda na Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte, enunciando uma reivindicação de direitos de cidadania LGBT. Esse fato nos faz refletir sobre o processo de tutela, característico dos movimentos sociais, que retira a autonomia dos sujeitos por eles representados.

 

2ª Categoria: contexto histórico e político

No âmbito nacional, alguns marcos legais citados no documento contribuem na contextualização histórica e política do Parecer, são eles: Constituição Federal Brasileira (1988), Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), Programa Nacional de Direitos Humanos II (2002), Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2003), Programa Nacional Brasil sem Homofobia (2004), Portaria nº 675/GM, que aprova a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde (2006) e o Plano Nacional de Políticas Públicas para Mulheres (2007). No âmbito internacional, são citados os Princípios de Yogyakarta (2006), do qual o Brasil é signatário. O Princípio nº 19 prevê o direito à liberdade de opinião e expressão, no qual a escolha do nome em conformidade com a identidade de gênero está contemplada. Vale lembrar que, no Brasil, o uso institucional da expressão nome social é muito recente, o primeiro registro data de 2008 numa normativa legal do Estado do Pará.6 A leitura do Parecer evidencia a multidisciplinaridade do aporte legal, pois os marcos legais pertencem a diferentes campos de atuação, como educação, saúde, políticas públicas e direitos humanos. O Programa Federal Brasil sem Homofobia (2004), da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secad), ocupa um lugar de destaque no Parecer, sendo citado por inúmeras vezes. Sua relevância se justifica por ser um Programa que convoca diversas metas de combate à violação de direitos da população LGBT em território nacional.

O documento cita uma série de ações realizadas, nos anos de 2007 e 2008, entre a Secretaria Municipal de Educação (poder público), os Movimentos Sociais LGBT (sociedade civil) e o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da UFMG (academia). Pode-se inferir que os documentos analisados foram resultado de uma longa trajetória de diálogos e momentos de formação coletiva, mas também de muitos embates e negociações entre o poder público e movimento social que subsidiaram sua produção.

 

3ª categoria: abordagem teórico-conceitual

Do ponto de vista das teorias de gênero, o Parecer apresenta um recorte da pesquisa intitulada "Juventudes e Sexualidades" (Abramovay, Castro & Silva, 2004), que aborda temas demarcadores do complexo universo constituído pela sexualidade, juventude e escola, tendo como sujeitos pesquisados familiares, professores e estudantes de escolas de diferentes regiões brasileiras. O recorte da pesquisa utilizado no Parecer cita alguns impactos de práticas homofóbicas naturalizadas nas trajetórias educativas e formativas de jovens LGBTT, como, por exemplo, dificuldade de permanência na escola, insegurança, estigmatização, segregação, isolamento, tumulto no processo de configuração identitária, incidência de preconceitos nos padrões sociais entre estudantes e destes com profissionais de educação, entre outros.

A escolha lexical pode revelar sobre a intencionalidade textual. Segundo Cellard (2010), interpretar adequadamente os sentidos das palavras e dos conceitos presentes no texto consiste numa etapa pertinente à análise documental. A quantidade de vezes em que são usadas as mesmas palavras-chave e os mesmos termos pode evidenciar a coerência do texto, apontando elementos de convergência e divergência interna. Inicialmente foram grifadas nos documentos palavras e frases que sintetizavam um conceito, apontavam uma proposta, definiam uma concepção ou expressavam uma ideia relevante à discussão da temática. Em seguida, os termos grifados foram agrupados em classes conceituais de análise. Uma dessas classes corresponde ao contexto reivindicatório dos direitos da população LGBT, sendo selecionadas as seguintes palavras-chave na narrativa textual: inclusão, legitimação, cidadania, democratização, políticas públicas, respeito e autoestima.

Outra classe conceitual que corrobora o teor de denúncia da violação dos direitos humanos, em especial dos direitos da população LGBTT, que perpassa todo o documento analisado, é composta pelas seguintes palavras-chave: discriminação, preconceito, exclusão social, subalternidade, vulnerabilidade, invisibilidade e violência. Ambas as classes conceituais fornecem indícios sobre a dupla intencionalidade do texto, qual seja, a enunciação de uma denúncia de discriminação em função da identidade de gênero e a demanda de inclusão da diversidade sexual nos equipamentos públicos escolares municipais.

O termo principal do documento, nome social, é citado 11 vezes, porém em nenhum momento é apresentado seu conceito. O uso desse termo apresenta uma peculiaridade no 8º parágrafo do documento, quando é citada a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde/ Portaria nº 675/GM (2006b). Nessa Portaria, está previsto que "[...] os funcionários de postos da saúde e hospitais, das redes privadas e públicas, usem os nomes sociais de pacientes lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais" (p. 2). Entretanto, a adoção do nome social, segundo o Parecer, apresenta de forma direta o recorte dos sujeitos destinatários - travestis e transexuais. A inclusão de lésbicas, gays e bissexuais como usuários do nome social nessa Portaria funciona como um alerta sobre a incompreensão dos termos retratados no documento, o que de certo modo aponta para uma tentativa de criar uma grande chave classificatória na qual caberiam todas as expressões de gênero e orientações sexuais que não sejam heterossexuais, mantendo-se assim um raciocínio binário e excludente. Em 13 de agosto de 2009, a Portaria 675 (2006b) foi revogada e substituída pela Portaria 1820 (2009), que prevê o direito ao uso do nome social pelos pacientes atendidos, sem especificar qualquer segmento LGBT.

Conforme Louro (2000), Bento (2008) e Preciado (2011), não existe uma solução de continuidade entre o corpo, o nome e o desejo, pois múltiplas (re)combinações produzem corpos e discursos não legitimados socialmente. Os processos de estigmatização que travestis e transexuais sofrem são decorrentes do rompimento com os modelos previamente dados pela normatização, ficando, com isso, marcados negativamente e desprovidos de direitos a ter direitos (Butler, 2003). Corpos sem direitos, corpos sem visibilidade, corpos sem legitimidade, enfim corpos abjetos. As diferentes abordagens e formas de olhar para travestis e transexuais não implica na impossibilidade de uma definição ou conceito, apenas sinaliza para o risco de propor categorias teóricas enrijecidas e normativas que não deixam espaço para a subjetividade (Miskolci, 2005; Pelúcio, 2009). O uso do nome social surge como mediador dessa lacuna, propiciando uma transição, ainda que temporária, entre o corpo sexuado e gênero, que somente será definitiva com a retificação nominal no registro civil. Aqui encontramos outro nó conceitual no texto do Parecer, pois no caso do uso irrestrito do nome social adotado por qualquer pessoa, independentemente de sua expressão de gênero, o nome social ficaria esvaziado de sentido e se tornaria um mero apelido social. Ocultar a especificidade de um determinado grupo social significa permanecer na invisibilidade e no silenciamento, não reconhecendo que o direito à diferença e ao tratamento diferente são critérios primordiais na garantia da equidade de direitos.

Na perspectiva pós-estruturalista de gênero, é difícil encontrar um consenso sobre a distinção entre os termos travesti e transexual. Segundo Carvalho (2009), os conceitos são fluidos e possibilitam diferentes abordagens, dependendo do discurso vigente, como os discursos médico/psicológico, jurídico/legal, político/institucional ou ainda o discurso dos próprios sujeitos trans que nem sempre se coadunam com os anteriores (Prosser, 2006). No campo da psicologia, Peres (2009) concebe travestis como sujeitos que se identificam com a imagem e o estilo do sexo oposto ao seu, apropriando-se de indumentárias e adereços estéticos do sexo oposto, realizando com frequência mudanças estéticas em seus corpos. Já no caso de transexuais, o autor define como sujeitos que possuem uma incompatibilidade em relação ao seu sexo anatômico e desejam fazer uma transição de seu sexo de nascimento para o sexo oposto, por meio da cirurgia de redesignação sexual.

Os sujeitos considerados como alvo do documento analisado são estudantes travestis e transexuais, porém, em vez do uso de expressões trans, existe um uso excessivo da sigla LGBT no texto. A sigla e sua definição aparecem 23 vezes, provocando certa incoerência interna no texto, pois tanto a sigla muda, de acordo com o parágrafo, quanto mudam as próprias definições. Historicamente, a sigla tem sofrido modificações ao longo do tempo, desde a simples GLS: Gays, Lésbicas e Simpatizantes, passando pela GLBT: Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais até a atual LGBTT: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. A mudança entre a segunda e a terceira ocorreu na 1ª Conferência Nacional sobre a temática, realizada em 2008 com a presença do presidente da república à época, devido à reivindicação do movimento lésbico em prol de maior visibilidade, uma vez que elas se sentiam duplamente invisibilizadas, como mulheres e como lésbicas. Desde então, o termo lésbicas antecede o termo gays na sigla. Contudo, existem múltiplas variações, dependendo de cada país e de seu respectivo idioma, algumas dessas variações incluem os termos transgêneros, intersexuais e assexuais na sigla oficial. Destacamos que essas informações complementares sobre o histórico de mudanças no uso da sigla no Brasil foram foco de pesquisa dos autores, uma vez que não constam nos documentos analisados.

No Parecer, o termo transgênero aparece em algumas definições e desaparece em outras. A ordem das palavras nem sempre coincide com as letras que compõem a sigla e, ainda, a própria sigla muda a ordem das letras. Enquanto os termos travesti e transexual são usados 14 vezes no texto, o termo transgênero aparece apenas duas vezes. Em nenhum momento do texto é apresentada uma distinção entre os termos travesti, transexual e transgênero.

Diante de um quadro tão diverso e, por vezes, paradoxal, do ponto de vista da escolha da nomenclatura, o leitor tem chance de se confundir ou de não compreender adequadamente o conteúdo apresentado. A incompreensão da narrativa por parte do leitor poderia comprometer a intencionalidade primeira do Parecer, que era subsidiar a votação dos conselheiros presentes na plenária do Conselho Municipal de Educação.

A partir do texto, dois termos foram escolhidos, por seu potencial ético e político serem cruciais para o campo dos estudos de gênero e sexualidade: identidade de gênero e orientação sexual. O primeiro termo, identidade de gênero, aparece 15 vezes no texto e sua definição só é apresentada no 12º parágrafo: " [] são construções sociais e históricas que revelam como as pessoas se sentem, se apresentam e são reconhecidas por seus pares" (p. 3). Esse termo é utilizado ora no singular, ora no plural e por vezes precedido pelas palavras legitimação, fortalecimento e reconhecimento, reiterando o caráter reivindicatório do texto no combate ao silenciamento das diferenças na escola. Já o segundo termo, orientação sexual, aparece 10 vezes no texto, entretanto, em nenhum momento é apresentada sua definição. A ausência conceitual desse segundo termo pode gerar dúvida no leitor que, inapropriadamente, imputa o risco de confundir concepções teóricas importantes, comprometendo, assim, a compreensão textual.

A distinção básica entre orientação sexual e identidade de gênero resvala na própria distinção entre sexo e gênero. Enquanto o termo orientação sexual revela a orientação do desejo em relação a homens, mulheres, aos dois ou a nenhum dos dois, a identidade de gênero revela as expressões pessoais de identificação com o gênero masculino, o gênero feminino ou com os dois (Machado & Prado, 2008). O nome social reside num espaço intermediário entre a expressão de gênero e o sexo anatômico, além dessas duas variáveis integrantes da subjetividade, uma terceira variável se intersecciona às demais, a orientação do desejo sexual. Uma pessoa, por exemplo, nasce com o sexo anatômico pênis, mas pode se identificar com o gênero feminino e ter interesse sexual em mulheres. Essa descontinuidade entre sexo, gênero e desejo problematiza a ontologia biológica que toma a heterossexualidade como o desenvolvimento esperado e normal dos sujeitos (Butler, 2003).

O 3º parágrafo do documento discorre sobre a retirada do homossexualismo do código de doenças pelo Conselho Federal de Medicina do Brasil em 1985, que, a partir de então, passou a utilizar o termo homossexualidade, uma vez que o sufixo "ismo" carrega um sentido patológico. Porém, os sujeitos em foco no documento não são homossexuais, mas travestis e transexuais. Mais uma vez, a inconsistência do texto dilui e agrupa três termos importantes nas teorias de gênero sem diferenciá-los, quais sejam, a homossexualidade, a travestilidade e a transexualidade, reiterando uma concepção recorrente no senso comum de englobamento das expressões de gênero, que escapam da heteronormatividade sob o vértice da homossexualidade (César, 2009). No lugar da discussão sobre a homossexualidade, seria mais pertinente ao texto a discussão da patologização de travestis e transexuais que permanecem classificadas como disforia de gênero. Alves e Moreira (2014) argumentam que:

De acordo com a quinta versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5, 2013) produzido pela Associação Americana de Psiquiatria, a transexualidade não é mais considerada um transtorno psicológico e sim uma "disforia de gênero", ou seja, uma angústia de que sofre uma pessoa que não se encontra identificada com seu sexo masculino ou feminino. Porém, apesar da mudança na terminologia - disforia de gênero ou transtorno psicológico ou ainda incongruência de gênero - a transexualidade continua patologizada [] (p. 6)

A carência no texto analisado de trechos, parágrafos e notas de rodapé mais explicativos e esclarecedores sobre as terminologias usadas e sua aplicabilidade no contexto teórico e, por consequência, prático, pode conduzir seus leitores à incompreensão do documento.

 

Análise da Resolução CME/BH n º 052/08 1ª Categoria: autoria e destinatário

A Resolução CME/BH nº 002/08 é um documento de natureza normativa com efeitos internos ao órgão que a criou, qual seja, o Conselho Municipal de Educação, sendo subordinada à Constituição Federal. Sua sanção, promulgação e publicação ficam a cargo do presidente do Conselho. O texto da Resolução municipal é composto por duas laudas, apresentando um curto prólogo contextualizador e conector com o documento precedente, o Parecer CME/BH nº 002/08, para em seguida se organizar em cinco artigos com seus respectivos parágrafos. A Resolução tem como objetivo institucionalizar a decisão deliberada pela Câmara Técnica de Gestão do Sistema e da Escola no dia 11 de dezembro de 2008 e referendada na Sessão Plenária Ordinária do Conselho Municipal de Educação no dia 18 de dezembro de 2008 sobre a Inclusão do Nome Social de Travestis e Transexuais nos Registros Escolares das Escolas da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte, dispondo sobre os parâmetros de sua implementação nas escolas. Sua escrita é técnica, dentro de jargões e regras pertinentes ao órgão público, uma vez que foi elaborada por integrantes do Conselho Municipal de Educação. Percebe-se um desencontro entre a linguagem puramente técnica e a terminologia teórica de gênero, gerando inconsistência textual a partir da não linearidade no uso de termos e convenções ortográficas. A Resolução tem como destinatário professores, coordenadores, diretores e a equipe administrativa da escola, uma vez que define e outorga funções aos profissionais de educação.

 

2ª Categoria: contexto histórico e político

No texto da Resolução, inúmeros documentos são citados: Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional/LDBEN (1996); Programa Brasil sem Homofobia (2004); e a Portaria nº 675/GM (2006b). Esses documentos têm na Constituição Federal (1988) um marco democrático e histórico na garantia dos direitos de cidadania de todos os brasileiros. Pela natureza puramente técnica da Resolução, seu texto é curto e direto, retomando breves informações contextuais, do ponto de vista político e legal, já contidas no documento antecessor, o Parecer municipal.

 

3ª Categoria: abordagem teórico-conceitual

A partir da matriz epistemológica das teorias pós-estruturalistas de gênero, que ampliam as expressões da sexualidade para além do binarismo masculino/feminino, rompendo com os lugares estanques e reducionistas amparados por conceitos biologizantes (Saleiro, 2013), retomamos os termos identidade de gênero e de orientação sexual como elementos analíticos da narrativa textual. Tais conceitos-chave não aparecem de forma coerente na Resolução, cada um deles aparece uma única vez, não sendo apresentada nenhuma definição ou concepção que contextualize seu uso ou escolha teórica. Nesse sentido, é fundamental diferenciar os termos gênero de sexo, a fim de estabelecer campos de pertencimento epistemológico, o que pode contribuir na escolha apropriada de construções lexicais (Butler, 2003; Louro, 2004; Bento, 2006). O descuido com os conceitos nos textos pode levar ao esvaziamento de sentido destes. Desconsiderar a distinção entre identidade de gênero e orientação sexual corrobora a invisibilidade de preceitos básicos na teoria de gênero, propiciando leituras errôneas (Saleiro, 2013). Considerando a intencionalidade textual como a demanda pelo reconhecimento dos direitos à educação de travestis e transexuais, uma parcela da população tradicionalmente alijada da sociedade, faz-se necessário definir quem são esses sujeitos e em que eles se diferenciam de lésbicas, gays e bissexuais - para fazê-lo, é preciso estabelecer conceitos básicos e delimitar fronteiras, ainda que fluidas, a partir de apropriações teóricas e políticas (Peres, 2009; Pelúcio, 2009).

Em relação ao conceito de nome social, embora marcadamente presente no texto do Parecer, sua definição somente é encontrada no Art. 1º da Resolução, na qual aparece seis vezes, sendo definido como o nome pelo qual travestis e transexuais femininos ou masculinos preferem ser chamados. O conceito de nome social apresentado no documento é incipiente por ser genérico demais e pouco elucidativo, baseando-se apenas em um critério de preferência pessoal por este ou aquele nome. Dessa forma, o dispositivo nome social fica esvaziado de sentido, perdendo seu caráter eminentemente político.

A convenção ortográfica "o/a", que contempla o gênero feminino e gênero masculino, herança reivindicatória do movimento feminista, é utilizada de forma incoerente no texto da Resolução. Existe uma oscilação entre a convenção ortográfica "o/a" e a convenção ortográfica apenas no masculino "o". O texto incorpora uma posição política, por um lado, no campo do reconhecimento das diferenças, flexibilizando os artigos entre masculino/feminino, porém, por outro lado, ele apresenta uma fixidez na gramática tradicional da língua portuguesa que reconhece o artigo masculino comum de dois gêneros. Torna-se necessário, portanto, uma coerência interna tanto na escolha quanto no uso de tais convenções ao longo do texto.

Durante a análise, elaboramos uma classe conceitual com termos oriundos da área do direito, aplicados ao contexto educativo, presentes no Art. 4º da Resolução: dignidade, liberdade de expressão e tratamento desumano ou degradante. A discussão de gênero e sexualidade, desde os anos de 1980, como visto no Parecer CME/BH nº 002/08, tem se ancorado no campo dos direitos humanos como forma de potencializar as ações afirmativas de combate ao preconceito, ao mesmo tempo em que promove o empoderamento dos sujeitos pertencentes às minorias discriminadas. Nesse sentido, as políticas públicas de enfrentamento ao racismo, sexismo e homofobia guardam semelhanças teóricas e metodológicas, uma vez que são atravessadas pelos mesmos fatores sociais de exclusão decorrentes das relações assimétricas de poder em nossa sociedade (Lima, 2013; Alves, 2013).

O último artigo da Resolução define que, em caso de requerentes menores de dezoito anos, deverá ocorrer a aquiescência da família. Entretanto, o texto destaca apenas a figura do pai como responsável, sem se referir a outras configurações familiares de igual legitimidade como mãe, tios, avós, irmãos, tutores, entre outros, que não correspondem ao ideário social tido como nuclear e estruturado.

 

Resultados e considerações finais

Após a leitura minuciosa dos documentos, foi possível constatar inúmeras inconsistências textuais, como o uso aleatório de convenções ortográficas, a indefinição de conceitos-chaves, a ausência de conectores teóricos entre os documentos e o uso excessivo e indiscriminado de siglas. A linguagem compromete a lógica interna textual, pois a sequência de ideias, conceitos e argumentos narrativos pode gerar dúvida no leitor, principalmente sendo um leitor leigo na área dos estudos de gênero.

Na descrição do processo de implementação do uso do nome social, identificamos a ausência de seis importantes estratégias que poderiam contribuir nas práticas administrativa, normativa e educativa nas escolas municipais: 1. Estratégia de divulgação da normativa nos equipamentos públicos e na comunidade local; 2. Orientações sobre a importância do uso do nome social no trato interpessoal; 3. Orientações sobre o uso do banheiro na escola, uma vez que os banheiros são organizados binariamente por gênero e a travestilidade e a transexualidade colocam em xeque essa normatização, demandando da escola a produção de outros mecanismos de organização e de funcionamento; 4. Prazo mínimo para inclusão do nome social nos documentos escolares, pois a demora pode gerar desconforto para o requerente; 5. Formulário próprio e institucionalizado nas secretarias das escolas para o requerimento do uso do nome social; 6. Elaboração de um manual básico norteador das questões teóricas de gênero e sexualidade, em que conceitos e noções terminológicas pertinentes a esse campo de estudos sejam explicitados.

A comparação entre os documentos revelou uma grave contradição de informações que diz respeito aos registros escolares, que podem ou não conter o nome social de estudantes travestis e transexuais. Essa divergência de orientações nos documentos revela sua inconsistência, indicando que o texto não foi redigido com o devido cuidado ou não passou por uma revisão final antes de ser apresentado ao Conselho Municipal de Educação. Em ambos os casos, a não linearidade das informações provoca um efeito indesejado, qual seja, em vez de promover o reconhecimento do direito ao uso do nome social, ele desqualifica o processo de implementação, pois gera interpretações contraditórias. O uso institucional do nome social, além de confuso nos documentos, não abarca o Sistema de Gerenciamento Estudantil (SGE) da Rede Municipal de Educação, inviabilizando a inclusão digital dos dados dos estudantes.

Na análise documental, o caráter reivindicatório dos direitos LGBTT perpassa todos os textos. O movimento social demarcou sua demanda com base no contexto histórico de exclusão dessa população, cabendo ao poder público a gestão democrática de uma política educacional municipal que reconheça e promova o respeito às diferenças no campo das expressões de gênero. O processo de exclusão social a que está submetida a população de travestis e transexuais é mais amplo que o uso de um nome, envolvendo equipamentos públicos para além da educação, como saúde, assistência social, segurança e trabalho. Os mecanismos de constituição dos sujeitos e dos corpos são repensados e reconfigurados a partir da intencionalidade política, histórica e social presentes nos documentos, ampliando e diversificando as regras de convivência tradicionalmente instituídas na escola.

O nome social como dispositivo de transição entre corpo/sexo/gênero é um paliativo, pois tem de ser usado com a apresentação de outro documento com foto e com o nome civil. Ou seja, o nome social não garante um processo de identificação legal, pois sempre haverá uma lacuna entre o texto prescrito e a imagem do sujeito em sua singularidade. Porém, seu uso é decorrente de uma longa trajetória de debates e embates do movimento social com o poder público e, longe de ser o ideal, é uma conquista que não pode ser minimizada (Lima, 2013). Enquanto a retificação do registro civil, independentemente da cirurgia da redesignação sexual, não se torna uma realidade acessível a qualquer cidadão brasileiro, o nome social atua como um dispositivo transitório de autodeclaração.

A divulgação do saber científico é de fundamental importância para toda pesquisa acadêmica. Nessa perspectiva, apresentamos a pesquisa no 1º Congresso Mineiro de Diversidade Sexual e de Gênero da UFMG e no XIX Encontro Regional da Abrapso. Além disso, a pesquisa recebeu uma menção honrosa no 22º Seminário de Iniciação Científica da PUC Minas, por ter se classificado em terceiro lugar na área de Ciências Humanas. Uma pesquisa não se encerra em si mesma, é sempre um convite aberto a outras leituras, olhares e debates. Pesquisar, problematizar e divulgar as políticas públicas sobre o nome social se configura como uma importante estratégia de visibilidade para a população de travestis e transexuais como sujeitos de direitos no exercício de cidadania.

 

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Recebido em 02/01/2015
Aprovado em 22/08/2016

 

 

1 A pesquisa teve datas de início e término circunscritas ao ano de 2014, por esse motivo não é apresentada a análise de documentos posteriores ao ano mencionado. Os autores reconhecem que, após o ano de 2014, inúmeras normativas estaduais e federais de garanta do direito ao uso do nome social foram produzidas em território brasileiro, bem como alguns projetos que visavam suprimir a garantia desse direito foram propostos por parlamentares contrários à abordagem da diversidade sexual e de gênero no âmbito da educação.
2 Recuperado em 21 de abril, 2014, de: http://www.abglt.org.br/port/nomesocial.php
3 Políticas públicas educacionais são aquelas que regulam e orientam os sistemas de ensino, instituindo a educação escolar (Oliveira, 2010).
4 O uso do banheiro por estudantes trans se revelou ao longo da pesquisa como um significativo analisador da instituição escola, uma espécie de desdobramento interno não previsto pela política pública educacional do nome social, configurando-se como um elemento gerador de vários conflitos entre docentes, discentes e gestão escolar.
5 Na edição do Enem de 2015, o número de estudantes trans inscritos que requisitou o uso do nome social e o uso do banheiro em conformidade com sua identidade de gênero aumentou para duzentos e setenta e oito, segundo dados do Inep. Recuperado em 20 de agosto, 2016, de: http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/10/uso-do-nome-social-no-enem-por-transexuais-cresce-172
6 Durante o estágio de doutoramento na Universidade de Coimbra/Portugal, o autor Cláudio E. R. Alves pesquisou a expressão nome social e, baseado em documentos internacionais e no site da ONG europeia TGEU, concluiu ser essa uma expressão brasileira, uma vez que países como Portugal, Espanha, Canadá, Estados Unidos, Alemanha, Austrália, França e Inglaterra utilizam a expressão "retificação do nome civil de pessoas trans". Recuperado em 23 de agosto, 2016, de: http://tgeu.org/wp-content/uploads/2015/02/FRA-Being-Trans-in-the-EU-Summary-of-Report.pdf

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