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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.2 São João del-Rei maio/ago. 2016

 

Familiares responsáveis pelo cuidado de pessoa com transtorno mental em um município de pequeno porte

 

Family members responsibles for the care of a person with mental disorder in a small city

 

Miembros de la familia responsables del cuidado de una persona con trastorno mental en una ciudad pequeña

 

 

Luiz Guilherme Mafle Ferreira DuarteI; João Leite Ferreira NetoII

IMestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: lgmafle@yahoo.com.br
IIProfessor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: jleite.bhe@terra.com.br

 

 


RESUMO

Esta pesquisa realizou um estudo misto (quantitativo e qualitativo) em uma unidade de saúde mental localizada em um município de pequeno porte na região metropolitana de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, Brasil. O objetivo foi investigar as transformações de vida experimentadas pelos familiares de pessoas com transtorno mental severo. A partir de questionários, realizou-se a caracterização dos responsáveis pelo cuidado. Em seguida, investigou-se a vida dos familiares responsáveis pelo cuidado, tendo como suporte os pressupostos da Teoria Fundamentada. Os resultados mostram a existência de um familiar responsável pelo cuidado assumindo essa função. Em geral, ele percebe-se sozinho e busca outros apoios; precisa lidar com desperdício de recursos e com os comportamentos instáveis do paciente; prefere que a atenção ao paciente seja em meio aberto à internação, mas entende que tratamento é apenas o medicamentoso; busca adaptar sua vida à de seu parente com transtorno mental.

Palavras-chave: Família; Cuidadores; Saúde mental.


ABSTRACT

This paper conducted a mixed method study (quantitative and qualitative) in a mental health unit located in a small city in the metropolitan area of Belo Horizonte, capital of Minas Gerais, Brazil. The goal was to investigate the lives' transformations experienced by relatives of people with severe mental disorder. Questionnaires held the characterization of the caregivers. After that, the life of relative responsible for the care was examined, using the assumptions of the Grounded Theory. The results show that just one familiar member is the responsible for the care. In general, he sees himself alone and search for other supports; he has to deal with waste of resources and patients' unstable behaviors; he prefers that the attention to the patient happens in an open service instead of the hospitalization; however he ponders that the medicine based treatment is the only one that exists; he tries to adapt his own life to the life of his relative with mental disorder.

Keywords: Family; Caregivers; Mental health.


RESUMEN

Esta investigación realizó un estudio mixto (cuantitativo y cualitativo) en una unidad de salud mental que se encuentra en una pequeña ciudad localizada en la región metropolitana de Belo Horizonte, capital del estado de Minas Gerais, Brasil. Ella tuvo como objetivo investigar las diversas transformaciones vividas por los familiares de las personas que sufren trastorno mental grave. A partir de cuestionarios, se establecieron las características y los perfiles de los responsables del cuidado de los enfermos. En seguida, se investigó la vida de los familiares responsables por el cuidado, a partir de los supuestos de la Teoría Fundamentada. En general el familiar se ve y se siente solo y busca otro tipo de apoyo; además él necesita manejar la situación del desperdicio de recursos materiales y financieros como también manejar los comportamientos inestables del paciente. La familia prefiere que el paciente sea atendido dentro de casa, en lugar de una hospitalización o internación, pero los familiares responsables consideran y reconocen que el único tratamiento para estos pacientes son los medicamentos. De modo general los familiares buscan adaptar su vida con la del pariente que sufre trastorno mental.

Palabras clave: Familia; Cuidadores; Salud mental.


 

 

Introdução

Em geral, as pesquisas na área de saúde mental valem-se do termo família para designar aquela pessoa que cuida de um parente com sofrimento mental severo, pois o mais habitual é que entre os entrevistados nessas pesquisas haja apenas um representante da família, aquele que cuida sozinho do parente adoecido.

Kantorski e colaboradores (2012) realizaram um estudo na região Sul do País (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul), no qual se procurou caracterizar as famílias das pessoas com transtorno mental severo na região. Os dados indicaram que 68,2% das mulheres entrevistadas afirmam que eram as únicas cuidadoras e, entre os homens entrevistados, 60% deles declararam igual responsabilidade. Ou seja, a maioria das pessoas que se dedicam ao cuidado de pessoas com transtorno mental severo e persistente realiza essa tarefa sozinha.

Isso não significa dizer que a família deixe de ser afetada, em sua totalidade, pelo processo de adoecimento, mas não se pode dizer que todos se empenham do mesmo modo no cuidado. Logo, usar o termo família pode passar a impressão de uma relação coesa e de ação dividida, o que não ocorre na maioria dos casos.

Diante dessa circunstância de pouca divisão do cuidado e de o foco ser o familiar, optou-se por utilizar, neste artigo, o conceito de familiar responsável pelo cuidado. O conceito designa aquele membro da família que se dedica sozinho ao cuidado da pessoa com transtorno mental severo e que, nas situações em que divide essa tarefa, permanece como principal responsável por organizar a assistência do parente adoecido.

Sabe-se que assumir tal cuidado traz consequências para a vida, por exemplo, sobrecarga financeira, alteração na rotina familiar, adoecimento físico e emocional (Koga & Furegato, 2002), sobrecarga no cuidado (Borba, Schwartz & Kantorki, 2008), desmotivação, resistência, temor a qualquer mudança proposta por parte dos serviços (Narvarini & Hirdes, 2008), medo incessante do imprevisto (Colvero, Ide & Rolim, 2004), atenção excessiva ao doente (Souza, Kantorski, Schwartz, Galera & Júnior, 2009) e sentimento de obrigação pelo cuidado (Romagnoli, 2006).

Esse interesse em pesquisar o familiar da pessoa com transtorno mental severo e persistente é recente na história brasileira. Vê-se que as publicações sobre o tema começaram a aumentar a partir de 2001, ano em que a Lei Federal nº 10.216, de 6 de abril de 2001 - Lei Paulo Delgado (Brasil, 2001) -, foi aprovada no País. No período anterior a março de 2001, foram encontradas no Portal de Periódicos Capes/MEC apenas duas publicações em português. Em contrapartida, no período entre março de 2001 e junho de 2014, foram encontrados 43 trabalhos, o que permite supor a influência da aprovação da lei nas tendências das publicações nas áreas de saúde mental.

Essa nova legislação que versa sobre a assistência ao portador de transtorno mental veio substituir o Decreto nº 24.559 (Brasil, 1934). Portanto, foram 67 anos sem atualização da legislação sobre tratamento ao doente mental no Brasil. A partir de então, o foco para tratamento dessa população se localizou, prioritariamente, em serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos e a pessoa portadora de transtorno mental passou a ser vista como um sujeito de direito perante a lei.

Esse novo posicionamento, no que tange à atenção ao portador de transtorno mental, tornou-se mais incisivo com a regulamentação do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), a partir da Portaria GM nº 336, de 19 de fevereiro de 2002 (Brasil, 2002), e o estabelecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), a partir da Portaria GM nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011 (Brasil, 2011). Nesse novo arranjo, iniciado formalmente em 2001, a família passou a ser vista como parte necessária do sistema de cuidado ao paciente, sendo demandada como aliada dos serviços de saúde mental para auxiliar no tratamento e na reinserção social de seus usuários (Navarini & Hirdes, 2008). Assim, a assistência às famílias se tornou uma necessidade diante das circunstâncias atuais (Mieike, Kohlrausch, Olschowsky & Schneider, 2010; Schrank & Olschowsky, 2008).

Este estudo teve como objetivo pesquisar a vida de familiares responsáveis pelo cuidado de pessoas com transtorno mental severo e persistente, em uma cidade de pequeno porte de Minas Gerais. Para atingir tal objetivo, primeiramente buscou-se caracterizar o responsável pelo cuidado, para, em seguida, descreverem-se suas vivências na relação com a pessoa com transtorno mental severo e persistente.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2014), dos 853 municípios do Estado de Minas Gerais, apenas 68 têm mais de 50.000 habitantes, sendo assim, 785 dos municípios são considerados de pequeno porte, ou seja, 92% dos municípios mineiros. Como aponta Boarini (2009), os estudos que se dedicam à área de saúde mental são realizados, em sua maior parte, em municípios de médio e grande porte (com população maior que 50.000 habitantes), dedicando-se pouco aos municípios de pequeno porte.

Em estudos realizados em municípios de pequeno porte, constatou-se que os profissionais desses lugares têm pouco conhecimento das novas políticas de saúde mental, ou mesmo não há população suficiente para ser atendida nem financiamento público para a implantação de serviços dessa natureza (Boarini, 2009). Quando são contemplados por serviços que possam iniciar uma rede de assistência ao portador de sofrimento mental, a concepção de doença mental é direcionada por uma lógica manicomial, com atendimento médico-centrado, com a finalidade de remissão de sintomas e de redução de internação (Luzio & L'abbate, 2009).

Diante do exposto, um novo olhar pode ser lançado ao familiar responsável pelo cuidado, habitante de um município de pequeno porte, identificado em sua individualidade, visto que ele é o mais afetado em sua vida particular quando assume essa função. E uma atenção especial deve ser dada ao indivíduo que mora em município de pequeno porte, onde emerge outra realidade que normalmente não é relatada em pesquisas.

 

Método

A pesquisa foi realizada na única unidade de saúde mental de um município de pequeno porte de Minas Gerais que atende a pessoas com transtorno mental severo e persistente. Trabalhou-se com método misto, utilizando-se um questionário quantitativo e entrevistas semiestruturadas qualitativas.

Participaram da etapa quantitativa todos os cuidadores dos 71 usuários que fazem uso de Haloperidol Decanoato nessa unidade de atendimento e, na sua ausência, o questionário foi realizado com o próprio usuário. Essa amostra representa 100% dos usuários que fazem uso dessa medicação. Escolheu-se essa população para se certificar do quadro de transtorno mental severo e persistente dos usuários, o que não seria possível por outros meios, naquele estabelecimento.

Para essa primeira etapa, um roteiro que visou caracterizar o cuidador foi construído, abordando os seguintes aspectos: quem cuidava do usuário; se cuidava sozinho ou acompanhado; o gênero do cuidador; o parentesco. Todos os questionários foram aplicados na unidade de saúde mental, com o auxílio da enfermeira responsável pela administração da medicação.

Na segunda etapa, com o intuito de conhecer as experiências de familiares responsáveis pelo cuidado ao se depararem com a situação de cuidar de alguém com transtorno mental severo e persistente, foram escolhidos, dentre os que já haviam respondido ao questionário, cinco familiares para se submeterem a entrevistas semiestruturadas. Não se cogitou entrevistar cuidadores profissionais contratados para essa tarefa nem os usuários que não tinham cuidadores.

A análise dos dados qualitativos baseou-se em princípios da Teoria Fundamentada (Charmaz, 2009) que buscam construir teorias de forma indutiva, fundamentando-as nos dados, para, a partir deles, construir conceitos, contrapondo-se, assim, à dedução, que parte de teorias já estabelecidas para direcionar a análise dos dados.

Os procedimentos para a realização e coleta de dados foram:

a) contato com a coordenação da unidade, a fim de apresentar os objetivos da pesquisa e solicitar autorização para acesso aos usuários e a seus cuidadores;

b) contato com os cuidadores, a fim de apresentar os objetivos da pesquisa e solicitar sua participação no estudo;

c) agendamento do horário e do local mais conveniente ao participante para a realização das entrevistas.

Os participantes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da PUC Minas, sob o nº CAAE 22315213.2.0000.5137. Para manter a privacidade dos participantes, não foram usados seus nomes reais, sendo estes substituídos por nomes fictícios.

 

Local da pesquisa e descrição dos serviços de saúde mental do município

O município em que foi realizada a pesquisa encontra-se na Região Metropolitana de Belo Horizonte, a 61 km da capital. Tem uma população estimada pelo IBGE de 29.873 habitantes e uma área de 302.589 km2, segundo dados de 2014. O município reúne, além da região central, mais três distritos que se encontram distantes do centro da cidade em 8 km, 14 km e 16 km.

Os serviços de saúde que atendem aos usuários com transtorno mental severo e persistente no município são: uma unidade de saúde mental (que não tem o estatuto de CAPS I); nove unidades básicas de saúde, sendo que oito delas são compostas por Estratégia Saúde da Família (ESF) e uma unidade sem ESF, mas com apenas um médico, uma enfermeira e uma técnica de enfermagem; uma equipe de Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf), com uma psicóloga que atende às oito unidades básicas de saúde com ESF; uma unidade de pronto atendimento. Contudo, todos os casos avaliados como sendo demanda de Psicologia ou de Psiquiatria são encaminhados para a unidade de saúde mental.

A unidade de saúde mental foi criada em 2001, a partir da contratação do primeiro psiquiatra do município. Em torno dele, juntaram-se outros profissionais. Anteriormente a essa data, todos os pacientes em crise eram encaminhados para um hospital psiquiátrico público na capital e, ao receberem alta, eram acompanhados pelo clínico da unidade básica ou pelo único neurologista da cidade.

Em 2014, a equipe da unidade de saúde mental era constituída por três técnicas de enfermagem, duas recepcionistas, um vigia, uma funcionária de serviços gerais, seis psicólogos (com carga horária variando entre 12 e 20 horas semanais), uma enfermeira (com carga horária de 40 horas semanais), uma assistente social, uma terapeuta ocupacional e duas farmacêuticas (com carga horária de 20 horas semanais cada uma), além de dois psiquiatras (cada um atendendo a 30 pacientes em um dia da semana).

O atendimento da unidade é prioritariamente ambulatorial e ocorre por via de encaminhamento das ESFs ou por demanda espontânea. A unidade não oferece transporte para usuários, cabendo a eles custearem a locomoção ou irem a pé ao atendimento, o que, em alguns casos, dificulta ou inviabiliza o tratamento. Em casos excepcionais ou de urgência, pode-se solicitar transporte de carros às ESFs ou à Secretaria de Saúde, ou de ambulância à Unidade de Pronto Atendimento.

A equipe da unidade de saúde mental realiza as seguintes atividades: visitas domiciliares; permanência-dia (acompanhamento dos usuários que precisam de acompanhamento diário durante todo o dia, retornando para casa no fim da tarde); oficinas terapêuticas; visitas regulares às Unidades Básicas de Saúde (matriciamento de saúde mental: reuniões mensais para discussão de casos, nas quais se decide sobre os encaminhamentos a serem realizados); fracionamento na distribuição de medicação (distribuição controlada da medicação para os usuários, segundo avaliação da equipe que a divide por dia e turno de administração, por períodos menores que 15 dias); atendimentos individuais.

 

Caracterizando-se o familiar responsável pelo cuidado

Foram identificados 95 cuidadores familiares responsáveis pelo cuidado de 71 usuários. Esse cálculo se baseou no número de pessoas que cada um dos cuidadores entrevistados dizia auxiliar no cuidado do usuário. Desses 95 cuidadores, 64 (67,27%) eram mulheres e 31 (32,63%) eram homens.

 

Tabela 1

 

Na análise dos dados, percebe-se que as mulheres se dispõem mais a cuidar sozinhas de um portador de sofrimento mental do que os homens. Dos 71 casos, 27 (38,03%) são mulheres que cuidam sozinhas, enquanto são 12 (16,9%) os casos em que os homens se dispuseram a tal atividade solitariamente. Somando-se, tem-se o total de 39 (54,93%) usuários que são cuidados por apenas uma pessoa; 25 (37,21%) são cuidados por mais de uma pessoa, enquanto 7 (9,86%) se cuidam sozinhos.

Pôde-se constatar, também, que são 37 (52,11%) os genitores que cuidam, sendo 30 (42,25%) o número de mães como cuidadoras e 7 (9,86%) o número de pais. Em seguida, aparecem os irmãos em 21 casos (29,58%), seguidos pelos cônjuges em 13 casos (18,31%).

Pode-se concluir que a maior parte dos usuários do serviço é acompanhada por uma pessoa apenas. Dentre os familiares, destacam-se as mulheres, em especial as mães, seguidas pelas irmãs. Elas também são as que se dispõem mais a cuidar sozinhas, em comparação com os homens. Apesar de a variação do arranjo familiar no cuidado à pessoa com transtorno mental grave ser bem variada (19 variações), a família chamada "nuclear" (genitores, irmãos e cônjuges) é a composição mais frequente no cuidado.

 

Análise qualitativa das experiências dos familiares responsáveis pelo cuidado

Nesta seção, são apresentados os dados obtidos a partir das entrevistas com cinco familiares responsáveis pelo cuidado, participantes da pesquisa. O Quadro 1 mostra as características dos contextos dos entrevistados.

A análise dos dados seguiu os princípios da Teoria Fundamentada (Charmaz, 2009). Após a coleta dos dados, fez-se primeiramente a codificação com as funções de separar, classificar e sintetizar os dados. Para isso, associaram-se marcadores a segmentos de dados. Em seguida, empregou-se uma codificação focalizada em que se selecionaram os códigos mais significativos e/ou frequentes. A partir da divisão dos dados, foram criadas, por meio da aglutinação de temáticas semelhantes, as seguintes categorias analíticas: a) percebendo-se sozinho; b) sofrendo na convivência direta com a pessoa com esquizofrenia; c) relacionando-se com o tratamento do parente; d) adaptando sua vida à de seu parente.

a) Entre a solidão e o apoio

Em geral, as trajetórias da maior parte dos entrevistados desta pesquisa chegam a momentos em que eles se deparam com a solidão, percebendo-se abandonados no relacionamento com o familiar adoecido. Quatro dos cinco entrevistados assumiram sozinhos os acompanhamentos dos seus familiares com transtorno mental severo e persistente. Como relata Beatriz, por mais irmãos que tenha, ela acaba sendo a única a acompanhar o irmão adoecido.

Da minha, que eu sei, eu tenho que tá acompanhando ele. Assim... Podendo ou não, tenho que tá indo com ele ao médico aqui. Nós somos cinco irmãos. Mas, quando dá certo mais pra um, né, tipo assim, os outros trabalham fichado.

Então, é muito difícil, fica muito difícil, porque quando fica só pra uma, a situação fica difícil. Aí, de todo jeito, é eu só mesmo.

Onde precisa de ir, sou eu que acompanho. Aí, fica difícil pra mim. Só que eu não sei mais o que que eu faço. (Beatriz)

Érica foi a única entrevistada que apresentou uma situação em que o cuidado era compartilhado com os irmãos. Eles se organizavam de tal forma que ninguém precisava se sacrificar muito para realizar a tarefa.

Não só eu, como meus outros sete irmãos ajuda que, igual agora, ele não fica sozinho. Então, a gente juntou os irmãos todo e os que não pode ficá paga uma pessoa pra uma pessoa pra ficá. Ele não fica sozinho, porque todo mundo trabalha e necessita do trabalho pra sobreviver, né? (Érica)

Quando a família se dispõe a compartilhar o cuidado, a relação entre os parentes fica menos penosa, no que diz respeito ao relacionamento tanto intrafamiliar quanto com o mundo do trabalho. Como relata Érica, a preocupação é menor, pois sempre se tem a certeza de que o irmão está acompanhado e nem sempre parece que cuidar de um irmão com uma enfermidade crônica seja um problema:

[...] eu gosto muito de ajudar as pessoas... eu acho que eu tenho paciência... eu acho que eu tenho. Não sei se eu tenho... procuro ajudar. Igual meu irmão, ele adoeceu e eu larguei o meu quarto e fui dormir lá no lado dele e minha cama tá lá. Cuido dele com o maior amor que eu posso cuidar, como se fosse meu filho. (Érica)

Vê-se que os irmãos questionam a presença uns dos outros na divisão da tarefa de cuidar de um familiar. Porém, esse questionamento não se repete quando o familiar responsável pelo cuidado é mãe, pai ou cônjuge (casos de Ana, Cláudio e Douglas). Além de assumirem sozinhos os cuidados, eles acreditam que nenhuma outra pessoa se disporia ou seria capaz de ocupar seus lugares.

Eu tô até mexendo com advogado, porque eu tô passando a curatela dos meninos. Mas eles num vão querer, não. Vão ter que arrumar um lugar pra colocar ele.

Só Deus é que sabe o que eu tô passando. Agora, os irmão num vão aguentar, não. Os irmão vão ter raiva dele. (Ana)

Muitas vezes, as pessoas dizem o seguinte: "Por que é que você não larga?" Quando eles me perguntam, eu também dou a mesma interrogação: "Mas largar como?" Onde está minha responsabilidade para com ela e, principalmente, para consigo? O que seria deles e dela também, dela também? Lógico que faz parte da minha vida. O que seria deles se eu agisse de acordo com o que as pessoas falam? "Ô, meu filho, larga. Você fica nessa aí, para quê?" (Cláudio)

Além de assumirem sozinhos os cuidados, episódios de abusos e agressões são fatores que reforçam o abandono do familiar responsável pelo cuidado. Quando o parente com transtorno mental abusa ou agride, as outras pessoas se afastam, deixando o responsável pelo cuidado sozinho, sem ter outras pessoas para apoiá-lo.

E ele tava com raiva do meu irmão porque ele tentou sentar o pé de cabra no meu irmão.

Porque elas pararam de ir lá em casa por causa do meu marido. Ele me maltratava. Ele não tinha educação, sabe? Ele era uma pessoa, assim, muito mau.

Aí ele começou a me maltratar. Aí, quando foi... o pai dele foi conversar com ele que eu tinha que fazer as compras, e ele tava com um pé de cabra que ia sentar no pai dele, e foi aquela confusão. Aí, ele pegou e pôs o despejo pra mãe, o pai dele. Aí veio o despejo. Ele tava desempregado, sem ter onde enfiar a cabeça. (Ana)

Como apontam Santos e Bandeira (2015), é difícil manter uma relação positiva com o parente com transtorno mental severo e persistente devido às suas mudanças de comportamento repentinas. A relação traz sobrecargas objetivas para o cuidador, como a interrupção da vida social e o transtorno profissional. Por outro lado, por mais que as pesquisas apontem para uma tendência à resignação e à evitação no cuidado de pessoas com transtorno mental, quando se sentem sobrecarregados (Santos & Bandeira, 2015), os entrevistados demonstraram um sentimento de responsabilidade para com o seu parente, chegando a se sentirem bem nessa condição.

Em consonância com os dados da pesquisa de Bandeira, Tostes, Santos, Lima e Oliveira (2014), a pessoa com a responsabilidade de cuidar sozinha de alguém com transtorno mental se vê como a única a quem o parente adoecido pode recorrer, sente sua dependência e receia pelo futuro da pessoa doente. Tais percepções são os principais fatores que causam sobrecarga elevada em familiares que cuidam de um parente com transtorno mental.

Mas essa relação não se caracteriza apenas por abandono e falta de auxílio. Diferente dos familiares, alguns vizinhos exercem uma função de apoio para que a pessoa mantenha sua função de cuidador, ajudando nos afazeres domésticos, fornecendo mantimentos e auxiliando no cuidado com o parente com transtorno mental severo.

Aí, meu pai falou: "Eu vou ali. Agora mesmo eu volto". Ele foi na padaria buscar coisa, porque não tinha nem o fogo pra fazer o café pra ele. Aí, eu chamei a vizinha do fundo, pedi uma latinha de querosene pra pôr a água de café no fogo pra quando ele chegar com a comida, o pó de café, o leite, o pão, tudo. (Ana)

Isso. Ele mora com meu pai. E tem vizinho lá também que às vezes dá uma ajudazinha lá. Eu falo: "Vai lá que eu não tô podendo ir"... e fala. Aí, ela vai lá, só que tem hora que é muito mais difícil. Tem hora que tá no emprego, chega, tem filho. (Beatriz)

Como ressalta Montanher (2014), o vizinho desempenha um papel duplo. Ao mesmo tempo em que reforça o preconceito e o estigma contra a pessoa com transtorno mental, também pode funcionar como uma referência de apoio social. Porém, como relatado nas entrevistas, é um apoio indireto, permanecendo o cuidado efetivo a cabo do familiar.

Ao assumir sozinho o cuidado, o familiar acaba se sentindo sozinho e precisando mediar suas relações com o parente enfermo, para que não seja abandonado também, sendo os vizinhos um apoio nesse momento. Porém, essa sensação de solidão não é tão intensa, ou até mesmo é inexistente, quando os familiares dividem a tarefa de cuidar.

b) Sofrendo na convivência direta com a pessoa com transtorno mental severo e persistente

Um dos problemas apresentados pelos entrevistados foi o de ter que assumir as dívidas da outra pessoa a partir do momento em que ela adoece. Essa situação pode ser incluída na noção de sobrecarga financeira estudada por Pegoraro e Caldana (2006), pois os participantes da pesquisa relatam que o parente que adoeceu desperdiçou os recursos próprios, exigindo que outros assumissem suas dívidas. Douglas relata que o filho tinha emprego até o momento em que adoeceu. Depois, ficou desempregado e todas as despesas da casa foram assumidas pelo pai.

Aí, tá, meu menino cresceu, estudou, o E., estudou e começou a trabalhar na E. Com poucos dias, não chegou a trabalhar nem um ano lá e adquiriu um apartamento, esse que nós mora hoje, e alugou esse apartamento sem consultar nós, sem nada. Nós nem sabia que ele tinha dado o apartamento.

Aí, ele levou pra oficina, é... ficou uns dias lá, levou pra outra, ficou mais uns dias lá, e ele desempregado. Já tinha saído lá da E. Aí, ele foi e vendeu o carro, vendeu o carro prum camarada...

A gente fica confuso sem saber o que faz. Muita responsabilidade na minha "cacunda", porque lá em casa só eu que trabalho. (Douglas)

Ana ressaltou a situação repetitiva de que o marido gastava todo o dinheiro na rua e não ajudava com as contas da casa. Ela contou que esse comportamento também foi reproduzido pelo filho. Ambos gastavam todo o dinheiro em bebida (o pai recebia salário e o filho uma aposentadoria).

Ele [marido] era mau. Ele ganhava muito dinheiro, mas o dinheiro dele era pra gandaia. Ele não punha comida dentro de casa. Os menino era tudo pequeno. Ele ainda me insultava.

Ele [marido] trabalhava fichado. Ele recebia o dinheiro no fim de semana. Gastava tudo. Não comprava nada para dentro de casa. Chegava de madrugada e ainda metia o coro na gente.

Então, minha vida foi assim, né. Ele [marido] não punha nada dentro de casa. Aí, por fim, ele não pagava aluguel.

Às vezes, ele [filho] saía do internato hoje, tomava uma injeção, entrava no boteco e enchia a cara.

Por isso que ele [filho] é interditado, porque metia o pau todo do dinheiro nessa bosta. Ele ficava na rua igual mendigo, pedindo dinheiro. Dava pena pra caramba. (Ana)

Apesar de o fator dinheiro gerar conflitos entre o familiar responsável pelo cuidado e o parente com transtorno mental severo e persistente, não se pode afirmar que essa situação se deva exclusivamente ao fato de uma das pessoas envolvidas na relação ter transtorno mental, visto que esse é também um comportamento comum em outras relações.

Além dos conflitos financeiros, as agressões estiveram presentes nas falas dos familiares responsáveis pelo cuidado de seus cônjuges. Cabe ressaltar que, apesar do estigma sofrido pelo portador de sofrimento mental quanto à sua suposta natureza violenta (Guarniero, Bellinghini & Gattaz, 2012), o comportamento agressivo não foi relatado em todas as entrevistas e não se deve identificar essa atitude com o transtorno mental. Porém, na fala dos cônjuges, a violência esteve presente.

E ele não esperava nem abrir porta. Ele quebrava a porta, e aí ele entrava quebrando os trem, sabe? Batia na meninada toda, punha pra correr. Ele vinha correndo atrás de mim com facão. Era revólver, era tudo. Eu de barriga e tudo. Quantas vezes eu num fui posta pra dormir na casa deles no São Francisco. Ah, gente! Que sofrimento nessa vida! (Ana)

Ela, muitas vezes, ela procurava bater muito nas crianças e eu não deixava. É, teve uma vez também que o K., meu filho de doze, vinte, vinte e dois anos que completou ainda agorinha, ele também chamou o Conselho Tutelar para ela porque ela queria quebrar o braço da... da... da... da C., minha menina, que está com doze anos hoje. (Cláudio)

Cláudio tentou resumir o que seria conviver com alguém com transtorno mental, que ele nomeia "depressão". Não se sabe que atitude esperar. Cada dia é diferente do outro. Como visto anteriormente, essa incerteza gera dificuldades nos relacionamentos.

Porque, normalmente, a depressão, ela mexe com o sistema da pessoa, né, da cabeça da pessoa, o neurológico da pessoa. Então, cada dia ela estava de um jeito. Também, por outro lado, de acordo com o passar do tempo, de acordo com o andar do carro, ela reage de uma maneira. (Cláudio)

Vê-se que o dinheiro ganha uma função relevante na relação entre familiar responsável pelo cuidado e seu parente. A presença do aumento de gastos, devido tanto à perda de emprego quanto ao desperdício de recursos financeiros e materiais por parte da pessoa com transtorno mental, aumentam a preocupação de quem cuida e, consequentemente, a sobrecarga.

Apesar da presença da agressão nos relatos dos cônjuges de pessoas com transtorno mental, não se pode concluir que a violência seja uma característica preponderante na relação entre a pessoa com transtorno mental e seu familiar.

c) Relacionando-se com o tratamento do parente

A partir das entrevistas, pôde-se concluir que as novas modalidades de tratamento substitutivas à internação psiquiátrica foram bem acolhidas pelos familiares responsáveis pelo cuidado. No que diz respeito às internações, o afastamento da pessoa para se tratar gerava preocupação e ansiedade nos entrevistados. Além dos sentimentos ruins, a retirada de um parente de casa gerava a separação da família, como relatou Beatriz, ou levava ao risco de perder o emprego, pois não podia deixar a filha sozinha em casa e não conseguia se concentrar no seu trabalho, como no caso de Cláudio.

Tá. Era... era, é... era ruim demais. Por quê? Porque já houve época, embora é... é... não é da minha, não era da minha vontade... é... de internar. Mas eu pensei e falaram para mim assim: "OK, espera aí. Você não está concordando dela ir pro hospital..." Eu falei assim: "Olha, vai de acordo é com as pessoas. Eles tratam a pessoa mal, eles judiam". - "Não, nós não vamos judiar, tal e tal". Então, na verdade, era muito ruim para ela e muito mais para mim, porque eu tinha, eu tinha que... aí que eu tinha que ser um pai e a mãe dentro de casa, ainda mais com criança, né? Eu... dentro de casa tem aqueles dias que eles estavam querendo me mandar embora, preocupado com ela no hospital, por exemplo, no André Luiz, né? (Cláudio)

Olha, o mesmo problema. Assim, ficava internada anos. Nós ficávamos pra casa dos outros. Ó doutor, [o sentimento era] ruim. Assim, ficava na casa dos outros, sem o pai e sem a mãe por perto. Ficava ansiosa. Queria que voltasse tudo para dentro de casa. (Beatriz)

De outro lado, a internação ainda é vista como alternativa para conter o parente em momentos de crise e de maior agitação, como relatam Cláudio e Douglas. No instante em que eles se agitam, a força física é o único recurso que eles encontram para conter o parente.

E, muitas vezes, também é. É, a gente tem que, até não é agir com brutalidade, não, mas nós temos também que agir, muitas vezes, usando a nossa força física. Não eu, em solução, em conjunto com outras pessoas, como, por exemplo, com outros profissionais. Eu poderia ter com vocês aqui, com pessoas do posto de saúde, como também os filhos, entendeu? (Cláudio)

Que eu não tava aguentando mais. Inclusive eu cheguei a bater nele lá, na UPA, sabe? Aí, eu levei ele lá na UPA... A médica foi, e ele começou a dar crise lá. Eu pedi ele pra parar, e ele não quis parar. Eu fui e dei nele dois tapa na cara... Não... eu fiquei sem jeito, sabe? A gente fica confuso sem saber o que faz. Muita responsabilidade na minha "cacunda", porque lá em casa só eu que trabalho. Aí, foi aonde resolveram atender ele e levou ele lá pro hospital e ele ficou lá esses dias tudo. (Douglas)

No que tange à modalidade de tratamento, os entrevistados parecem não ter divergência e demonstraram preferir o tratamento em meio aberto. Em contrapartida, é importante entender que, para os familiares responsáveis pelo cuidado, o tratamento para os transtornos mentais se reduz aos medicamentos. As outras atividades oferecidas pela unidade de saúde mental não são sequer mencionadas. Eles enxergam apenas o remédio como método de tratamento.

Daí, a gente começou a procurar o médico pra ele, e tá até hoje em tratamento. É... ele toma uma injeção por mês. Não pode parar. Aí, ele fica, aí ele cede mesmo. Mas aí ele fica tranquilo, né.

Com a medicação, ele fica em casa. No caso do meu irmão, com a medicação é bem melhor. (Beatriz)

Mas mudou muito, né, porque, assim, com esse remédio, graças a Deus, porque ela melhorou muito o sono. É, ela está mais calma, ela não tem mais aquela vida agitada que antes tinha, mas requer muito, muito a atenção da gente, né, porque a gente não pode vacilar com o tratamento. (Cláudio)

A tendência a se focar prioritariamente, ou quase que exclusivamente, na medicação é um fenômeno que se repete em outros municípios de pequeno porte, como apontam Luzio e L'Abbate (2009), bem como em diversos serviços de atenção psicossocial (Zeferino, Cartana, Fialho, Huber & Bertoncello, 2016). Esse foco medicamentoso tem dois fatores: os profissionais, como afirmam Zeferino et al. (2016), e os próprios familiares que não participam de outras atividades oferecidas pelos serviços, como apontam Santos e Bandeira (2015).

Apesar de considerarem positivos os avanços alcançados pelo tratamento medicamentoso, Ana e Cláudio demonstraram preocupação com os efeitos colaterais do remédio. Eles perceberam que as medicações são agressivas. Assim, eles ficam com medo de que o tratamento possa levar ao óbito ou que a pessoa fique incapaz de realizar qualquer tarefa, desejando apenas dormir.

Eu falava com minha filha que ele ia ter um infarto qualquer hora, porque essas injeções são muito forte. De Haldol Carboniato. Aí, num adiantava Dr., ele recebia. (Ana)

Olha, graças a Deus, os tratamentos, embora provocam reações adversas, nós sabemos, a vida dela é mais é dormir. Mas eu não deixo, eu não deixo ela dormir. Eu vou lá, balanço, levo café, levo comida. Ela acha ruim, fica na cama, olha para mim, não quer dar atenção. Eu fico insistindo com ela ali, mas, graças a Deus, mudou muito, né, porque é, é, com o tratamento a gente vê que ela melhorou bem. Ela está bem controlada. A mente dela está bem controlada. A gente não pode falar que o tratamento é um motivo, que eu estou sendo apto, as injeções e os comprimidos. (Cláudio)

É possível constatar que o tratamento de pessoas com transtorno mental em meio aberto é o preferido dos familiares entrevistados. As internações em hospital psiquiátrico portam uma dimensão angustiante para os familiares. As internações interferem na rotina da família de forma a sobrecarregar de tarefas o familiar responsável pelo cuidado, além da preocupação dele em saber se a pessoa está bem durante a internação.

Porém, a percepção dos familiares responsáveis é restrita em relação às possibilidades de tratamento. O transtorno mental é visto como um problema apenas para a psiquiatria, e a medicação é a estratégia principal. Eles não conhecem outras ações que possam ser úteis para a atenção em saúde mental.

d) Adaptando a vida à de seu parente

Uma necessidade de adaptação apontada nas entrevistas foi a de moradia. Ou as pessoas já moravam juntas antes do adoecimento, ou tomaram essa atitude depois que o parente adoeceu; de qualquer forma, essa atitude foi tomada pelos familiares responsáveis pelo cuidado.

E eu morava pagando aluguel. Aí, resolvi vir pra cá, pra ele... que ele tava com as três... com umas três prestação atrasada e tava vencendo mais uma. (Douglas)

Agora, assim, sou eu que cuido. Eu moro praticamente nas duas casas. Aí, eu fico na minha casa, fico na casa dele. Trago ele no médico. Onde precisa de ir, sou eu que acompanho. (Beatriz)

Igual meu irmão. Ele adoeceu e eu larguei o meu quarto e fui dormir lá no lado dele, e minha cama tá lá. (Érica)

Além da necessidade de morar mais próximo da pessoa com transtorno, o cuidado também ficou mais intenso, exigindo mais tempo e dedicação. Excetuando-se Ana, que apresentou uma história de vida diferente, em que ela já se dedicava ao esposo integralmente antes mesmo de descobrir a doença dele e continuou o mesmo cuidado com os filhos, todos os outros entrevistados sentiram-se impelidos a intensificar sua atenção.

Então, esse é mais um momento [em] que a gente tem que ficar mais junto dela ainda. Então, conclusão: mudou nesse sentido de que está mais perto. (Cláudio)

Da minha, que eu sei, eu tenho que tá acompanhando ele. Assim... Podendo ou não, tenho que tá indo com ele ao médico aqui. (Beatriz)

Esse aumento de responsabilidade levou também à exacerbação no cuidado. Os familiares responsáveis pelo cuidado entrevistados relataram que eles se dispõem a fazer tudo por seus parentes com transtorno mental, incluindo todas as atividades de cuidado diário. Dentre essas atividades, incluem-se banho, pegar água e dar a medicação.

Ela pertinho dele, colado. Se precisa de sair, sai um dia. Vê como é que tá! Lavo roupa, arrumo tudo pra ele lá. Hoje, eu já vim com ele pra tomar injeção. Ontem, tava pra lá ajeitando o cabelo, fazendo a barba. (Beatriz)

Por que é que eu fico mais caseiro? Porque os remédios têm que ficar em cima. Se eu não ficar em cima, toma os remédios tudo errado. A gente tem que dosar isso tudo. (Cláudio)

No sábado e domingo, a gente cuida o dia inteiro. Fica junto. Tem que pegá água, dá no copo pra ele. Eu dô banho nele. Eu que... nem enxuga ele não enxuga. Ele ficou assim, dependente. Eu não sinto pesar, não, eu sinto prazer em cuidar dele. (Érica)

Constata-se que tanto a situação de moradia quanto a responsabilidade pelas atividades diárias do parente adoecido denunciam uma dificuldade em impor limites tanto ao outro quanto a si mesmo. Esse é um padrão repetido por diversos cuidadores (Santos & Bandeira, 2015) e se liga à não participação dos familiares em grupos de formação e de intervenções psicossociais, o que limita a sua capacidade no cuidado.

Além da mudança na relação com o parente com transtorno mental, ocorrem interferências nas saúdes psíquicas dos familiares. Eles relataram mudança de hábitos, perda de sono, tristeza e irritação, tudo causado pela circunstância de terem que acompanhar seu parente com transtorno mental em sua rotina.

A gente também se torna um pouco deprimido. Por quê? Porque a maneira [com] que a gente tem de lidar com isso também, diante do movimento deles, nos traz também, eu creio, uma coisa que patogênica, porque mexe também com o sistema da gente.

Eu estava tomando um remédio chamado... e aquilo da falta de sono. Eu deito e fico pensando isso tudo antes de dormir. Tudo vem na minha mente antes de dormir. E isso da insônia é ruim, ruim demais a insônia. (Cláudio)

É muita tristeza. Vai juntando, né. E você não tem com quem conversar, porque ele é perigoso. Ah, doutor, eu não sinto nada não. Eu sinto é muita dor aqui dentro (aponta para o coração), muita tristeza, de corroer, sabe? (Ana)

Saunders (2003) aponta que a depressão é a enfermidade mais comum entre os cuidadores de pessoas com doença mental severa. Seu número é duas vezes maior quando comparado com a população em geral. Para conseguirem lidar com essa nova situação, os entrevistados apontaram como métodos utilizados o trabalho, o lazer e a medicação.

Eu tento de todos os jeitos, é... driblar a situação. Como? É tocando violão, é cantando, é buscando... é limpando quintal, é fazendo bem para ela... é procurando viajar. Quando eu viajo, eu gosto de levar também...

Faço uso de remédios... E... não me ataque, mas eu faço uso de remédio. (Cláudio)

Então, doutor, ele morreu e não me deixou nada. Quase que não me deixava nem o INPS. Mas eu falei: "Eu vou deixar uma casa pra eles" [Bate na mesa].

E hoje eu construí minha casa muito boa. Eu tenho dois barracões de aluguel. Mas eu já trabalhei pra caramba. Eu nunca cruzei braço não. (Ana)

Percebe-se que, ao se deparar com a doença de seu parente, o familiar responsável intensifica seu cuidado. Contudo, em alguns casos, esse cuidado se torna exagerado, levando-o a realizar a atividade pelos outros. Nessa condição, ocorrem também situações de adoecimento psíquico no familiar responsável pelo cuidado.

 

Considerações finais

Embora tenha havido avanços nas discussões sobre a atenção ao portador de transtorno mental severo e persistente em municípios de pequeno porte, a oferta de serviços neles ainda é escassa e centralizada no atendimento médico. Não há atividades de convivência e lazer organizadas. Distância e ausência de transporte são complicadores no acesso aos serviços. Há também ausência de ações sanitárias e intersetoriais que ofereçam apoio a esses pacientes e familiares. Essas são limitações na rede de serviços e de contatos sociais que segregam o familiar responsável pelo cuidado do parente adoecido, exigindo dele adaptações em sua rotina, a fim de estar mais próximo do familiar. Se o cuidado fosse compartilhado com outros membros da família e a dependência do poder público fosse menor, a sobrecarga e solidão pesariam menos.

As quatro categorias criadas a partir dos relatos dos familiares responsáveis pelo cuidado indicam possíveis interpretações que vão além daquelas que os sujeitos apontaram. Com as categorias, percebe-se a solidão vivida, na maioria dos casos, pelos familiares responsáveis. As pessoas nessa situação vivem conflitos dentro e fora de casa, o que aumenta a possibilidade de adoecerem. Porém, essas circunstâncias poderiam ser amenizadas com a disponibilização de informações e com um apoio maior de outros familiares e mesmo de vizinhos.

O cenário é complexo e depende de diversas variáveis. Primeiramente, há o fato de que o próprio ato de ser cuidador de uma pessoa com transtorno mental aumenta a probabilidade de se desenvolver uma depressão devido aos conflitos vividos nessa relação.

Um segundo fator complicador é a circunstância em que a maioria dos familiares responsáveis pelo cuidado se encontra: a de terem de cuidar sozinhos da pessoa doente, mesmo quando há outros familiares que, porém, aparentemente não se dispõem a ajudar.

Um terceiro fator que potencializa o sentimento de abandono é a ausência de uma rede de serviços estruturada que auxilie no cuidado de forma efetiva e que dê suporte a essa tarefa de cuidar.

Finalmente, como o atendimento, na unidade de saúde mental, se restringe ao psiquiátrico, o tratamento mais oferecido é a medicação. O foco nesse tratamento praticamente único dificulta a integração do cuidado familiar com o serviço de saúde mental.

Tudo isso aponta a necessidade de se repensar a respeito das consequências de centrar a atenção ao portador de transtorno mental apenas na área de saúde, principalmente nas mãos de um especialista. Maior inserção na sociedade e em outras redes de serviços contribuiria para gerar mais autonomia para o usuário e, também, para seu familiar.

 

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Recebido em 03/05/2015
Aprovado em 16/09/2016

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