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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.2 São João del-Rei maio/ago. 2016

 

Apontamentos sobre a violência da cultura em Freud, Adorno e Marcuse

 

Notes on the violence of culture in Freud, Adorno and Marcuse

 

Notas sobre la violencia de la cultura en Freud, Adorno y Marcuse

 

 

Gustavo Henrique Carretero

Bolsista de doutorado pela CNPq do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo - SP, Brasil, GHC - PEPG Psicologia Social, PUC-SP. E-mail: psycogus@hotmail.com

 

 


RESUMO

O artigo tem como objetivo identificar como as categorias indivíduo e sociedade se relacionam em Freud, Adorno e Marcuse. Para tanto, foram analisadas três obras de Freud (Totem e tabu, 1913/1996; Psicologia das massas e análise do ego, 1921/1996, e Mal-estar na civilização, 1930/1996). Os resultados foram interpretados a partir das contribuições da Teoria Crítica da Sociedade proposta por Theodor W. Adorno e Herbert Marcuse. A cultura aparece como elemento importante na mediação da relação indivíduo e sociedade. Um dos aspectos que se destacou nas análises das obras freudianas foi a violência da cultura. As análises de Adorno e Marcuse aprofundam tal elemento ao inserir tal discussão nas reflexões acerca da sociedade capitalista. Um dos riscos de tal processo é a agressividade despertada por este, que pode se tornar destrutividade contra a cultura. Todavia, tais processos são manejados conscientemente e inconscientemente para manutenção do status quo.

Palavras-chave: Indivíduo e Sociedade; Cultura; Violência; Teoria Crítica da Sociedade; Psicanálise.


ABSTRACT

The article aims to identify how the categories as individual and society are related in Freud, Adorno and Marcuse. Therefore, three works of Freud were analyzed (Totem and Taboo, 1913/1996; Psychology of the masses and the analysis of the ego, 1921/1996, and Civilization and its discontents, 1930/1996). The results were interpreted according to the contributions of the critical theory of society proposed by Theodor W. Adorno and Herbert Marcuse. The culture appears as important element in mediating the relationship individual and society. One of the important aspects highlighted in the analysis of Freudian works was the violence of the culture. The analyses of Adorno and Marcuse deepen such element inserting such discussion in the reflections of the capitalist society. One of the risks of such a process is the aggression generated by this process that can become violence against the culture. However, such processes are managed consciously and unconsciously to maintaining the status quo.

Keywords: Individual and Society; Culture; Violence; Society's Critical Theory; Psychoanalysis.


RESUMEN

El artículo tiene como objetivo identificar cómo se relacionan categorías de individuo y sociedad de Freud, Adorno y Marcuse. Se seleccionaron y analizaron tres obras de Freud (Tótem y tabú, 1913/1996; Psicología de las masas y análisis del ego, 1921/1996, y Malestar en la civilización, 1930/1996). Os resultados fueron interpretados con las aportaciones de la teoría crítica de la sociedad propuesta por Theodor W. Adorno y Herbert Marcuse. La cultura aparece como elemento importante en la mediación de la relación individuo y sociedad. Uno de los elementos que se destacaron en el análisis de las obras freudianas fue la violencia de la cultura. El análisis de Adorno y Marcuse profundizan tal elemento para insertar este tipo de discusión en las reflexiones sobre la sociedad capitalista. Uno de los riesgos resultantes de dicho proceso es la agresividad que puede convertirse en destructividad contra cultura. Sin embargo, tales procesos son administrados conscientemente e inconscientemente para mantener el status quo.

Palabras-clave: Individuo y la sociedad; Cultura; Violencia; Teoría crítica de la sociedad; Psicoanálisis.


 

 

1 Introdução

O artigo analisa alguns elementos de três diferentes obras de Freud: Totem e tabu (Freud, 1913/1996), psicologia de grupo e análise do ego (Freud, 1921/1996) e Mal-estar na civilização (Freud, 1930/1996) a partir da perspectiva da Teoria Crítica da Sociedade proposta por T. W. Adorno e H. Marcuse.

As obras foram escolhidas por nelas Freud procurar compreender a dinâmica da sociedade a partir de seu modelo teórico monadológico. Tais elementos são importantes nas análises desenvolvidas por Adorno e Marcuse a respeito da sociedade capitalista. Estas apontam para a perda da importância da individualidade diante dos processos sociais engendrados pelo modelo monopolista.

Não houve a pretensão de se fazer uma análise pormenorizada de todos os elementos expostos nas três obras escolhidas, mas sim elencar questões pertinentes aos objetivos estabelecidos, que são: 1. Identificar como as categorias indivíduo, sociedade e cultura se relacionam e são teorizadas em Freud; 2. Refletir sobre tais elementos a partir da Teoria Crítica proposta por T. W. Adorno e H. Marcuse.

De modo a facilitar a argumentação, o artigo foi organizado nas seguintes seções:

1. Introdução: na qual são apresentados os objetivos, procedimentos metodológicos e estrutura do artigo;

2. Conceitos fundamentais de Freud e contexto histórico das obras: são apresentados conceitos fundamentais da psicanálise freudiana para a compreensão da relação indivíduo, sociedade e cultura, tais como: pulsão (de vida e de morte); princípio de prazer e princípio de realidade; complexo de Édipo. Além disso, procuram-se situar as três obras estudadas, não apenas no contexto da produção de conhecimento da psicanálise freudiana, como também em eventos históricos;

3. Violência da Cultura em Freud: são apresentadas distinções em Freud entre os conceitos de sociedade e cultura, assim como violência e agressividade. Além disso, as concepções e algumas reflexões a respeito da mediação da cultura na relação indivíduo e sociedade em Freud;

4. Análise da relação indivíduo e sociedade a partir da Teoria Crítica da Sociedade: nesta seção são apresentadas as apropriações e reflexões feitas por Adorno e Marcuse a respeito da temática. Não se teve o objetivo de abarcar todas as contribuições dos autores, apenas apresentar alguns elementos, no que tange ao uso da psicanálise para compreensão da cultura e crítica social;

5. Considerações finais: na qual se procura refletir sobre a importância de estudos associados à violência da cultura.

 

2 Conceitos fundamentais de Freud e contexto histórico das obras

2.1 Conceitos fundamentais

Antes de apresentar as obras analisadas, é importante apresentar ao leitor como alguns dos conceitos fundamentais da psicanálise freudiana são concebidos.

Talvez o Complexo de Édipo seja a formulação freudiana que mais abalou a concepção burguesa de sociedade e cultura. Explica-se tamanha importância por nele estarem condensadas algumas das principais formulações de Freud: inconsciente, pulsões, repressão e sexualidade infantil.

As pulsões, no desenvolvimento infantil, procurariam formas de satisfação que culminariam em um período no qual seriam dirigidas do próprio corpo para objetos externos. Nesse sentido, as pulsões procurariam satisfação por meio de uma pessoa do gênero contrário ao da criança (representantes do pai e da mãe) e experimentariam sua interdição em uma pessoa do mesmo gênero. Tais eventos gerariam conflitos que acarretariam em um período de latência das pulsões até o seu ulterior reaparecimento na adolescência sobre a genitalidade. Todavia, o conceito não permaneceu estático durante toda a teorização freudiana e foi alvo de constantes reformulações (Moreira, 2004).

O conceito de pulsão em Freud foi elaborado em 1905 (Freud, 1905/1996). Ele supõe forças psíquicas que procurariam satisfação, todavia, elas não seriam meramente psicológicas, mas também provenientes de excitações corporais. Lima (2007) ressalta que a teoria das pulsões passou por três momentos: 1. Quando ainda não tinha sido formulada, até 1905; 2. Ao ser formulada, na oposição entre as pulsões sexuais e pulsões de autoconservação; e 3. A partir de 1920, quando assumem a oposição entre pulsão de vida (Eros) - mesmo sem perder seu caráter sexual - e pulsão de morte (Tânatos).

A partir das pulsões, Freud também propõe dois princípios que regem a vida psíquica dos indivíduos, que seriam: princípio de prazer e o princípio de realidade. O primeiro estaria associado a pulsões primárias e exigiria a plena e imediata satisfação de suas necessidades. Ele atuaria a partir de processos inconscientes. Já o princípio de realidade seria um desenvolvimento posterior, tanto histórica como psiquicamente, pautado na satisfação das necessidades de acordo com as possibilidades da realidade e estaria associado ao desenvolvimento filogenético da espécie humana, possuindo elementos inconscientes e conscientes.

2.2 Síntese e contexto histórico das obras

Há em Totem e tabu (Freud, 1913/1996), Psicologia de grupo e análise do ego (Freud, 1921/1996) e Mal-estar na civilização (Freud, 1930/1996) um percurso teórico de Freud de crítica à sociedade. Nessas obras, aspectos interessantes da relação indivíduo e sociedade são tratados em diferentes perspectivas. Na primeira, o autor cria um "mito cientifico" sobre a gênese da cultura, procurando associá-la ao conceito fundamental e à pedra angular da psicanálise freudiana, o Complexo de Édipo, por meio da busca das raízes antropológicas e sociais de tal teorização. Na segunda obra, o autor procura compreender a psicologia das massas, a partir de sua interpretação psicanalítica. Já a terceira obra, discute o conflito entre a satisfação individual e os regulamentos sociais na cultura.

As obras analisadas podem aparentar certa lógica que se desenvolve e se torna mais complexa. Todavia, os escritos de Freud não devem ser pensados como um todo orgânico, mas a partir dos esforços do autor por meio de constantes reformulações para tentar dar corpo teórico à psicanálise e ao método estabelecido por ele.

Totem e tabu (Freud, 1913/1996) é escrita dentro do pensamento do autor em um momento em que ele se preocupa em dar estatuto social e antropológico a suas formulações a respeito do indivíduo. Assim, ele procura, na história humana, a gênese do conceito do Complexo de Édipo, fazendo, também, um estudo antropológico das pulsões e suas interdições pela cultura e sociedade. Não se pode negar que parte das observações feitas (sobre a agressividade e violência nos primórdios da sociedade e cultura) esteja marcada pelas tensões mundiais no período que derivavam das políticas imperialistas e que culminaram com a Primeira Guerra Mundial, entre 1914 e 1918.

Na obra, Freud ressalta que cultura, sociedade, moralidade e religião teriam um fundamento empírico comum. Ele parte da hipótese de Charles Darwin de que originalmente os homens viveriam - assim como os símios superiores - em pequenos grupos ou hordas. O ciúme do macho mais velho e forte impediria a promiscuidade sexual. O líder da horda teria quantas fêmeas pudesse cuidar. Quando os machos do grupo cresciam, havia uma disputa pelas fêmeas. Nessas disputas, geralmente, o macho mais forte matava ou expulsava os mais novos da comunidade. Os irmãos expulsos retornavam, matavam o pai e comiam a sua carne. Unidos eles faziam o que lhes fora impossível realizar individualmente.

A violência dos irmãos em relação ao líder despótico da horda teria dado início à organização dos homens em sociedade, ao mesmo tempo em que teria criado a cultura (a despeito da violência do pai e da organização social anterior). Tais concepções são passíveis de questionamento pela impossibilidade da verificação histórica de tais acontecimentos.

Psicologia das massas e análise do ego (Freud, 1921/1996) foi escrito no período Pós-Primeira Guerra Mundial e representa a preocupação do autor em compreender o fenômeno das massas e grupos organizados. A partir dos escritos de Gustav Le Bon, o autor procura refletir sobre a psicanálise das massas e grupos. Não de um ponto coletivista, mas do indivíduo, o que levaria cada um dos indivíduos a aderir às coletividades. Na obra, o autor separa as massas dos grupos organizados e hierarquizados e dá mais ênfase à interpretação da formação dos grupos.

No contexto do desenvolvimento teórico da psicanálise, a obra é escrita logo após a reformulação da teoria das pulsões, em 1920 (Freud, 1920/1996), e, portanto, tenta englobar algumas das novas formulações a respeito das pulsões. Apesar de não se referir diretamente às pulsões de vida e de morte, Freud procura compreender tais fenômenos a partir das identificações que ocorrem nas coletividades e dos aspectos pulsionais envolvidos.

Mal-estar na civilização (Freud, 1930/1996) é uma das últimas obras de Freud e discute a cultura. O autor percebe o descompasso entre satisfação pulsional e metas culturais e faz uma profunda reflexão a respeito do tema. Nesse período, ele já havia vivenciado os horrores da Primeira Guerra Mundial e a Alemanha estava às voltas com a ascensão do partido nazista, que já havia assumido o poder político. O nazismo se baseava em ideias da grande pátria (e da grandeza do povo ariano) e na perseguição a minorias que tinham feito com que a pátria perdesse a sua pureza racial e se degenerasse, tendo como sintoma disso a crise econômica. As principais vítimas desse processo foram pessoas de ascendência judaica, e Freud tinha tal ascendência.

Vale destacar que já em Futuro de uma Ilusão Freud (1927/1996) se nega a fazer a separação que ocorre na língua alemã entre cultura e civilização.1 Horkheimer e Adorno (1956/1969) auxiliam a compreender tal distinção ao relatar que a primeira se refere aos valores e conquistas espirituais da humanidade, enquanto a segunda às conquistas materiais. Eles destacam que a concepção de civilização não se opõe à de cultura melhor designando o conjunto da humanidade. Todavia, para a finalidade do artigo, se utilizará a palavra cultura para referir ao significado alemão da palavra civilização, pois se avalia que no português esse termo abarca toda a complexidade que o termo civilização carrega no alemão.

 

3 A violência da cultura em Freud

Duas observações precisam ser feitas antes de se entrar propriamente na discussão a respeito da violência da cultura. A primeira diz respeito à distinção entre cultura e sociedade em Freud. Apesar do autor se negar a diferenciar entre cultura e civilização, os conceitos de sociedade e cultura não podem ser utilizados de maneira análoga. A sociedade remete à organização do homem em grupos e implica em certa divisão do trabalho e regulamentos entre os homens. Já a cultura envolve o desenvolvimento das regulações, sua institucionalização e dominação da natureza.

A segunda observação se refere à distinção entre o conceito de agressividade e violência em Freud. O conceito de pulsão de morte engloba a agressividade humana (Freud, 1920/1996) e o autor o remete à natureza. Certa parcela de agressividade é necessária à vida humana para sobrevivência e dominação da natureza externa. Além disso, a agressividade humana é mediada pela cultura (assim como todas as pulsões). A violência é uma forma mediada de agressividade e engloba, de acordo com Costa (1986), o desejo de causar mal, humilhar, fazer sofrer o outro. O ato violento marca o emprego deliberado da agressividade na dominação. Assim, não se pode falar de violência pulsional, apenas de agressividade. Ao se referir sobre a violência da cultura no artigo, aponta-se que existe algo deliberado no sentido da não satisfação humana.

Assim, vale destacar que apesar de Freud não teorizar diretamente sobre o capitalismo, ele apresenta contribuições fundamentais para compreender a relação indivíduo e sociedade, mediada pela cultura, pois alterações nas esferas econômicas da sociedade (da produção material e nova organização do capital) geraram profundas alterações na cultura nos últimos séculos.

Tais mudanças na organização da produção refletiram-se também na cultura e intensificaram o aspecto violento, repressivo, totalitário e antiprogressista2 desta. Pode-se dizer que aspectos anticivilizatórios da cultura se intensificaram a partir da violência e da repressão que não seriam mais necessárias em uma sociedade na qual o desenvolvimento técnico aponta para a satisfação das necessidades básicas de todos, mas que mantém a desigualdade. Ao mesmo tempo, o totalitarismo da cultura no capitalismo se manifesta pela diminuição da necessidade da individualidade perante processos sociais, justamente no momento em que o processo oposto poderia estar ocorrendo. Isso tudo somado ao fato de que a forma como a cultura se organiza dificulta as possibilidades de oposição a ela, haja vista a quase impossibilidade de se reproduzir a própria existência no mundo totalmente socializado (Adorno, 1955/1991; Marcuse, 1964/1973). Pode-se afirmar, portanto, que a violência e o totalitarismo da cultura se manifestam na manutenção da repressão e recalque em medidas desnecessárias diante do avanço civilizatório.

Entretanto, voltemos a Freud. A cultura em Freud (1930/1996) apresenta um duplo caráter, tendo a finalidade de proteger os homens da natureza (unindo-os em organizações sociais cada vez mais complexas) e regulação das relações entre os homens. Todavia, a cultura, ao tentar regular as relações humanas, priva cada indivíduo de certa dose de satisfação pulsional. Tal conflito, segundo o autor, se refere às próprias origens da cultura e da sociedade, presentes no mito da horda primitiva em Totem e tabu (Freud, 1913/1996).

A violência da cultura aparece nas obras estudadas (Freud, 1913/1996; 1921/1996 e 1930/1930) sob diversos enfoques. Nelas, Freud faz severas críticas à cultura, no sentido de que esta impõe a totalidade da sociedade sobre os indivíduos, relegando-os a uma vida regredida e permeada por conflitos infantis. Com tais críticas, o autor admite que o único caminho para a sociabilidade é a cultura, mesmo com todas a suas contradições entre proteção e interdição.

O autor destaca em Totem e tabu (Freud, 1913/1996) que, na tentativa de evitar desejos incestuosos e agressivos, a cultura em seu desenvolvimento impôs proibições que, inicialmente, teriam sido sociais. Com o passar do tempo, a própria proibição torna-se interna e, em alguns casos, inconscientes nos seres humanos. Freud adverte na obra que toda proibição cultural incide sobre uma pulsão humana inconsciente e deve ser imposta a força. A proporção da força utilizada deve ser correlata à intensidade do impulso.

Estão contidos nessa obra os germes de uma das grandes contribuições de Freud na análise da cultura: a história da humanidade é o desenvolvimento da repressão e recalque em patamares cada vez maiores, assim como da mesma forma que a cultura deve sua força à repressão e recalque de poderosos instintos sexuais. Todavia, o autor ressalta que seria impossível gratificar todas as metas pulsionais, o que o surpreende é o excesso da repressão e recalque e, consequentemente, da insatisfação dos homens.

Já em Mal-estar na civilização, Freud (1930/1996) se espanta diante de como as relações entre os homens são reguladas pela cultura por meio de instituições como família e Estado. Ele sugere que os primórdios da cultura remontem às primeiras tentativas de regulação das relações sociais. O autor defende o aspecto regulatório da sociedade sob o argumento de que os homens não conseguiriam conviver entre si sem tal mediação, pois haveria o "risco" da vontade arbitraria de um indivíduo (mais forte) dominar todos os outros. Dessa maneira, foi estabelecido o poder da comunidade, denominado de "direito", em oposição do indivíduo singular, portador da "força bruta". Tal substituição teria sido um passo importante para o estabelecimento da cultura e, por outro lado, denota o aspecto da submissão do indivíduo à coletividade.

Para o autor (Freud, 1913/1996 e 1930/1996), haveria nos homens instâncias que não aceitam se submeter às normas sociais, que seriam as pulsões. Portanto, desde o princípio, os homens quando submetidos ao processo social e cultural se dividem entre a tentativa da felicidade individual e obediência às normas que não trazem prazer. Entretanto, as regulações mantêm a ordem social, domando aspectos antissociais nos homens. Pelo exposto, percebe-se que a atitude dos homens perante a cultura é ambivalente, no sentido que proteção/interdição se conjugam nela.

Freud parece não se resignar a esse processo. Ele denuncia que a felicidade individual não é prioridade no processo cultural, mas a adesão dos indivíduos na formação de "cada vez mais sociedade", mesmo que com indivíduos infelizes.

Cultura e indivíduo para Freud possuem metas distintas, sendo que a primeira busca a integração, enquanto o segundo a felicidade. A esperança do autor é de que ambas as metas pudessem ser amenizadas e o conflito irreconciliável entre indivíduo e cultura, ao menos, atenuado.

Trata-se de uma luta dentro da economia da libido, comparável àquela referente à distribuição da libido entre o ego e os objetos, admitindo uma acomodação final no indivíduo, tal como, pode-se esperar, também o fará no futuro da civilização, por mais que atualmente essa civilização possa oprimir a vida do indivíduo. (Freud, 1930/1996, p. 144)

Freud, portanto, supõe no conflito entre interesses individuais e culturais a violência da cultura (mesmo sem expressar diretamente isso): esta se impõe por meio de instituições e mecanismos de controle que permeiam os mais recônditos do indivíduo (tornando-se consciência e inconsciência). Tal processo faz com que os homens participem da cultura sem a consciência de que isso está sendo imposto a partir de fora e tenham a sensação do um mal-estar (que aparentemente não tem objeto definido).

Um exemplo de tal situação, encontrado em Mal-estar na civilização (Freud, 1930/1996), é o sentimento de culpa, que é um retorno da agressividade contra o próprio indivíduo. A agressividade gerada da insatisfação das pulsões (tanto libidinais como agressivas) retorna contra o próprio homem em forma de culpa.3 Assim, para o autor, uma das metas da cultura refere-se à inibição não apenas de aspectos libidinais, como também agressivos.

Dessa maneira, para Freud (1930/1996) a culpa seria um dos maiores problemas do desenvolvimento cultural. O avanço em termos de cultura é acompanhado da perda da felicidade pela intensificação do sentimento de culpa.

Para além disso, Freud ressalta que uma das formas encontradas na cultura para aplacar a insatisfação pulsional (tanto de impulsos libidinais como agressivos) é a repressão e o recalque. A denúncia da repressão talvez seja uma das grandes contribuições de Freud para a crítica da cultura, que deve sua força à transformação de impulsos sexuais e agressivos em metas culturais, gerando insatisfação e mal-estar nos homens.

Aparecem nas obras estudadas (Freud, 1913/1996; 1921/1996 e 1930/1996) dois processos distintos que podem ser caracterizados por repressão. O primeiro se refere à repressão consciente, que pode ser caracterizado como proibição cultural, cuja finalidade é a de regulação das relações humanas, propiciando a convivência em sociedade. O segundo processo encontrado nas obras refere-se à proibição inconsciente, na qual o impulso não pode sequer chegar à consciência do indivíduo, sendo que este - o impulso - é reprimido por mecanismos inconscientes (tal forma de repressão é mais conhecido na psicanálise como recalque). Assim, os controles civilizatórios ou culturais não se baseiam apenas em aspectos conscientes, mas também inconscientes dos quais os indivíduos, muitas vezes, não têm clareza destes.

Comentários à parte podem ser feitos a respeito de Psicologia das massas e análise do ego (Freud, 1921/1996). Se nas duas outras obras estudadas (Freud, 1913/1996 e 1930/1996) podem-se encontrar aspectos da ambivalência do processo cultural (proteção/interdição), nessa encontramos, por parte do autor, a articulação dos mecanismos pelos quais o processo cultural pode afligir os homens por meio da formação das massas e grupos organizados. O problema não seria a participação em massas e grupos, mas os mecanismos inconscientes que algumas dessas formações fomentam.

Ele ressalta o manejo pela cultura da repressão e do recalque por meio da inibição e deslocamento de energia sexual e agressiva para a formação de massas e grupos. Tal discussão denuncia a falta de liberdade dos indivíduos em sociedade. A agressividade também se torna um elemento de adesão a grupos. As instituições, grupos e massas remetem os indivíduos a estados regredidos de consciência na adesão cega, ao mesmo tempo em que dão vazão a poderosas pulsões.

Nessa obra (Freud, 1921/1996), o autor justifica seu método de pesquisa, focado exclusivamente no indivíduo, afirmando que a psicologia individual é, ao mesmo tempo, psicologia social. Os aspectos libidinais, agressivos e o mecanismo de identificação são utilizados como elemento de adesão dos indivíduos a instituições sociais, como a religião, o exército, os grupos e as massas. Os homens, quando expostos a tais situações, sacrificam seus interesses pessoais a favor de coletivos. Tal processo é ambíguo, pois não há meramente o sacrifício de interesses particulares, mas também a satisfação de impulsos recalcados.

Freud preocupa-se com o que leva os indivíduos a perderem seus traços característicos, a ponto de se extinguirem, pela formação de grupos. Estes, fora de tais situações, possuem certa continuidade, autoconsciência, tradições, costumes, funções, posições e se mantêm apartados de rivalidades. Enfim, ao aderir aos grupos os indivíduos perdem distintividades. Interpreta-se que o autor, como defensor e crítico da ideologia liberal, parece inconformado em como o indivíduo do liberalismo pode se submeter a massas ou grupos organizados, pois a característica que deveria marcá-lo seria a autonomia.

Por todo o exposto, pode-se afirmar que, nas obras analisadas (Freud, 1913/1996; 1921/1996 e 1930/1996), o autor percebe e denuncia a ambivalência do processo cultural na díade proteção/interdição. Isso acaba por demonstrar as próprias contradições da cultura. Nesse contexto e frente à afirmação de que o desenvolvimento cultural está intimamente ligado ao fortalecimento da repressão pulsional em patamares cada vez mais elevados, pode-se afirmar que a Freud não concebe a cultura apenas como progresso, isso porque quanto mais cultura se tem, mais insatisfação pulsional haverá.

Ele não nega o progresso técnico da cultura na dominação da natureza. Todavia, ressalta que tal aspecto não se reflete em bem-estar para a maioria dos homens. Até mesmo os que estão na posição de desfrutar as benesses da cultura também sofrem com o sentimento de mal-estar proveniente da violência e ambivalência da cultura. Algumas pulsões são tão alteradas pela cultura que aparecem no indivíduo como traço de caráter (ou seja, a total ausência de objeto de satisfação faz com que a pulsão se torne a personalidade do indivíduo para conseguir certa satisfação).

O autor destaca que a repressão das pulsões pode ser tomada como nível de cultura alcançado (Freud, 1913/1996, p. 107), cujo progresso se dá pelo distanciamento cada vez maior do homem em relação à satisfação de seus impulsos.

Freud também faz crítica à formação dos indivíduos (Freud, 1921/1996), afirmando que os impulsos emocionais particulares e os atos intelectuais dos homens expostos à cultura são fracos demais para chegar a algo por si próprio, dependendo do reforçamento por sua igual repetição em outros membros de grupos:

Somos lembrados de quantos desses fenômenos de dependência fazem parte da constituição normal da sociedade humana, de quão pouca originalidade e coragem pessoal podem encontrar-se nela, de quanto cada indivíduo é governado por essas atitudes da mente grupal que se apresentam sob formas tais como características raciais, preconceitos de classe, opinião pública etc. A influência da sugestão torna-se um grande enigma para nós quando admitimos que ela não seja exercida apenas pelo líder, mas por cada indivíduo sobre outro indivíduo, e temos de censurar-nos por havermos injustamente enfatizado a relação com o líder e mantido demais em segundo plano o outro fator da sugestão mútua. (Freud, 1921/1996, p. 127)

Outra crítica à noção de progresso feita por Freud refere-se à domação da natureza, haja vista que, ao alcançar tal meta cultural, os homens não alcançam uma maior felicidade. Os avanços nessa área trazem benefícios aos homens que não são universalizados. Assim, o avanço da cultura para Freud contém o elemento da universalização da infelicidade entre os indivíduos.

 

4 Análise da relação indivíduo e sociedade a partir da teoria crítica da sociedade

Pelo exposto na seção anterior, pode-se afirmar que a psicanálise freudiana apresenta elementos críticos para se refletir a relação indivíduo e sociedade mediada pela cultura. Tais elementos são utilizados por parte de Adorno e Marcuse para empreenderem suas críticas à sociedade capitalista. Os autores procuram ressaltar os elementos mistificadores da psicanálise freudiana, ao mesmo tempo em que encontram outros esclarecedores.

Deve-se ressaltar que as contribuições de tais autores se inserem na passagem do capitalismo liberal para o monopolista, em circunstâncias da ascensão de movimentos totalitários na Europa e da democracia com requintes autoritários nos EUA. Soma-se a tais fatos a diminuição da importância da individualidade referente a processos tecnológicos e sociais (Adorno, 1951/2006; 1955/1991 e 1971/2003; Marcuse, 1964/1973).

Crochik (1998) destaca que a subjetividade possui diversas dimensões, entre elas o sujeito do saber e o sujeito psíquico que estão em processo de fusão e "invasão" em sociedades totalitárias. Assim, de maneira bastante intuitiva, há, na psicanálise freudiana, a denúncia da invasão de esferas particulares da existência pela cultura. Deve-se acrescentar que, apesar das teorizações de Adorno e Marcuse se inserirem em determinado momento do "desenvolvimento" do capitalismo, elas não são datadas historicamente. Muitas delas permanecem extremamente atuais na sociedade contemporânea. Alguns fenômenos descritos por eles se tornaram mais agudos na contemporaneidade, basta apenas citar o surgimento de movimentos de massas autoritárias e conservadoras no Brasil.

Como já dito, a psicanálise freudiana possui, para os autores, elementos esclarecedores e mistificadores. Todavia, Adorno e Marcuse procuram encontrar a sua base materialista para empreender a crítica à forma como a sociedade passa a se organizar no capitalismo monopolista.4 Deve-se destacar, também, que as apropriações e críticas à psicanálise freudiana entre Adorno e Marcuse não são iguais. Cada autor procura desenvolver reflexões próprias a respeito da psicanálise. Tal elemento é coerente com uma teoria que pretende defender a individualidade diante de processos sociais. Dessa forma, serão apresentadas, sucintamente, algumas contribuições e reflexões de cada um deles a respeito da psicanálise, demonstrando como a psicanálise pode elucidar elementos da relação indivíduo e sociedade no capitalismo.

Adorno (1955/1991) se coloca contra tentativas de união entre os conceitos da Sociologia e da Psicologia, embora conceba que a formação do indivíduo seja mediada pela sociedade. Isso se deve ao fato de que as contradições entre os objetos (indivíduo e sociedade) não são fruto da falta de desenvolvimento teórico, mas da própria realidade concreta. Explicações somente psicológicas do social são inadequadas por não trazerem nenhum conflito real entre o particular e o geral, entre o processo vital (social) e o individual. Tal organização teórica resolve harmonicamente, no campo conceitual, contradições sociais. Entretanto, deve-se destacar que teorias psicológicas do social tendem a sobrepor explicações monadológicas às históricas, mas não necessariamente impossibilitam a delimitação de conflitos entre o geral e o particular.

Para Adorno (1955/1991), a psicanálise freudiana se ateve ao indivíduo. Ela tenta compreender a cultura e sociedade a partir de manifestações individuais e efeitos nos indivíduos. Isso pôde revelar como mecanismos de controle sociais e culturais penetram até mesmo nas camadas inconscientes de cada homem.

Alguns conceitos freudianos assumem maior importância nas análises feitas por Adorno, destacando-se entre eles os de pulsões e narcisismo. Tais conceitos são utilizados pelo autor para compreender as regressões fomentadas nos indivíduos no capitalismo monopolista, tais como: os movimentos de massas, a redução da importância da individualidade e a adesão a instâncias que vão contra os próprios interesses do indivíduo.

Gomide (2007) destaca que, para Adorno, o conceito de pulsão (e suas vicissitudes) proposto por Freud traz em seu bojo as mediações sociais sobre o indivíduo: 1. Pelas pulsões poderem ser alteradas por obra da cultura; 2. Por impedir a distinção entre natureza e cultura; e 3. Por Freud ter superado, com esse conceito, uma concepção meramente metafísica ou organicista da psique, dando uma base material ao psiquismo.

Assim, as vicissitudes das pulsões no capitalismo monopolista podem elucidar as fontes psíquicas (conscientes e inconscientes) da obediência dos indivíduos às formas de poderes irracionais da sociedade administrada.

Nesse contexto, as formulações freudianas a respeito do narcisismo ganham especial atenção nos escritos de Adorno (1942/1971; 1951/2006 e 1955/1991). Para o autor, as aflições psíquicas que remetem às formas narcísicas se tornam mais proeminentes no momento social em que a individualidade perde importância no capitalismo monopolista. Tais formações psíquicas seriam tentativas individuais, fomentadas socialmente, de se tentar sobreviver em sociedades nas quais o indivíduo (nos seu molde liberal) se torna obsoleto.

O narcisismo também é a base para a compreensão dos fenômenos das massas e das coletividades fascistas para Adorno (1951/2006). Ele ressalta que regressões fomentadas pelo capitalismo monopolista na formação do indivíduo fazem com que o eu se retraia para o inconsciente, servindo a forças sociais. Ao mesmo tempo, a energia pulsional que não consegue se expressar na cultura passa a ser investida no próprio eu. Assim, o eu se torna inconsciente e investido pulsionalmente para servir aos propósitos da cultura.

Talvez uma das maiores contribuições de Adorno ao estudo da psicologia das massas seja o fato de ele encontrar nos recônditos de tais manifestações sinais que apontam para a presença do narcisismo. Tal contribuição é uma reformulação do pensamento de Freud (1921/1996), que concebia que movimentos de massas e grupos organizados (como a igreja e o exército) contribuiriam à limitação de processos narcísicos. Adorno (1951/2006) subverte tal constatação, declarando exatamente o oposto: as massas e grupos totalitários são manifestações de processos narcísicos fomentados pela cultura. Tal processo marca novas configurações do psiquismo e é mediado socialmente.

O autor ressalta o papel essencial do narcisismo em relação às identificações que estão em jogo na formação das massas e grupos totalitários. Tal mecanismo é reconhecido na teoria freudiana como idealização. O objeto (líder ou ideia ao redor da qual essas formações se reúnem) é tratado da mesma maneira que o eu. As massas e grupos totalitários promovem a idealização de si mesmo. Assim, a força esmagadora da totalidade serve como um simulacro de eu. Isso faz com que psiquicamente se negue a "inutilidade" dos indivíduos perante processo social.

Tal processo para Adorno é a manifestação de impulsos narcisistas. A totalidade assume características que o eu idealiza em relação a si mesmo e que não podem mais se desenvolver socialmente. O amor ao líder e ao grupo se coloca como manifestação do sentimento que os indivíduos nutrem pelo próprio eu. Esse processo ocorre de maneira inconsciente e assim permanece em tais formações. O autor destaca que quanto menos o indivíduo é na realidade, mais imagina ser (Adorno, 1955/1991).

Os processos descritos por Adorno ressaltam as regressões provocadas nos indivíduos no capitalismo monopolista, de tal maneira que até mesmo o que era consciente (eu) regride para o inconsciente.

Marcuse (1963/1998) descreve até os processos familiares envolvidos na regressão provocadas no indivíduo na passagem do capitalismo liberal ao monopolista. Ele atribui as regressões à decadência da figura paterna na sociedade ocidental devido a transformações em processos de socialização: da familiar privada para a coletivizada e externamente imposta. Ele destaca que a autoridade obedecida é a do processo produtivo e não a do pai.

Tais transformações sociais afetaram diretamente a formação da imagem paterna nos indivíduos, que acabam por formar eus incapazes de entrarem em conflito com a autoridade. Se, por um lado, o Complexo de Édipo proposto do Freud simbolizava o conflito entre filho e pai, por outro, a formação do indivíduo, baseada em modelos coletivos, denota a não existência de tal embate. O eu não chega a se desenvolver suficientemente para se opor à autoridade e se identifica imediatamente com esta. Tal processo favorece a adesão dos indivíduos às massas.

Marcuse (1963/1998) sugere que o embate com a autoridade possibilita a formação do supereu, por meio da internalização da autoridade e a criação de um ideal de eu. Com o enfraquecimento do eu, elimina-se a possibilidade de se alcançar o estágio do confronto com a autoridade, consequentemente o supereu não é internalizado e passa a ser imposto de fora pela cultura. O líder das massas manipula tal processo inconscientemente. Ele se torna o ideal de eu das coletividades, sendo o supereu imposto pela cultura e estando completamente de acordo com as metas desta.

O risco de tal processo, para Marcuse (1963/1998), refere-se ao montante de energia destrutiva liberada em cada indivíduo. A agressividade direcionada à figura paterna fica sem objeto quando não se alcança o estágio do embate com a autoridade. Isso faz com que os indivíduos se identifiquem imediatamente com a autoridade.

Ele ressalta que as formulações freudianas a respeito do líder que uniria as massas não se justificam mediante as alterações sociais. O capitalismo tardio leva a formação do indivíduo a estágios em que a figura paterna não é mais necessária, ou seja, uma sociedade sem pai, cuja autoridade se torna o aparato produtivo:

Numa tal sociedade chegar-se-ia a uma enorme liberação de energia destrutiva: liberada dos vínculos sentimentais com o pai enquanto autoridade e consciência moral (Gewissen), a agressividade se propagaria, levando ao colapso do grupo. É claro que não (ainda não) nos encontramos nessa situação histórica: o que nós temos é antes uma sociedade em que os indivíduos não são guiados pela imagem tradicional do pai, onde, entretanto outros agentes do princípio de realidade, evidentemente não menos eficazes, tomaram seu lugar. (Marcuse, 1963/1998, p. 101)

Para Marcuse, a teoria freudiana pressupõe que os controles sociais resultam da luta entre as necessidades pulsionais e as sociais. Uma luta no eu que se volta contra a autoridade pessoal. Para tanto, é necessário que o controle social e político seja encarnado na figura do líder. Todavia, o autor aponta que na atual configuração do capitalismo até mesmo a figura do líder perdeu sua finalidade psicológica, pois a libido se ligaria aos próprios objetos de consumo. O aparato social se tornou independente.

Tal fato, somado à regressão do indivíduo, faz com que não haja mais a necessidade do líder e nem mesmo a possibilidade de estar fora da coletividade. A adesão é direta: todos participam das metas da cultura pelo consumismo, não apenas os que ingressaram nas massas.

Com a libido passando a se fixar nos objetos de consumo, os homens se identificam entre si por meio do consumo. Já a agressividade é direcionada aos exogrupos e aos inimigos da civilização ocidental.

Tal processo faz com que as pulsões (tanto libidinais como agressivas) sirvam às metas culturais e os homens se identifiquem com a sociedade que os oprime. Assim, a autoridade respeitada passa a ser a do aparato de produção dominante.

A argumentação de Marcuse é mais convergente com as elaborações freudianas, sem, contudo, preservar a ideologia liberal. Entretanto, existe um risco explícito na forma como o autor conduz sua discussão: a possibilidade da piscologização de tais contribuições. Isso gera o risco de a teoria recair em ideologia ou transformar-se em técnica. Isso se for interpretada no sentido de psicologizar o conflito social entre indivíduo e cultura.

 

5 Considerações finais

Pode-se perceber, pelo que foi apresentado no artigo, que a psicanálise freudiana apresenta uma relação ambígua em relação à cultura: por um lado oferece elementos para a crítica de seus aspectos violentos, por outro procura, em alguns momentos, preservar a cultura burguesa. Apesar de tais elementos, ela foi de suma importância à crítica social e cultual de Adorno e Marcuse. Espera-se ter demonstrado que a psicanálise possui: 1. Elementos esclarecedores, ao permitir a compreensão de controles sociais nos indivíduos por meio das pulsões; e 2. Elementos mistificadores, ao não procurar compreender as contradições da sociedade capitalista.

Reconhece-se a psicanálise como importante subsídio teórico para a análise crítica da relação indivíduo e sociedade, mediada pela cultura no capitalismo tardio. Ela serve como elemento para se perceber como a formação do indivíduo foi o que poderia ter sido e o que se tornou na sociedade burguesa.

Ao mesmo tempo, deve-se ressaltar a importância de estudos na psicologia social que compreendam e apontem para a violência da cultura. Dessa maneira, ao se analisar a violência presente na esfera da cultura, contribui-se à compreensão de que o problema da violência transcende a dimensão individual e não é redutível a explicações monadológicas.

Por último, deve-se acrescentar a atualidade das contribuições de Adorno e Marcuse para a compreensão da contemporaneidade brasileira. Ilustra-se tal argumento a partir das massas conservadoras que emergiram a partir das jornadas de junho de 2013. Tais manifestações possibilitaram o crescimento de movimentos extremamente conservadores que culminaram na derrubada da presidente legitimamente eleita. Uma análise mais profunda de tais movimentos poderá apontar como alguns de seus participantes atentam contra seus próprios interesses racionais em nome de um ódio irracional.

 

Referências

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Recebido em 04/04/2016
Aprovado em 31/08/2016

 

 

1 "A civilização humana, expressão pela qual quero significar tudo aquilo que a vida humana se elevou acima de sua condição animal e difere da vida dos animais - e desprezo ter que distinguir entre cultura e civilização..." (Freud, 1927/1996, pp. 15 e 16).
2 Pensado de forma dialética, o progresso contém em si elementos antiprogressistas.
3 Tal processo é extremamente complexo e envolve a formação do supereu, por meio de processos identificatórios e a própria agressividade sentida em relação à autoridade. Isso ocorre de forma inconsciente.
4 Tanto Adorno (1942/1971) como Marcuse (1955/1999 e 1963/1998) se posicionam contrários às tentativas revisionistas da psicanálise freudiana (principalmente a psicanálise do ego e da consciência). Eles ressaltam que as tentativas de darem estatuto sociológico às formulações freudianas fazem com que estas percam seus elementos esclarecedores por suporem certa harmonia entre interesses individuais e sociais na sociedade capitalista. O que ocorre é exatamente o oposto: os interesses individuais são subordinados aos sociais até mesmo pela exploração de conteúdos inconscientes.

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