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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.3 São João del-Rei set./dez. 2016

 

Desconstruindo mitos e preconceitos sobre "loucos" e "drogados": uma proposta de ação educativa para familiares de usuários de álcool e outras drogas na perspectiva da educação popular1

 

Deconstructing myths and prejudice on "mad" and "drug addicts": a proposal for educational action for families of alcohol users and other drugs in the perspective of popular education

 

Deconstruyendo mitos y prejuicios sobre "locos" y "drogadictos": una propuesta de acción educativa para familiares de usuarios de alcohol y otras drogas en la perspectiva de la educación popular

 

 

Niceia Maria Malheiros Castelo BrancoI; Denise Valory da SilvaII; Sandra Marcia Ribeiro SoldatelliIII

IAssistente social, especialista em Gerencia em Unidade de Saúde (USP), especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (FIOCRUZ), mestranda em Psicologia Institucional pela UFES. E-mail: nimalheiros@globo.com
IIPedagoga, especialista em Educação e Gestão Ambiental (SABERES), especialista em Educação Profissional e Tecnológica (IFES). E-mail: cursosetsus@gmail.com
IIIAssistente social, especialista em Gerencia em Unidade de Saúde (USP), especialista em Educação Permanente em Saúde- EPS em Movimento (UFRGS). E-mail: soldatellisandra@gmail.com

 

 


RESUMO

Trata-se de um relato de experiência de formação para familiares de usuários de álcool e outras drogas da rede de atenção psicossocial do município de Vitória/ES, realizada pela Escola Técnica do SUS de Vitória/ES-ETSUS/VITÓRIA. Teve como objetivo sensibilizar e capacitar familiares na temática da Reforma Psiquiátrica Brasileira, em particular na questão de álcool e outras drogas, contribuindo para a mudança de visão e de atitudes na perspectiva da cultura antimanicomial e da redução de danos. As ações foram desenvolvidas no sentido de contribuir para transformar o imaginário sociocultural permeado por processos de preconceito, exclusão e marginalização dos "loucos e drogados", influenciados pela Política de "Guerra às Drogas". Teve objetivo também de ser uma estratégia para se trabalhar a dimensão sociocultural da reforma psiquiátrica. A intervenção se deu na perspectiva teórico-metodológica da educação popular, com ações educativas que valorizaram os conteúdos culturais e populares dos participantes, unindo-se aos princípios da atenção psicossocial. Essa abordagem fortaleceu o encontro e o acolhimento, trazendo como resultado o empoderamento das famílias, por meio da ampliação do olhar em relação à questão do álcool e outras drogas.

Palavras-chave: Reforma Psiquiátrica, Redução de Danos, Educação Popular.


ABSTRACT

This is an experience report of a training conducted with relatives of users of alcohol and other drugs of the network of psychosocial care of the city of Vitória / ES, performed by the SUS Technical School of Vitória/ES-ETSUS/VITÓRIA. The focus was to raise awareness and train families regarding the Brazilian Psychiatric Reform, in particular the issue of alcohol and other drugs, contributing to change the views and attitudes in the perspective of an anti-asylum culture and harm reduction. The actions were undertaken to help transform the sociocultural imaginary permeated by prejudice, exclusion and marginalization of "mad and drug addicts", influenced by the Policy of "War on Drugs". It also aimed to be a strategy to work the socio-cultural dimension of the psychiatric reform. The intervention took place in the theoretical and methodological perspective of popular education, with educational activities that valued the cultural and popular content of the participants, combined with the principles of psychosocial care. This approach strengthened hospitality and willingness to get together, bringing as a result the empowerment of families by increasing the perception in relation to the issue of alcohol and other drugs.

Keywords: Psychiatric Reform, Harm Reduction, Popular education.


RESUMEN

Este es un relato de experiencia de un proceso de formación para familiares de usuarios de alcohol y otras drogas de la red de atención psicosocial de la ciudad de Vitória/ES, desarrollada por la Escuela Técnica del SUS Vitória /ES-ETSUS/VITÓRIA. Tuvo como objetivo concienciar y preparar familiares en el tema de la Reforma Psiquiátrica Brasileña, en particular sobre el tema del alcohol y otras drogas, contribuyendo al cambio de visión y actitudes en el contexto de la cultura antimanicomial y la reducción de daños. Las acciones fueron producidas para ayudar a transformar el imaginario sociocultural permeado por prejuicios, exclusión y marginación de los "locos y drogadictos", influenciados por la política de la "guerra contra las drogas". También buscó ser una estrategia para trabajar la dimensión sociocultural de la reforma psiquiátrica. La intervención se realizó desde punto de vista teórico y metodológico de la educación popular, con actividades educativas que valoraban el contenido cultural y popular de los participantes, uniéndose a los principios de la atención psicosocial. Este enfoque fortalece el encuentro y la acogida trayendo como resultado la potenciación de las familias, mediante el aumento de la percepción en relación con el tema del alcohol y otras drogas.

Palabras claves: Reforma psiquiátrica, Reducción de Daños, Educación Popular.


 

 

Apresentando e contextualizando o trabalho

Este projeto foi gestado a partir de um edital de 2010 da Portaria nº 4.252, de dezembro de 2010, do Ministério da Saúde, que destinava recursos financeiros emergenciais para ações de qualificação da Rede de Atenção Integral em Álcool e outras drogas, no valor de duzentos mil reais para a realização de quatro ações de formação, uma delas voltada para os familiares. O município de Vitória foi contemplado com o recurso e com o compromisso de sua realização. A forma e a metodologia adotadas nessa formação foram frutos do projeto de intervenção de uma das autoras, no Curso de Especialização em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, realizado no ano de 2013 pela Fiocruz em parceria com a ETSUS/Vitória, para os profissionais da rede de atenção do município de Vitória.

O projeto foi coordenado por técnicos da Escola Técnica do SUS-ETSUS/Vitória, que integra a Rede de Escolas Técnicas do SUS-RETSUS, e desenvolve sua atuação a partir de três eixos prioritários que são: formação dos cursos técnicos, ensino-pesquisa e educação permanente. A Educação Permanente em Saúde pode ser compreendida como apropriação de saberes socialmente, sendo continuamente produzidos e socializados. A incorporação da Educação Popular para a comunidade vai ao encontro dessa política e se destaca pelo caráter pioneiro e inovador no que se refere à atuação da ETSUS/VITORIA, tanto pela questão metodológica quanto pelo seu público-alvo, no caso os familiares de usuários de álcool e outras drogas da rede de atenção psicossocial.

Este artigo tem como objetivo compartilhar essa experiência, por ter se revelado como um dispositivo importante no processo de desconstrução de mitos e preconceitos ligados aos loucos e usuários de drogas no que concerne à Política de Guerra às Drogas. Acreditamos ainda que essa ação contribui para o fortalecimento da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, principalmente no atual cenário de ameaças concretas de retrocessos nas políticas sobre drogas no Brasil.

 

Trilhas Norteadoras: A Reforma Psiquiátrica, a Dimensão Sociocultural e a Educação Popular

Apesar de reconhecermos os avanços da Reforma Psiquiátrica Brasileira nesses trinta anos, em especial nos últimos quinze anos, com seu marco histórico, que foi a aprovação da Lei nº 10.216 em 2001 e com considerável ampliação de uma rede de serviços por todo o país, constata-se que ainda há grandes desafios para a consolidação das mudanças almejadas e a tão sonhada "Sociedade sem Manicômios". Tais desafios se tornam mais amplos, principalmente no contexto dos últimos anos, em que o tema central passou a ser a questão do álcool e outras drogas, em particular o crack.

A questão das drogas e das pessoas que fazem uso, abuso ou são dependentes de drogas, se tornou um dos grandes desafios para os defensores da Reforma Psiquiátrica, em função da forma como os governos, a mídia e a sociedade civil vêm enfrentando essa questão. Parte da exclusão e do preconceito conferido ao louco vem sendo remetida aos usuários de drogas (Silva, 2014).

Todos, em maior ou menor grau, são afetados por esse processo, construído historicamente pelo fenômeno conhecido como "Guerra às Drogas". Esse fenômeno, disseminado mundialmente, teve uma meta para o Novo Milênio: Um mundo sem drogas. Essa meta, além de se mostrar ineficaz, contribuiu para uma política de demonização das drogas e de criminalização e marginalização dos seus usuários. Essa guerra, além dos interesses da indústria bélica, sustenta-se por uma tática potente de controle social e perseguição seletiva (Rodrigues, 2008).

Antunes (2013) afirma que as ideias veiculadas na mídia, sob o título de "Epidemia do crack", materializada no espaço urbano com as famosas cracolândias, têm ocupado uma construção no imaginário cultural avassalador sobre todos, inclusive seus familiares e usuários. Lancetti (2015) cunhou a expressão contrafissura para o fenômeno de resolver de modo imediato e simplista problemas de tamanha complexidade no que se refere à questão de álcool e outras drogas. Esse fenômeno se manifesta em matérias sensacionalistas de jornais, revistas e televisão, além de influenciar as diversas políticas de governo adotadas.

Indispensável recorrer a Amarante (2007) quando se refere à Reforma Psiquiátrica como um sistema complexo, como mudança de paradigma que envolve quatro dimensões, que se interpenetram e transversalizam seus efeitos, que são: dimensão técnico-assistencial, dimensão teórico-conceitual, dimensão sociojurídica e dimensão sociocultural. A dimensão técnico-assistencial refere-se ao campo dos serviços, e que foi a que mais se efetivou com a implantação de CAPS e de novos dispositivos da rede de atenção. A dimensão teórico-conceitual é relativa às concepções sobre a loucura e reflete diretamente na formação dos novos profissionais. Já a dimensão jurídico-política diz respeito à revisão das legislações relativas aos conceitos e noções que relacionam a loucura à periculosidade, irracionalidade, incapacidade e responsabilidade civil (Amarante, 2007).

A dimensão sociocultural refere-se ao processo de ações pela via da cultura, educação, arte e lazer no sentido da transformação da cultura manicomial, traduzida no preconceito e na exclusão dos loucos (Amarante, 2007) e mais recentemente dos usuários de drogas, reforçando sua criminalização. Esta possibilita mudanças na cultura, mobilizando debates que permitem o questionamento e a problematização sobre as práticas excludentes e violentas naturalizadas na história. Concordamos com Yasui (2010), que coloca no horizonte da dimensão sociocultural a utopia de mudar o mundo, situando a Reforma Psiquiátrica como um processo civilizador.

Diante desse cenário, reafirmamos nosso compromisso com os princípios da política da atenção psicossocial, respaldados pela Política Nacional de Saúde Mental e reafirmados na IV Conferência Nacional de Saúde Mental de 2010 e na Conferência Nacional de Saúde de 2011.5

Os marcos teórico-políticos que fundamentam a política de Atenção em Álcool e outras Drogas são: a transversalização, possibilitando que diversos saberes ampliem os olhares e novos dispositivos de intervenção; a política de atenção integral e articulada com o desafio de prevenir, tratar, reabilitar como problema de saúde pública; a redução de danos como uma ética do cuidado, lidando com a singularidade dos sujeitos e em defesa da vida; a rede de saúde como local de conexão e de inserção, devendo o cuidado ser operado em interações, criando pontos de referência, viabilizando o acesso e o acolhimento. Segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 2003):

5 [...] A abordagem se firma como clínico-política, pois, para que não reste apenas como "mudança comportamental", a redução de danos deve se dar como ação no território, intervindo na construção de redes de suporte social, com clara pretensão de criar outros movimentos possíveis na cidade, visando avançar em graus de autonomia dos usuários e seus familiares... (p. 11).

A Educação Popular foi pensada como princípio e estratégia metodológica para o desafio de abordar conteúdos tão complexos com um público-alvo que carrega uma rica vivência cotidiana, enfrenta uma série de dificuldades, mas que também traz consigo várias possibilidades de construção de novos caminhos para seguir a vida que devem ser considerados. Vasconcelos (1997) resgata a historicidade de constituição da Educação Popular em saúde no Brasil a partir da participação de profissionais de saúde em experiência de educação popular de bases freirianas nos anos 1970, inaugurando uma ruptura com as práticas tradicionais de educação em saúde.

Nessa direção, a Educação Popular possibilita problematizar a realidade tomada como referência, mostra-se como um dispositivo de crítica social a partir das situações vivenciadas por indivíduos, grupos e movimentos, permitindo a visão de fragmentos que estavam invisíveis e ideologias naturalizadas como realidades, favorecendo a liberação de pensamentos e de atos ativos de mudança social (Pedrosa, 2007). Permite a produção de sentidos para a vida e engendra a vontade de agir em direção às mudanças que se julguem necessárias. As ações pedagógicas constroem cenários de comunicação em linguagens diversas, transformando as informações em dispositivos para o movimento de construção e criação (Pedrosa, 2007).

Um elemento importante do método é o fato de tomar como ponto de partida do processo pedagógico o saber anterior do educando, enfatizando a ampliação dos espaços de interação cultural e a negociação entre os diversos atores envolvidos em determinado problema social para a construção compartilhada do conhecimento e da organização necessários à sua superação. Em 1982, Paulo Freire (como citado em Vasconcelos, 2001) em uma de suas "Rodas de Conversa" em uma Comunidade Eclesial de Base (CEB) elaborou cinco princípios básicos, que depois foram fundamentais aos educadores e educadoras no processo de trabalhar com a educação popular, que são: saber ouvir; desmontar a visão mágica; aprender/estar com o outro; assumir a ingenuidade dos educandos(as) e viver pacientemente impaciente.

Afetadas também por processos da filosofia da diferença, buscamos trabalhar com Spinoza, Deleuze e Guattari, principalmente no que Spinoza traz de potência dos bons encontros. A noção de subjetividade em Guattari (1996) não implica uma posse, mas uma produção incessante que acontece a partir dos encontros que vivemos com o outro e nos percursos que cada sujeito vai traçando em sua vida. Deleuze e Guattari (1997) abordam a subjetividade a partir de territórios existenciais que podem tornar-se abertos a outras formas de ser, questionando a presença de uma interioridade separada de uma exterioridade, com as polarizações clássicas; sujeito e objeto, consciência e mundo, corpo e alma ou individual e social.

Para Spinoza (2009), o encontro entre dois corpos produz afeto. Esses encontros produzem trocas que resultam em maior ou menor potência na forma de agir. Menciona também que quando dois corpos se encontram e se compõem, ocorre um trasbordamento de vida e potência, gerando o aumento de alegria, configurando-se como um bom encontro. Para ele, alegria e tristeza são afetos, são paixões, a alegria aumenta a potência humana e a tristeza diminui essa potência.

 

Compartilhando a experiência... Trilhas metodológicas

Formamos inicialmente um grupo de trabalho com os possíveis facilitadores do projeto, que passaram a se reunir semanalmente discutindo e planejando os encontros. Esse grupo de trabalho passou por um processo de capacitação pedagógica de 16 horas, unindo conteúdos na lógica da redução de danos e da educação popular, conduzido por um facilitador com experiência na temática.

Cabe ressaltar que esses momentos foram extremamente importantes para nosso planejamento, alinhamento de pensamentos, de ideias e de metodologia, fortalecidos pela motivação e desejo de realizar o trabalho. Na diversidade de ideias, num processo de várias idas e voltas no planejamento, fomos tecendo e costurando este projeto. O desejo e a motivação ajudaram no processo de invenção e criatividade do grupo.

Como parte do projeto, levando-se em consideração os princípios e a metodologia da Educação Popular, que é o diálogo permanente com os educandos, foram realizados no primeiro semestre de 2015 dois encontros com familiares atendidos nos CAPS ADIII e CAPSi para apresentação da proposta, levantamento das expectativas e sugestões sobre o processo.

A coordenação do projeto foi responsabilidade dos técnicos da ETSUS (assistentes sociais e pedagoga). Os facilitadores foram profissionais de saúde da nossa rede de atenção psicossocial (CAPS ADIII, consultório na rua), área técnica de saúde mental e da ETSUS, de diversas categorias profissionais (assistentes sociais, psicólogas, arteterapeuta, musicoterapeuta, terapeuta ocupacional e dois facilitadores de biodança).

Participaram da oficina vinte familiares, sendo dezoito do sexo feminino e apenas dois do sexo masculino, com faixa etária que variou dos vinte aos setenta anos. O grupo se constituiu de pessoas com diversos graus de escolaridade e renda, não sendo esses fatores obstáculo para a efetividade do trabalho, pois a interação do grupo se mostrou muito positiva.

A formação se deu em 40 horas, distribuídas em 10 (dez) encontros semanais de 4 (quatro) horas, organizada em dois módulos com os seguintes conteúdos: Cuidando de quem cuida; Mitos, a questão social, cultural e antropológica da questão do uso das drogas; Aspectos biopsicoculturais e motivacionais para o uso de drogas; Fatores de risco e proteção; Como lidar com a situação nos momentos mais difíceis; Empoderamento dos familiares, Reforma Psiquiátrica e Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras drogas e a Rede de Atenção em Saúde Mental; Epidemiologia sobre drogas: os diversos tipos de drogas; A lógica de Redução de Danos; Rede de Atenção.

Um dos pontos fundamentais do nosso projeto e das nossas discussões era que a formação pudesse acolher as pessoas e que nesse processo não perdêssemos de vista o caráter de formação. Esses aspectos foram norteadores dos encontros, e analisamos como fatores fundamentais para sua efetividade.

A metodologia dos encontros foi construída tendo como base conceitual, como já mencionamos, os princípios da educação popular, dando maior significado aos conteúdos trabalhados, numa aproximação com as vivências de cada participante. Priorizou-se também a utilização de atividades artísticas e lúdicas como instrumentos que possibilitaram reflexão individual, como também grande interação entre todos.

O uso da arte como elemento que desperta as afetações e a subjetividade de cada ser, por meio da experimentação das diversas sensações que ela proporciona, foi um fator marcante em todo o processo da Formação. Rolnik (1989) define diferente da memória, inteligência, percepção, sentimentos, a sensação como "algo a mais" que acontece na nossa relação com o mundo, que se passa em outra dimensão da subjetividade, entendendo ser esta bastante desestimulada no tipo de sociedade capitalística em que vivemos na contemporaneidade. Essa dimensão das sensações a autora denomina de corpo vibrátil. É um algo mais que captamos para além da percepção (pois essa só alcança o visível), e o captamos porque somos por ele tocados, um algo mais que nos afeta para além dos sentimentos (pois estes só dizem respeito ao eu). Assim, motivadas a possibilitar diversas afetações por meio da percepção e descoberta do corpo vibrátil de cada um, a metodologia foi sendo construída nessa perspectiva.

Levando-se em consideração a solicitação dos familiares, no que se refere a um lugar ao ar livre, realizamos os primeiros encontros na escola de Ciência-Física, localizada no Parque Moscoso. Esse parque é o mais antigo da cidade de Vitória, parque centenário que remete a lembranças afetivas dos capixabas. Percebemos a possibilidade de utilizar os recursos da Física, da Matemática e da Química com os conteúdos da oficina, além do próprio parque com uma área verde e com plantas centenárias.

 

Os encontros e suas possibilidades de afetação: relato de alguns momentos

Desde os primeiros encontros, trabalhamos aspectos de fortalecimento da autoestima, dentro da temática "Cuidando de quem cuida; Mitos, a questão social, cultural e antropológica da questão do uso das drogas", com as dinâmicas da "história do nome" e os afetos envolvidos nessa história, com consequente trabalho de arteterapia no desenho desse nome. Abordamos também a temática proposta para o dia utilizando o recurso audiovisual, o vídeo "Crack é crack", como uma forma lúdica de trabalharmos a questão. A vivência da dinâmica "Drogas/Remédio/Veneno", que propôs a associação de hábitos do cotidiano a esses conceitos, permitiram um debate intenso e a desconstrução de ideias e verdades absolutas.

No desenrolar do trabalho, estabeleceu-se um movimento dinâmico, com a intenção de trabalhar a constituição de sujeitos sociais, buscando construir projetos de liberdade, de autonomia, de participação e de reflexão. Pedrosa (2006) reafirma que: "a educação popular em saúde transforma-se em algo mais que estratégico, torna-se um dispositivo agenciador de singularidades que sobrevivem dispersas, apesar da invasão contínua da cultura biomédica, a qual invade o conhecimento e as estratégias da população" (p. 47).

Ao trabalharmos o conteúdo "Fatores de risco e proteção", foi proposto ao grupo um "passeio" pelo parque, com a tarefa de observar a presença desses fatores no local, suas impressões e a representação para cada um deles. O resultado dessa atividade foi surpreendente, ao relatarem tanto os elementos da natureza como elementos da arquitetura (pontes, balanços, bancos) e o comportamento e a atitude das pessoas que se encontravam no local, diante dos fatores de risco e de proteção. O relato de um dos participantes, apontando como fator de risco a presença de um morador de rua ou mendigo, disparou afetos e sentimentos ambíguos no grupo, que teve seu ápice quando outro participante disse conhecer essa pessoa e sua história. Essa atividade foi complementada com o vídeo "Caminhando Com Tim-Tim" e "Seu João", que permitiu diálogos intensos sobre preconceito e discriminação de sujeitos e sua história.

A visita guiada aos equipamentos da Escola da Ciência-Física possibilitou momentos lúdicos e de ligações imediatas de elementos da matemática, da física e da química com os desafios do cotidiano e com a temática em discussão "Como lidar com a situação nos momentos mais difíceis". Alavancas, pêndulos, energia, calor, foram se constituindo como elementos importantes para o fortalecimento daquelas pessoas e a importância de redes de apoio para lidar com o cotidiano.

Realizamos também uma vivência de biodança, em que os familiares, de início tímidos, puderam se manifestar de uma forma rica e vibrante, produzindo efeitos significativos nessas pessoas a partir desse encontro. A biodança, criada por Rolando Toro, psicólogo e antropólogo chileno, é um sistema que favorece o desenvolvimento humano por meio de vivências integrativas, utilizando-se a música e a dança. Tem como proposta elevar o nível de saúde, melhorar a comunicação, estimular a criatividade e possibilitar a renovação existencial (Pinho, 2009). A cada encontro, o grupo foi interagindo ainda mais, criando uma solidariedade entre eles, marcada pela alegria e entusiasmo de estar juntos. A invenção e novas formas de expressividade para as emanações de um corpo vibrátil possibilitam a incorporação das forças do mundo em nossa subjetividade, indissociáveis de um devir-outro de nós mesmos (Rolnik, 1989).

Para abordagem do tema "Princípios da Atenção Psicossocial", os participantes foram orientados a utilizar um espaço delimitado na sala e cada vez mais a utilizar um espaço menor, perdendo a liberdade para se movimentarem. Essa vivência foi muito significativa para auxiliar na discussão do tema "Reforma Psiquiátrica e Política Nacional de Saúde Mental", com resgate da história da luta antimanicomial, complementada pelo vídeo que mostrava a realidade dos manicômios e as mudanças do cuidado.

A temática da Redução de Danos foi abordada com a instalação de um mercadinho com produtos de material reciclado, onde cada participante foi convidado a fazer suas compras. As escolhas dos produtos de cada um foram analisadas, a partir da lógica da motivação para a compra. Complementamos com o texto de Fiore (2013), que disparou discussões interessantes a partir do depoimento de algumas pessoas que eram hipertensas, diabéticas, no grupo, e o relato de como lidavam com suas compulsividades do dia a dia.

Um dos encontros (penúltimo) aconteceu no Museu Solar Monjardim. Esse Museu está localizado em um terreno que foi uma fazenda com uma casa do século XIX. Percorremos todos os espaços dessa casa, guiados por uma educadora que nos deixou encantados com a riqueza dos detalhes com que ia contando os hábitos e costumes daquela época. Todos foram envolvidos por aquelas histórias, que nos levava a uma viagem no tempo de nossos antepassados e a nossa história de vida.

Logo após essa visita, realizamos uma vivência, chamada "Tenda dos Contos" (Gadelha & Freitas, 2010), ligada aos espaços comunitários do Nordeste. Montamos do lado de fora, debaixo de uma tenda, um espaço que remontava espaços antigos e memórias: cadeira de balanço, livros e objetos antigos. Os participantes foram orientados a trazer um objeto que remetesse a algo significativo para o momento pelo qual estavam vivendo. Na cadeira de balanço, as pessoas foram convidadas, uma a uma, a sentar e a relatar suas histórias e lembranças. Os relatos que se seguiram foram de uma delicadeza que sensibilizou a todos, diante de tantas emoções e afetos envolvidos. Benjamim (1994) revela a potência do ato de narrar, e diz que quem escuta uma história está em companhia do narrador. O sentar naquela cadeira tinha um efeito quase mágico de quem contava sua história e de quem compartilhava, trazendo um poder de nos religar ao universo de nossa condição humana. O surpreendente é que foram narrados episódios tristes, quase trágicos, mas de uma forma alegre e com efeitos de libertação de algo que pudesse estar preso na garganta.

No último encontro, como dinâmica, foi proposta uma atividade de arte. Os participantes receberam uma caixa de madeira e foram convidados a decorar essa caixa, denominada de caixa dos tesouros. Disponibilizamos diversos materiais (retalhos, cola colorida, miçangas, fitas, cartolinas). Em seguida, cada pessoa iria colocar nessa caixa os tesouros que foram ativados, desenvolvidos e descobertos nesse processo de formação. Sugerimos trocas de tesouros entre os participantes. Aproveitamos o momento e fizemos uma avaliação de todo o processo. Várias falas nos surpreenderam, principalmente o de assumirem o compromisso de serem multiplicadores dessa formação, sugeriram envolver os usuários nessa formação, principalmente adolescentes, e de nos solicitar a continuidade desse processo.

 

Considerações finais

A Oficina de Acolhimento e Formação para Familiares, nome oficial do projeto, representou um momento importante para a ETSUS-Vitória, sendo uma oferta de formação inovadora no trabalho ligado à comunidade. Os princípios e a metodologia da Educação Popular, unindo-se aos princípios da atenção psicossocial mostraram ser dispositivos que fortaleceram o encontro, o acolhimento, e possibilitaram tratar de temas complexos com muita leveza e de uma forma que se permitiu fazer um mergulho na geografia dos afetos, como nos descreve Rolnik (1989). Esses encontros constituíram-se em bons encontros, na visão de Spinoza, permeados de trocas, de novos conhecimentos, de muitos afetos e alegria. Alegria que nos surpreendeu inicialmente em função das possíveis experiências negativas já vivenciadas pelas famílias, gerando no decorrer do processo o desejo pelo próximo encontro e pela solicitação da continuidade destes.

A realização dessa oficina reacendeu uma centelha de esperança diante de um mundo tão individualizado, isolado, e que, recorrendo à simplicidade, tanto nos preparativos como nos materiais usados, priorizando o encontro, as relações, os sentimentos e as emoções, trazem efeitos surpreendentes para todos os envolvidos.

Nos belos cenários do Parque Moscoso, da Escola da Ciência-Física, do Museu Histórico, e das vivências e reflexões na ETSUS, a natureza, a arte e a ciência, a física e a história, proporcionaram a todos nós, facilitadores, coordenadores e familiares, o privilégio de embarcar na intensidade da existência, da arte de viver e fazer a vida acontecer por meio da arte.

 

Referências

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Recebido em: 31/03/2016
Aprovado em: 15/09/2016

 

 

1 Agradecimentos em especial aos familiares que nos possibilitaram este Encontro, aos facilitadores, com destaque para Denis Petuco e a equipe da ETSUS/Vitoria.

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