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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.3 São João del-Rei set./dez. 2016

 

Viagens pelos caminhos do sertão: construção compartilhada de conhecimento sobre temática álcool e outras drogas1

 

Travel the backcountry paths: shared construction of knowledge about alcohol and other drugs

 

Viajes por los caminos del campo: construcción compartida del conocimiento en la temática del alcohol y otras drogas

 

 

Josenaide Engracia dos SantosI; Tiago Antunes dos SantosII; Melina Mafra ToledoIII; Susy Rocha de MatosIV

IGraduação em Terapia Ocupacional, Psicologia. Especialização em Saúde Mental e Mestrado em Saúde Coletiva. .Pós-Graduação em Sociologia. Atualmente é professor Adjunto da Universidade de Brasília. Tem experiência na área de Psicologia, atuando principalmente nas seguintes áreas: saúde mental, reabilitação psicossocial, educação em saúde, gestão em saúde e comunicação em saúde . Doutorado em Ciências da Saúde. Faculdade Ciências da Saúde. Universidade de Brasília. E-mail: josenaidepsi@gmail.com
IIGraduação em Direito. Especialista. Facilitador do Centro de Referencia de álcool e outras drogas da Universidade do Estado da Bahia. E-mail: ski.ter_valentine@hotmail.com
IIIPossui graduação em Enfermagem pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2004). Mestre e especialista pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP). Docente da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (FEPECS). Possui experiência em docência ensino superior e atuação prática em Saúde Coletiva, Clínica Médica e Saúde da Mulher. E-mail: melinamafra@hotmail.com
IVPsicóloga. Mestre em Ciências da Saúde e docente da CRR/UNEB. E-mail: susyrm@hotmail.com

 

 


RESUMO

Uma mudança paradigmática no cuidado ao usuário de álcool e outras drogas exige capacitação para os profissionais que exercem esse desafio. O presente artigo apresenta o relato de uma capacitação que teve como objetivo refletir sobre a possibilidade de transformação das práticas de cuidado. Considerou-se a experiência cotidiana dos profissionais numa perspectiva da abordagem construtivista. As atividades foram realizadas com profissionais de saúde, assistência social, educação e segurança pública no interior da Bahia. Pôde-se perceber que o tema drogas ainda se pauta na polaridade bem e mal, caracterizado mais como uma ameaça que um problema social. Capacitar-se exige disposição e é um processo de (re)aprender habilidades, conceitos e conhecimentos que se relacionem de forma afetiva, crítica e técnica no atendimento aos usuários.

Palavras-chave: Drogas; Políticas Públicas; Construtivismo.


ABSTRACT

A paradigm shift in the care of alcohol and other drugs users requires training the professionals acting in this area. This paper presents a training experience intended that aimed to think on the possible transformation of healthcare practices. The everyday experience of professionals was considered from a constructivist approach. The activities were carried out with professionals coming from the areas of: health, social care, education and public safety working in the interior of the state of Bahia. The paper concludes that the drugs theme is still viewed from a radical perspective of good or evil, and characterized more as a threat than a social problem. Training requires in this case disposition from the professionals and constitutes a process of (re) learning skills, concepts and knowledge that relate affectively, critically and technically to the treatment of users.

Keywords: Drugs; Public Policies; Constructivism.


RESUMEN

Un cambio de paradigma en la atención a los usuarios de alcohol y otras drogas exige una capacitación para los profesionales que ejercen este desafío. El presente artículo presenta el informe de una capacitación que tuvo el objetivo de reflexionar sobre la posibilidad de transformación de las prácticas de salud. Fue considerada la experiencia cotidiana de los profesionales desde la perspectiva del enfoque constructivista. Las actividades se llevaron a cabo con profesionales de las áreas de la salud, la asistencia social, la educación y la seguridad pública del interior del estado de Bahía. Así, se observó que el tema de las drogas todavía es visto desde una perspectiva radical de bueno o malo, caracterizada más como una amenaza que como un problema social. La capacitación requiere disposición y constituye un proceso de (re) aprender habilidades, conceptos y conocimientos que se relacionen de manera afectiva, crítica y técnica en el servicio a los usuarios.

Palabras claves: Drogas; Políticas Públicas; Constructivismo.


 

 

Introdução

O uso de drogas era presente na vida dos povos antigos, pois possibilitava proximidade com "deuses" e com as coisas transcendentais; contudo, na "sociedade moderna contemporânea, a droga assume forma distinta, devido às visões de mundo que expressam modos particulares de construção social da realidade" (Velho, 2003, p. 84), as pessoas mobilizam diariamente uma série de operações enunciativas sobre o conceito de droga.

O conceito de droga é altamente problemático e, "dependendo do critério e da posição do investigador, pode abraçar desde a heroína ao papo de anjo" (Velho, 2003, p. 85). Atualmente existe uma tentativa desenfreada de conceituá-la, principalmente entre os profissionais que lidam com a temática. O importante, portanto, não parece ser nem a substância nem sua definição, e muito menos sua capacidade ou não de alterar de algum modo o ser humano, "mas muito mais o discurso que se constrói em torno das drogas" (Olmo, 1990, p. 13). Discurso esse muitas vezes alimentado por um volume grande de informação, desinformação e contrainformação, produzindo uma saturação funcional que acaba por ensejar políticas de recolhimento aos usuários. É necessário que a sociedade e os profissionais possam ser municiados de informações qualificadas e acuradas que avancem na pauta de discussão da temática.

O Governo Federal, em 2010, em parceria com outros ministérios e sob a lógica velada do combate às drogas, lança o "Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas" (Decreto nº 7.179, 2010). Como parte desse plano foi instituída a criação de Centros Regionais de Referência para formação de profissionais de saúde e assistência social na atuação com usuários de crack e outras drogas. Iniciativa abraçada pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), com a implantação do Centro Regional de Referência para formação permanente dos profissionais que atuam nas redes de atenção integral à saúde e assistência social da Bahia - CRR/BA (UNEB).

Nesse contexto, a UNEB desenvolveu capacitações para os profissionais da rede de assistência social, saúde, segurança pública, justiça e educação nos municípios de Paulo Afonso e Senhor do Bonfim, direcionada à dinâmica social local em consonância com a política de atenção integral ao uso de droga. Também se buscou a desfamiliarização de estereótipos, visto que "os estereótipos podem ser divididos em três tipos: médico, cultural e moral, que servem como fator de coesão, de consenso em torno da figura do bem e do mal na temática droga" (Olmo, 1990, p. 23).

O discurso médico (modelo médico sanitário), ao considerar o usuário um "doente" e a droga um "vírus", uma "epidemia" ou uma "praga", sustenta o estereótipo médico. O discurso dos meios de comunicação, ao apresentar o consumidor como o que se opõe ao consenso - chamando-o de "drogado" - voluntária ou involuntariamente, independentemente se é rico ou pobre, mas sempre "jovem", serve para criar o estereótipo cultural. Ao qualificá-lo de "viciado" e "ocioso", e a droga como "prazer proibido", "veneno da alma" ou "flagelo", difunde o estereótipo moral, que tem sua origem não apenas no discurso dos meios de comunicação, mas também no discurso jurídico (Zorrila, 1983).

A discussão sobre política, cuidado e estereótipos pela equipe do CRR/UNEB objetivou potencializar o trabalho das equipes de assistência social, saúde, educação e justiça dos municípios, no sentido de aumentar a resolutividade e rever (pré) conceitos com relação à temática droga. O objetivo deste artigo é relatar a experiência do CRR/UNEB de conduzir uma capacitação sobre a temática de álcool e outras drogas pautada na abordagem construtivista do conhecimento.

 

Compartilhando Experiências

Durante a capacitação buscou-se incessantemente a experiência cotidiana dos profissionais do sertão baiano, tendo como ponto de partida a teoria desenvolvida a partir das práticas relatadas. A experiência aconteceu de março de 2014 a dezembro de 2015 nos municípios de Paulo Afonso e Senhor do Bonfim da Bahia, que juntos possuem uma população estimada em 190.071 habitantes com características semelhantes quanto ao nível socioeconômico e alto índice de violência, incluindo-se aí transtornos mentais e uso abusivo de álcool e outras drogas.

A perspectiva metodológica foi ancorada na abordagem construtivista, na qual o conhecimento é construído por meio da reflexão crítica de todos os envolvidos no "processo de ensino-aprendizagem, a partir de experiências prévias, estruturas mentais e crenças. A realidade é, portanto, construída pelo sujeito que aprende" (Acioli, Azevedo, Pascoal, Ferreira & Silva, 2002, p. 19).

É uma metodologia pautada na aprendizagem, reflexão contínua e ressignificação das ações cotidianas; é um processo de interação em que sujeitos possuidores de saberes diferentes se articulam a partir de interesses comuns. A principal aprendizagem é aprender a aprender, ou seja, desenvolver processos dialógicos e interativos, superando o tradicional dispositivo de sujeição (Fleuri, 2012, p. 12).

A capacitação ocorreu na UNEB de Paulo Afonso e de Senhor do Bonfim. Participaram da capacitação um total de 120 profissionais, sendo: 10 médicos, 10 enfermeiros, 10 psicólogos, 10 assistentes sociais, 20 policiais, 10 conselheiros tutelares, 10 professores de ensino médio e fundamental e 40 agentes comunitários de saúde.

O critério de seleção para participação foi definido pela Secretaria Municipal de Saúde de Paulo Afonso e Secretaria Municipal de Assistência Social de Senhor do Bonfim. No caso dos policiais militares, foi acordado com a Secretaria de Justiça do Estado da Bahia e comando da polícia em Senhor do Bonfim, necessário para que pudessem ser liberado das suas atividades. Os profissionais foram organizados em dois grupos composto por 60 participantes distribuídos entre os dois municípios. A equipe do projeto foi composta por um coordenador, dois facilitadores (psiquiatra e psicólogo), para organização e execução das atividades pedagógicas. As estratégias metodológicas utilizadas foram: levantamento de demandas, oficinas, exposições dialogadas, debates, role play, exposição de vídeos, participação em reuniões e eventos da comunidade.

 

Resultados e Discussão

Na capacitação, os participantes narraram uma multiplicidade de fenômenos vivenciados com as substâncias psicoativas, às quais atribuíram significados, que aqui serão expressos em agrupamentos: percepções sobre álcool e outras drogas, os significados das substâncias psicoativas e lidando com a temática álcool e outras drogas.

 

Percepções Sobre Álcool e Outras Drogas: Uma Primeira Aproximação

A aproximação se deu por meio dos diálogos estabelecidos entre os profissionais e os facilitadores, como um corpo de conhecimento que se organizou a partir da linguagem, tendo como base o mundo vivenciado pelos profissionais. As representações elaboradas sobre o mundo são uma ponte para construção do conhecimento, que dialoga, discute, exibe e reconstrói a história dos profissionais, com suas dificuldades com o manejo de situações relacionadas ao uso de substâncias psicoativas, sempre permeadas por um contexto complexo e multifacetado.

Nas conversas com participantes do curso, a temática de álcool e outras drogas era frequentemente referida como "doença" ou estado de "enfraquecimento da cabeça". Trata-se, na verdade, de dois ângulos de abordagem do problema. O primeiro conduzia a uma discussão de substâncias psicoativas como algo que apresenta uma localização identificável no metabolismo da pessoa: diz-se que tudo está relacionado à "dependência química". No segundo tipo de discurso, colocava-se ênfase sobre a capacidade pessoal de escolha, cujo comprometimento reflete-se claramente no desempenho social do indivíduo.

No discurso genérico sobre as drogas, a categoria "violência" funcionava como eixo inicial, uma vez que nesta se referiam e classificavam vários comportamentos desviantes que se multiplicavam nas periferias e provocavam medos e preconceito. A discussão girava em torno dos determinantes que envolvem a droga, sempre carregada de situações humanas angustiantes, desesperadoras, como a violência, miséria e situações conflitantes, muitas das vezes referidas como intoleráveis, sentindo-se impotentes, ou como muitos se intitularam: verdadeiros Dom Quixotes.

Os trabalhadores que lidam com a interface entre saúde mental e álcool e outras drogas enfrentam, segundo Silva, Beck, Figueiredo e Prestes (2012), muitos atravessamentos e desafios que surgem no cotidiano laboral: grande demanda, "urgências" sociais e subjetivas dos sujeitos implicados, limitações do trabalho em equipe, desconhecimento e fragilidade da rede de saúde e das relações com os gestores.

As histórias relacionadas com a temática droga eram pautadas em um raciocínio excludente em dicotomias como bonito-feio, bem-mal, entre outros, que, muitas vezes, serve como base para julgamento do que é positivo e do que é negativo, o que conduz em última análise a uma forma de pensar maniqueísta e tendenciosa e, porque não dizer, insuficiente. Nas histórias foi comum ouvir uma análise unilateral sobre a temática, demonstrando o reducionismo e base compreensiva deficitária e que, provavelmente interfere no manejo das situações e vivências, e "pode acarretar em mais preconceitos do que conhecimentos" (Vasconcelos, 2001, p. 64).

Quando discutidos os conceitos em torno do uso de álcool e outras drogas, vários participantes estabeleciam uma associação com a delinquência. A imagem do usuário remetia, geralmente, ao delinquente, que perambula pela cidade totalmente alheio a redes de apoio. O termo delinquente apontava para alguém que infringiu as normas. Considerava-se que os usuários de álcool e outras drogas pertencessem ao domínio anônimo das ruas. Media-se a irracionalidade da delinquência, assim, por uma ruptura das normas e das relações sociais. Essa analogia entre delinquente e errante nas ruas revelou-se a imagem principal das situações relatadas pelos participantes no Curso, que sinalizaram dificuldades em relação aos casos por não se sentirem qualificados para interagir com experiências que estão fora do seu campo imediato de saber.

 

Os Significados do Uso de Substâncias Psicoativas: Construção do Conhecimento

A construção do conhecimento foi marcada pelo compartilhamento de crenças, técnicas assistenciais, discussão clínica, bem como as implicações práticas acerca da Política de Atenção ao Usuário de Substâncias Psicoativas.

No decorrer dos encontros havia sempre o diálogo constante entre a teoria e a experiência, além de buscar inaugurar um novo olhar no que se refere ao processo de discussão em torno de uma temática tão complexa. O desafio nessa fase foi a interação dialética teórico e empírica, visto que "é necessária uma base dialógica para construção de conhecimento" (Bachelard, 1977, p. 10).

Os temas surgiam, cada vez com mais naturalidade. Na construção de conhecimento os participantes sinalizaram que a droga é toda substância capaz de alterar as condições psíquicas, físicas, e que, portanto, pode-se esperar qualquer coisa da pessoa que as utiliza. Outro aspecto ressaltado se referiu às diferenças de uso de substâncias entre o pobre-preto e o rico-branco: "existe uma distinção nítida entre o jovem negro e marginalizado que vende a droga (criminoso) e o jovem branco e com inserção social diferenciada que a adquire (doente). Para o primeiro, cadeia, para o segundo, tratamento". (Olmo, 1990, p. 13). Tal preconceito acaba por homogeneizar as pessoas pobres como violentas e perigosas, e por enfraquecer tentativas de vinculação e entendimento das reais dimensões do seu problema.

Emerge também nos grupos a ideia de que a droga é a grande responsável por todos os problemas sociais; aparecem falas com conceitos moralistas em relação à temática, excessiva generalização sem diferenciar os fatos das opiniões nem dos sentimentos. Os facilitadores, ao problematizarem e estenderem o intercâmbio, ressaltaram que conceitos morais, dados falsos e sensacionalistas (citando o crack como "o pior mal da sociedade"), onde se mistura a realidade com a fantasia, contribuem para que a droga seja assimilada à literatura fantástica e se associasse ao desconhecido e proibido e, em particular, ao temido (Olmo, 1990, p. 21).

Também é relatado o pânico sobre o consumo entre os jovens, responsável, segundo os participantes, pelas grandes situações de delinquência. Para Vasconcelos (2001, p. 68), o alto nível de desemprego e o preconceito contra os jovens da periferia sã também responsáveis pela delinquência. Além do mais, o jovem pobre e sem perspectiva tem menos a perder ao se desviar dos padrões considerados corretos de condutas. Colocar uma arma na cintura provoca reviravolta nas relações de poder: de humilhados socialmente passam a ser temidos. Contudo, esses mesmos jovens "têm uma trajetória trágica a percorrer: as constantes disputas entre as gangues e o enfrentamento com a polícia tornam-lhe a expectativa de vida muito curta" (Zaluar, 1985, p. 9). Novamente os facilitadores sinalizam no grupo, que

Ao criar pânico, o resultado é que os jovens já não nos levam a sério... quando os organismos oficiais pretendem afirmar que todas as drogas (por suposição somente as ilegais) são igualmente perigosas, os jovens preferem experimentar por si mesmos com as conseqüências que todos conhecemos (Olmo, 1990, p. 25).

No grupo, foi sinalizado que há uma necessidade do discurso oficial em manter o fenômeno em um estado de ignorância, mantendo na escuridão a realidade do fenômeno da droga para poder manipular a sociedade. Para Rubens Alves (1980, p. 22) "as palavras, inclusive as científicas, têm um poder enfeitiçante. Às vezes é necessário recuperar os olhos virgens, para ver as coisas como se fosse pela primeira vez". O que foi negociado coletivamente é que o conhecimento não acontece simplesmente ouvindo conteúdos sobre uso de substâncias psicoativas, ou por meio de meras mudanças técnicas, mas principalmente mudanças dos processos, dos atos de saúde e, sobretudo, das pessoas.

Outra temática que proporcionou bastante interesse foi a Redução de Danos (RD). As práticas relatadas eram baseadas na abstinência e internamento, mesmo que ambos os municípios tenham em sua rede Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e Outras Drogas (CAPSAd). Foi enfatizado que a RD configura-se como práticas de autocuidado para mudar o foco da abstinência e da internação para liberdade de escolha e da corresponsabilidade do usuário em seu tratamento.

Nesse momento, a droga aparece na circulação da fala como uma palavra sem definição, imprecisa e de uma excessiva generalização, sem conseguir diferenciar os fatos das opiniões nem dos sentimentos. A polaridade entre bem e mal emerge novamente. Foi sinalizado para o grupo que o sistema social cria consenso em torno dos valores e normas que são funcionais para sua conservação como forma de controle social, que ocultam outros problemas muito mais profundos e preocupantes que as drogas, como a miséria, desigualdade social, falta de oportunidade, dentre outros.

As concepções sobre as drogas deixam de ser referidas como uma ameaça para serem reconhecidas como um problema social complexo a ser enfrentado com políticas públicas intersetoriais. Para tanto as ações interdisciplinares são primordiais para se pensar sob várias perspectivas o consumo abusivo de drogas e o cuidado com a saúde. Relata-se a dificuldade de integração dos vários dispositivos e recursos setoriais da justiça, da saúde, da educação, da assistência social e da comunidade.

No que diz respeito às políticas de tratamento, o grupo fez alusão ao CAPSAd e às comunidades terapêuticas. Quanto às comunidades, é interessante ressaltar que elas cresceram, multiplicaram-se e pautam o tratamento na abstinência, indo de encontro à lógica proposta pelos CAPSAd, que têm como premissa a construção de um projeto terapêutico singular, no qual a pessoa é o corresponsável pelo cuidado (Carvalho & Cunha, 2006).

A discussão clínica teve o objetivo de fortalecer e valorizar ações realizadas nos municípios quanto à redução de danos e intersetorialidade, com o fim de concretizar a política de atenção integral de álcool e outras drogas e "instrumentalizar o profissional para intervir nos problemas de saúde da população, com um saber e uma prática mais articulados para atender à complexidade da demanda de quem sofre e procura ajuda" (Chiavagatti, Kantorski, Willrich, Cortes, Jardim & Rodrigues, 2012, p. 16).

 

Atendimento Qualificado: Terceiro Momento

Nesse momento, o grupo ressaltou a necessidade de uma compreensão sobre a questão dos usuários de drogas como "categoria de risco", sendo importante considerar as singularidades dos sujeitos, situações de desigualdade social, violência e a extrema exclusão social a que estão submetidos os usuários atendidos na comunidade. Ressaltam a importância de executar políticas sociais preventivas, investimentos na qualificação de profissionais que trabalham em comunidades de baixa renda, para ampliar efetivamente o cuidado, diminuindo os danos sociais e à saúde.

Os participantes do curso enfatizaram a necessidade de capacitação contínua para que pudessem atuar com mais segurança diante das situações relacionadas a álcool e outras drogas, indo ao encontro do que é proposto pelo Ministério da Saúde, que estabeleceu a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde em agosto de 2007, por meio da Portaria GM/MS nº 1.996, que pretende recorrer ao próprio trabalho como ferramenta de aprendizagem no cotidiano das pessoas (Brasil, 2007).

A capacitação, segundo o grupo, permitiu relacionar e (re)estruturar os conceitos pertinentes à temática para que a partir daí fossem (re)elaboradas ações de intervenção sob uma lógica coletiva e interdisciplinar no trabalho, com uma pedagogia problematizadora, fortalecendo uma relação mais dialógica. A circulação das falas permitiu aos participantes e facilitadores observarem o que já havia afirmado Lane (2004) em seu trabalho com grupos: quando as pessoas se reúnem em um grupo para discutirem seus problemas, percebem que eles não são exclusivos ou individuais, pois, ao escutarem os companheiros, descobrem que existem muitos aspectos comuns decorrentes da condição de vida e do contexto sócio-histórico em que todos vivem. Também Sartre (2002) considera que o grupo se constitui a partir de uma necessidade comum ou de um perigo compartilhado por todos. Em torno desses motivos iniciais é que o grupo produz um objetivo comum para a uma práxis coletiva.

 

Considerações Finais

As capacitações revelaram formas próprias de abordar e lidar cotidianamente com o uso de substâncias psicoativas. Uma caminhada foi construída. Considerando a complexidade da cena social nas quais estão inseridos os municípios-alvo do CRR/UNEB, buscou-se uma estratégia educativa como processo contínuo e que deve ser potencializada a cada momento, desafiando uns aos outros a cada instante. Todavia, há necessidade da implantação de programas locais de capacitação e uma sensibilização dos profissionais em sintonia com política de atenção integral a uso de álcool e outras drogas.

 

Referências

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Recebido em: 30/03/2016
Aprovado em: 15/09/2016

 

 

1 Apoio: Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) do Ministério da Justiça.

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